E olhe que escolhi esta cabana por ficar bem longe!
De madeira crua, rústica, acanhada... só uma porta... e a solidão da montanha... Foi assim que eu quis. Ficar longe de tudo, de todos, só mesmo a imensa floresta à minha volta. Faço passeios pela mata à hora que me dá na telha, aliás, faço tudo que me der na telha, aqui, isolado em minha solidão. Na cabana não há luz artificial... não, não, luz aqui só a do fogo de minha pequena lareira. Fogo que faz dançar imagens negras e estranhas nas paredes de pau. Quando noite, lá fora a escuridão é total e os ruídos são muitos, oriundos de meus amigos animais silvestres, que livres, fazem a algazarra de sempre para saudar o manto negro e misterioso que se estende, calmo, fazendo brotar estrelas no céu.
Não existe acesso à minha casa, não quis nenhuma picada,
estrada, nada. Só o mato virgem em volta, nada mais. Quando preciso comprar minhas coisas, saio por entre as árvores e desço a montanha até o vilarejo. Quando volto, certifico-me de que não estou sendo seguido, pois não quero intrusos em meu pequeno mundo. Pois é... Eu voltava de uma dessas incursões ao pé do morro quando, surpreso, vi que a porta do barraco estava aberta. Já era noite e as estrelas no céu claro sorriam suas luzes em direção à minha casa. Sim, dava para ver bem, a porta estava aberta! Dentro, escuridão total. De minha parte nunca precisei de lanterna ou algo parecido, pois conheço a anatomia de meu chão como conheço a palma de minha mão.
Entrei.
Livrei-me das compras colocando-as em umas prateleiras em
um canto e nessa pantomima no escuro, já aproveitei e peguei minha afiada adaga. Aos poucos comecei a escutar uma respiração pesada e descompassada. Sem dúvidas o invasor estava na casa, e mais, conseguia percebê-lo sentado em minha poltrona – que impertinência! – agora eu estava com raiva, uma raiva mortal, dessas que acomete a gente quando somos invadidos por imbecis em nossa privacidade. A cara de pau do intruso fez borbulhar meu sangue, normalmente tão calmo. Resolvi então que se ele era calmo e frio, eu deveria lhe dar o troco. Comecei a acender a lareira como se não o tivesse percebido, embora lhe desse às costas, temerariamente. Quando o fogo estabilizou voltei-me calmamente para encará-lo. Mirabolava coisas em minha cabeça, truques e mais truques, para não ficar, definitivamente, refém do medo, pois isto estragaria tudo.
Encarei o Homem.
Era algo grotesco. Vestia andrajos negros e escondia suas
feições sob um imenso capuz, com exceção – uma exceção sinistra – de um olho... um olho... um olho vermelho e arregalado, que conseguiu gelar meus nervos de imediato. Nunca mais esqueci aquele olho. O sujeito então levantou calmamente uma de suas mãos e me apontou o dedo para em seguida pronunciar o meu nome. Era uma voz terrosa que saía daquele capuz. - Sim sou eu – respondi com uma voz meio sumida, e emendei em seguida – E você, afinal, quem é? - Meu nome é Portador... meu nome completo é Portador de Teus Medos. Demorei a encontrá-lo, mas finalmente estou aqui. - Mas não por muito tempo. Gostaria que se fosse! Agora! – esbravejei. O homem levantou-se calmamente e partiu silencioso. Tranquei a porta. Mas aquele olho vermelho ficou encravado em minha mente.
Algum tempo se passou e uma noite ao retornar à casa depois
de um passeio pelo mato, vi a porta aberta e a lareira acesa. Quando entrei ele estava lá, o desgraçado do Portador! O filho da puta aquecia-se junto ao fogo. Quando recebi o olhar injetado daquele olho horrendo, tremi. Mas agora já era abuso, como assim? Aquecendo-se junto à minha lareira? O monstrengo impertinente julgava mesmo que poderia vir à qualquer hora e instalar-se tranqüilamente nas minhas coisas! Era só o que faltava! - Vá embora agora! - ordenei com raiva – e lhe garanto, se voltar vai se dar mal! Minha paciência acabou! O Portador, resignado, retirou-se. Tinha o andar lento e andava encurvado, além de não cheirar bem. Era uma figura nojenta e assustadora.
Depois da última visita, funesta, do Portador, cheguei a pensar
em cercar a casa, mas justamente havia escolhido aquele local para me livrar das cercas! Não, não... haveria de encontrar outra solução, pois uma coisa era certa, o desgraçado sabia o caminho para minha cabana. Eu tentava também não ficar com a imagem daquele olho em minha lembrança, aquele olho arrepiante e escroto! Se cercasse a casa ou ficasse com a imagem daquele olho perturbando minha mente, saberia que o asqueroso teria vencido. Bem, se não voltasse já seria uma grande coisa, mas tinha o forte pressentimento de que voltaria... e voltou!
A porta aberta, a lareira acesa e... o nojento dormindo em minha
cama! Dessa vez não agüentei! Acometido por uma raiva visceral, peguei minha adaga e me acheguei a ele. - Hei, acorde! O imenso olho então brotou da escuridão do capuz, sonolento e vermelho. Saltei sobre o invasor com minha faca e a enfiei com ódio naquele olho! Diversas vezes! O monstro gritava, esperneava, mas em vão. Só parei quando me certifiquei de que estava cego! Depois disso peguei aquela praga pelo braço e desci a montanha, pouco me lixando para suas gritarias e faniquitos. Deixei o Portador, que agora era portador de uma séria deficiência física, bem longe de minha montanha. Que vagasse a esmo e me esquecesse!
Finalmente à paz voltou ao meu pequeno reino. O único
inconveniente é aquela mancha de sangue do lado de minha cama. Não houve jeito de removê-la... tentei de tudo, mas não deu. Logo ao lado da cama, palco do crime, como a me lembrar que aquele homem, mesmo sem o terrível olho, ainda existe e me procura. Nesses momentos olho para minha adaga, esta sim, de lâmina brilhante e limpa, e fico tranqüilo. Não me arrependo de nada. Faria de novo e de novo, faço qualquer coisa para a casa continuar assim, sem cerca em volta e freqüentada, à noite, apenas pelos sorrisos das estrelas...