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1.

O Autor

Ao contrário de outros romancistas de 30, Graciliano Ramos jamais teve qualquer


nostalgia do universo em derrocada das velhas oligarquias rurais. Analisou a
realidade de onde procedia com aspereza, mesmo sendo descendente, tanto pelo
lado materno como pelo paterno, de senhores latifundiários. Isso se deve,
provavelmente, à clareza de suas idéias. E também a experiências infantis
frustrantes dentro da sociedade patriarcalista que aguçaram-lhe a sensibilidade
para as misérias de um sistema injusto e apodrecido.

2. Introdução ao tema:

Segundo romance de Graciliano Ramos, São Bernardo [1934] é uma das obras
mais expressivas da vertente regionalista do segundo modernismo brasileiro,
voltado, na ficção, para o questionamento social e psicológico, para o
desnudamento dos anacronismos de uma sociedade primitiva, violenta, pré-
capitalista. As mazelas e desigualdades do Nordeste Brasileiro foram o fermento
da retomada da atitude crítica do Realismo/Naturalismo, enriquecida com o
instrumental analítico das novas teorias sociológicas e psicológicas, e com as
conquistas do Modernismo de 1922. Graciliano Ramos construiu seu próprio
caminho e usou, com parcimônia, tanto a leitura marxista da luta de classes e da
mais-valia, como as invenções formais da 'fase heróica', desdobramento da
Semana de 22. Teve o discernimento de evitar os 'clichês' esquerdizantes da
época e se opôs ao 'à vontade', ao informalismo, que tentava mimetizar,
literariamente, o linguajar regional, a fala sertaneja.

Ao contrário, foi homem de esquerda, sem limitar-se a uma visão unilateral; foi
moderno, sem concessões aos 'ismos' e facilitações do Modernismo. Por isso, é
tido como o melhor escrito de sua geração.

3. Enredo

Paulo Honório não sabia muito de seus pais nem de sua infância. Lembrava-se
apenas de uma Margarida que vendia doces, a quem agora ele sustentava. Até os
18 anos trabalhou na enxada.

Depois de um tempo, cansado da antiga vida, resolveu morar na sua terra natal,
Alagoas, já tencionando apropriar-se de São Bernardo.

Quando o velho Padilha [ dono das terras ] morreu, Paulo criou laços de amizade
com seu filho Luís, logo emprestando-lhe dinheiro, tendo como garantia as terras.
Paulo acabou por tomar-lhe São Bernardo com escritura e tudo o mais. No ano
seguinte, Paulo teve que trabalhar muito.

Em uma de suas viagens a Maceió, encontrou um velho simpático chamado


Ribeiro, guarda-livros da Gazeta. Resolveu levá-lo para a fazenda, já que a casa
nova estava pronta.

Durante todo o tempo foi superando todos os obstáculos com meios lícitos e
ilícitos.

Tudo começou a funcionar como Paulo queria e ele se tornava cada vez mais
importante e respeitado. Alguns o criticavam, alegando que desejava possuir o
mundo todo.

Paulo Honório mandou construir uma estrada, uma escola e uma igreja. Recebeu
visita até do Governador. Depois mandou chamar Luís Padilha para ser professor
na escola.

Uma idéia perseguia Paulo: a de se casar. Desejava um herdeiro para sua


fazenda.

Numa noite, foi visitar o juiz Dr. Magalhães com a desculpa de um processo que
estava em suas mãos, mas na verdade tinha interesse na filha do magistrado, D.
Marcela. Chegando à casa do juiz encontrou muita gente e, entre outras pessoas,
uma loirinha que o deixou impressionado, cuja tia encontrou mais tarde no retorno
de uma viagem. A partir daí passou a freqüentar a casa delas até que pediu
Madalena em casamento.

Padre Silvestre os casou. A casa e a fazenda agradaram a Madalena e a sua tia


Glória. Tudo corria bem.

Madalena teve um menino. Completaram dois anos de casados. Daí por diante,
Paulo começou a sentir ciúmes de sua esposa. Tinha uma certa desconfiança de
todos os amigos. Observava o filho que nada tinha de parecido com ele. Ele só
queria saber se sua esposa lhe era fiel. Se fosse, ele a faria a mulher mais feliz do
mundo. A situação foi-se agravando. Paulo Honório desconfiava até do padre e
dos caboclos. Estava quase louco. À noite, ouvia passos e assobios que
acreditava serem sinais. Não dormia. Madalena, nas conversas, mantinha-se
serena. Só dizia que caso morresse de repente queria que dessem seus vestidos à
família do Mestre Caetano e a Rosa; e os seus livros ao seu Ribeiro, Padilha e
Gondim. Até que um dia se suicidou.

Enterram Madalena. Paulo mudou de quarto. D.Glória e Seu Ribeiro foram-se.


Estourou a Revolução. Padilha e Padre Silvestre incorporam-se às tropas
revolucionárias. O outro ano foi terrível. Tudo andava mal, mas Paulo parecia não
se incomodar. Era um homem só. Viúvo há dois anos. Um homem acabado. Sem
amor, sem dinheiro, sem nada que resolve escrever um livro sobre sua vida.

4. Comentário crítico

São Bernardo é um romance de confissão, aparentado com Dom Casmurro.


Narrado em primeira pessoa, Paulo Honório, após o suicídio de Madalena,
solitário, decadente, põe-se a registrar a história de sua ascensão a dono da
Fazenda São Bernardo, de sua tragédia conjugal e da aridez de sua vida afetiva.
Como em Dom Casmurro, estão representados dois tempos: o tempo do
enunciado [os eventos que ocorreram na vida de Paulo Honório] e o tempo da
enunciação [ o momento em que se escreve o livro].

A duplicidade temporal está ligada ao problema do foco narrativo, monopolizado


por um eu-protagonista que , distanciado no tempo, abrange com o olhar toda sua
vida e procura recapitulá-la, contando-a para si e para o leitor. É esse
distanciamento que lhe dá uma pseudo-onisciência e reforça a impressão de
objetividade derivada do caráter de Paulo Honório: rude, seco, direto. Todavia,
quando entramos no presente da enunciação, esse distanciamento desaparece e o
caráter ativo do memorialista está emperrado, paralisado pela derrota definitiva
que foi a morte da esposa Madalena.

A narrativa ganha uma textura diferente: a linguagem seca do tempo do enunciado


cede lugar à lamentação elegíaca do tempo da enunciação. O ritmo rápido da
narrativa é substituído pelos compassos lentos de uma reflexão problematizadora,
difícil e tortuosa: 'Aqui sentado à mesa da sala de jantar, fumando cachimbo,
bebendo café, suspendo às vezes o trabalho moroso, olho a folhagem das
laranjeiras que a noite enegrece, digo a mim mesmo que esta pena é um objeto
pesado. Não estou acostumado a pensar, levanto-me, chego à janela que deita
para a horta.'

São Bernardo é uma das mais convincentes análises do sentimento de


propriedade, do sentido atávico da posse, do ter anulando o ser, do cancelamento
ético e afetivo na luta pela vida. As personagens e as coisas surgem no romance
como meras modalidades do narrador, Paulo Honório, filho de pais incógnitos, guia
de cego que se elevou a grande fazendeiro, respeitado e temido, graças à
tenacidade infatigável com que manobrou a vida, pisando escrúpulos e
sentimentos e visando por todos os meios o alvo que declara desde o início: 'O
meu fito na vida foi apossar-me das terras de São Bernardo, construir esta casa...'.
Como pano de fundo, o coronelismo, a sociedade patriarcal do Nordeste e a
Revolução de 1930 e seus desdobramentos, que ecoam também no sertão e
golpeiam o combalido [mas não arrependido] Paulo Honório.

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