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APROPRIAÇÃO INDÉBITA
PREVIDENCIÁRIA

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48.1 CONCEITO, OBJETIVIDADE JURÍDICA E SUJEITOS DO


CRIME

A Lei nº 9.983, de 14 de julho de 2000, determinou a inclusão, no Código Penal, do


art. 168-A, assim redigido: deixar de repassar à previdência social as contribuições
recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional.

A pena cominada é reclusão, de dois a cinco anos, e multa.

Também são típicas as condutas omissivas descritas no § 1º do mesmo art. 168-A:

“Deixar de:
I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à
previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados,
a terceiros ou arrecadada do público;
II – recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado
despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de
serviços;
III – pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já
tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social.”
A pena cominada é a mesma para o crime definido no caput.

O bem jurídico protegido é o patrimônio público, particularmente o da previdência


social, agredido pela conduta do sujeito ativo.

Sujeito ativo do crime é a pessoa obrigada a recolher à previdência social


contribuições a ela devidas e a pagar benefício a segurado; portanto, trata-se de crime
próprio, daquele que se obrigou a repassar ou recolher valores ou quem tem o dever de
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pagar benefício.

Sujeito passivo é o Estado, a previdência social.

48.2 TIPICIDADE

48.2.1 Formas típicas

São quatro as condutas típicas: a constante do caput do art. 168-A e as definidas


nos incisos I a III do § 1º.

48.2.1.1 Art. 168-A, caput: conduta e elementos do tipo

A conduta é deixar de repassar valores. Deixar de tem o significado de abster-se,


omitir-se. Deixar de repassar significa, portanto, não repassar. Repassar quer dizer
passar outra vez ou passar de novo, logo diz respeito a alguma coisa que foi passada a
quem deve repassá-la a outrem. A conduta é mista. No primeiro momento, o agente
recolhe o valor da contribuição social e, no segundo, omite-se, deixando de repassá-lo ao
órgão da previdência social.

O objeto é a contribuição social devida pelo contribuinte, que o agente do crime


recebe e deve repassar à previdência social. O emprego do verbo repassar leva à conclusão
de que o agente a tenha recebido do contribuinte.

A norma refere-se a valores recolhidos nas instituições bancárias e em outros


estabelecimentos, como as casas lotéricas, que devem ser repassados no prazo definido em
lei ou em convênio por elas celebrados com a previdência social.

Podem realizar o tipo agentes públicos, porque as contribuições das empresas que
incidem sobre o faturamento e o lucro, e sobre a receita de concursos de prognósticos (Lei
nº 8.212/91, art. 11, parágrafo único, alíneas d e e), são arrecadadas e fiscalizadas pela
Secretaria da Receita Federal (Lei nº 8.212/91, art. 33), cujos valores devem ser
repassados pelo Tesouro Nacional (Lei nº 8.212/91, art. 19).

48.2.1.2 Art. 168-A, § 1º, I: conduta e elementos do tipo

A conduta é deixar de recolher. Omitir, portanto, a ação de recolher, que significa


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efetuar a entrega junto a alguém ou algum órgão. No caso, recolhimento significa o


depósito de importância junto ao órgão arrecadador da previdência social.

A conduta do agente é, no primeiro momento, comissiva, consistente no desconto


de importância destinada à previdência social e, depois, é omissiva, pois deixa de cumprir
sua obrigação de efetuar seu recolhimento ao órgão arrecadador.

O objeto material é não só a contribuição social devida pelos contribuintes, mas


também qualquer outra importância que seja destinada à previdência social, desde que, em
ambos os casos, seja importância que tenha sido descontada de pagamento efetuado a
segurados, terceiros ou arrecadada do público.

A contribuição é arrecadada do contribuinte e deve ser recolhida aos cofres da


previdência social, como determinam as normas do art. 30, I, II, III, V e § 3º, da Lei nº
8.212/91.

Os prazos estão estabelecidos na lei de custeio da previdência social (Lei nº


8.212/91, art. 30, I, b, V; art. 31).

48.2.1.3 Art. 168-A, § 1º, II: conduta e elementos do tipo

A conduta é a mesma do tipo do inciso I, anterior: deixar de recolher. Muda aqui o


objeto: “Contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas
contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços.”

Cuida-se de contribuições que integraram a escrituração contábil como despesa ou


foram repassadas para o custo do produto ou serviço. O contribuinte de fato é o
consumidor final, não sendo aceitável que aquele que não saiu onerado da relação
econômica deixe de recolher a contribuição à previdência social.

48.2.1.4 Art. 168-A, § 1º, III: conduta e elementos do tipo

A conduta é deixar de pagar ao segurado benefício do qual já foi reembolsado pela


previdência.

Os benefícios previdenciários são, na maioria das vezes, pagos diretamente ao


segurado pelo INSS através da rede bancária (art. 60 da Lei nº 8.212/91).

Em alguns casos, contudo, para facilitar o pagamento e para evitar que os


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segurados se amontoem em frente aos postos da previdência, o benefício é pago ao


segurado pela empresa que é ressarcida nas futuras contribuições a que estiver obrigada. É
o que acontece com o salário-família (art. 68 da Lei nº 8.213/91).

Tipo mal construído porque, na prática, primeiro a empresa faz o pagamento ao


segurado, para só depois ser feito o reembolso pela previdência. Só incidirá quando o
agente, após ter sido reembolsado pela previdência, não efetuar o pagamento ao segurado.

48.2.1.5 Elementos subjetivos

São crimes dolosos, devendo o sujeito ativo agir com consciência e vontade livre de
realizar os tipos, todos omissivos, deixando de repassar, de recolher ou de pagar os valores
mencionados nas normas incriminadoras.

Conquanto os tipos ora comentados tenham sido incluídos no Capítulo V do Título


II – “Da Apropriação Indébita”, do Código Penal, logo em seguida ao tipo do art. 168 e
tenham recebido a denominação jurídica de apropriação indébita previdenciária, é preciso
indagar se, para seu reconhecimento, é necessário que o agente tenha – como se exige para
a tipificação do crime do art. 168 – agido com o chamado animus rem sibi habendi, o
ânimo de ter para si a coisa apropriada. A doutrina diverge a respeito.

Penso que tais delitos são espécies de apropriação indébita. A uma porque foram
incluídos, entre os crimes patrimoniais, no Capítulo que reúne as várias espécies típicas de
apropriação e isso não pode ser levado como mera coincidência ou puro acaso. A
construção da lei não é feita aleatoriamente.

Demais disso, o nomen iuris, se não integra os tipos, é, todavia, elemento


interpretativo, do contrário, sua existência seria inócua e tudo que está na lei importa para
compreendê-la.

Por último é de ver que, à semelhança da apropriação indébita do art. 168, nos tipos
comentados, os valores a que eles se referem, antes de serem entregues a quem de direito –
a previdência (caput, incisos I e II) ou o segurado (inciso III) –, ingressam na posse ou
detenção do agente, que deixa de repassá-los, recolhê-los ou pagá-los. Como na
apropriação indébita, o agente tem a posse ou a detenção legítima do valor e, devendo
entregá-lo, não o faz, retendo-o consigo.

Afirma-se, em sentido contrário, que não se trata de apropriação porque, por


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exemplo, quando o empregador desconta do salário do empregado a contribuição devida à


previdência, não a está recebendo, já que seu valor nunca esteve na posse do trabalhador,
mas na do próprio empregador.

Ora, é evidente que tal raciocínio é frágil. Quando o empregador paga o salário do
trabalhador, retém, no mesmo ato, o valor da contribuição. Este integra o salário, mas é
dele descontado no ato do pagamento, por força de lei. Esta operação retrata a
transferência ao empregado do valor integral de seu salário, inclusive o valor da
contribuição por ele devida à previdência e, no mesmo ato, com o desconto feito, a
devolução, pelo empregado, do valor da contribuição, ficando o empregador com o dever
de recolhê-la ao órgão estatal.

O valor da contribuição, se jamais tenha saído fisicamente da esfera de


disponibilidade do empregador, indo para a do empregado e depois retornando para o
primeiro, teve, entretanto, sua qualidade modificada pela operação de desconto. Antes era
valor pertencente à empresa, transformando-se em valor devido pelo empregado à
previdência. Se antes estava na posse do empregador, como seu, passou a sua posse como
dinheiro alheio, devido pelo empregado à previdência. Houve, portanto, indiscutível
modificação no título da posse.

Por tudo isso, entendo que os delitos de apropriação indébita previdenciária só se


aperfeiçoam quando o agente tenha atuado com o ânimo de se apropriar dos valores que,
em seu poder, deveria repassar, recolher ou pagar. Sem esse ânimo de se tornar dono do
valor, o fato é tão-somente um ilícito administrativo.

48.2.2 Consumação e tentativa

A consumação ocorre com o término do prazo, legal ou convencional, dentro do


qual o sujeito ativo deveria efetuar o repasse ou o recolhimento da importância destinada à
previdência social ou o pagamento ao segurado.

Não é possível a tentativa.

48.3 EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE

Estabelece o § 2º do art. 168-A que

“é extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o


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pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações


devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do
início da ação fiscal”.

A extinção da punibilidade depende do concurso de todas as condições estabelecidas


na norma, desaparecendo o direito estatal de punir.

Para consegui-la, o agente deve declarar a soma das contribuições, importâncias ou


valores que tiver recolhido de contribuintes ou segurados e não repassados à previdência.
Além disso, deve confessar a retenção dessas contribuições, importâncias e valores. E deve
fazê-lo espontaneamente, sem a intervenção de qualquer fator externo, de modo livre, na
forma definida em lei ou em regulamento, prestando todas as informações devidas.

Por fim, deverá efetuar o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e


tudo isso, reitere-se, antes do início da ação fiscal.

O que se deve entender por ação fiscal? O procedimento administrativo de


fiscalização que se inicia com a notificação do contribuinte ou a ação judicial de execução
fiscal, que começa com o ajuizamento da ação executiva?

Tecnicamente, ação só pode ser compreendida como processo judicial. Para se referir
aos procedimentos administrativos, a expressão deveria ter sido, quando muito, processo
administrativo fiscal ou procedimento fiscal. Penso que enquanto o órgão administrativo
ainda realiza atos buscando a apuração de possíveis ilícitos administrativos e mesmo
depois de instaurado o procedimento, com a notificação do contribuinte, pode este,
espontaneamente, e antes do ajuizamento da cobrança executiva, confessar os valores
devidos e efetuar seu pagamento, extinguindo-se a punibilidade porque, nesse caso, o bem
jurídico protegido – o patrimônio da previdência – terá sido recomposto pela ação
espontânea do agente.

Proposta a ação de execução, entretanto, não será mais possível extinguir a


punibilidade, porque, tendo a lei oferecido essa possibilidade, o agente, apesar de ter sido
acionado administrativamente, preferiu ou não pôde obter esse benefício.

Ajuizada a ação executiva, não poderá mais fazê-lo, a não ser para merecer tão-
somente o perdão judicial do § 3º do art. 168-A ou a causa de diminuição do art. 16 do
Código Penal.

48.4 PERDÃO JUDICIAL E APLICAÇÃO DE PENA DE MULTA


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O § 3º do art. 168-A contém norma prevendo a possibilidade de o juiz conceder o


perdão judicial, consistente na faculdade de deixar de aplicar a pena privativa de liberdade,
e outra, facultando-lhe aplicar somente a pena de multa. Qualquer dos dois benefícios
somente será aplicado se o agente for primário e de bons antecedentes.

Além desses requisitos subjetivos, é preciso um dos seguintes pressupostos de


natureza objetiva.

O primeiro é quando o agente “tenha promovido, após o início da ação fiscal e


antes de oferecida a denúncia, o pagamento da contribuição social previdenciária,
inclusive acessórios”.

Também será possível o perdão judicial ou a aplicação exclusiva de pena de multa,


quando

“o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior àquele
estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o mínimo
para o ajuizamento de suas execuções fiscais”.

São direitos subjetivos do acusado que realizar os seus pressupostos e não mera
faculdade do juiz.

48.5 AÇÃO PENAL

A ação penal é de iniciativa pública incondicionada. A competência é da justiça


federal, porque os crimes de apropriação indébita previdenciária constituem lesões a
interesses da União.

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