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Roberto Axe

O PORTADOR

E olhe que escolhi esta cabana por ficar bem longe!


De madeira crua, rústica, acanhada... só uma porta... e a solidão
da montanha...
Foi assim que eu quis. Ficar longe de tudo, de todos, só mesmo
a imensa floresta à minha volta. Faço passeios pela mata à hora
que me dá na telha, aliás, faço tudo que me der na telha, aqui,
isolado em minha solidão. Na cabana não há luz artificial... não,
não, luz aqui só a do fogo de minha pequena lareira. Fogo que
faz dançar imagens negras e estranhas nas paredes de pau.
Quando noite, lá fora a escuridão é total e os ruídos são muitos,
oriundos de meus amigos animais silvestres, que livres, fazem a
algazarra de sempre para saudar o manto negro e misterioso que
se estende, calmo, fazendo brotar estrelas no céu.

Não existe acesso à minha casa, não quis nenhuma picada,


estrada, nada. Só o mato virgem em volta, nada mais. Quando
preciso comprar minhas coisas, saio por entre as árvores e
desço a montanha até o vilarejo. Quando volto, certifico-me de
que não estou sendo seguido, pois não quero intrusos em meu
pequeno mundo. Pois é... Eu voltava de uma dessas incursões
ao pé do morro quando, surpreso, vi que a porta do barraco
estava aberta. Já era noite e as estrelas no céu claro sorriam suas
luzes em direção à minha casa. Sim, dava para ver bem, a porta
estava aberta! Dentro, escuridão total. De minha parte nunca
precisei de lanterna ou algo parecido, pois conheço a anatomia
de meu chão como conheço a palma de minha mão.

Entrei.

Livrei-me das compras colocando-as em umas prateleiras em


um canto e nessa pantomima no escuro, já aproveitei e peguei
minha afiada adaga. Aos poucos comecei a escutar uma
respiração pesada e descompassada. Sem dúvidas o invasor
estava na casa, e mais, conseguia percebê-lo sentado em minha
poltrona – que impertinência! – agora eu estava com raiva, uma
raiva mortal, dessas que acomete a gente quando somos
invadidos por imbecis em nossa privacidade. A cara de pau do
intruso fez borbulhar meu sangue, normalmente tão calmo.
Resolvi então que se ele era calmo e frio, eu deveria lhe dar o
troco. Comecei a acender a lareira como se não o tivesse
percebido, embora lhe desse às costas, temerariamente. Quando
o fogo estabilizou voltei-me calmamente para encará-lo.
Mirabolava coisas em minha cabeça, truques e mais truques,
para não ficar, definitivamente, refém do medo, pois isto
estragaria tudo.

Encarei o Homem.

Era algo grotesco. Vestia andrajos negros e escondia suas


feições sob um imenso capuz, com exceção – uma exceção
sinistra – de um olho... um olho... um olho vermelho e
arregalado, que conseguiu gelar meus nervos de imediato.
Nunca mais esqueci aquele olho. O sujeito então levantou
calmamente uma de suas mãos e me apontou o dedo para em
seguida pronunciar o meu nome. Era uma voz terrosa que saía
daquele capuz.
- Sim sou eu – respondi com uma voz meio sumida, e
emendei em seguida – E você, afinal, quem é?
- Meu nome é Portador... meu nome completo é Portador de
Teus Medos. Demorei a encontrá-lo, mas finalmente estou aqui.
- Mas não por muito tempo. Gostaria que se fosse! Agora! –
esbravejei.
O homem levantou-se calmamente e partiu silencioso. Tranquei
a porta. Mas aquele olho vermelho ficou encravado em minha
mente.

Algum tempo se passou e uma noite ao retornar à casa depois


de um passeio pelo mato, vi a porta aberta e a lareira acesa.
Quando entrei ele estava lá, o desgraçado do Portador! O filho
da puta aquecia-se junto ao fogo. Quando recebi o olhar
injetado daquele olho horrendo, tremi. Mas agora já era abuso,
como assim? Aquecendo-se junto à minha lareira? O
monstrengo impertinente julgava mesmo que poderia vir à
qualquer hora e instalar-se tranqüilamente nas minhas coisas!
Era só o que faltava!
- Vá embora agora! - ordenei com raiva – e lhe garanto, se
voltar vai se dar mal! Minha paciência acabou!
O Portador, resignado, retirou-se. Tinha o andar lento e andava
encurvado, além de não cheirar bem. Era uma figura nojenta e
assustadora.

Depois da última visita, funesta, do Portador, cheguei a pensar


em cercar a casa, mas justamente havia escolhido aquele local
para me livrar das cercas! Não, não... haveria de encontrar outra
solução, pois uma coisa era certa, o desgraçado sabia o caminho
para minha cabana. Eu tentava também não ficar com a imagem
daquele olho em minha lembrança, aquele olho arrepiante e
escroto! Se cercasse a casa ou ficasse com a imagem daquele
olho perturbando minha mente, saberia que o asqueroso teria
vencido. Bem, se não voltasse já seria uma grande coisa, mas
tinha o forte pressentimento de que voltaria... e voltou!

A porta aberta, a lareira acesa e... o nojento dormindo em minha


cama! Dessa vez não agüentei! Acometido por uma raiva
visceral, peguei minha adaga e me acheguei a ele.
- Hei, acorde!
O imenso olho então brotou da escuridão do capuz, sonolento e
vermelho. Saltei sobre o invasor com minha faca e a enfiei com
ódio naquele olho! Diversas vezes! O monstro gritava,
esperneava, mas em vão. Só parei quando me certifiquei de que
estava cego! Depois disso peguei aquela praga pelo braço e
desci a montanha, pouco me lixando para suas gritarias e
faniquitos. Deixei o Portador, que agora era portador de uma
séria deficiência física, bem longe de minha montanha. Que
vagasse a esmo e me esquecesse!

Finalmente à paz voltou ao meu pequeno reino. O único


inconveniente é aquela mancha de sangue do lado de minha
cama. Não houve jeito de removê-la... tentei de tudo, mas não
deu. Logo ao lado da cama, palco do crime, como a me lembrar
que aquele homem, mesmo sem o terrível olho, ainda existe e
me procura. Nesses momentos olho para minha adaga, esta sim,
de lâmina brilhante e limpa, e fico tranqüilo. Não me arrependo
de nada. Faria de novo e de novo, faço qualquer coisa para a
casa continuar assim, sem cerca em volta e freqüentada, à noite,
apenas pelos sorrisos das estrelas...

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