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A maldição do Caribe

Falha geológica que destruiu o Haiti devastou Port Royal, na Jamaica, em 1692

Historia
Carlos Albuquerque

Com suas águas cristalinas e céu azul, o Caribe sempre esteve na rota dos turistas, não
dos terremotos. Mas a tragédia do Haiti revelou um outro lado do cartão postal. O
Caribe já sofreu alguns dos mais devastadores sismos da História.

Dentre eles se destaca o de 1692 em Port Royal, na Jamaica, cujo dramático fim só
recentemente começou a ser conhecido melhor.

Dois terços da cidade — capital da então colônia britânica e seu principal centro de
navegação e comércio — foram literalmente sugados por um tremor causado pela
mesma falha geológica que agora arrasou Porto Príncipe.

Conhecida na época como “a cidade mais depravada da Terra” — ninho de piratas,


prostitutas e endinheirados de moral duvidosa — Port Royal hoje é o mais importante
sítio arqueológico submerso de todo o Ocidente e uma lembrança trágica do poder
devastador dos terremotos a que está sujeita a região.

O que levou a cidade — chamada também de “Sodoma do Novo Mundo” — para o


fundo do mar não foi, obviamente, uma maldição divina, por conta dos pecados dos
seus habitantes, como diz a lenda local. Port Royal foi construída em bases nada sólidas,
sobre terrenos arenosos, a menos de um metro acima do nível do mar.

Quando foi atingida pelo tremor, um pouco antes do meio-dia, no dia 7 de junho de
1692, a cidade de dez mil habitantes viu seu solo sofrer liquefação, tornando-o fluido
por causa dos tremores, fazendo com que fossem engolidos prédios públicos, tabernas,
escolas e igrejas — e muitos de seus habitantes. Na tragédia, morreram imediatamente
duas mil pessoas.

Outras três mil morreram nos dias posteriores ao tremor, por causa de ferimentos ou
doenças. Metade da população se foi.

— Port Royal é, sem dúvida, um caso muito interessante e especial de arqueologia —


explica Pedro Paulo Funari, arqueólogo e professor do departamento de História da
Unicamp.

— Primeiro porque, como Pompeia, foi o resultado de um cataclisma, no qual as


pessoas foram dizimadas, mas o local foi preservado exatamente como era na época,
diferente de outros (locais) em que ocupações se sucederam ou ocorreu simplesmente a
passagem do tempo. É o que chamamos em arqueologia de sítios-catástrofe. Em
segundo lugar, é um lugar especial porque está submerso, o que dá a Port Royal
caraterísticas especiais para o estudo, semelhantes, em alguns pontos, à cidade de
Alexandria, no Mediterrâneo.

Cidade era totalmente dominada por piratas


Port Royal teve uma ocupação pitoresca.

Dominada pelos ingleses desde 1655, interessados em sua localização, numa rota de
navegação entre Espanha e o Panamá, a cidade foi rapidamente tomada por
aventureiros, que acabariam por controlar o lugar. Como os britânicos não
sedimentavam o seu domínio com o envio de guardas e dinheiro, o governo local
recorreu, a partir de 1660, aos piratas para proteger Port Royal de invasores espanhóis e
franceses.

Como raposas convidadas para tomar conta do galinheiro, os piratas adoraram a ideia,
ainda mais por ela dar aval oficial a saques e roubos.

Por estar nas proximidades de uma rota comercial, Port Royal se revelou um lugar
perfeito para saques de navios, além de possuir um porto grande o suficiente para
abrigar suas embarcações.

Colônias espanholas também poderiam ser facilmente atacadas a partir dali, como
ocorreu com o Panamá e Maracaibo. Para os piratas, Port Royal, que no seu apogeu
chegou a ter um bar para cada dez habitantes, era o paraíso.

Junto com os piratas, veio uma fauna particular, formada por prostitutas, oportunistas de
toda espécie e promotores de jogos de azar, além de diversos artesões e mercadores.

Foi a anárquica interação entre eles que deu má fama à cidade, que chegou a ser
mostrada na série de filmes “Piratas do Caribe”, estrelada por Johnny Depp.
Historiadores descreveram Port Royal como um lugar onde vinhos e mulheres levavam
todo o dinheiro de piratas e aventureiros. Muitos perdiam todo o seu dinheiro na
devassidão, virando mendigos ou ladrões de rua. Segundo registros, cerca de 213 navios
passaram por Port Royal em apenas um ano. Diferente de outros lugares do Novo
Mundo, não era o escambo e a troca de serviços que movia a economia da cidade, e sim
as moedas de ouro.

A partir de 1670, Port Royal ganhou mais importância ainda para os britânicos graças
ao crescente comércio de escravos e de açúcar.

Logo, Port Royal se tornou a cidade de ocupação inglesa mais importante das Américas,
ao lado de Boston, em Massachusetts.

Em 1687, a Jamaica sancionou leis antipirataria e começou a trocar um modelo


econômico baseado no livre comércio por outro, baseado em plantações de açúcar. Mas
essa transição nunca se completou. No dia 7 de junho de 1692, Port Royal sumiu do
mapa.

Depois do terremoto — não há consenso até hoje sobre qual teria sido a sua intensidade
—, a cidade foi abalada por deslizamentos de terra e, posteriormente, por uma tsunami.
Os efeitos foram devastadores. Por causa da liquefação, construções inteiras afundaram,
sem que um tijolo fosse deslocado. Na entrada do porto, centenas de corpos podiam ser
vistos flutuando.
Os sobreviventes da tragédia tentaram reconstruir a cidade a partir das suas poucas áreas
não atingidas. Um grande incêndio, porém, acontecido em 1703, frustrou seus planos.
Um furacão e outros dois terremotos em 1722 destruíram o que ainda restava de Port
Royal. As pessoas voltaram a tentar ocupar o lugar, mas hoje Port Royal em nada
lembra a riqueza do passado, e tem apenas dois mil habitantes.

Estudo arqueológico no local é recente

Os estudos arqueológicos feitos em Port Royal só se intensificaram no final do século


XX. Até então, eles se limitavam à coleta de material. Na década de 60, o mais
significativo achado foi um relógio de bolso, congelado na hora exata do terremoto:
11h43m.

— Durante muito tempo, o que se fazia em Port Royal era um trabalho de


reconhecimento e coleta de material — explica Funari.

— Isso se deu porque a arqueologia subaquática é razoavelmente recente, se comparada


com a arqueologia clássica. Não é fácil trabalhar no fundo mar, embora no caso de Port
Royal a água do Caribe, cristalina e quente, não seja um grande impedimento.

Estudos feitos até agora no local, ironicamente, não resultaram em grandes descobertas
de ouro.

— O ouro circulava muito e não ficava depositado ali. Além do mais, o que se preserva
embaixo da água não é a mesma coisa que se preserva na terra — conta o pesquisador.
— Por isso, não se encontrou madeira em Pompeia, material fartamente achado em Port
Royal, já que a água do mar preserva a madeira. Ali têm sido encontrados também
diversos objetos de cerâmica e carpintaria.

Mas ainda há muito o que ser descoberto em Port Royal. Afinal, Pompeia está sendo
escavada há 250 anos.

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