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Roberto Axe

A RAINHA DA RUA!

Cinderela, Cinderela, rainha da rua! Rainha Cadela!

Pobre puta Cinderela. Condenada a vagar pelo vilarejo, agora


velha e enrugada vestida apenas por andrajos sujos, e mal-
tratada. Louca, não ligava à mínima para isso. O que irritava
Cinderela era aqueles meninos na sua cola! Eram muitos
garotos a lhe seguir pelas ruelas, a não lhe deixar em paz.
Sempre zombavam, cuspiam, jogavam alguma coisa... era
humilhante para a puta velha este tratamento que julgava não
merecer. Agora era ‘a louca’ – Pois sim, louca, então, - pensava
ela – louca é? Mas quando jovem me achavam ‘bem normal’,
aliás, mais normal que as ‘mulheres certinhas’, quando vinham
comprar meus favores e realizar fantasias que só julgam
possível com putas. Aí eu prestava!

Pobre Cinderela.
O apelido ‘Cinderela’ era justamente oriundo da formosura da
prostituta, em seus anos vicejantes. Que ironia! Agora era só
uma velha louca esquecida por tudo e por todos, menos pelo
Tempo, este carrasco inexorável, e pelos garotos maldosos,
claro. Nos seus tempos, tinha cabelos louros e finos que
esvoaçavam feito trigo no campo, e suas formas generosas
atraiam a simpatia e prontidão de todos, desde o figurão até o
pobretão, que muitas vezes ela atendia por pura compaixão.
Gente que chegava ao cabaré se esgueirando pelas ruas, afinal,
tinham reputações a zelar. Eram ‘homens de bem’. Tudo isso
ela compreendia. Facilitava as coisas, ajudava, e até oferecia o
ombro para que marmanjos desmamados chorassem suas
desventuras burguesas e desinteressantes. Tinha uma santa
paciência, a puta Cinderela.

Cinderela, Cinderela, rainha da rua! Rainha cadela!

Agora isso... recebia como prêmio, como uma espécie de


aposentadoria desabonadora, aquele coro em seus ouvidos.
Condenada a vagar pelas ruazinhas de pedra com aqueles
garotos horríveis às suas costas feito o rabo de um crocodilo.
Como se já não bastasse ter de viver com ajutórios e esmolas.
Revirava lixo atrás de restos de comida e às vezes parava e
pensava que já fora linda, desejada, e então aquecia um pouco
seu coração ferido com essas migalhas de lembranças... seus
pensamentos sempre embalados pelo fundo musical do
deboche...

Cinderela, Cinderela, rainha da rua! Rainha cadela!


Seus cabelos brancos, agora grudentos. Seus restos de dentes
podres. Suas roupas rasgadas. Seu futuro... que agora tinha o
nome de Morte. Seu corpo agora cansado e velho, que
proporcionou, há muito, muito tempo, as delícias lascivas
daqueles homens tão respeitados. Pois, agora todos lhes viraram
as costas. Quem sabe não seria ela um cisco no olho do
respeitado vilarejo... um cisco a ser varrido permanentemente
pra lá e pra cá, até chagar o dia fatal em que seu corpo – há
muito imprestável -fosse encontrado entre algumas latas de lixo
- Ufa! – todos respirariam aliviados – Já foi tarde a puta louca!
Puta Cinderela! – Mas o problema maior para a velha era
realmente aqueles garotos e aquela estrofe repetida e repetida
infinitamente. Era muita maldade com a louca! Louca, louca!
Ma aí a velha teve um estalo! - Louca! Louca! Este é o
problema! E se eu ficar ‘normal’ como eles! E se eu agir, como
os normais, só uma vez? E se eu agir como os respeitáveis, só
uma vez? Não falaria, finalmente, a sua linguagem? Não me
faria entender? Sim, porque não? Se eles são normais só
entenderão se eu falar como eles... acho que poderei livrar-me
desses garotos!

Cinderela, Cinderela, rainha da rua! Rainha cadela!

A puta velha então parou e ficou em silêncio. Os garotos


pararam também, um pegou uma pedra. A mulher sorriu com
seus cacos de dentes e perguntou a um deles se era neto do
doutor Angenor. – Sim – respondeu o menino surpreso. – Pois
então pergunte à sua avó se ele ainda tem aquele cancro
horrível no saco! – em seguida a mulher virou-se para outro – E
você, menino. Não é neto do ex-delegado Valdir? – o garoto
assentiu com a cabeça, meio sem jeito – Então pergunte para
sua avó se ele continua gostando do ‘dedinho’ – e assim foi...
com um por um. Até todos saírem, intrigados, a procurarem
suas avós. A partir daquele dia, Cinderela pode ser louca à
vontade, sem o coro desabonador atrás de si. Deixaram-na
definitivamente em paz. Revirando lixo. Louca! Louca!
Cinderela... a Rainha Cadela...

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