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PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA

Ladislau cordeiro dos Anjos1

O Código Civil de 1916 (Lei nº. 3.071, de 1º de janeiro de 1916) determinava


que: “o proprietário de fonte não captada, satisfeitas as necessidades de seu consumo,
não pode impedir o curso natural das águas pelos prédios inferiores” (Capítulo II, Seção
V, artigo 565) (grifou-se).

Com a edição do Decreto nº. 24.643, de 10 de julho de 1934, denominado


“Código de Águas”, estas passaram a ser classificadas em: a) públicas, de uso comum
ou dominicais (artigos 1º ao 6º); b) comuns (art. 7º); e c) particulares (art. 8º). Sobre
estas últimas, o Código de Águas decreta: “São particulares as nascentes e todas as
águas situadas em terrenos que também o sejam, quando as mesmas não estiverem
classificadas entre as águas comuns de todos, as águas públicas ou as águas comuns”
(Título I, Capítulo III, artigo 8º).

Observa-se que não havia no Código de Águas qualquer preocupação com a


preservação dos recursos hídricos, posto que àquela altura não se cogitava serem tais
recursos esgotáveis, mas, do contrário, que se tratava de bem renovável e inesgotável. A
preocupação premente girava em torno da busca pelo desenvolvimento industrial,
podendo-se vislumbrar entre os artigos 139 e 201 do mesmo Decreto a regulamentação
quanto ao uso das águas para a produção de energia hidroelétrica.

Apenas em 1988, com a promulgação do novel texto constitucional, o meio


ambiente deixa de ser regulamentado como mero recurso a ser explorado e passa a ser
visto como ferramenta essencial à sadia qualidade de vida, sendo essencial a sua defesa
e preservação para as presentes e futuras gerações, como consta da redação do artigo
225 da vigente Constituição Federal (Título VIII, Capítulo VI).

Ademais, em seu artigo 20, inciso III, a Constituição Federal de 1988, dispôs
sobre a dominialidade das águas, dizendo ser da União “os lagos, rios e quaisquer
correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado,
sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele
provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais” (Título III, Capítulo
II), sem mencionar, em momento algum, a existência de águas comuns ou particulares.
1
Acadêmico de Direito na Faculdade Estácio de Alagoas
No artigo seguinte, a Constituição determina competir á União “instituir sistema
nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos
de seu uso” (artigo 21, inciso XIX). Para tanto, foi legislado neste sentido, através da
Lei nº. 9.433, de 08 de janeiro de 1997 (Política Nacional de Recursos Hídricos) que,
em seu artigo 1º, ao discriminar os fundamentos da respectiva política nacional de
recursos hídricos, estabelece: “a água é um bem de domínio público”, tratando-a como
tal ao longo de todo o seu texto e excluindo a existência de águas dominicais, comuns e
particulares.

Contudo, ao ser editado o novo Código Civil (Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de
2002), este seguiu a linha de raciocínio adotada no artigo 565, do anterior Código Civil
de 1916. Assim, o atual Código Civil acabou por reproduzir em seu artigo 1.290 a
seguinte redação: “o proprietário de nascente, ou do solo onde caem águas pluviais,
satisfeitas as necessidades de seu consumo, não pode impedir, ou desviar o curso natural
das águas remanescentes pelos prédios inferiores” (Capítulo V, Seção V, artigo 1.290)
(grifou-se).

Desta feita, observa-se que o Código Civil contraria as disposições


constitucionais e a política nacional de recursos hídricos quando sustenta, em seu artigo
1.290, a possibilidade de classificação das águas como um bem particular, pois sendo a
água um bem de domínio público, esta não pode vir a ser privatizada por particulares.

No entanto, civilistas e administrativistas defendem a redação insculpida no


Código Civil de 2002, e por conseguinte a dominialidade particular das águas, a
exemplo de Maria Helena Diniz, Silvio de Salvo Venoza, Maria Silvia Zanella Di Pietro
e José dos Santos Carvalho Filho, os quais apenas advertem para a necessidade de se
evitar o desperdício, o que iria de encontro ao princípio do acesso universal aos bens
ambientais2.

Por outro lado, os doutrinadores de direito ambiental, a exemplo de Paulo de


Bessa Antunes, Américo Luis Martins da Silva e Paulo Affonso Leme Machado,
atentam para a importância da água enquanto representante do direito à vida e ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, tratando-se, portanto, de um bem de uso comum
do povo, impossibilitando, assim, a sua apropriação privada e ficando o seu uso

2
ASSUMPÇÃO, Fernanda Aparecida Mendes e Silva Garcia. A DOMINIALIDADE E GESTÃO DAS ÁGUAS:
Inconstitucionalidade do art. 1.290 do Código Civil.
condicionado à concessão ou autorização fundamentada pelo poder público. Pois, nas
palavras de Machado, um bem essencial à vida não pode ser alienável3.

Neste ponto vale salientar a possibilidade de o poder público, por sua vez, fazer
incidir sobre o uso da água a cobrança de tarifa pública, não de maneira comercial, mas
como instrumento de racionalização dos recursos hídricos.

Portanto, de todo o exposto, depreende-se que a Constituição Federal, Lei Maior


do nosso Estado Democrático de Direito classifica as águas como um bem de uso
comum do povo, o que a torna inalienável e por conseguinte impossibilita a apropriação
particular, ou privatização, da mesma. Destarte, é inconstitucional a determinação
presente no artigo 1.290 do Código Civil de 2002, quando este prevê a apropriação
particular de nascentes.

3
Idem

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