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Anestesiologia e Qualidade do Cuidado

Luis Antonio Diego1

Introdução
Michel Porter, “guru” global de estratégia e competitividade empresarial, evidenciou que o maior desafio
gerencial não é apenas melhorar para atingir a efetividade operacional, mas sim determinar como ela pode ser
utilizada para alcançar a vantagem competitiva sustentável. Assim, a excelência do desempenho organizacional é
diretamente proporcional à qualidade dos serviços por ela prestados. Pode-se conceber gerenciamento da
qualidade em saúde, – abusando-se do poder de síntese, como o produto de dois fatores: ciência e tecnologia do
cuidado médico e sua aplicabilidade na prática real. A medicina contemporânea não mais reconhece a prática
médica sem base científica e tecnologia aplicada.

A anestesiologia nasce em meados do século XIX, mais precisamente a 16 de outubro de 1846, no “Ether Dome”
do Massachusetts General Hospital, na cidade norte-americana de Boston, após a congruência desses dois
fatores. Primeiro, a evidência científica das propriedades anestésicas do éter. Segundo, por necessitar, a medicina
então praticada, de prover aos pacientes cirúrgicos de um cuidado essencial e – muitas vezes, vital –, o alívio da
dor aguda. Evidentemente, a origem primeira foi a preocupação em garantir o melhor cuidado ao paciente
submetido a procedimentos que, no olhar da medicina moderna, mais se assemelhavam a sessões de tortura
medieval do que uma prática digna. O vocábulo “tratar” era, então, empregado somente na acepção de debelar a
doença, o mal; não continha, ainda, a acepção de cuidado empregada atualmente.

Não se imaginava, naqueles tempos, a anestesiologia como uma especialidade, muito menos que um dia viesse a
ser essencialmente voltada para o cuidado e segurança do ser humano. O desenvolvimento da anestesiologia, a
partir da descoberta de novas técnicas e anestésicos, propiciou o grande avanço da cirurgia, não só por permitir
que os procedimentos fossem realizados em maior número e de forma mais humanizada, mas também porque,
com mais tempo disponível para o ato cirúrgico, pôde, o cirurgião, desenvolver melhores técnicas cirúrgicas e
arriscar-se a procedimentos anteriormente impensáveis.

Qualidade, um conceito evolutivo por excelência


São muitos os equívocos quando se traz a palavra Qualidade para o vocabulário organizacional; a idéia do simples
esforço para diminuir defeitos e a exclusiva qualificação de pessoas e melhorias localizadas e pontuais são
conceitos rudimentares ainda enraizados no inconsciente imaginário das pessoas. Ao aprofundar-se no assunto,
verifica-se, entretanto, que o conceito de Qualidade é quase intuitivo e sempre recai sobre atributos positivos
inerentes ao bem produzido, ou serviço.

Abordagens conceituais distintas podem realçar aspectos mais práticos, deixando isolado o conceito supremo
(transcendental) de Qualidade, isto é, como sinônimo de excelência inata. Quando sob o olhar do cliente, ou
usuário, a Qualidade adquire componentes muito mais subjetivos do que quando sob o exclusivo olhar do
produto e da produção. Nestes últimos, a Qualidade atém-se aos graus de precisão e de conformidade. Mais
atual, todavia, é o conceito de Qualidade baseada em valor, ou seja, o conceito de Qualidade não se encontra
mais dissociado da eficiência. O binômio Qualidade-preço permite alusão a outro conceito também muito atual

1
Médico, responsável pela Gestão da Qualidade do Instituto Nacional de Cardiologia – Ministério da Saúde – RJ; presidente
da Sociedade de Anestesiologia do Estado do Rio de Janeiro (SAERJ); anestesiologista do Hospital São Vicente de Paulo – RJ;
membro da Câmara Técnica de Anestesia do CREMERJ; membro do CEP do INC. - PhD em Anestesiologia UNESP, MBA em
Gestão na Saúde pelo IBEMEC, TSA – Título Superior em Anestesiologia - SBA
na gestão – o de trade-off –, isto é, a idéia de que, para se obter algo, é necessário sacrificar, ou abrir mão, de
alguma coisa que se possui. Tratando-se de serviços de saúde, a questão adquire inumeráveis complicadores,
transformando, freqüentemente, algumas tomadas de decisão em tratados de antinomia. Infelizmente, ainda se
confunde muito a eliminação de desperdícios e o maior controle na prestação de serviços – eficiência legítima,
com economia de custos baseada em restrições de cuidados e comprometimento da Qualidade.

O conceito de Qualidade foi inserido na gerência da produção quase que exclusivamente voltado para a inspeção
de um produto-síntese oriundo da produção fragmentada da era industrial. Hoje, todavia, as atividades
relacionadas à Qualidade se avolumaram no mundo corporativo, de modo que se tornou parte indelével da
gestão estratégica organizacional. Esta nova percepção da Qualidade está de acordo com as novas exigências e
expectativas da sociedade sobre produtos e serviços gerados, e, principalmente, com a dinâmica de um mercado
mutante.

Avedis Donabedian sentencia que a Qualidade em saúde pode ser definida como a capacidade articulada dos
profissionais, dos serviços, do sistema de saúde e da sociedade, em configurar um conjunto harmônico capaz de
oferecer uma assistência digna, tecnicamente bem desenvolvida, por profissionais treinados e justamente pagos,
que os usuários possam utilizá-lo sempre e na medida de suas necessidades, sendo todo esse conjunto
financeiramente viável, economicamente sustentável e uma escolha democrática da cidadania (Quadro I).

A medicina moderna não pode estar dissociada do conceito de qualidade que estabelece os caminhos de
promoção e aprimoramento de ações na área da saúde. A compreensão desse conceito, todavia, não é universal e
muitos o consideram impreciso e de difícil definição; argumentam que quando há competência e expertise a
qualidade sobrevém naturalmente, dispensando-se de conceituação. Alegam, também, que há diversidade do
entendimento humano sobre cada ação específica, de modo ser impossível qualquer tentativa de uniformização.
Ao examinar-se mais minuciosamente chega-se a conceitos mais precisos que podem derivar, em determinado
contexto, em padrões de qualidade em saúde. A qualidade orientada ao paciente deve abrigar, além de melhorias
em estrutura (anestésicos, equipamentos, capital humano etc.) e resultado (eficiência no desfecho desejado),
melhoria dos processos em que a prática ocorre (fluxos, rotinas etc.).

A avaliação contínua da qualidade técnica dos profissionais de saúde é tema polêmico e de difícil sistematização
em nosso país. Recentemente a Associação Médica Brasileira instituiu o Certificado de Atualização Profissional
para os portadores dos títulos de especialista e Certificados de Àreas de Atuação; e criou a Comissão Nacional de
Acreditação para elaborar normas e regulamentos para este fim, além de coordenar a emissão desses
certificados. Considera ainda que o “contínuo desenvolvimento profissional do médico faz-se necessário em
função do rápido aporte e incorporação de novos conhecimentos na prática médica”.

Quadro I - Componentes da Qualidade (segundo Avedis Donabedian)

1- Eficácia: capacidade que o desenvolvimento tecno-científico tem de promover melhorias no cuidado da


saúde considerando-se condições ótimas de aplicabilidade;
2- Efetividade: o nível real que o desenvolvimento tecno-científico consegue atingir;
3- Eficiência: considera a habilidade em diminuir-se o custo do cuidado sem, entretanto, comprometer a
qualidade;
4- Otimização: o equilíbrio entre a melhoria do cuidado e os custos dessa melhoria;
5- Aceitabilidade: considera a expectativa e desejos do paciente e seus familiares;
6- Legitimidade: conformidade das ações às preferências sociais expressas em princípios éticos, valores,
normas, leis e regulamentos;
7- Eqüidade: conformidade com o princípio da justiça; o que é razoável na distribuição das ações de saúde,
seus benefícios entre a população

Qualidade e anestesiologia
São áreas de atuação da anestesiologia, perante o Conselho Federal de Medicina (CFM): anestesia clínica e clínica
de dor. Por anestesia clínica compreende-se a prática de anestesia no centro cirúrgico, cirurgias ambulatoriais,
hemodinâmica, recuperação pós-anestésica, consultório de anestesia, etc. O tratamento da dor aguda pós-
operatória é obrigação do anestesiologista junto às diversas clínicas de atendimento cirúrgico (Quadro II). Estas
características expõem o especialista a diversas oportunidades de melhoria, tanto no ambiente de atendimento
pré-hospitalar, como no intra-hospitalar (inclusive no per-operatório) e no pós-operatório imediato.

Quadro II – Anestesiologia e atuação profissional

1. Atuação em diversos setores do hospital


a. Centro cirúrgico
b. Salas de emergência no pronto atendimento
c. Unidades que realizam procedimentos endoscópicos
d. Setores de imagem (ressonância, hemodinâmica etc.)
e. Ambulatório (pré-anestesia)

2. Conhecimento em medicina perioperatória:


a. Ressuscitação cardiorrespiratória
b. Controle da dor aguda pós-operatória e dor crônica
c. Manutenção das vias aéreas
d. Acesso venoso e arterial
e. Monitorização hemodinâmica]
f. Transporte intra e extra-hospitalar

3. Manuseio de diversos tipos de equipamentos (aparelhos de anestesia, monitores, aparelhos de


ecocardiografia, estimuladores de nervos periféricos, etc)
4. Manuseio de diversos medicamentos e insumos hospitalares
5. Confecção de rotinas de trabalho e procedimentos de utilização de aparelhos
6. Trabalho em equipe e liderança
7. Gestão hospitalar

Estrutura
Também na evolução da anestesiologia o conceito de qualidade experimentou mudanças significativas desde sua
constituição como especialidade. Em seus primórdios a pesquisa na especialidade procurava, fundamentalmente,
eficácia. Isto é, a procura de fármacos que, por suas propriedades farmacodinâmicas, conseguissem atingir os
“planos cirúrgicos de anestesia” (Planos de Guedel) suficientes para a realização das cirurgias. Entendia-se por
“planos cirúrgicos de anestesia” propriedades como analgesia efetiva, inconsciência e relaxamento muscular.
Contribuiu para tal, sobremaneira, o uso dos “curares”, os quais permitiram o relaxamento muscular e
conseqüente imobilidade, o que permitia, além do controle da ventilação, um campo cirúrgico silencioso. Já na
segunda metade do século passado, com o surgimento do halotano e a substituição de anestésicos efetivos,
porém com muitos efeitos colaterais, tais como o clorofórmio e metoxiflurano, ou inflamáveis, como o éter e
ciclopropano, a pesquisa de fármacos anestésicos apontou na procura de substâncias de mais fácil manuseio e
armazenamento, com início de ação e despertar mais rápidos, fatores que logo iriam promover o
desenvolvimento da cirurgia ambulatorial.
O aumento da competitividade no mundo globalizado também havia direcionado a gestão dos recursos para uma
relação custo-benefício mais favorável e compatível com a nova ordem econômica. Anestésicos voláteis com
propriedades farmacológicas direcionadas a esse perfil da prática anestesiológica foram desenvolvidos e
comercializados. Houve grande aceitação clínica de anestésicos como o isoflurano, o sevoflurano e o desflurano,
por suas características que promoviam eficácia, segurança e conforto de administração. O aprimoramento de
outros fármacos (sedativos benzodiazepínicos e opióides), principalmente em suas propriedades
farmacocinéticas, também muito contribuiu para a segurança da anestesia clínica. Anestésicos locais e técnicas
regionais também acompanharam este progresso.

Ao final da década e século passados, a indústria farmacêutica já havia percebido o grau bastante satisfatório que
seus produtos direcionados à anestesia haviam alcançado. Estudos clínicos de morbi-mortalidade já mostravam a
eficiência da farmacopéia instalada. Concomitantemente, houve também um grande desenvolvimento na
tecnologia de equipamentos, que tornou os aparelhos de anestesia, com seus vaporizadores calibrados e
ventiladores microprocessados, estações muito seguras de administração dos anestésicos; destaca-se ainda o
aprimoramento da monitorização per-operatória com o surgimento da oximetria de pulso, capnografia, medição
da função neuro-muscular etc. Assim, logo se percebeu um grande arrefecimento na pesquisa de novos fármacos
relacionados à anestesia. A indústria direcionou recursos à pesquisa de outros grupos farmacológicos, com maior
atenção ao tratamento das doenças cardiovasculares e das oncológicas2.

Componente fundamental da estrutura necessária a requisitos da Qualidade, o anestesiologista se apresenta


como o único profissional da saúde possuidor de conhecimentos técnico-científicos suficientes, completos e
específicos para a atenção ao cuidado integral em pacientes submetidos a quaisquer procedimentos invasivos que
requeiram a administração de anestesia. A grande diversidade de procedimentos, o infindável espectro de
doenças, fisiopatologias e outros acometimentos ou peculiaridades observados em cada paciente e a
variabilidade do cenário (ambiente físico, equipe cirúrgica), são fatores suficientes à justificação da validade desta
premissa.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou em 1993 a Resolução 13933 que regulamentava as atividades dos
anestesiologistas, ao mesmo tempo que estabelecia a estrutura necessária para a realização do ato anestésico.
Em virtude do avanço tecnológico, da mudança do contexto moral e do surgimento de controvérsias legais e no
campo da bioética, o CFM, ouvindo a Sociedade Brasileira de Anestesiologia (SBA) publicou, em dezembro de
2006, a Resolução 1802 e revogou a 1363. Esta nova resolução apresenta avanços no caminho consistente da
qualidade da prestação do atendimento anestesiológico. O cumprimento das resoluções e normas vigentes nos
diversos níveis administrativos (federal, estadual e municipal) é condição sine qua non à atenção e cuidado de
qualidade no âmbito da especialidade.

Importante ressaltar que até o momento o CFM não apresentou, em relação às outras especialidades médicas,
qualquer resolução semelhante à 1802/06. Tal atitude denota a preocupação com a qualidade e segurança do
exercício profissional, mas também expressa a autonomia deste exercício, pois, em seu artigo 1º, determina aos
médicos anestesiologistas que antes da realização de qualquer anestesia, exceto nas situações de urgência, é
indispensável conhecer, com a devida antecedência, as condições clínicas do paciente, cabendo ao médico
anestesiologista decidir da conveniência ou não da prática do ato anestésico, de modo soberano e intransferível.

2
Charley H. Mcleskey, Abbott Laboratories. Comunicação Pessoal em palestra sobre História do Sevoflurano  São Paulo,
março/2006.
3
Resoluções CFM, disponível no Portal médico: http://www.portalmedico.org.br/novoportal/index5.asp
A Resolução 1670 do CFM de 11 de julho de 2003 trata da segurança nos procedimentos efetuados sob sedação
profunda. Em sua ementa, determina que a “sedação profunda só pode ser realizada por médicos qualificados e
em ambiente que ofereça condições seguras para sua realização, ficando os cuidados do paciente a cargo do
médico que não esteja realizando o procedimento que exige sedação”, e define, em anexos, os níveis de sedação
e o equipamento indispensável.

Processo
A realização de um serviço, ou finalização de um bem, pode ser decomposta em diversas tarefas específicas e
bem estruturadas, e desta forma supõe-se bem conhecer fluxos, insumos e atividades realizadas. Quando se
obtém informações de forma estruturada, pode-se vir a perceber os pontos críticos, além de melhor
compreender as variações devidas a causas intrínsecas à própria natureza do processo e identificar aquelas
consideradas anormais.

A manutenção sustentável de qualquer atividade, conduta e padrão de excelência só é possível se existe valor,
isto é, se todos os participantes vierem a acreditar que a Qualidade é fundamental para a sobrevivência da
organização, e delas próprias. Afinal, nos setores de serviços, como é o setor da saúde, onde até hoje a gestão
vem sendo feita de modo personalista, baseada na intuição e talento pessoal dos gestores, a influência das
pessoas é muito maior do que nos setores industriais, por exemplo.

Algumas definições são importantes para se nivelar conceitos na organização administrativa e para o
prosseguimento de propostas de trabalho e atuação. Planejar é criar condições de direcionamento das variáveis
controláveis de uma organização, a fim de garantir o alcance dos objetivos propostos para o futuro, isto é, a
perspectiva de continuidade da organização e da seqüência de atividades as quais desempenha.

A hierarquia da cadeia de planejamento segue uma seqüência rígida: Política > Plano > Programa > Projeto >
Atividade > Tarefa. Infelizmente a palavra política tem sido utilizada, em administração, numa grande variedade
de acepções4, tais como:
• Interesse amplo, direção ou filosofia;
• Declaração dos princípios e objetivos da organização;
• Objetivos de longo prazo com repercussão sobre o planejamento geral da organização;
• Metas corporativas ou linhas de orientação, de modo amplo;
• Guias para pensamento e ação;
• Guias de conduta estáveis e de longo prazo estabelecidas para dirigir a tomada de decisões;
• Proposições amplas que possam servir de base às orientações (diretivas);
• Instruções de funcionamento normal;
• Padrões gerais que não sejam alterados freqüentemente;

De qualquer modo, entende-se que, a partir do planejamento estratégico, as políticas institucionais devem gerar
planos com o objetivo de delinear as decisões de caráter geral do sistema, suas estratégias e diretrizes, além de
precisar responsabilidades e promover a compatibilização de objetivos e metas, sempre procurando otimizar o
uso dos recursos do sistema. Definidas as diversas metas, programas são, então, desenhados para alcançá-las, ou
melhor, são traçadas as atividades seqüenciais necessárias para se atingir cada meta.
4
Diferentes definições para policy, em pesquisa realizada nos Estados Unidos pela American Management Association (1962)
junto a executivos em atividade, contando com uma base amostral de 200 empresas. Bethlem, A.S. Política e Estratégia de
Empresas. Rio de Janeiro: Guanabara Dois, 1981.
Definindo-se programa como um componente do plano – uma subdivisão que permite agrupar as decisões por
áreas de ação semelhantes sob o mesmo título –, conclui-se que no seu escopo devem estar inseridos estudos
sobre soluções alternativas para o conjunto de problemas, assim como a coerência entre as metas e entre as
metas e os recursos.

Todos os programas possuem alguns elementos básicos que devem deles constar. Destaca-se, inicialmente, uma
síntese de informações sobre a situação a ser modificada com a programação delineada. Também devem estar
claramente formalizadas as funções efetivamente consignadas aos serviços ligados ao programa, com a devida
descrição de responsabilidades em sua execução.

A formulação de objetivos gerais e específicos e a explicitação de sua conformidade com as políticas do governo
institucional, além de sua relação com os demais programas do mesmo nível, também precisam constar do termo
de abertura.

Seguem-se, então, a estratégia e a dinâmica de trabalho a serem adotadas para a realização do programa; os
projetos e atividades estruturados no programa, suas interligações e a apresentação sucinta de objetivos e de
ação. Os recursos humanos e materiais a serem mobilizados para sua realização não devem ser esquecidos, assim
como a relação das decisões administrativas necessárias para sua implantação e manutenção.

Programas podem gerar, por sua vez, projetos mais específicos, de caráter mais transitório e temporalmente
delimitado. Os programas estabelecem os quadros de referência dos projetos, assim como a vinculação entre os
projetos que os compõem. Em seqüência, em cada projeto, serão realizadas diversas atividades, cada uma delas
composta, possivelmente, de diversas tarefas, as quais serão executadas conforme tenham sido concebidas.

A alta complexidade dos procedimentos anestésico-cirúrgicos da atualidade, sejam executados no centro


cirúrgico, ou em unidades de curta-permanência, ambulatório, setor de imagem etc., impõe àquele que presta o
cuidado anestesiológico conhecimento das características de cada procedimento, assim como o desenvolvimento
de cada etapa, as quais podem estar relacionadas em procedimentos operacionais padrão (POP), diretrizes,
rotinas, algoritmos, fluxogramas, “check-list” etc. Ao adentrar no ambiente onde o ato anestésico será realizado,
o anestesiologista já deverá ter em mente todo o planejamento da anestesia a ser realizada, e, obrigatoriamente
irá revisar todos os processos necessários ao bom desempenho do ato proposto. Em cirurgias cardíacas, o
anestesiologista deve, por exemplo, preparar antecipadamente todos os fármacos necessários à realização da
anestesia proposta e também condizentes com o estado clínico do paciente e cirurgia a ser realizada. No decorrer
da cirurgia, seguindo uma “rotina” do procedimento, observar atentamente o momento de abertura do esterno,
pinçamento da a.aorta, etc., de modo que possa preventivamente precaver-se dos meios e ações necessárias à
proteção das conseqüências destas etapas específicas. Do mesmo modo, a perfeita harmonia entre o
anestesiologista e aquele que realiza uma colonoscopia, este antecipando àquele a etapa seguinte, ou até mesmo
sua visualização do procedimento em monitores de imagem, irá proporcionar maior qualidade ao exame.

Resultado
O avanço tecnológico observado no campo de pesquisa da biologia celular e molecular durante as duas últimas
décadas permitiu o estudo mais aprofundado de muitos fenômenos fisiopatológicos, dentre eles destacam-se
aspectos relacionados à morte celular e mecanismos endógenos de autoproteção. O preceito de que nenhum
benefício orgânico poderia vir a ocorrer como conseqüência do processo isquemia-reperfusão propriamente dito
foi desconstruído, cientificamente, a partir do pioneiro estudo experimental realizado por Murry et al (1986).
Puderam, naquela ocasião, observar menor área de infarto do miocárdio em cães que sofreram, como
intervenção, quatro breves períodos de interrupção (5 min de isquemia com 5 min de intervalo entre eles) do
fluxo coronariano, aplicados imediatamente antes de períodos mais prolongados (40 min). Empiricamente
comprovaram a existência de mecanismos de adaptação endógena à isquemia. Desde então, o termo “pré-
condicionamento” (PC) vem sendo empregado para designar o efeito benéfico que determinado estresse físico
(pré-condicionamento isquêmico - PCI) ou agente farmacológico (PCF), previamente infligido ao órgão alvo, pode
proporcionar-lhe em decorrência da maior tolerância adquirida a estímulos posteriores, mais duradouros e
intensos.

O termo “pré-condicionamento anestésico” (PCA) vem sendo utilizado para designar a ação protetora de que se
beneficia um determinado órgão, em regime de isquemia-reperfusão, quando exposto a anestésicos voláteis. PCA
foi primeiramente estudado em corações de coelhos, por Haesseler et al (1994), e confirmado por Schlack et al
(1996) em preparações de coração isolado de ratos. Em princípio, a proteção conferida pelo PC diferencia-se de
possíveis benefícios provenientes, exclusivamente, de suas propriedades hemodinâmicas, isto é, do equilíbrio
entre oferta e demanda de substrato celular (Bland & Loweinstein, 1976; Buljubasic et al,1992). Os anestésicos
voláteis possuem, portanto, propriedades específicas que interferem na condução e desencadeamento dos
fenômenos biológicos durante a reperfusão, de tal modo que podem alterar o curso dos processos
fisiopatológicos e permitir a redução dos danos teciduais decorrentes da lesão por isquemia-reperfusão (Preckel
et al, 1999).

A partir da confirmação científica laboratorial do PCA, descortinou-se um novo campo de estudo e pesquisa em
anestesiologia clínica. De Hert et al (2004), em estudo clínico, testaram propofol e sevoflurano em quatro grupos
de pacientes (n=50) submetidos à revascularização do miocárdio em diversos esquemas (G I= somente propofol,
G II= propofol substituído por sevoflurano após esternotomia até início da CEC, G III= propofol substituído por
sevoflurano após término das anastomoses e G IV= propofol até esternotomia, e substituído por sevoflurano até
o final), e acompanhou valores de troponina I por 48 h e função cardíaca por 24 h no pós-operatório. Analisando
os resultados, observaram que as concentrações pós-operatórias de troponina I foram menores em G IV do que
nos outros grupos e, ainda, o tempo de permanência do paciente na unidade de terapia intensiva pós-operatória
foi significativamente maior em G I. Dentre suas conclusões, expressam a importância do uso continuado do
sevoflurano durante todo o procedimento para que os seus efeitos cardioprotetores possam ser clinicamente
considerados. Diversos pesquisadores (Scognamiglio et al, 2002; Julier et al, 2003) vêm apresentando outros
estudos clínicos na tentativa de corroborar as inferências científicas laboratoriais. Todavia, o real impacto que a
aplicação clínica dessas evidências irá determinar na morbi-mortalidade, e outros defechos clínicos, necessitará
de estudos clínicos muito bem desenhados (“trials” multicêntricos com elevado número de pacientes e variáveis
bem controladas, e metanálises), e de difícil elaboração, uma vez que no dia-a-dia da prática cirúrgica surgem
cada vez mais variáveis e fatores de confundimento.

Uma característica importante na prestação de serviços é a heterogeneidade, principalmente porque a realização


de tarefas é baseada em relacionamentos entre pessoas, não podendo, então, ser descartada a imprevisibilidade
que permeia as ações, percepções, reações e expectativas, principalmente no ato médico, que nunca se
desvencilhará do imponderável.

Os serviços não contemplam qualquer possibilidade de estocagem (não-armazenável), pois são realizados e
entregues num mesmo momento, e, na maioria das vezes, há simultaneidade entre a produção e o consumo. Esta
característica também adiciona um importante diferencial na percepção da qualidade do “produto” pelo cliente,
pois, diferentemente do bem material, onde normalmente ele não participa do processo produtivo, o “serviço”
permite que o cliente não avalie somente o resultado, mas também todos os aspectos de sua produção. Isto
significa que o ato anestésico pode ter sido tecnicamente “perfeito” e determinado excelentes resultados
técnicos, mas, caso o paciente tenha percebido no cenário do procedimento qualquer ação ou situação que lhe
seja desabonadora, a qualidade, em seu todo, estará comprometida.

Monitoramento da Qualidade
O monitoramento da qualidade deve ser realizado após o estabelecimento de prioridades (Quadro III), de modo
que sejam úteis à tomada de decisões. A anestesiologia não foge à regra, de modo que, os Serviços de Anestesia
devem estabelecer seus indicadores da qualidade e segurança a fim de melhor monitorar estrutura, processo e
resultado no escopo de sua atuação na instituição de saúde.

As conseqüências das perdas, seja por quantidade, por retrabalho ou por manutenção, recaem diretamente no
resultado final do desempenho organizacional; a melhoria do sistema, sem dúvida, se beneficia sempre que há
mensuração dos resultados finais e coerente responsabilização dos participantes.

Quadro III – Princípios do monitoramento (indicadores) na saúde

1. Determinar o que monitorar


2. Determinar prioridades de monitoramento
3. Selecionar uma aproximação (ou algumas aproximações) para avaliar o desempenho
4. Formular critérios e padrões
5. Obter as informações necessárias
6. Escolher quando monitorar
7. Escolher como monitorar
8. Construir um sistema de monitoramento
9. Estimular mudanças comportamentais

Também é uma prática importante na melhoria da qualidade a constituição do benchmarking5, ou seja, de um


processo sistemático que observe a identificação das melhores práticas. Este processo deve ser estruturado por
etapas e pode tornar-se motivo de descobertas, de experiências de aprendizagem, principalmente quando se está
seguro que ninguém é o melhor em tudo. A humanidade, no estudo sistemático de sua história, sempre procurou
identificar, no passado, não somente respostas aos fatos históricos ocorridos, mas deles prover subsídios para a
projeção do desempenho futuro, fazendo ajustes e correções de rumo em situações presentes de modo a garantir
a evolução das práticas. Assim, também as organizações devem melhor conhecer-se e comparar-se, tanto em
âmbito nacional quanto internacional, a fim de gerar conhecimento.

Considerações finais
A anestesiologia, especialidade médica há muito estabelecida em nosso país, insere-se, sobremodo, no Sistema
da Qualidade em qualquer instância institucional. No exercício de seu ofício, colabora com a Gerência de Risco
provendo relatos de farmacovigilância, de hemovigilância e de tecnovigilância. Tem oportunidade de participar
dos processos de melhoria da qualidade, principalmente no monitoramento das não-conformidades e também
contribuindo com outros indicadores da qualidade.

5
Benchmarking é uma técnica que consiste no acompanhamento de organizações, concorrentes ou não, reconhecidas como
representantes das melhores práticas administrativas, com o propósito de um avanço organizacional rumo à superioridade
competitiva.
A população de pacientes que se submetem a determinados procedimentos invasivos, ou simplesmente por
necessitarem de imobilização ao serem realizados, deve ser considerada como uma população vulnerável, ou
seja, com sua capacidade de proteger-se, e a seus interesses, reduzida ou abolida. Esta particularidade da
vulnerabilidade evoca a existência da possibilidade de dano bio-psico-social e o risco inerente.

Possivelmente atávica, a intuição de risco quando da submissão a intervenções anestésico-cirúrgicas, reforça a


noção de vulnerabilidade, por mais que o desenvolvimento tecnológico tenha proporcionado evidente redução da
morbi-mortalidade conseqüente aos procedimentos anestésico-cirúrgicos. Esta maior vulnerabilidade a danos,
observada em pacientes expostos a cirurgias e procedimentos sob anestesia, é decorrente das características
inerentes à especialidade, e não só devido à fármaco-indução propriamente dita.

Mudanças em uma organização podem, muitas vezes, soar como ameaças, porque as pessoas temem correr
riscos em sua vida profissional, de modo que quaisquer alterações na estrutura e nos processos podem vir a
incomodar os profissionais envolvidos, principalmente se ocorrerem repentinamente. O hospital, mais do que as
empresas de outras atividades, manteve sua estrutura organizacional inalterada durante décadas.

O anestesiologista pode vir a ser responsabilizado legalmente por dano que tenha sido causado pelo seu ato, e
até mesmo por sua omissão frente a determinada atenção de saúde (direito lesado). Sendo que as obrigações do
profissional de saúde dividem-se, basicamente, em obrigações de meio ou de resultados. A primeira é aquela na
qual o contratado (o anestesiologista) se obriga a utilizar com diligência, perícia e prudência todo o seu saber
junto ao contratante (paciente), sua capacidade de discernimento e sua experiência, para que o acordado
previamente entre ele e o paciente venha a ser cumprido. Assim, torna-se cada vez mais importante ao
especialista seu engajamento nos programas institucionais da Qualidade. Para tanto deve esforçar-se em
participar das atividades e eventos promovidos pela Gestão da Qualidade, organismo institucional cada vez mais
importante para uma gestão de qualidade em serviços e instituições que sabem da real importância da Qualidade
na gestão.

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