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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propoe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.
Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.
Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
NO VIII N? 87 MAR?O Tí
ÍNDICE
Pég.
L CIENCIA E RELIGIAO

1) "Qual o significado exato dos termos 'espirito alma


mente, consciéncia, inteligencia, rasño, psiqul-nno1 ?» ' 97

2) "Os fenómenos extraordinarios (éxtases, visóes extia-


»«w...; ocorrentes na vida rfe alguna Santos nao se reduzem a
manifestares doentias, de histeria ou desequüíbrio nervoso ?" ... 105

II. SAGRADA ESCRITURA

3) "O celibato do clero tena fundamentos na Biblia e na


historia dos primeiros séculos cristños ?" ln

m. DOGMÁTICA

4) "Qual é a diferenea entre o juiso particular e o mizo


universal f

Porque faz Deus dois jxdgamentos sobre o homem ? 122

IV. SOCIOLOGÍA

5) "O padre de nossos dios é tido, por vézes, como urna fi


gura desambientada, deslocada ou inútü na sociedade.
Que dizer ?
1SS

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

G) "Que dizer da peca de teatro 'O Santo Inquérito', da ai"


torta de Dios Gomes ?
Como se explica a presenca da Inquisicáo no Brasil ?" 134

7) "Que kouve entre o Pe. Vieira e a Inquisicáo ?" ¿34

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


« PERGUNTE E RESPONDEREMOS »
Ano VIII — N* 87 (N. S.) — Marco de 1967

I. CIENCIA E RELIGIÁO

PERCIPIENTE (Sao Paulo) :

1) «Qual o significado exato dos termos 'espirito, alma,


mente, consciéncia, inteligencia, raz&o, psiquismo» ?»

Nos estudos e debates de Psicología, Parapsicología e


Keligiao, ocorrem freqüentemente os vocábulos ácima- atribu-
em-se, porém, diversas acepgóes a alguns déles, de 'modo a
originar certa confusáo.
Abaixo procuraremos definir o significado de cada um
desses termos, a luz da Filosofía perene. Perceber-se-á assim
ate que ponto se recobrem uns aos outros e como se diferenciam
entre si.

As respostas seráo relativamente sucintas, pois já abordamos


os v6md.s

alma idefinieSoí em «P. R.» 3/1957, qu. 1;


5/1958, qu. 1;

almaecorpo S/lSS' §u S
alma dos irracionais 44/1961 qu 1 '
alma humana e materia ' bt/iom' „,, i.
espirito e materia (distíncáoí".'.'.'.'.'.'.'.'.'.'.'.'.'.'.'.'.'.[ "7/1953; q«; \\
espirito, alma e corpo (1 Tes 5,23) 73/196^'. qu. V.

1. Espirito

O vocábulo «espirito» (pneuma, em grego) teve diversos


significados na historia do pensamento. Para evitar prolixi-
dade, mencionaremos aqui apenas a acepcáo bíblica e a
aristotélico-tomista, pois sao as que mais utilidade podem ter
para o Ieitor contemporáneo.

a) acepcao bíblica: os judeus designavam primordial-


mente por «espirito» (ruach) o sópro, o vento.
■ ,Jf Q"^ ° s0pro> ° hálit0> ° bafo> nos séres animados, sao
sinalde vida, os hebreos identificavam «espirito (raach)» com
o principio vital que existe em todo animal (racional e irra
cional).

— 97 —
jgERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1967. qu. 1
Assim se lé:

re5?tlrfa moíeuq"C *"" Um hám° de VÍda (n<ach) nas narinas


sobre?tlrfa,
Cf. Núm 16,22; Jo 34,14s; Is 42,5; Zac 12,1.

Os israelitas falavam também do «Espirito de Deus» para


designar o poder de Deus, poder que
ci ooc ^oa08,86!68 e lhes comunica a vida (cf. Gen 1,2;
bl 32,6; 103,30; Is 32,15);
ora realiza portentos e leva o homem a feitos heroicos
ou maravilhosos, como atesta principalmente a historia dos
Juizes (Sansao, Jz 13,25; 14, 6.19; 15,14s; Otoniel, Jz 3,10;
Gedeao, Jz 6,34; Jefté, Jz 11,29; Samuel, 1 Sam ll,6s). Vejam-s¿
outrossim os casos de Balaáo (Núm 24,2s) e dos profetas con
temporáneos de Samuel (1 Sam 19,20);
ora renova, moral ou interiormente, o homem (cf Is 4 4-
Ez 36,25-27; SI 50,12-14).

No Novo Testamento, o «Espirito Santo» é geralmente


entendido como Pessoa Divina, igual ao Pai e ao Filho (cf Mt
28,19; 1,18.20; At 1,2.5.8; Rom 9,1; 1 Cor 6,19).
Nao nos deteremos aqui em pormonori-s do exegesc bíblica pois
mais nos interessa o sentido filosófico do vocábulo «espirito™ • s"u
reto emprego nas ciencias psicológicas modernas.

b) acepuao filosófica: na Filosofía aristotélico-tomista


«espirito» e todo ser real náo-material, ou seja, nao dotado
de extensáo, partes quantitativas, dimensóes, figura, cor, sa
bor... O espirito, sendo imaterial, é naturalmente mais perfeito
do que os seres materiais, pois estes sao estritamente limitados
pela materia.
Distinguem-se :
o Espirito incriado, Deus, o Ser Perfeito por excelencia;
é inextenso, possuindo (ou sendo) num ato único e simplíssimo
toda a perfeicáo;
os espíritos criados, seres incorpóreos, dos quais
uns sao unidos a corpos (os anjos bons e os maus ou
demonios),
outros foram feitos para vivificar a materia ou corpos
(as. almas humanas). Estas, embora sejam intrínsecamente
relacionadas com o corpo humano, podem subsistir e agir fora
e independentemente do corpo.

— 98 —
ESPÍRITO, ALMA, CONSCI&NCIA. PSIQUISMO

2. Alma

Alma (em latim, anima; em grego, psyché) é o principio


vital existente em qualquer ser vivo corpóreo ou material
(portante, na planta, no animal irracional e no homem).
Assim como se distinguem tres graus de vida (o vegetativo,
o sensitivo e o intelectivo), distinguem-se também tres tipos
de principio vital ou alma (ou psyché) :
a alma vegetativa: exerce as fungóes da nutrigáo, do cres-
cimento e da reprodugáo. Existe ñas plantas;
a alma sensitiva: além das funcoes ácima, executa as do
conhecimento sensitivo, conhecimento que se faz mediante ór-
gáos corpóreos (olhos, ouvidos, papilas gustativas, olfativas,
tácteis, cerebro...). A alma sensitiva, além dos cinco sentidos
externos, possui ao menos tres sentidos internos localizados
no cerebro : imagina$áo ou fantasía, memoria sensitiva e senso
comum. Existe nos animáis irracionais ou infra-humanos;
a alma intelectiva: realiza nao sómente as fungóes vege
tativas e sensitivas, mas também as do conhecimento intelec
tivo, conhecimento que abstrai do que é material e corpóreo.
As faculdades características da alma intelectiva sao a inteli
gencia (faculdade de conhecer nogóes abstraías e universais)
e a vontade (faculdade de querer e amar); além destas, a alma
intelectiva possui as potencias da vida sensitiva (sentidos ex
ternos e internos) e da vida vegetativa. Existe a alma intelectiva
no homem.

A alma vegetativa e a sensitiva sao materiais, porque só


realizam fungóes materiais, ligadas a órgáos corpóreos e estri-
tamente limitadas por estes. Ésses dois tipos de alma origi-
nam-se da materia (quando se acha suficientemente organizada
para ser sede da vida vegetativa ou sensitiva) e sao reabsorvidos
pela materia, quando esta perde suá organizagáo ou sua estru-
tura necessária (as fungóes vegetativas e sensitivas.
Ao contrario, a alma intelectiva ou humana é imaterial ou
espiritual, pois a sua atividade específica (o conhecimento inte
lectivo) abstrai do corpóreo ou material. Tal atividade supóe
naturalmente urna raiz ou um principio (alma) que nao seja
corpóreo ou material e que, por isto, é dito espiritual.
Vé-se, pois, que no homem espirito e alma nao se distin
guem. A alma humana é um espirito feito para informar ou
vivificar a materia do homem.

— 99 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1967. qu. 1

^ " testemu.nhos de <l™ ™ homem existe um


de acao, ou seja, urna alma espiritual:

^^ Cipa2!,d5 íaFm? em sl os conoeltoB de realidades


verdade, bondade, justica, honestidade, virtude;
b) os próprios objetos materiais (individualizados e mutáveis)
sao percebidos pela inteligencia humana mediante conceitos universais
e ímutaveis.

Assim o homem, considerando as equacóes


2 + 1 = 3
3 + 2 = 5
4 + 3 = 7
5 + 4 = 9

é capaz de abstrair das notas concretas de cada urna dessas equacdes


para formar a equacáo abstrata universal

a + (a — 1) = b
dentro da qual se encaixa cada urna das equacaes ácima.
Quando vemos urna figura dimensional de tres ángulos, aplica-
mos-lhe o conceito de triángulo, conceito que abrange toda e qualquer
outra figura do tres Ángulos.
Quando vemos um ser racional jovem, sadio, grande, masculino,
aplicamos-lhe o conceito de homem, conceito que abrange todo e
qualquer outro ser racional (mesmo que tenha traeos corpóreos dife
rentes : poderá ser velho, doente, pequeño, feminino )
• „, 4íst;raímos assim de quaisquer condicóes materiais, contingentes
individuantes, para formar conceitos universais e imateriais.
c) O homem conhece as relacdes abstraías existentes entre seres
reais; assim, a relacáo de igualdade, de semelhanca, de causalidade...
d) A vontade humana pode aspirar a bens que sao totalmente
imateriais, como a verdade, o dever, a virtude, a gloria, em vista dos
quais ela é capaz de menosprezar os bens materiais ou visíveis. A
vontade humana, por sua natureza mesma, tende necessáriamente
ao bem universal e absoluto.

Note-se que cada ser viyo (planta, animal irracional ou


homem) possui um só principio vital ou urna só alma (na planta
e no irracional, a, material; no homem, a. espiritual). Essa
única alma preenche todas as funcóes vitáis do individuo.
Mais aínda: a alma humana, sendo imaterial ou espiritual,
nao se origina da materia em evolucáo, pois é essenciaJmente
diversa da materia; nao pode estar contida dentro da poten-
cialidade da materia. Por conseguinte, a alma humana tem
origem própria; é criada diretamente pelo Ser Absoluto (Deus),
que fez a materia.

— 100 —
ESRÍRITO, ALMA, CONSCIfiNCIA, PSIQUISMO

Conseqüentemente, a alma humana nao perece ou nao mor-


re com a materia; quando esta perde sua organizagáo necessá-
na á vida humana (dado que os tecidos do corpo estejam
gastos pela idade ou por urna molestia, ou estejam contundidos
por grave lesao), a alma espiritual sobrevive separada do corpo
Diz-se, por isto, que a alma humana tem comésb, mas nao tem
fim. Nao e eterna (pois eterno é o que nao tem coméco nem
fim; e Deus só); mas é imortal.
Compreende-se também quanto é ilógico dizer que a alma
humana é centelha ou parcela da Divindade. A alma humana
transcende, sim, a materia, mas nem por. isto se iguala a Deus
ou é parte de Deus. Deus é Espirito Absoluto e Criador- a alma
humana e espirito relativo e criado. Deus nao pode ser reta-
lhado, esfacelado, pois n'Éle nao há partes; Ele também nao
se comunica por emanagáo, pois em Deus nao há transicáo
ou evolugáo. Por definicáo, pois, Deus e a alma humana se
distmguem radicalmente.

« vElv??6' P°f íim> 0,bs<*yar 1ue- embora em terminología filosófica,


o vocábulo «alma» signifique todo e qualquer principio vital (da
planta, do animal Irracional e do homem), na linguagem cotidiana
ésse vocábulo costuma designar o principio vital do homem. Quem
fala ae alma, em geral refere-se ao espirito criado que dá vida ao
corpo humano. Destas observacSes se depreende quanto é oportuno
levar-se em conta a intencáo de quem fala ou escreve. quando se
trata do assunto «alma», pois — seja lícito repetir — a alma humana
é espiritual e imortal; a alma (ou o principio vital) da planta e do
irracional é material e mortal.
Nunca se poderá provar em laboratorio, por dissecacao de um
cadáver, p ex., a existencia de alma espiritual no homem, visto que
esta é espirito, nao tem extensao, nem partes, nem cor, nem figura
«A alma humana nao aparece na ponta do bisturí», diz-se vulgarmente.
— A existencia, porém, da alma espiritual é garantida pelo raciocinio

KrrSRSSvrpela psicologia empl-


3. Mente

O termo «mente» (em latim mens, de memmi, recordo-me,


sei, ou de metiri, medir, compreender) é de uso muito antigo
na Filosofía. Ñas diversas escolas, designa geralmente a alma
humana enquanto é principio de atos intelectivos ou de inte
ligencia.

m^S Pant?Jstas. fala-se da «Mente Cósmica» para designar


% Jm1Sde (Mente) identificada com o mundo (Cosmos). Tal expres-
sáo é falha como o próprio panteísmo; a Divindade, que por definicáo
S e ^¿«"0°' "^ Se P°dC ^"'^ COm ° Mundo' *¿ é
— 101 —
tPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1967, qu. 1

A filosofía inglesa, desde o séc. XVII até nossós dias, tem


dado realce ao termo «Mind» (mente); entende-o quase sempre
como sinónimo de alma humana, frisando, porém, as facilidades
de conhecimento (sensitivo e intelectivo), ou seja, os sentidos
e a inteligencia.

Berkeley (t 1753), por exemplo, ao falar das idéias (objeto perce-


bido), afirma que deve haver também urna realidade percipiente:
«Éste ser percipiente e ativo é o que chamo mente, espirito, alma ou
eu mesmo» (A Treatise of the Principies of Human Knowledge § 2).

Na filosofía aristotélico-tomista, «mente» significa ora a


alma humana (= espirito), ora apenas a inteligencia ou a
faculdade de conhecimento intelectivo do homem.

4. Psiquismo

Por «psiquismo» entendem-se as atividades da «psyché»


ou da alma. Só pode haver psiquismo, portante, onde há alma,
principio vital ou vida. Em outros termos: sómente os seres
vivos possuem psiquismo; na materia inanimada nao existem
atividades psíquicas ou psiquismo.
Freqüentemente o termo «psiquismo» póe em relevo as
faculdades de conhecimento dos seres vivos, ou seja, dos animáis
irracionais e do homem.

5. Consciéncia

A consciéncia pode ser entendida em sentido psicológico


e em sentido moral.

a) A consciéncia psicológica é a faculdade que a alma


humana tem de refletir sobre si mesma, tomando-se objeto
do seu próprio conhecimento.

Esta faculdade supóe que a alma distinga

1) o objeto concreto, sensivel, que ela conhece,


2) o ato mediante o qual ela conhece, e
3) o sujeito que assím conhece.

Abstraindo, sim, do objeto sensivel, a alma volta sua aten-


cáo para o seu próprio ato de conhecimento e para a raíz désse
ato de conhecimento que é ela mesma.
Ora a capacidade de conhecer abstraindo do concreto ou
material é própria e exclusiva da alma humana, pois sómente

— 102 —
ESPIRITO, ALMA, CONSCIENCIA. PSIQUISMO

esta é ¡material» ou espiritual. Por isto, sómente no homem


pode haver consciéncia psicológica. No animal irracional, na
planta e na materia inanimada, que nada tém de espiritual,
nao existe consciéncia.

A um animal, portanto, nunca se poderia sugerir, como se sugere


a um homem: «Conhece-te a ti mesmo». O animal irracional vive
suas situaeoes (exerce seus atos, sofre suas dores), mas, ao exercer
sua atividade e sofrer seus males, nao é capaz de abstrair do que
ele está fazendo ou padecendo, para refletir sobre si ou sdbre o sujeito
(ele mesmo) que está agindo ou padecendo. — O animal irracional
experimenta o sofrimento, mas nao sabe o que é um «eu» que sofre-
nao percebe o significado ou o alcance do seu sofrimento no conjunto
das suas atividades e deficiencias.

b) A consciéncia moral é a faculdade que a alma tem


de dirigir os seus atos para o Fim último e supremo da natureza
humana, isto é, para Deus. Em todo ser humano existe urna
voz congénita, anterior a qualquer deliberacM que julga os
atos humanos, impele á prática do bem e reprova a do mal.
Ora a presenca désse ditame inato e constante dentro do ho
mem é o que se chama «consciéncia moral»; em última análise,
é a voz do próprio Deus ou do Autor da natureza humana que
assim se manifesta, atraindo o homem para o seu Fim supremo
(Alfa e ómega).

Está claro que sómente nos seres espirituais (alma humana e


anjo) ha consciéncia moral, potó sómente o espirito é capaz de conhe-
cer o Fim supremo, Deus, e a obrigacáo que lhe incumbe de se dirigir
a esse Fim supremo mediante o seu teor de vida.

6. Inteligencia e razáo

Inteligencia (ou intelecto) é a faculdade de conhecer no-


góes abstratas, universais, que já apresentamos á pág. 99 déste
fascículo, e que caracteriza todo ser ¡material ou espiritual.
O anjo e o homem tém inteligencia; Deus, por sua vez, é
Inteligencia subsistente e perfeitíssima.

A inteligencia, no homem, toma o nome específico de


«inteligencia racional» ou «razáo», pois no homem ela procede
lentamente, passando de premissas a conclusóes, as quais se
tornam premissas para ulteriores conclusóes. É éste lento pro-
gredir que se chama raciocinio e que só se encontra no homem,
porquanto o anjo e Deus tém inteligencia intuitiva, apreendendo
com um só ato toda a verdade ou todo o objeto para o qual
dirigem seu conhecimento. Por conseguinte, nao é adequado
falar de razáo em Deus ou no anjo.

— 103 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1967. qu. 1

Os animáis inferiores ao homem, nao tendo inteligencia, também


nao tém razao; sao ditos animáis irracionais, em contraposicao ao
homem, animal racional.

Em quadros esquemáticos, procuraremos compendiar as


principáis nocóes propostas neste artigo :

incriado, absoluto, eterno : DEUS


Espirito
(ser inextenso) / anjo (bom ou mau)
criado, contingente <
I alma humana

intelectiva, humana, raciona] = espiritual


Alma (também dita «mente»)
(principio vital)
sensitiva = material
vegetativa = material

t inteligencia
no grau intelectivo < (razáo)
I vontade

sentidos externos
no grau
Facilidades imagmacáo
sensitivo
sentidos internos memoria
da alma humana seaso comum

nutriejio
no grau vegetativo : potencias de crescimento
reproducáo

A guisa de complemento, acrescente-se :


Em Cristo há
/ Natureza Divina, simplissima
Urna Pessoa Divina + ;
\ Natureza humana jalma
(corpo

— 104 —
FENÓMENOS EXTRAORDINARIOS E DOENCAS

LAUDO (Juiz de Fora) :

2) «Os fenómenos extraordinarios (éxtases, visoes, estig


mas. ..) ocorrentes na vida de algans Santos náot se reduzem
a manifestacoes doentías, de histeria ou desequilibrio nervoso?»

Nos últimos tempos tém-se multiplicado as noticias de


visóes, profecias e outros acontecimentos maravilhosos rela
cionados com criangas ou adultos piedosos. Os pareceres sobre
tais assuntos sao, por vézes, contraditórios. Tentando dissipar
os equívocos, abordaremos aqui a questáo, tratando primeira-
mente da possibilidade teológica de tais fenómenos; a seguir,
examinaremos alguns fatos ocorridos em épocas remotas e
próximas — o que nos permitirá formular um juízo sobre
a questáo.

Sobre visSes, suas possibilidades e modalidades, já se encontra


um estudo em «P. R.» 19/1959, qu. 4-6.
Sobre o milagre em geral e seus criterios de autenticidade el
«P. R.» 59/1962, qu. 2 e 3.

1. Possibilidades do maravilhoso

Deus, que fez a natureza das criaturas, incutindo-lhe as


respectivas leis, tem poder para derrogar a essas leis e mani-
festar-se aos homens de maneiras imprevistas ou extraordi
narias.

As revelac5es particulares, acompanhadas de éxtases, sao um fato


que Sao Paulo atesta quando diz haver sido arrebatado ao paraíso
e ai ter ouvido palavras inefáveis, que nao é licito ao homem repetir
(cf. 2 Cor 12,2-4). A Sao José Deus maniíestou-se em sonjios, conforme
o S. Evangelho (cf. Mt 1,20; 2,13.22).

Contudo nem todas as comunicagóes apresentadas em nome


de Deus no decorrer da historia sao de fé ou obrigam o cristáo
a dar o seu assentimento. Existe, sim, um depósito auténtico
de verdades reveladas por Deus, o qual se encerrou com a
missáo de Jesús Cristo e dos Apostólos; está contado ñas Escri
turas Sagradas e ñas tradigóes que de viva-voz vém sendo
transmitidas desde os primordios do Cristianismo até hoje; o
Magisterio vivo e oficial da Igreja é o órgáo que Cristo encar-
regou de comunicar e interpretar auténticamente o depósito
das verdades da fé.

Essas verdades sao plenamente suficientes para a salvacáo dos


homens; se íósse de absoluta necessidade sabermos algo mais para

— 105 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1967, qu. 2

chegarmos até Deus e a vida eterna, o próprlo Deus o teria incluido


no depósito da fé, ou seja, na S. Escritura e nos ensinamentos oficiáis
da Igreja; o Senhor nada faz de incompleto ou ambiguo.
Nao há dúvida, pode-se dizer que existe na Igreja um progresso
dogmático; éste consiste no fato de que, com o decorrer dos tempos,
mediante a reílexao dos teólogos e a meditacáo das almas justas, se
váo tornando explícitas algumas verdades reveladas implícitamente
no depósito da fé (cf. Constituicáo «Dei Verbum» n» 8, do Concilio do
Vaticano II). Todavía tal conhecimento mais extenso e profundo das
proposites da fé se obtém a través a consideracáo dos próprios dados
contidos na S. Escritura e na Tradicao; nunca poderá ter sua fonte
ñas proposicóes que revelacSes particulares ou fenómenos extraor
dinarios pretendam acrescentar ao Credo. Na mais generosa das
hipóteses, pode-se admitir que o Senhor Deus se sirva de urna reve-
lacao particular a fim de chamar a atencáo para certos aspectos das
verdades contidas na fé comum da Igreja.

Por conseguinte, a respeito de revelagóes particulares e


fenómenos maravilhosos, a Igreja pode, em certos casos, pro
ferir um juízo favorável, sugerido pela observacáo criteriosa
dos fatos apresentados; tal julzo, porém, nunca se impóe como
materia de fé. Os católicos háo de ter grande aprégo pelos
portentos que a S. Igreja parece reconhecer como sinais de
Deus, mas nao estáo obligados a ultrapassar as intencóes da
Igreja, a qual nunca impóe a seus filhos a crenga em revelacóes
particulares ou fenómenos milagrosos.

O Papa Bento XIV (17401758) escreveu famoso tratado sobre


os criterios a ser adotados no exame de fenómenos extraordinarios,
tratado que até hoje goza de grande autoridade. Nessa obra, depois
de falar das aparicóes comumente aceitas pelos católicos, adverte :
«De tudo que dissemos, se seguc que alguém pode recusar asscn-
timento a tais revelacóes, conservando ao mesmo tempo íntegra e sá
a fé católica, contanto que recuse com a devida modestia, apoiandose
em algum motivo e sem ceder ao desprézo» (De Servorum Dei beati-
ficatione et Beatorum canonizatione 1. 3, c. 53, n. 15).

Feitas estas observacóes, passemos ao exame de alguns


casos de «maravilhas» ocorridos na historia da Igreja, casos
que daráo ocasiáo a reflexóes mais precisas sobre o assunto.

2. Fatos estranhos e criterios de discernimento

Nao se poderia negar que houve no decurso dos sáculos


fenómenos milagrosos que despertaram os homens para Deus,
afervoraran! a fé e a carídade do povo cristáo. Bem se pode
crer que tais fatos hajam sido provocados por Deus mesmo.
Assim os acontecimentos de Paray-Le-Monial, Lourdes, Fátima,
entre outros, estáo suficientemente credenciados para ser tidos
como auténticas manifestagóes de Deus.

— 106 —
FENÓMENOS EXTRAORDINARIOS E DOENCAS

Nao é, porém, objeto déste estudo recensear fatos mara-


vilhosos que parepam ter características de genuínos milagres
de Deus. O que interessa neste artigo, é lembrar que houve
nao poucos casos ilusorios entre os acontecimentos que em seu
tempo pareciam estritamente sobrenaturais. Urna crítica
sadia, apoiada principalmente pelos recentes progressos da psi7
cologia, tem apontado tais episodios negativos. A genuína fé
so pode lucrar em conhecé-los e distingui-los dos verdadeiros
fatos milagrosos; quanto estes sao proficuos ao desenvolvimento
da vida crista e da piedade, tanto aqueles lhe sao nocivos.
A própria autoridade da Igreja, consciente do perigo de
erro em se tratando de fenómenos maravilhosos, exprimiu sua
atitude reservada diante de ocorréncias extraordinarias na vida
de certas almas justas. Eis alguns exemplos significativos, que
bem demonstram a Iealdade da Igreja perante fatos tidos como
milagrosos :

a) Ñas ilhas Filipinas, o Carmelo de Lipa foi tido, em época


recente, como sede de aparicoes da Virgem SS.. Mais de urna vez
os Bispos da regiáo, em declaracdes nao oficiáis, manifestaram se
propensos a crer na autenticidade dos fenómenos. Finalmente, após
os devidos estudos, resolveram publicar o seguinte pronunciamento:
«Declaracáo Oficial. — A respeito de referidos acontecimentos
extraordinarios no Carmelo de Lipa.
Nos, os abaixo-assinados Arcebispo e Bispos, após haver cons
tituido para os devidos flns urna Comissao especial e depols de haver
atentamente examinado e ponderado os resultados evidentes e os
testemunhos rccolhidos no decurso de repetidas, longas e cuidadosas
pesquisas, chegamos á unánime conclusáo de que os testemunhos
excluem qualquer intervencao sobrenatural nos referidos aconteci
mentos extraordinarios — inclusive na chuva de pétalas — do Car
melo de Lipa.
Manilha, 6 de abril de 1951. 1
(a) Gabriel M. Reyes, Arcebispo de Manilha, (a) César Ma.
Guerrero, Bispo de San Fernando, (a) Mariano Madariaga, Bispo de
Lingayen, (a) Rufino J. Santos, Administrador Apostólico de Lipa,
(a) Juan C. Sisón, Bispo Auxiliar de Nueva Segovia, (a) Vicente P.
Reyes, Bispo Auxiliar de Manilha».
(Boletín Eclesiástico de Filipinas, Manilla, mayo de 1951, pág.
287).

b) Em Ezquioga (Espanha) também se propalaran), em tempos


recentes, fenómenos prodigiosos. Após cautelosa averiguajáo a respeito,
a Santa Sé proferiu a seguinte sentenca :
«Os Eminentíssimos e Reverendíssimos Senhores Cardeais encar-
regados da tutela da fé e da moral, tendo submetido a exame as
referidas aparicSes e revelacoes da Bem-aventurada Virgem Maria
na localidade de Ezquioga, da diocese de Victoria, na Espanha, con-
cluiram que tais aparicOes e revelacSes carecem, por completo, de
qualquer traco sobrenatural» (Acta Apostolicae Sedis 26 [1934] 433).
c) A vida de S. Gema Galgani (1878-1903) foi ilustrada poi
éxtases. estigmas, visñes relatados pela própria Santa em sua auto-

— 107 —
¿PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1967, qu. 2

biografía. Os contemporáneos de Gema discutiram muito sobre a


ongem e a índole de tais fenómenos, pols havia quem os atribuisse
únicamente á histeria. A controversia, porém, se encerrou com o
reconhecimento, por parte dos críticos, da Índole sobrenatural dos fatos
maravilhosos da vida de S. Gema Galgani (cf. «Votum Rmi. Dni.
Joseph Antonelli. De discussione dubii: An facta extraordinaria
Gemmae Galgani tribui possint causis pathologicis vel diabolicis vel
vi imaginationis vel autosuggestionis»).
Contudo, em vista dos mencionados pareceres divergontes, o Papa
Pió XI em 1931, ao declarar heroicas as virtudes de S. Gema, quis
que no texto da declaracáo fósse incluida a seguinte advertencia :
«O presente decreto nao profere juízo algum — coisa que, de
resto, nunca acontece — a respeito dos dons pretennaturais da Serva
de Deus» (Acta Apostolicae Sedis 24 [1932] 57).
A S. Igreja assim distinguía entre práttea heroica da vlrtude e
fenómenos maravilhosos; enquanto afirmava aquela, silenciava a
propósito déstes (posteriormente, porém, como dissemos, os estudos
feitos fonneceram base ao reconhecimento da autenticidade dos estig
mas de S. Gema).

d) Fato semelhante verifícouse quando o Papa Pío VI declarou


a heroicidade das virtudes de S. Verónica de Julianis, aos 24 de abril
de 1796. Eis um trecho das Atas do processo :
«Na presenca da Santidade de nosso Santissimo Senhor o Papa
Pío VI, muito se discutiu a questáo: as coisas evidentemente maravi-
lhosas que se narram Jia vida da Vonoravel Verónica do Julianis hüo
de ser tidas como suficientemente comprovadas e de origem divina ?
Contudo o que os Padres mais trataram de por em plena luz, foi o
grau eminente das virtudes que ornavam Verónica. Tendo conseguido
certificarse déste, verificaram que nos fenómenos maravilhosos (da
vida de Verónica) nao aparecía vestigio de maquinacáo ou fraude,
nem algo que fósse indecoroso ou alheio á santidade; em conseqüéncia,
julgaram que se poderia deixar de lado toda ulterior investigacao
sobre tais fatos e proclamar que a Venerável Verónica observou urna
conduta de todo heroica na prática das virtudes cristas. O Sumo
Pontífice Pió VI aprovou tal parecer» (Bullarium Ordinis Minorum
Cappuccinorum 9 [1884] 243).

Estes poucos exemplos bastam para evidenciar que a Igreja


está longe de querer apoiar seus ensinamentos e sua mensagem
sobre fenómenos extraordinarios ocorrentes na historia do
Cristianismo. Consciente de que estes nao s,§o essenciais para
a santificagáo dos fiéis, é com sobriedade e sem precipitacáo
que Ela se pronuncia a respeito de noticias de ocorréncias
portentosas. Esta mesma reserva há de ser norma válida para
cada fiel católico em particular.

A fim de evitar possíveis engaños, as autoridades eclesi


ásticas estipularam tres criterios á luz dos quais há de ser
examinado qualquer fato extraordinario para que se Ihe possa
reconhecer algum significado religioso :

— 108 —
FENÓMENOS EXTRAORDINARIOS E DOENCAS

a) o criterio histórico: é preciso, antes do mais, averi


guar com seguranga se realmente aconteceu o fenómeno cuja
noticia vai sendo divulgada. Sejam portanto ouvidas testemu-
nhas e compulsados documentos de modo a se removerem rumo
res falsos, boatos sensatíonalistas, que seriam base ilusoria para
conclusóes científicas ou religiosas;

b) o criterio científico : dado que o fenómeno realmente


se tenha produzido, é necessário procurar explicá-lo, antes do
mais, por vias científicas, de acordó com as leis da Psicología,
da Parapsicología ou da Medicina; a elucídagáo por via natural
é a primeira que se deve tentar, pois o milagre nao pode ser
suposto, mas há de ser provado;

c) o criterio teológico: dado que em hipotese alguma o


fenómeno possa ser entendido á luz dos conhecimentos da cien
cia contemporánea, a Igreja nem por isto admite ¡mediatamente
que se deva á interveneáo divina. Com efeito, os fatos mara-
vilhosos que Deus produz, sao sempre sinais; sao sempre algo
de relativo ou algo de relacionado com determinado quadro
religioso.

Em outros termos : sao sempre a resposta que o Senhor dá


ou para atender á prece piedosa e humilde de uma alma justa
ou para confirmar a pregacáo de um arauto de Deus
ou para autenticar alguma doutrina controvertida
ou ainda para atestar a santldade de vida de alguém.

Em conseqüéncia, dado que os criterios científicos nao expli-


quem o fato maravilhoso, a Igreja ainda exige exame canónico
ou teológico; estudam-se as afirmacóes e as atitudes religiosas
da pessoa ou das pessoas «agraciadas» para se averiguar se
o portento pode ter sido realmente provocado por Deus. Caso
se comprove vaidade, ambigáo, egoísmo ou algum vicio moral
no desencadeamento do fenómeno, a Igreja nao o reconhecerá
como obra de Deus, mas admitirá outra explicacüo, isto é, inter-
vencáo diabólica. Na hipotese, porém, de se averiguar üm
quadro religioso puro que realmente apelasse para uma resposta
de Deus tres vézes santo, a Igreja pode declarar a existencia
de genuína intervengáo divina (tal declaracáo, porém, nao obri-
ga a fé de ninguém, como foi dito atrás).

O terceiro dos criterios ácima apresentados é decisivo para se


admitir um milagre ou sinal de Deus. Aplicando-o, podemos classifi-
car os fenómenos portentosos, distinguindo das ocorréncias meramente
naturais, destituidas de significado religioso, as genuinas intervencóes
de Deus. É o que o parágrafo abaixo Intenciona ilustrar.

— 109 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1967, qu. 2

3. Genuína Mística, e manifestacóes patológicas

1. Sirva de ponto de partida as nossas reflexóes um fato


portentoso que muito tem sido comentado nos últimos tempos :

*m wrathKr °tt0 M2°k nalce2 na Alemanha em 1907; fixou residencia


em Hamburgo, onde se dedicou ao comercio. Professava a religiáo
protestante, mas era táo pouco piedoso que guardava a sua Biblia
™, "i™/603?*0 de í»sa e íalava linguagem muito pouco edificante.
Jim 1928, sofreu acídente automobilístico, em conseqüéncia do qual
comegou a experimentar estranhos fenómenos. Em 1935, apareceram
pela primeira vez as marcas de urna coroa de espinhos em sua/cabeca
as quais se reproduziram dai por diante duas ou tres vézes^or ano
a1 Posteriormente, ainda com mais freqüéncia. Em 13 de dezembro
de 1943, durante um bombardeio aéreo, foi projetado pela escada de
casa abaixo; desde entáo, os estigmas ou as chagas semelhantes as
doSenhor Jesús lhe despontaram ñas mSos, nos pés e no flanco com
toda a mtensidade; além do mais, passou a ser marcado também Dor
grande cruz estigmática na testa.
Tais fenómenos até 1954 reproduziam-se de quatro em quatro
ou de seis em seis sextas-feiras. Ñas proximidades de cada vulneracáo,
sentía forte pressáo em ambos os lados da cabeca, assim como dores
veementes; parecíaJhe ter chumbo derretido dentro da cabeca. Quando
finalmente se lhe abriam as chagas (marcas da coroa de espinhos e
os demais estigmas), sentia-se aliviado. Ante os seus olhos, contení-
plava cntáo urna parede negra; perdía a visAo e a auclicüo, o julgava-sc
desagregado do mundo que o cercava. A seguir, vía Jesús Cristo,
que de longe lhe vinha ao encontró, trajando ampia e ondulante veste
azul; trazia ñas máos um livro aberto e, em atitude amiga, dirigia a
Mook palavras consoladoras. Depois afastava-se lentamente e desa
parecía como que no infinito.
Além de tais fenómenos de inspiragáo religiosa, Mook experimen-
tava também desdobramento da personalidade. Contemplava.se durante
um día inteiro ao seu próprio lado ou diante de si com os mesmos
trajes. As linhas que limitavam os objetos, apareciam-lhe duplicadas;
alguns objetos e pessoas se lhe afiguravam transparentes. As recor-
dacSes mais antigás afloravam-lhe á memoria como se tivessem sido
colindas no dia anterior. Os sentidos do paladar e do olfato torna-
vam-se-lhe extraordinariamente agucados. Previa o futuro cartas
e visitas — com seguranca estupenda. Tais fenómenos ocasionavam-
-Ihe sempre intensos sofrimentos.
Durante mais de vinte anos, Mook conseguiu dissimular seus
estranhos padecimentos. Apenas consultava médicos (que guardavam
o sigilo profissional), procurando com afinco livrar-se dessa «molesta
enfermidade». O caso só se tornou público aos 19 de julho de 1949
por causa das repetidas tentativas que Mook fazia para obter a sua
cura. Lamentou profundamente que o público tomasse conhecimento
da sua anormalidade; passou a fugir de todos os órgáos publicitarios
declarando rígidamente : «Eu nao seria capaz de suportar que viessem
ter comigo procissñes de mulheres velhas para pedir que eu as curasse»
Mook tinha suas aparic8es e estigmas na conta de dura molestia
e so desejava que o curassem de tal anormalidade, que a seu ver só
concorrla para o humilhar. '
(_Na° Pud«nbs colhér> sobre o assunto, noticias posteriores ao
ano de 1954).

— 110 —
FENÓMENOS EXTRAORDINARIOS E DOENCAS

2. Que se pode depreender do caso Mook para avaliar


o significado exato dos estigmas e dos fenómenos associados
a estes ?
O episodio Mook evidencia que os estigmas e outros por
tentos désse género nao constituem fenómenos típicamente
religiosos ou fenómenos devidos exclusivamente a estados de
profunda uniáo com Deus. Tais portentos podem ocorrer mesmo
em pessoas nao piedosas, porque, em verdade, tém base natural
ou psicológica.
Explicitando melhor esta afirmagáo, diremos: os estudos
e as observagóes de médicos levam hoje a afirmar que as estig-
matizagóes supóem sempre um estado de alma profundamente
emocionada ou comovida. A estigmatiza$áo exterior e corporal
é o reflexo de urna estigmatizacao interior e espiritual, cons-
tituindo a expressáo visível dessa realidade invisível.
Por «estigmatizado espiritual» entende-se o profundo abalo psi-
quico que alguém pode experimentar ao considerar a Paixáo do
Senhor Jesús.
Admítese, pois, que a alma humana possui urna efórca plástica»
ou o poder de imprimir no respectivo corpo a configuracao correspon
dente as disposic6es interiores ou á compaixao espiritual do sujeito.
As pesquisas do psicología em nossos dias conhecem numerosos casos
que demonstram a existencia dcssa fórga plástica (cmbora seja diíicll
explicar minuciosamente o seu comportamento). Em linguagem téc
nica, fala-re do psicogenismo das reacóes carporais (ou da «origem
psíquica de certas reagóes somáticas»).

Ora o fator «fórca plástica da alma» é por certo um dos


elementos que se devem levar em conta para explicar os fenó
menos ocorridos em Arthur Mook.
Dirá alguém : mas A. Mook nao era piedoso, nao era
propenso a deter-se na leitura e na meditagáo das cenas dolo-
rosas da Paixáo do Senhor !
— Nao era necessário que voltasse conscientemente a sua
atencáo para a figura de Cristo padecente. A fórga plástica de
sua alma pode muito bem ter sido desencadeada inconscien
temente pela agáo sugestionante de alguma leitura, conversa,
imagem ou pega de teatro; por urna via qualquer ter-lhe-á
entrado na alma, talvez em época distante, o conhecimento da
Paixáo do Senhor (como protestante, Mook terá lido o Evange-
Iho, ao menos em sua infancia). Ora a sugestionabilidade varia
muito de pessoa a pessoa; bastava que Mook tivesse urna nature-
za psíquica muito vibrátil para que impressóes colhidas em tem-
pos remotos, mesmo sem a simpatía de Mook, provocassem a
fórga plástica de sua alma em período posterior e traumatizado
de sua vida (sabe-se que os fenómenos extraordinarios em Mook
comegaram logo após um desastre automobilístico).

— 111 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1967, qu. 3

É nestes termos que hoje em dia se elucida o caso Mook •


trata-se de fenómeno psicológico ocorrido em urna natureza
particularmente sugestionável; é urna reacio somática de índole
mudamente psicogénica. O aspecto religioso do caso (configu-
ragáo á Paixáo do Senhor) é relativamente secundario ou
acidental; nao exige intervengáo milagrosa de Deus para ser
explicado. Por isto o caso Mook nao pode ser tido como sinal
religioso ou como sinal do Senhor ao mundo.
CaS0S> ^Qrém' *e es'tefnatfeacao que ocorrem dentro de quadros
6 ^nuinar5ente religiosos, ou seja, na vida de pessoas profun
ente unidas a Deus na humildade e no amor; apresentam-se como
o complemento désses quadros ou como a resposta de Deus aue
esclarece ou confirma determinadas situacSes religiosas. Em tais casos
a teología julga que pode haver realmente urna intervencáo divina:
as autoridades eclesiásticas possuem entao fundamento para Dronun-
ciar-se em favor da genuinidade religiosa dos fenómenos. Assim os
estigmas e as visoes de S. Francisco de Assis, de S. Teresa, de S Gema
Galgaru tém merecido a aprovacáo da Igreja, note-se bem. nao pelo
íato de serem fenómenos extraordinarios ou portentos (pois sabemos
que estes se podem dar em virtude de fatores meramente naturais),
mas pelo fato de serem algo de «relativo» ou algo que se enquadra
bem como resposta divina k fé e ás virtudes désses santos.
Em urna palavra : Deus pode servir-se, e muitas vézes sérvele
(desde que isto seja do seu beneplácito), da natureza vibrátil ou suges-
tionável de determinadas pessoas justas e santas para al produzir
fenómenos religiosos extraordinarios. Essa acao divina portentosa é
soberanamente livre; nao é possível ao homem provocá-la nem subme-
té-la a leis nem prever quando se dará; o Senhor nao suscita estigmas
ou fenómenos prodigiosos em toda e qualquer alma santa, amiga do
sofnmento, nem em toda e qualquer alma particularmente vibrátil
ou sugestionável; permitiu, porém, que Arthur Mook, muito a contra-
■gósto do próprio sujeito, Í6sse portador de estigmas psicogénicos.

Donde se vé que, para discernir os casos em que realmente


o Senhor Deus intervertí milagrosamente, é absolutamente
necessário aplicar os tres criterios mencionados á pág. 109,
criterios dos quais o terceiro é de importancia decisiva.

II. SAGRADA ESCRITURA

LEVITA (Sao Paulo) :

3) «O celibato do clero teria fundamentos na Biblia e


na historia dos primeiros sáculos cristáos ?»

Percorreremos os principáis textos escriturísticos referen


tes ao assunto, passando dos que tém significado mais geral

— 112 —
CELIBATO DO CL£RO

aos que diretamente se prendem ao celibato dos ministros do


altar. A seguir, indagaremos a repercussáo desses trechos na
vida do clero no decorrer.da historia do Cristianismo.

1. A virgindade em 1 Cor 7

Um dos textos mais notorios do Novo Testamento em favor


da virgindade consagrada a Deus é o de Sao Paulo na 1 Cor c. 7.
Nesta passagem, o Apostólo, ao mesmo tempo que reconhece
a dignidade do matrimonio, aponta a vida una como estado
mais excelente.
Na virgindade como no celibato, o cristáo procura, na
medida do possível, desvencilhar-se das solicitudes temporais,
a fim de aderir diretamente ao Senhor e aos interésses do seu
Reino. Tal é, sem dúvida, o estado ideal, que Sao Paulo abracou
e que ele recomendou aos seus fiéis:
«Desejaria que todos vos íósseis como eu... Quisera ver-vos
ísentos de preocupacoes. QUem nao tem esposa, cuida das coisas do
Senhor e do modo de agradar ao Senhor. Quem tem esposa, cuida
das coisas do mundo e do modo de agradar á esposa. Fica dividido»
(1 Cor 7,7.32s).

A vida celibatária, no cristáo, é a mais espontánea expres-


sao da mensagem de Cristo: a eternidade já entrou no tempo;
a graca santificante é o embriáo da gloria. Importa entáo ao
discípulo de Cristo abragar o teor de vida mais adequado para
que a sementé da eternidade se possa expandir néle e no mundo.
Ora justamente a vida virginal ou celibatária procura, dentro
do regime da fé, antecipar, em grau máximo, o encontró defi
nitivo com o Senhor Jesús, Divino Esposo das almas, encontró
que se dará sem véus nem sombras no fim desta peregrinacáo
terrestre. Assim se compreende que a virgindade tenha sido
praticada desde os primordios da era crista, quando o mundo
pagáo e judaico Ihe era abertamente infenso.
Nao nos demoramos sobre éste texto paulino, pois já foi mais
longamente abordado em «P. R.» 7/1957, qu. 7.

2 Os eunucos em Mt 19,12

Eis o texto a analisar:


«Há eunucos que nasceram assim do seio materno.
Há eunucos que se tornaram tais por obra dos homens.
E ná eunucos que assim se íizeram éles mesmos, por causa do
Reino dos Céus.
Quem puder compreender, compreenda !»

— 113 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1967, qu. 3

Antes do mais, convém mencionar brevemente o signifi


cado da palavra «eunuco» fora do Evangelho.

No Oriente pagüo, «eunuco» lem grego, euné = leito, e echo = ter,


guardar; donde «guarda do leito») era o servo castrado que merecía
a confianca do seu senhor e, conseqüentemente, se tornava guarda
das mulheres dos nobres e príncipes.

Os cultos helenistas ditos «dos misterios» (cultos de Diana, Cibele,


Átis...) tinham a seu servigo sacerdotes castrados. Qual o motivo
dessa praxe ? — Entre diversas hipóteses, eis a mais provável: a
castracáo era tida como urna consagragáo que seqüestrava dos afa-
zeres profanos o individuo e dedicava a Deus toda a sua vida: o seu
ser era renovado e, de certo modo, assemelhado ao da Divindade,
tonnando-se apto a realizar as fungSes do culto.

Entre os judeus, a castracáo tanto de seres humanos como de


animáis irracionais era estritamente proibida, por contradizer á obra
criadora de Deus. Um eunuco nao podía ser admitido á assembléia
de culto (cf. Dt 23,2).

Contudo os judeus nao ignoravam a existencia de homens cas


trados por maos alheias, a fim de servirem principalmente ñas cortes
dos reis que cercavam Israel. Por isto distinguiam duas categorías
de eunucos:

a) os eunucos de nascenga ou «eunucos de sol», que eram tais


desde o dia em que haviam visto o sol, ou ainda «eunucos dos Céus1»,
eunucos íeitos por Deus;

b) os eunucos tornados tais pelos .homens ou «eunucos de homem».

O horror que os judeus tinham a eastragao, era, em grande parte,


inspirado pela sua expectativa messiánica : sab'.am que o Salvador
procedería de Israel por via de geracao carnal; dai a grande estima
dos israelitas á patern:dade e á maternidade.
Nao obstante, ouvia-se esporádicamente entre os rabinos urna
ou outra voz que exaltava a vida celibatária.
Tal é o caso, por exemplo, do Rabino Ben 'Azzai, que se absteve
do matrimonio, justificándose nos seguintes termos :
«Minha alma adere á Tora; por conseguinte, nao resta tempo
para a vida conjugal; seja a existencia do mundo assegurada por
outros !» (T Jeb 8,4).

No S. Evangelho (Mt 19,2), a redacáo do texto merece


atencáo :

«Há eunucos que nasceram asslm do seio materno.


Há eunucos que se tornaram tais por obra dos homens.
E há eunucos que assim se fizeram éles mesmos por causa do
Reino dos Céus».

A construcáo é a de um «mashal», proverbio (no sentido


bíblico) ou comparacáo que encerra urna licáo dé sabedoria.

— 114 —
CELIBATO DO CLERO

V
Eis algums outros exemplos de proverbios ou comp'
enciais da Biblia:

«Há tres coisas que me sao misterio


Quatro mesmo, que nao compreendo:
O vóo da águia nos céus,
O rastejar da serpente sobre a rocha,
O avanco da nave no seio do mar,
O caminho do homem para junto da donzela».
(Prov 30,18s)

«Quem comprime o leite, déle tira a manteiga,


Quem comprime o nariz, faz jorrar o sangue,
Quem comprime a cólera, promove a disputa».
(Prov 30,33)
Cí. Eclo 26,5-8; 50,27s.

O sabio evoca algumas imagens para dar maior relevó á aíirmacáo


final. O interésse da frase está no último termo da enumeracáo. O
que há de característico e picante no proverbio, é justamente a ines
perada transposic.áo que se dá no fim da sentenca; em Prov 30,33,
por exemplo, «comprimir a cólera» nao se entende no mesmo sentido
que «comprimir o leite e o nariz».

No S. Evangelho mesmo, Jesús recorreu mais de urna vez ao


proverbio; tenha-se em vista o texto de Mt 8,20:

«As raposas tém suas covas,


E as aves do céu seus nuihos;
O Filho do homem, porém, nao tem onde reclinar a cabeca».

Raposas e aves sao mencionadas apenas para íazer contraste


e para por cm realce a afirmacao final. É essencial ao proverbio que
o último termo soja táo diferente quanto possivel dos anteriores;
estes lhe devem servir como que de trampolim.

Voltando agora a Mt 19,2, verificamos que Jesús, em sua


comparacáo (mashal), mencionou primeiramente as duas cate
gorías de eunucos reconhecidas pelos judeus. Acrescentou-lhes,
porém, urna terceira categoría, que vem a ser justamente o
último membro, imprevisto e surpreendente da sentenca; éste
último membro há de ser entendido em sentido diverso dos
anteriores; se, portante, os eunucos que sao tais desde o seio
materno e os que foram tornados eunucos pelos homens, devem
ser compreendidos no sentido físico ou corporal, os eunucos
que se fizeram tais por causa do Reino dos Céus háo de ser
entendidos em sentido metafórico ou espiritual.
Jesús se referiu ás duas primeiras categorías de eunucos,
Cínicamente para por em plena evidencia o terceiro tipo de eunucos,
tipo surpreendente. E note-se bem que todo o efeito de surprésa da
frase é devido ás palavras fináis : «por causa do Reino dos Céus».
Sim; ao ouvirem «existem eunucos que se fizeram tais», os Apostólos
podiam pensar na castracao espontánea, que os pagaos praticavam
e que os israelitas abominavam. Quando, porém, Cristo prosseguiu :

— 115 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1967, qu. 3

«... por causa do Reino dos Céus», perceberam que se tratava de


algo totalmente diverso do que pensavam; nao poderia ser um ato
torpe ou condenável, mas, ao contrario, haveria de constituir algo
de altamente estimável. Com efeito, «por causa do Reino dos Céus»
significa «para mais seguramente entrar no Reino e mais eficazmente
nele trabalhar». As palavras de Jesús, portante, supóem cristáos que
tenham percebido o inefávél valor dos bens messiánicos e, em canse-
qüéncia, hajam compreendido que nenhum sacrificio é demasiado
custoso, desde que permita ao homem consagrar-se mais plenamente
ao Mcssias.

Destarte o Senhor exaltava o valor da vida una ou da vida


que se abstém de todo comercio carnal a fim de se dedicar
por inteiro aos interésses do Reino de Deus. O celibato religioso
era assim enaltecido, e enaltecido como urna das mais carac
terísticas expressóes do Evangelho; surpreendendo judeus e
náo-judeus, Cristo quería assim indicar urna das novidades
típicas que o Cristianismo veio trazer a éste mundo, t

3. O pastor de almas em 1-2 Tim

Ñas suas epístolas a Timoteo e Tito, Sao Paulo esbocou a figura


ideal do pastor de almas. Dois textos chamam particularmente a
atcncáo :

1 Um 3,2: «É necessário que o bispo seja irrepreensível,


esposo de urna só mulher...»
A expressáo «esposo de urna só mulher» nao se opóe apenas
á poligamia, pois esta já era vedada pelo Evangelho; mesmo
os pagaos e os judeus contemporáneos a Cristo costumavam
observar a monogania. Tal expressáo excluí, sim, as segundas
nupcias, exigindo que o bispo se tenha casado urna só vez.
Sao Paulo desejava que também os presbíteros, os diáconos e as
viúvas consagradas ao servigo da Igreja nao contraissem segundas
nupcias (cf. 1 Tim 3,12; 5,9; Ti 1,6). A fidelidade á memoria da pri-
meira esposa era louvada pelos próprios pagaos (tenham-se em vista
as inscrieñes funerarias antigás). As segundas nupcias, mesmo na
sociedade paga, podiam ser consideradas como Índice de fraqueza ou
de continencia precaria. •
Plutarco, por exemplo, censurou a Catáo o fato de ter esposado
em segundas nupcias, com oitenta anos de idade, a filha de um escravo
liberto (cf. Cat. 24).
Há quem julgue que Sao Paulo, em Tim 3,2.12; 5,9 e Ti 1,6, quis
inculcar aos ministros do altar a obrlgasSo de se casarem ao menos
urna só vez, pois assim teriam a experiencia da vida de familia e do
govérno de casa (cf. 1 Tim 3,4). Tal recomendacáo se oporia á depre
ciado do casamento professada por herejes (cf. 1 Tim 4,3) e a certos
costumes pagaos (sacerdotizas romanas, como as vestais, eram obri-
gadas á castidade, mas prevaricavam, cf. Juvenal, Sat. 19).

— 116 —
CELIBATO DO CLERO

hroc %? í^ P -e evide"te 1ue S§o Paulo nao quis incutir aos mem-
bros da hierarquia sagrada o dever de se casarem, pois assim teria
entrado em desacordó com Mt 19,12 («eunucos que se fizeram tais
por causa do Reino dos Céus») como também com os dizeres de 1 Cor
7,7, onde o Apostólo desejava fóssem todos os cristáos ¡santos dos
vínculos do matrimonio. Ademáis, se o Apostólo julgasse que os celi-
batarios sao indignos do episcopado, ele mesmo se teria declarado
incapaz de exercer esta funcáo. — Em verdade, conforme Sao Paulo
nem o casamento nem a paternidade camal sao condicóes necessarias
a recepcáo das Ordens sacras; a virgindade fica sendo o estado de
vida mais sublime.

Porque entáo terá o Apostólo pensado em dissuadir de


segundas nupcias os ministros do altar ?
— Já o Antigo Testamento (cf. Lev 21, 14) apresentava
certas reservas ao casamento dos sacerdotes. Sao Paulo, movido
pelo espirito da Antiga Lei e mais ainda pela pregagáo de
Cristo, só podia tender a fazer novas restricóes ao matrimonio
dos clérigos. Nao mencionou, porém, o celibato, pois as comu
nidades cristas de sua época, recém-fundadas como eram,
deviam constar de adultos casados recém-convertidos do paga
nismo ao Cristianismo; dentre ésses adultos é que se recruta-
riam os diáconos, presbíteros e bispos. Por isto, o Apostólo
quis, ao menos, que só urna vez tivessem contraído matrimonio.
Ademáis os próprios gentíos poderiam menosprezar o clérigo
cnstáo que incorresse em segundas nupcias. Com efeito, a certos
sacerdotes e sacerdotizas do paganismo era vedado casar-se ou, ao
menos, casar-se mais de urna vez.
Em Éfeso, por exemplo, o supremo sacerdocio de Diana era
confiado a um eunuco, o «megabizo»; os membros de urna contraria
encarregada de oferecer sacrificios a essa deusa deviam guardar a
castidade e seqüestrarse do mundo durante o ano de suas funcoes
religiosas.
Em Fócida, o sacerdote de Hércules era «misogynés», isto é,
abstinha-se do convivio com mulheres durante um ano.
O «Jiierofanta» ou ministro da religiáo de misterios de Eleusis
devia observar a continencia durante o periodo de suas funches.
Tais exemplos sugeriram conseqüentemente a Sao Jerónimo
(t 421) a exclamacao : «Seríamos dignos de condanacáo se a verda-
deira fé nao conseguisse levar-nos a fazer em prol de Cristo o que
o erro levou a fazer em prol do mal» (epist. 123, 8).
Sao Paulo, pois, em 1-2 Tim e Ti, longe de intencionar levar os
pastores de almas ao casamento, propós, antes, reservas a uniáo
conjugal dos mesmos, seguindo destarte a inspiracáo dada pelo próprio
Deus na Lei de Moisés e no Evangelho.
Semelhante conclusáo pode ser depreendida de

. 2 Tim 2,Ss: «Suporta teu quinháo de sofrimentos, como


bom soldado de Cristo Jesús. Estando na carreira das armas,
ninguém se envolve em negocios da vida civil, se quer agradar
áquele que o alistou em suas fileiras».
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1967, qu. 3

Ms, sumariamente, o significado desta passágem.:


Timoteo ou, de modo geral, o pastor de almas é comparado
a um soldado alistado por Cristo a servigo do Reino.
Ora nenhuma carreira profana exige, tanto quanto a das
armas, consagrado total do sujeito ao seu dever de estado;
ele nao se imiscui nos afazeres meramente civis déste mundo.
Só tem urna preocupagáo, conforme Sao Paulo: a de merecer
a aprovagáo do seu Chefe ou General, cumprindo fielmente o
que déle se exige na milicia. Tal fidelidade ou disciplina, que
caracteriza por excelencia a vida militar, impóe ao soldado a
total renuncia a si mesmo.

Esta observacáo do Apostólo lembra a que o mesmo Sao Paulo


fazia em relacao aos que abracam o celibato : quem nao tem esposa,
nao tem preocupacáo a nao ser a de agradar ao Senhor Deus (cf 1
Cor 7, 32-34).

Por conseguinte, segundo Sao Paulo, também Timoteo e


o pastor de almas devem renunciar a quaíquer ocupagáo que
nao seja do ministerio sagrado.

Éste principio implica, entre outras coisas, que os ministros de


Deus nao se devem envolver em afazeres de interésse meramente
pecuniario. O Concilio de Calcedonia (451) e outros sínodos posteriores,
bajeándose nesta passágem, vedaram aos clérigos atividades comer
ciáis e outras análogas. Éste mesmo texto íornece outrossim um válido
fundamento para o celibato sacerdotal, pois inevitavelmente a vida
conjugal envolve o esposo e pai de familia em tarefas de ordem
profana, necessárias para assegurar a subsistencia do lar. O sacerdote
casado perde a possibilidade de consagrar todo o seu tempo ao servico
de Cristo e das almas.

Tais sao os principáis textos biblicos que recomendam a


vida celibatária para o clero.

Examinemos alguns testemunhos da historia do Cristia


nismo referentes ao assunto.

4. O depoimento da historia

Desde os primordios da era crista, nao poucos ministros


de Cristo, a exemplo do Senhor e do Apostólo, abragaram a
vida celibatária. E o que se pode depreender de um testemunho
de Tertuliano (t após 220), que no Norte da África escrevia
o seguinte :

«Quantos nao vemos ñas ordens sacras, que abragaram a conti


nencia, preferiram contrair nupcias com Deus, restauraram a honra
de sua carne e, filhos do tempo, se consagraram á eternidade, morti-

— 118 —
CELIBATO DO CLERO

ficando em si a concupiscencia libidinosa e tudo mais que nío teve


entrada no paraíso ?» (De exhortatione castitatis 13. éd. Migne lat II
993).
Pouco depois, Orígenes de Alexandria (t 254/255), numa de suas
homilías, observava que os sacerdotes no Antigo Testamento estavam
obrigados a se casar e ter prole, pois o sacerdocio era inerente á
tribo de Levi e conseqüentemente so se podia propagar por geracáo
carnal. Acrescentava, porém :
«Na Igreja também os presbíteros podem ter íilhos, mas & semo-
Ihanca daquele que disse: 'Meus filhos, sofro por vos as dores do
parto até que Cristo esteja formado em vos' (Gal 4,19)» (In Lev
h. 6,6).

Nao havia lei da Igreja que obrigasse ao celibato (difícilmente


mesmo se poderia conceber tal norma, pois o Imperio Romano toma
ría medidas severas contra os celibatários). Onicamente o fervor ou a
cansciéncia do eminente dom de Deus que é a vida una, movia os
clérigos á continencia períeita. Os que se haviam casado antes de
receber as ordens sacras, continuavam a vida conjugal após a orde-
nacao; aqueles, porém, que se haviam ordenado celibatários, perora-
ncciam tais para o resto da vida.

No seo. IV encontram-se as primeiras leis eclesiásticas


sobre o assunto, inspiradas provávelmente no fato de que ia
aumentando o número de clérigos celibatários.

Assim, na Espanha, o Sínodo de Elvira (Granada), por volta de


300, preccituava aos bispos, presbíteros e diáconos que se abstivessem
de todo comercio conjugal com as respectivas esposas e renunciassem
a ter prole; quem violasse tal regra, perdería o uso de suas funcOes
clericais (can. 33).

O Concilio de Elvira, sendo regional, só legislava dentro do?


limites de determinada provincia da Espanha. Deu inicio, porém, a
urna serie de admoestacóes e leis sinodais semelhantes, que em menos
de um século recobriram grande parte do Ocidente cristáo. Em 386,
um sínodo de Roma declarava :
«De acordó com o pudor e a honestidade, aconselhamos aos sacer
dotes e levitas nao vivam com suas esposas» (Hefele-Leclercq, Histoire
des Conciles II 71).
Esta disposicao íoi reproduzida pelos Concilios regionais de Car-
tago, de 3S0 e 401. Éste último chegou a estipular a pena de deposicáo
para os clérigos que violassem a norma assim dada. O Concilio de
Toledo (Espanha) em 400 proibiu fóssem promovidos na hierarquia
eclesiástica os clérigos que usassem do consorcio matrimonial (can. 1).
Em 401 (ou 417 ?) o Concilio regional de Turim (Italia) adotou
medida semelhante.
A tendencia a tornar cada vez mais imperiosa a recomendagáo do
celibato se manifesta bem no episodio seguinte:
Após o Sinodo Romano de 386, o Papa Siricio dirigiu -urna carta
a Himério, bispo de Tarragona (Espanha), transmitindo-lhe as normas
adotadas no referido Sínodo. Eis como argumentava:
Ouve se dizer que certos sacerdotes e levitas continuam a gerar
prole mesmo muito tempo após a ordenacao; justificam seu procedi-
mento alegando que no Antigo Testamento era licito aos ministros do

— 119 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1967, qu. 3

Senhor procriar. — Lembrem-se, porém, de que os sacerdotes da


Antiga Lei eram obrigados á continencia enquanto durassem as suas
funcdes no Templo. Disto se deduz que os ministros da Nova Lei,
os quais sobem diariamente ao altar, se devem abster perpetuamente
das obras da carne. — Em conseqüéncia, Sirlcio proibia formalmente
a coabitagáo de sacerdotes e diáconos com as respectivas esposas. E
acrescentava que os transgressores de tal lei seriam punidos segundo
o gxau de sua culpabilidade : se tivessem procedido mal por ignorar
a Lei, seriam simplesmente impedidos de subir a ordens superiores;
caso, porém. tivessem conscientemente violado a disciplina, seriam
destituidos das funcdes dericais.

O Papa Sirício comunicou o mesmo regulamento aos bispos da


África, dizendo-lhes :
«Nao tenham os sacerdotes e levitas consorcio conjugal com as
respectivas esposas. Recomendamolo, porque isto é digno, púdico e
honesto. Poupai-nos ésse opróbrio, eu vd-lo peco, eu vdlo recomendó,
eu vos exorto». E acrescentava: «Se alguém, ensoberbecido por sua
mentalidade camal, resolver desviar-se desta norma canónica, saiba
que já nao possui comunháo conosco» (epLst. ad Afros 9).

O Papa Inocencio I (t 417) dirigiu aos bispos Victricio de Ruáo


e Exupério de Tolosa, na Franca, semelhante recomendado : lembrava
a obrigacáo de continencia imposta aos sacerdotes do Antigo Testa
mento durante o periodo do seu ministerio no Templo, e comentava:
«Quanto mais estes sacerdotes e levitas (do Novo Testamento) devem
guardar a continencia desde o día de sua ordenacáo, éles que exercem
o sacerdocio sem interrupcao! Nao ha dia algum em que nao devam
oferecer o santo sacrificio ou administrar o Batismo» (epist. ad
Victricium 10, ad Exuperium 1).

No século V, por iniciativa do Papa Sao Leao Magno (t 461),


a lei da continencia total, que vigorava para os bispos, presbíteros e
diáconos, foi estendida aos subdiáconos (cf. epist. ad Anastasium
Thessalonicensem 4).

Os Concilios regionais foram corroborando e difundindo tal


legislacáo, de sorte que nos tempos de Sao Gregorio Magno Papa
(590-604) a praxe comum do Ocidente impunha a todos os
clérigos, a partir do subdiaconato, que se abstivessem de contrair
matrimonio ou de usar de matrimonio anteriormente contraído.

Como se compreende, a fraqueza humana levou freqüentemente


os eclesiásticos a transgredir tal disciplina. O Papa Sao Gregorio VII
(t 1085) pediu mesmo 'aos fiéis que desertassem as ig.rejas onde
oficiassem sacerdotes incontinentes (cf. Mansi, ConcUia t. XX 494).
Nao obstante, através de tais vicissitudes prevaleceu na Igreja
e no povo de Deus a consciéncia da sublimidade da vida una; esta
foi sendo repetidamente incutida pelos Papas e Concilios regionais
durante toda a Idade Media Ascendente.

Por fim," em 1139 o Concilio ecuménico do Latráo m


declarou nulo o matrimonio contraído por um clérigo de ordens
maiores. Chegava assim a termo a legislacáo sobre o celibato
sacerdotal no Ocidente, conservando-se como tal até nossos días.

— 120 —
CELIBATO DO CLERO

No Oriente, porém, a praxe se manteve mais branda. Em 692,


o Concillo Trulano a sancionou definitivamente nos seguintes termos •
os varoes que, depois de casados, recebara o subdiaconato e o presbi
terado, nao estao obrigados a deixar a vida conjugal. Nao é lícito
porém, contrair matrimonio após o subdiaconato. Quanto aos bispos
devem viver em continencia perfeita. u»y«».

É notorio que por ocasiáo do Concilio do Vaticano II se


delinearam fortes movimentos em favor da revisáo do estatuto
do celibato no Ocidente e, em particular, em prol da admissáo
de urna classe de sacerdotes casados, a fim de diminuir a
escassez de clero em certas regióes do globo. Contudo Sua
Santidade o Papa Paulo VI manifestou seu desejo de nao alterar
a Iegislacáo vigente no Ocidente. Em carta dirigida ao Cardeal
Tisserand, decano do Sacro Colegio, declarava:
n,,» *rNn° é opoi2u?° debat«r Públicamente (no Concilio) ésse tema,
T»m«cq Am^X'm^ Pr"déncia e «veste táo grande importancia:
Temos o propósito nao sámente de conservar, tanto quanto depende
de Nos, essa lei aintiga, santa e providencial, mas também de reforcar
sua observancia, renovando nos sacerdotes da Igreja latina a conscl-
encia das causas e roznes que hoje, precisamente hoje de modo especial,
fazem que se deva considerar multo adequada essa mesma lei gracas
a qual os sacerdotes podem consagrar todo o seu amor únicamente
a cristo e se dar total e generosamente ao servico da Igreja e das
i o,o,(cíl *La Docunientation Catholique» LXII, 19/XII/1965
col. 2183s).

Conseqüentemente, o Concilio do Vaticano II em mais de


urna passagem incutíu firmemente a observancia do celibato
entre os clérigos da Igreja Ocidental. Tenham-se em vista os
seguintes textos :

«A perfeita e perpetua continencia por amor ao Reino dos Céus,


recomendada por Cristo Senhor (cf. Mt 19,12) — aceita com gdsto
e Iouvávelmente praticada por nao poucos cristaos, no decurso dos
tempos e também no mosso — foi sempre tida em alto apréco pela
Igreja, de modo especial em favor da vida sacerdotal. Pois é ao mesmo
rempo sinal e estimulo da caridade pastoral e fonte peculiar de íecun-
didade espiritual no mundo. Nao que por sua natureza seja exigida
do sacerdocio, como se evidencia pela praxe da Igreja primitiva e pela
tradicao das Igrejas Orientáis...
A verdade é que o celibato se ajusta de mil modos ao sacerdocio
Pois a missáo toda do sacerdote está dedicada ao servico da nova
humanidade, que Cristo, o vencedor da morte, suscita no mundo pelo
Seu Espirito... Pela virgindade ou pelo celibato, guardado por amor
ao Reino dos Céus, os presbíteros se consagram a Cristo de maneira
nova e privilegiada, a Ele mais fácilmente aderem de coracáo indiviso,
dedieam-se mais livremente n'Éle e por Ele ao servigo de Deus e dos
homens, servem com mais dLspanibilidade a Seu Reino e á obra da
regeneracao vinda do alto e assim se tornam mais aptos a receber
de maneira bem ampia a pateraidade em Cristo...
Fundamentado no ministerio de Cristo e na Sua missáo o celi
bato, que de inicio era recomendado aos sacerdotes, foi depois imposto

— 121 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1967, qu. 4

par leí na Igreja Latina a todos os que iriam ser promovidos a ordem
sacra. O Sacrossanto Sínodo torna a reconhecer e a confirmar esta
legislacáo para os que se destinam ao Presbiterado, confiando no
Espirito que o dom do celibato, táo coerente com o sacerdocio do Ndvo
Testamento, seja outorgado com liberalidade pelo Pai, contanto que
aqueles que participam do sacerdocio de Cristo pelo sacramento da
Ordem — e com éles ainda a Igreja toda — o pecam com humildade
e insistencia...
Roga, pois, éste Sacrossanto Sínodo nao sámente aos sacerdotes,
mas também a todos os fiéis, que o precioso dom do celibato sacerdotal
lhes mereca o apreso e que todos pecam a Deus, conceda sempre e
com abundancia tal dom á Sua Igreja» (Decreto «Presbyterorum
OrdinLs» 16).
Veja-se um complemento a éste assunto na questáo 5 do presente
fascículo.

III. DOGMÁTICA

LEÓNIDAS (Nova Friburgo) :

4) «Qual é a diferenca entre o juízo particular e o juizo


universal ?
Porque faz Deus dois julgamentos sobre o homem ?»

Para responder a estas quostóes, procuraremos, antes do


mais, explicar o que se entende por «juizo de Deus sobre os
homens». A seguir, avallaremos o sentido das expressóes «juízo
particular» e «juízo universal».

1. O juizo de Deus

Quando se íala de julgamento entre os homens, tem-se em vista


o exame do procedimento de alguém : determinados pronunciamentos
ou certos fatos sao propostos a apreciacáo de urna ou mais pessoas
abalizadas (jutzes); há quem advogue a materia ou a causa, mostrando
seus predicados bons, ás vézes descotihecidos ao público; há também
quem a impugne, apontando motivos para condena-la. Por íim, o
juiz devidamente credenciado, tendo ponderado as diversas razOos
aduzidas, profere a sua sentenca ou o julgamento.
Está claro que éste modo humano de julgar nao pode ser aplicado
a Deus. O Senhor oniciente nao precisa de ouvir razdes pro ou contra
o procedimento de suas criaturas; nem os anjos bons nem os demonios
O informam ou Lhe chamam a atencáo sobre o mérito ou o demérito
das Tiossas agOes. Deus sabe perfeitamente o que valem os atos de
cada criatura antes de a julgar. Por isto, a expressáo «juizo de Deus
sobre os homens» tem sentido próprio, que assim se pode apresentar :

Em todo o decorrer da vida de cada homem, Deus mani-


festa-lhe a sua palavra, a sua vontade, a sua Lei. Todo homem
ouve, sim, no íntimo da sua consciéncia (queira-o ou nao) o
axioma «Faze o bem, evita o mal»; éste ditame é a voz de

— 122 —
JU1ZO PARTICULAR E J. UNIVERSAL

Deus mesmo, implantada no mais íntimo da natureza humana.


Assim todo homem é constantemente colocado diante de urna
opgáo : «agir conforme a Lei de Deus» ou «agir contrariamente
á Lei de Deus». Escolhendo um ou outro désses alvitres, isto
é, aceitando ou recusando converter-se para Deus, o homem
julga a si mesmo ou profere urna sentenga sobre si (pois a
norma de comportamento da criatura é, inelutavelmente, o
Criador ou Deus).
Deus, que fez o homem livre, nao contradiz ao julgamento
ou á opcáo da sua criatura; ao contrario, reconhece-a e rati
fica-a. É tal reconhecimento ou ratificagáo que chamamos
«juízo de Deus sobre o homem».
Neste sentido háo de se entender os dizeres de Cristo no Evangelho
de Sao Joáo: «Quem me rejeita e nao recebe as minhas palavras,
tem quem o juigue: a própria palavra que Eu preguei, o julgará no
último dia» (12,48).
Deus íaz ouvir sua palavra por excelencia através do Evangelho
ou da pregagáo de Cristo. Contudo mesmo aqueles que jamáis ouviram
o Evangelho ou só o ouviram de maneira pálida e insuficiente, ouvem
do seu modo a palavra do verdadeiro ou único Deus. Com efeito, todo
homem possui urna consciéncia. que, como dissemos, o chama constan
temente a praticar o bem e evitar o mal. Éste imperativo muito geral
se esmiuea na mente de cada individuo; em circunstancias normáis,
cada um dai ctaduz quo 6 preciso «nfio matar, nao roubar. honrar pal
e m5e, socorrer ao próximo indigente, seguir tal ou tal forma de
Religiáo que a pessoa sem hesitacáo alguma julgue ser a verdadeira
Religiáo...». No Cristianismo, onde ressoa explícitamente o Evangelho,
as conclusoes do ditame «Faze o bem, evita o mal» sao deduzidas
até as últimas conseqüéncias («o homem deve amar mesmo os inimi-
gos, porque Deus ama o homem, quando éste Lhe é intenso», diz a
Moral crista). Todavía mesmo um pagao, um muculmano ou um
budista que com toda a candura de alma, observe os ditames que a
sua consciéncia lhe incute, crendo que sao ditames válidos, está, era
última análire. seguüido a voz do único Deus; é. sim. pela voz da
consciéncia (desde que esta seja sincera) que o Deus do Evangelho
fala aos homens a quem Ele nao dá a conhecer o próprio Evangelho.
Vé-se, pois, que todo homem, durante o decorrer de sua vida,
em cada um de seus atos deliberados, julgase a si mesmo, toma
posicüo diante de Deus — o que equivale a dizer:... é julgado por
Deus.
Destas consideracóes depreende-se o extraordinario alcance dos
atos humanos : cada qual tem um aspecto de infinito, pois é urna
resposta a Palavra de Deus infinitamente sabio e santo; em todo
momento o homem está «jogando» íbem ou mal) com o Infinito.

2. Duas ocasides soJenes

As op?óes ou posicóes que o homem na térra toma su-


cessivamente diante de Deus, sao manifestadas pelo próprio
Deus em duas ocasióes solenes da existencia humana :

— 123 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1967, qu. 4

1) Logo após a morte do individuo. A alma, separándose


do corpo, comparece ¡mediatamente diante de Deus; o Senhor
entáo projeta a sua luz, a sua pureza e santidade sobre tal
alma, tornando assim evidente o que havia de reto e de falho
em suas opcóes nesta térra. Sem véus ou com toda a clareza,
a alma percebe o valor de seus atos bons, por mais obscuros
que tenham sido, assim como a hediondez de suas atitudes
deficientes. É necessário que a criatura humana tenha essa
visáo, pois fomos feitos para a verdade e a sinceridade; nesta
caminhada terrestre, porém, sujeitos á concupiscencia e ás
paixóes desregradas, corremos o risco de nos engañar muitas
vézes sobre o significado do que fazemos; ora exageramos, ora
diminuímos indevidamente o valor de nossos atos. Tal tomada de
consciéncia, sob a luz de Deus que se projeta sobre a alma logo
após esta peregrinagáo, é o que se chama, «o juízo particular».
b) No fim dos tempos ou no día da ressurreicao dos corpos.
O homem é naturalmente um ser social; vive em coletividade,
onde desenvolve urna fungáo, deixando ai (mesmo que nao o
saiba nem queira) a marca de seus atos. As acóes de toda
pessoa humana tém conseqüéncias que ela mesma nao avalia,
redundando em vantagem ou detrimento para o próximo; a
influencia de urna só personalidade na historia pode-se estender
através de sáculos (tenham-se em vista certos livros ou certos
sistemas filosóficos, que, langados em épocas remotas, até hoje
beneficiam ou prejudicam os homens). Ora, por causa desta
sua repercussáo social, nossos atos háo de ser manifestados a
toda a humanidade no dia em que se consumar a historia;
perceber-se-iáo entáo o significado e o valor da vida de cada
individuo no conjunto das geragóes e dos séculos. Corrigir-se-áo
também os mal-entendidos ou os julgamentos pouco acertados,
a que freqüentemente estamos sujeitos quando analisamos o
comportamento do nosso próximo. É justo que tal manifestado
e tal esclarecimento se fagam; correspondem ás exigencias da
nossa natureza social.
É essa revelacáo do genuino sentido comunitario de nossos
atos que se chama «o juízo universal». Nao ha dúvida, éste
também pora em evidencia a acáo benigna e paciente com que
a Providencia Divina acompanha as geragóes humanas; os
designios de Deus, por vézes táo misteriosos ao homem pere
grino, tornar-se-áo patentes, de modo que todos admitirlo a
Sabedoria que os inspirou.
Sao estas as idéias que a doutrina crista quer exprimir
quando fala de «juízo particular» e «juízo universal» de Deus
sobre os homens.

— 124 —
O PADRE, FIGURA DESLOCADA?

IV. SOCIOLOGÍA
LUCIO (Rio de Janeiro) :

5) «O padre de nossos días é tido, por vézes, como ama


figura desambientada, deslocada ou inútil na sociedade.
Que dizer ?»

O padre é, sem dúvida, urna figura para a qual dirigem sua


atencáo os pensadores e profissionais dos mais diversos setores:
sociólogos, psicólogos, médicos, educadores, romancistas, cine
matógrafos, etc.
E por qué ?
— Em grande parte, por causa de duas notas que o carac-
terizam: o celibato e a isencáo de profissáo civil, profana.

Muitos julgam que a pessoa do padre assim marcada constitui


um tipo de épocas ultrapassadas, que nao encontra «clima» ou com-
preensao no mundo de hoje. O padre seria um «notable déclassé» (1),
isto é, alguém que outrora foi «notável», categorizado ou classificado,
parque tdda a sociedade era (ou pretendía ser) crista, mas que hoje
perdeu categoría e notabilldade, porque o mundo já nao é cristao.
O padre sem familia e sem proflssSo civil seria um tipo inútil, pois
tenta em nome de Deus oíerecer ao mundo valores sobrenaturais,
de fé, de vida eterna, valores para os quais a sociedade contempo
ránea pouco ou nenhum interésse tem.

Em conseqüéncia, há quem preconize que o padre deveria


abandonar seu celibato, constituindo familia, e abragar urna
carreira ou um emprégo civil que lhe garantisse o ganha-páo
e, ao mesmo tempo, o ambientasse ou «entrosasse» na vida
do comum dos homens de nossos tempos.

O problema assim proposto vem merecendo a crescente atencáo


nao somante do clero, mas também dos fiéis e do mundo náo-cristáo.
Eis por que será abordado aqui.
Depois de urna observacáo geral, analisaremos sucessivamente
as duas facetas da questáo: 1) o padre sem familia; 2) o padre sem
emprégo civil. A consideracáo serena das idéias e dos fatos sugerirá
algumas conclusoes valiosas.

(1) «Notável que perdeu sua dasse». A expressáo é de Henri


Holstein: «Les prétres s'interxogent» em «Études» junho 1966,
pág. 835.
Tal designacao alude aos tres estados (ou classes) de homens
notáveis que a sociedade francesa reconhecia antes da Revolucáo de
1789: a nobreza, o clero e a burguesía.
Ora, como a nobreza perdeu sua voga em 1789, assim também o
clero teria perdido sua qualificacáo na sociedade francesa ou mesmo
universal.

— 125 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1907, qu. 5

1. Um ponto de partida,

Diz-se que o padre hoje em dia é um «notable déclassé»,


um «homem (outrora) notável, mas (hoje) sem defini;áo ou
pDsigáo» na sociedade.

«Notável»... Nao pertence á missáo do padre ser, dentro


da sociedade, um tipo notável, saliente ou prestigiado, no sen
tido humano ou social destas palavras. Ele nao precisa de se
jústapor á nobreza e á burguesía, como contingentemente se
verificou na Franga do séc. XVIII. Ao contrario,...; poder-
-se-iam citar as palavras do Divino Mestre:

«Em verdade, em verdade vos digo : o servo nao é maior do que


o seu senhor, nem o enviado maior do que aquéle que o enviou>
(Jo 13,16).
«Lembrai-vos da palavra que vos disse: 'O servo nao é maior
do que o seu senhor'. Se me perseguiram, também vos perseguirlo.
Se guardaram minha palavra, guardarao também a vossa» (Jo 15,20).

Sé hoje, pois, as estruturas sociais nao reseryam ao padre


privilegios ou honras próprias. mas, ao contrario, tendem a
nivelá-lo com os demais cidadáos, seus irmáos, o clérigo nada
perde em si; talvez mesmo seja beneficiado ñas suas quaJidades
especificas de padre. Por conseguinte, o sacerdote como tal
nao é, em absoluto, afetado quando so lhe diz que já mío per
tence á categoría dos «notáveis» da sociedade.
«Déclassé (= sem classe ou categoría)»... A palavra
«classe» pode ter varias acepgóes. A que interessa ao padre
é a de «lugar, fun"áo, missáo» entre os homens. Ora. deve-se
dizer que «classe» entendida neste sentido é, sem dúvida, algo
que o padre possui plenamente e que a justo direito lhe compete
no mundo mesmo de hoje.
Com efeito; o mundo constituí urna sociedade visível, que
só encontra sua estrutura e consumagáo em Deus; toda cria
tura, em qualquer época, está intrínseca e essencialmente rela
cionada com o Criador (é o que o termo mesmo de «criatura»
sugere). Ora p «embaucador» ou ministro, chamado pelo pró-
prio Deus para cultivar as relacóes do mundo com o Criador,
é o padre. É, sim, o sacerdote que, dentro da sociedade, deve
desempenhar a funcáo de unir os homens (qualquer que seja
o seu tipo político ou cultural) entre si para os levar todos ao
seu verdadeiro Fim ou a Deus. Em vista desta tarefa, o padre
deve naturalmente acompanhar com carinho os empreendimen-
tos e interésses dos homens seus irmáos, mas também deve
colocar-se fora e ácima de partidos meramente humanos; deve

— 126 —
O PADRE, FIGURA DESLOCADA?

olhar para os debates dos seus irmáos com olhar sobrenatural


ou com o olhar do próprio Deus.
Esta missáo é justificada ou mesmo necessária em todas as épocas
da historia e em todos os graus da civilizacáo. A linguagem popular
consagrou-a com um adagio simples, mas muito significativo: «O
padre é o coracüo dos homens junto a Deus, e o corado de Deus
junto aos homens».

O padre possui, sem dúvida, um coracao humano; como tal, ele


compartilha as alegrías e esperanzas, assim como os lutos e revezes
da humanidade. Mas, para poder elevar e transfigurar as embates
cotidianos dos homens, ele há de possuir «algo do coracao de Deus»,
isto é, deve estar mais Intimamente unido a Deus (em linguagem
católica, dir-se-ia : mais profundamente enxertado no Cristo Jesús).
Em conseqüéncia, o sacerdote deve, por seus pensamentos, afetos
e obras, subir constantemente dos homens a Deus, levando consigo
tudo que é humano, e descer de Deus aos homens, consagrando tudo
que é déste mundo.
O Evangelho ilustra essa íuncao do presbítero mediante algumas
metáforas: fermento na massa, sal na térra, luz no mundo (cf. Mt
13,33; 5,13s). Inegavelmente, tais figuras podem-se aplicar a todos os
discípulos de Cristo; receberam gratuitamente os dons da fé e da
caridade sobrenaturais para os difundir entre os seus semelhantes.
Mas, de modo especial, elas se ajustam aos sacerdotes ministeriais
ou aqueles que Deus chamou em particular para o ministerio sacerdotal.
Um antigo opúsculo da literatura crista, a epístola a Diogneto
(séc. III), citado pelo Concilio do Vaticano II, exprimía aínda sob
outra imagom o papel dos cristáos e, acentuadamente, do padre na
sociedade, dizendo: «O que a alma é para o corpo, isso mesmo o
cristáo é para o mundo» (c. 6).

Estas observagóes levam a ver que o padre (entendido,


como deve ser entendido, aos olhos de Deus e da fé) está longe
de ser um individuo deslocado ou sem «métier» neste mundo.
Ele é, sim, depositario e ministro de altissima fungáo, funcáo
que vale tanto quanto o Evangelho, embora o mundo por vézes
nao a entenda nem a queira admitir.
A fungáo do padre, porém, impóe necessáriamente certas
exigencias ao ministro de Deus. O padre jamáis poderá ser
«o coracao dos homens junto a Deus e o coracao de Deus junto
aos homens» pelo simples fato de haver estudado Teología ou
de possuir apurado senso psicológico. O estudo e o senso profis-
sional bastam para fazer o bom médico, o bom advogado, o bom
engenheiro, mas nao bastam para fazer o padre. Éste precisa
de possuir, além de qualidades e vivencia humanas, também a
vivencia ou a intimidade com Deus. E justamente a íntima
vivencia com Deus inspirou ao Apostólo Sao Paulo passagens
como 1 Cor 7; 2 Tim 2,3s (já analisadas las págs. 113.117 déste
fascículo), passagens que os clérigos no decorrer da historia apli-
caram a si de maneira especial: abracaram o celibato e isen-

— 127 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1967, qu. 5

taram-se de negocios profanos ou seculares, a fim de poder


viver mais plenamente para Deus e para as almas.

2. Celibato

1. Amar é algo de essencial ao homem, é indispensável


para que a vida humana seja verdadeiramente humana. O
padre, pelo fato de ser padre, nao se torna desumano; nao está,
portanto, excluido da lei do amor. Por isto ele nao recalca
a sua espontánea capacidade de amar; ao contrario, exerce-a
com esmero, fazendo-a confluir toda diretamente para o Bem
Supremo ou para Deus. Ésse amor entregue a Deus reflui
naturalmente sobre todos aqueles que Deus ama ou sobre os
homens. Assim o padre é chamado a amar, com o máximo de
mtensidade, a Deus e aos seus irmáos.
É isto que explica o celibato dos presbíteros; para que
estes representem nao sómente o coragáo dos homens junto
a Deus, mas também o coragáo de Deus junto aos homens, é
preciso que amem com disciplina e com dominio sobre si mes-
mos. «Amar muito e bem» implica sempre algo de virginal ou
pouco de «dureza» no exercício do amor.

Nao se pode dizer que, para amar com plena compreensáo, é


nccessário íazer a experiencia de todos os tipos de amor (por conse-
guinte.... fazer a experiencia do amor de esposo c de pal segundo
a carne); ao contrario, o amor de esposo e pai segundo a carne é
expressáo de um amor que se acha também no coracáo do padre e
que o padre exerce, sem o risco de paixao, de egoismo ou de embo-
tamento, exercendo a paternidade espiritual ou tentando prolongar
a paternidade do próprio Deus junto aos homens.

O celibato, portanto, nao isola dos homens o padre, nao


o «desclassifica»; mas, ao invés, possibilita-lhe amar com mais
amplidáo e liberdade, permitindo-lhe estar mais Intimamente
presente a todos os homens.
É o que certos episodios ilustram de maneira muito viva:

Refere-se que, durante a guerra franco-alema de 1870, numerosos


prisioneiros franceses foram internados na Alemanha; a peste, porém,
grassava entre éles. «Tinhamos soldados (franceses) em onze hospttais
e acampamentos estabelecidos junto ás duas margens do Reno. Em
alguns désses hospltais, onde os homens atetados de varióla eram a
maiorla, apenas os capelaes e médicos ttnham permissao para entrar.
Certo dia, o capelao protestante fot ter com o Padre Debras, capelüo
católico, e pedtu-lhe que se encarregasse de atender aos enfermos
evangélicos. 'Sendo eu pal de familia, dizta ele, nao me posso expor
ao risco de contagio1. O Pe. Debras atendeu de bom grado á sollcl-
tacao do seu companheiro» («Salnt-Sulpice pendant la guerre et la
Commune, par un Sulpicien». Paris 1909, pág. 80).

— 128 —
O PADRE, FIGURA DESLOCADA ?

O comportamento do pastor protestante era justificado: sendo


esposo e pai de familia, nao lhe incumbía atender, antes do mais,
as responsabilidades que contraira com seu lar ? É o teólogo evan
gélico Alfred Vinet quem escreve:
«Como nao seria o pastor, em primeiro lugar, pastor da sua fami
lia ?... Seria gravé erro julgar que a paróquia deva passar á frente
da familia. Para o pastor, como para qualquer outro homem, a fami
lia representa o interésse primordial. Se alguém nao quer admitir
isto, é mais simples que nao se case» («Théologie pastorale ou théo
logie du ministere évangélique», 2' ed., Paris 1854, 181s).
Justamente no caso citado o celibato deu ocasiáo a que o padre
exercesse mais desimpedidamente o seu ministerio ou o amor para
com os que déle necessitavam, católicos e protestantes.
Em territorios de missSes principalmente, tém-se apontado casos
em que o missionário protestante casado se vé coibido pelos lagos
da familia.

O Pe. Bertram Wolferstan, par exemplo, antigo anglicano que


abragou a fé católica, publicou urna serie de testemunhos, colhidos
entre os seus correligionarios de outrora, a respeito do apostolado
na China (cf. «The Catholic Church in China, from 1860 to 1907»).
Dois traeos sao salientes em seus depoimentos :
Os ministros anglicanos ttnham multas vézes que abandonar a
missáo por motivos de familia. Nao raro, os jomáis de Tien-tsin,
Pcquim, Changai publicavam semelhantes noticias : «A débil saúde
da Sra. N. e de seu filho os obrigou a deixar o campo de trabalho»
ou: «A saúde da Sra. N. nao se tendo restabelecido, o Rev. N. N. foi
competido a voltar para a Europa».
Os missionários acompanhados de familia precisavam de passadio
especial: nem a senhora nem o pequenino podiam viver segundo os
eostumes chineses; era necessário proporcionar-lnes algo do regime
da máe-pátria. Em conseqüéncia, certos Institutos missionários angli
canos, como a «Universities Mission», passaram a só aceitar obreiros
celibatários : custavam quatro vézes menos e eram quatro vézes mais
aptos para o trabalho.
Tais episodios nao precisam de comentario. Servem para corro
borar o que a experiencia até nossos dias ensina: o celibato, longe de
atrofiar o amor e a dedicagao do sacerdote para com o próximo, é,
antes, um fator que dilata valiosamente o coragáo do padre em de
manda do próximo.

2. Nao se podem negar, porém, os casos em que o celibato


se torna um elemento que depaupera afetivamente e ames-
quinha o coracáo do padre. Diante désses e de outros fatos
lamentáveis, é oportuno dizer que éles nao se devem ao celibato
como tal ou como instituicáo, mas, sim, á fraqueza dos hornens
que o abragam; estes nao possuem sempre o preparo e a for-
magáo para viver o celibato ou nao cultivam devidamente o
amor a Deus, cedendo a leviandades e infidelidades; isto lhes
acarreta o desequilibrio afetivo e ocasiona resultados infelizes.
Se o coragáo do homem que deixa de aderir as criaturas para

— 129 —
uPERGUNTE E RESPONDEREMOS,» 87/1967, qu. 5

aderir mais plenamente ao Criador, nao realiza conseqüente-


mente a sua total adesáo a Deus, ele nao pode deixar de se
sentir vazio, desajustado e inquieto; procura entáo compensa-
cóes e derivativos em amores a que ele previamente renunciou.

O remedio que tais episodios infaustos exigem, nao é a extingáo


do celibato dos sacerdotes (éste, como instituicáo, permanece sempre
válido), mas, sim,
1) esmerada íormacáo (religiosa e humanista) do candidato ás
Ordens sacras no periodo de estudos. Comunique-se-lhe a conscióncia
clara do que vai abracar; incutam-selhe hábitos fortes de disciplina
e dominio de si, assim como o gósto da oracao e da vida interior;
procure-se fazer déle um homem de Deus e de íé; quem tem o sabor
da uniáo com Deus, já nao possui gósto para futilidades;
2) o exercício da vigilancia ou da disciplina solicita do padre
sobre si mesmo para que ¡nao seja acometido por atos levianos e
infiéis. Quem afrouxa na vida espiritual e no amor a Deus, arrisca-se
a ceder ilícitamente ao amor das criaturas.

3. Dir-se-á, porém : mesmo que se reconhega o celibato


como um valor, porque a Igreja o impóe aos clérigos, em vez
de lhes permitir a livre op;áo ?
— A Igreja, consciente de que o celibato é um elemento
eficaz para proporcionar ao povo de Deus um clero mais solícito
e dedicado, tem o direito de o pedir aos seus ministros. Pela
fé, o cristáo vé nessa exigencia da Igreja urna exigencia do
próprio Cristo (embora reformável, nao-dogmática), pois ele
sabe que a Igreja é a auténtica Depositaría a quem o Senhor
confiou a administragáo dos tesouros da Redemjáo.
A Igreja nao impOe as Ordens sacras aos seus filhos. Quem,
portanto, as recebe, recebe-as livremente; tem consciéncia de que
Deus, chamando-o ao sacerdocio celibatário, lhe dará a graca de estado
necessária para cumprir fielmente os seus deveres, tais como sao
concretamente estipulados por Cristo e pela Igreja.

4. Objeta-se ainda : haveria mais padres, se lhes fósse


permitido o matrimonio ou se houvesse padres recrutados
dentre os homcns casados!
— Aos olhos da Santa Sé, a perspectiva de maior quan-
tidade pouco significa, desde que pareca acarretar um risco
para a santificacáo dos próprios clérigos e do povo de Deus
ou um detrimento para a atividade ministerial do presbítero.
Com efeito, um padre casado já nao poderia ser integralmente
o homem de Deus e das almas, conforme a advertencia geral
feita por Sao Paulo em 1 Cor 7,32s: «Quem tem esposa cuida
das coisas do mundo e do modo de agradar á esposa. Fica
dividido». Um esposo ou pai de familia teña menos tempo e
menos disposicáo de espirito para adquirir os predicados (mo
ráis e intelectuais) que caracterizam o sacerdote; seria padre

— 130 —
O PADRE. FIGURA DESLOCADA ?

(pai espiritual) por definigáo, mas ao mesmo tempo nao seria


pai para muitas almas que lhe fóssem pedir algo do que ele
deveria dedicar a paternidade carnal.
O Santo Padre Pió X lemhrava que a qualidade prevalece sobre
a quantidade, escrevendo ao arcebispo de Caracas D. Joáo Batista
Castro : «... Mais Vale faltar sacerdote que exerc.a a cura das almas
em algutn lugar do que haver ai um padre que, levando vida indgna,
proporcione ao povo cristáo prejuizo e ruina (espiritual) em vez de
salvacáo» (A. A. S. 1912, 26).
A questüo do celibato está intimamente associada á da

3. Profissáo civil

Tem-se dito que o sacerdote, para encontrar seu lugar na


sociedade contemporánea, precisaría de exercer um mister pro
fano que lhe desse um título perante os seus concidadáos.
Eis como a tal respeito se exprimiu Marc Oraison :
«Ser clérigo já nao é um mister (métier); é preciso, pois, que o
padre, para ser plenamente padre, exerca um mister (métier) que
tenha valor humano e que lhe permita contribuir pessoalmente para
a existencia concreta do mundo em que vive e ao qual ele íoi espe
cialmente encarregado de levar a Palavra da salvacáo» («Un homme
sans métier?» em «Christus» 48, out. de 1965, pág. 471).

«Ser clérigo nao é métier» no sentido de «ganha-páo» ou


de «carreira humana» da palavra «métier»; nao há quem o
conteste. Mas é, sem dúvida, mister, tarefa, missáo de elevada
importancia para a sociedade humana. Esta, com seus técnicos
e profíssionais devotados á construgáo da Cidade dos homens,
nao encontra consistencia nem consumacáo, caso nela nao naja
quem se dedique inteiramente á construgáo da Cidade ou da
Casa de Deus. As últimas tarefas humanas nada sao, se nao
se lhes dá um cunho de eternidade, cunho de eternidade que
Deus quer imprimir ao mundo mediante seus ministros. Estes
nao precisam de justificar a sua existencia e posicáo na socie
dade, assumindo algum título profano ou apresentando outro
titulo que nao o de «ministros ou sacerdotes de Deus». O cri
terio para se julgar o valor da profissáo do padre nao é a contri-
buigáo que ele possa dar ao progresso técnico ou material. O
padre, trabalhando pela sua palavra e pelo seu ministerio, para
santificar a vida e os afazeres de seus irmáos, realiza o mais
elevado e importante dos misteres ou métiers da sociedade.
Esta afirmagáo é plenamente válida aos olhos do sacerdote e
dos fiéis, embora nao a aceitem os que nao tém fé.
Nao haveria aíazeres apostólicos suficientes para encher os dias
de trabalho (e as noites) do padre ? Precisaría ele entáo de procurar

— 131 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1967. qu. 5

urna ocupacáo profana para se entreter e realizar, íora dos sábados


e domingos ?
A historia, máxime em nossos tempos, comprova sobejamente as
palavras de Cristo : «A messe é muita, mas os operarios sao poucos*
(Mt 9,37). Na verdade, as tareías do Retno de Deus sao cada vez
mais vultosas do que o número de operarios ou ministros do Senhor,
mesmo que éles lhes dediquem integralmente o seu tempo. Que ruina
espiritual entáo nao se verificaría, caso os sacerdotes devotassem ao
ministerio sagrado apenas as margons ou orlas do seu tempo útil ?

Está claro que o sacerdote nao é apenas o ministro dos


sacramentos ou o homem do altar e da sacristía. A par desta
tarefa, incumbe-lhe evangelizar, catequizar, procurar os que
estáo dentro e fora da Igreja, manter contactos, organizar,
etc., afazeres estes que exigem constante solicitude. Para se
realizar, para desdobrar plenamente a sua personalidade, o
padre nao necessita de outros setores de atividades; ele é, em
sentido cabal, operario, trabalhador da Cidade de Deus e, conse-
qüentemente, também da Cidade dos homens.
Veja-se, de resto, o exemplo do Senhor e dos Apostólos :
Jesús íoi homem auténtico entre os homens do seu tempo, incor-
rendo mesmo ñas críticas e no sarcasmo dos íariseus. Mas soube
guardar a plena independencia de Mestre ou Arauto do Reino; ao
iniciar a sua vida apostólica, abandonou o mister (métier) que1 exer-
cera com seu pai adotivo Sao Josó.
Certa vez, rogado por um jovem para que dirimisse questáo de
heranca, respondeu: «Amigo, quem me constituiu juiz ou arbitro de
vossas partilhas?» (Le 12,14).

SSo Paulo quis, sim, praticar a arte de curtidor ao mesmo tempo


que anunciava a Boa-Nova. Contudo, assim procedeu por um motivo
todo particular: tal era o impeto sobrenatural que o levava a pregar
que ele julgava nSo ter mérito algum ao evangelizar; para que a sua
tarefa apostólica Ihe parecesse meritoria, Sao Paulo quis espontánea
mente renunciar a um direito que ele reconhecia a todo evangelista
ou ministro de Cristo — o direito de viver do seu trabalho religioso,
sem preocupacóes de outra Índole (cf. 1 Cor 9, 4-18).
Em mais de urna passagem, o Apostólo incutiu tal direito :
«Sómente eu e Barnabé nao temos o direito de deixar o trabalho ?
Quem é que planta urna vinha e nao come do seu fruto ? Quem
apascenta um rebanho e nao se alimenta com o leite do rebanho ?
Será que eu digo estas coisas paseado sómente em consideracoes
humanas ? Ou nao é também a leí que diz o mesmo ? Pois está escrito
na lei de Moisés :
•Nao amordacarás o boi que pisa o trigo*.
Será que Deus se preocupa com os bois ? Na realidade, nao é
por nossa causa que ¿le diz isto ? Sim, é por mossa causa que isto foi
escrito. Aquéle qué trabalha deve trab^har com esperanca, e aquéle
que pisa o grao deve íazé-lo com esperanca de participar dos frutos.
Se semeamos entre vos bens espirituais, será demais que colhamos
de vossos bens materiais ? Se outros usam déste direito sdbre vos,
porque, com mais razáo, nao o podemos nos ? Entretanto, nao temos
usado déste direito. Pelo contrario, tudo suportamos para nao criar
obstáculos ao evangelho de Cristo» (1 Cor 9, 6-14).

— 132 —
O PADRE. FIGURA DESLOCADA?

Em 2 Tim 2,3s, o Apostólo comparava o ministro de Deus a um


militar... Éste para preencher devidamente a sua missáo, abstém-se
de todas as ocupagóes civis; quanto mais entáo nao se poderá desejar
isto da parte de um clérigo ?, insinúa Sao Paulo (cí. pág. 117 déste
fascfculo).
Veja-se outrossim 1 Tim 5,18; 6,6; Le 10,7.

Estas considerares levam a ver que o sacerdote nao tem


motivo de acanhamento pelo fato de nao possuir familia nem
profissáo civil. Ele possui as qualidades de esposo, pai e profis-
sional em grau eminente, e exerce-as num plano superior ao me
ramente natural; a sua eficacia lhe vem de Deus e tende dire-
tamente para Deus, tornando-se assim altamente benéfica para
os homens. Aos leigos é que compete tornar a Igreja presente
nos afazeres de índole temporal ou secular (cf. Const. «Lumen
Gentium» c. 4).

Sdmente um sacerdote que deixe arrefecer a sua fé, perdendo a


consciéncia da sua elevada missáo, pode-se julgar desajustado, inde
finido (déclassé) na sociedade. O presbítero que veja a realidade com
olhos secularizados ou meramente humanos, poderá, sim, crer que
sua vida é vazia e que só tomará sentido se se equiparar ao género
de vida do laicato.

A experiencia comprova que justamente o padre é respei-


tado e estimado dentro da sociedade, quando se apresenta
em ludo como sacerdote, isto é, quando se dedica plenamente
as tarefas da S. Igreja, guardando independencia em relacáo
aos afazeres temporais. O padre que realizar com zélo e tota-
lidade a sua missáo de ministro de Deus, será sempre presti
giado; ao contrario, aquéle que se quiser diluir, dissimular ou
«nivelar», cedo ou tarde incorrerá na censura e no menosprézo
do público. Os fiéis, e mesmo os incrédulos, bem reconhecem
que o padre só merece plena atengáo quando é coerente, quando
se comporta aberta e totalmente como padre, como homem
de Deus e das almas.
O padre que é «padre pela metade» (que quer ter um foro
civil ao lado do foro sacerdotal), engana-se caso julgue que
destarte será «homem por inteiro», mais acatado e inserido
na sociedade. Ele poderá, sim, tomar-se, aos seus próprios olhos
e aos olhos de seus semelhantes, o homem mais vazio, desajus
tado e mais digno de compaixáo.

«Se compreendéssemos o que é o padre sobre a térra, morderíamos


nao de temor, mas de amor. Se o padre estivesse bem compenetrado
da grandeza do seu ministerio, ele mal poderla viver. ó, como o padre
é algo de grande!», exclamava um sacerdote que viveu plenamente
a sua vocacáo numa das mais humildes paróquias da Franca do século
passado: Sao JoáoMaria Vianney.

— 133 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1967, qu. 6 e 7

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

JANDYRA (Rio de Janeiro) :

6) «Que dizer da pega de teatro 'O Santo Inquérito', da


autoría de Días Gomes f
Gomo se explica a presenta da Inquisicáo no Brasil ?»
- 7) «Que houve entre o Pe. Vieira e a Inquisicáo ?»

A mencionada peca focaliza um episodio ocorrido em pleno


séc. XVIII no Nordeste do Brasil: a heroína da cena, Dona
Branca, é mulher simples, de fé pouco esclarecida; descendente
de familia judaica, tende a mesclar o Cristianismo com práticas
religiosas israelitas. É entáo apreendida pelo tribunal da Inqui
sicáo, que se mostra pouco compreensivo para com a alma
Cándida de Dona Branca; esta representa a inocencia de pessoas
despretenciosas vitimas do fanatismo de homens mesquinhos.
A pega assim concebida redunda em urna crítica á Inqui
sicáo, ao clero e á própria Santa Igreja.

Poder-se-ia esclarecer um poueo a temática abordada pelo «O


Santo Inquérito» ?

— Ninguém ousará negar os aspectos negativos dos processos


da Inquisicáo, processos que geralmente eram empreendidos «em nome
de Deus e da fé». A Inquisicüo é um testemunho enfático de como o
Senhor Jesús permite que a fraqueza humana seja associada á obra
da Redencao ou á historia do Cristianismo através dos séculos.
Contudo, para entender devidamente o episodio apresentado pelo
«O Santo Inquérito», é oportuno reconstituir hrevemente as circuns
tancias históricas em que se desenrolou a Inquisicáo na Europa e
no Brasil.

1. Que é a Inquisicáo ?

Já foi abordada esta questüo em «P. R.» 8/1957, qu. 9. Aqui


colheremos apenas os principáis tópicos do assunto.

1) No séc. XI apareceu na Europa urna corrente de pen-


samento dualista ou néo-maniqueísta; repudiava a materia e
as instituigóes visíveis da sociedade da época. Tal corrente era
dita «dos Cataros (puros)» ou «Albigenses» (da cidade de Albi,
na Franca meridional, onde os cataros tinham sua sede prin
cipal). Os cataros, por seu dualismo, tomavam urna posicáo
radicalmente antagónica á fé crista e as instituicóes eclesiás
ticas; além disto, ameagavam a ordem civil estabelecida, pois
recusavam o matrimonio, a autoridade governamental, o servi
do militar...

— 134 —
«O SANTO INQUÉRITO»

2) As primeiras represalias contra os bandos agitadores dos cataros


íoram empreendidas espontáneamente pelas populagóes civls amea-
cadas e pelo poder regio ou civil, na Franca, na Alemanha e nos
Países-Baixos. Entrementes, os bispos limitavam-se a impor penas
espirituais aos Jierejes (excomunháo, interdito...); mais de urna vez,
bispos e sacerdotes tomaram a deíesa dos cataros que o povo perseguía
e pretendía punir. •
3) Em meados do séc XII tornou-se insustentável a atitude nao-
-violenta do clero frente aos cataros. Os reis, os magistrados e o povo
faziam pressáo a íim de que as autoridades eclesiásticas colaborassem
mais diretamente na repressao do Catarismo.
Em conseqüencia, no ano de 1184 foi instituida a Inquisicao epis
copal : os bispos, coadjuvados pelo poder civil, mamdariam Inquirir
ou procurar os herejes em suas dioceses; estes, urna vez apreendidos,
ou abiurariam seus erros ou seriam entregues ao braco secular, que
lhes aplicaría a justa sancáo (sangáo entendida segundo as rudes
categorías judiciárias da época).
4) Já que tal procedimento anti-herético se mostrava insuficiente
para conter os cataros, em 1233 íoi instituida a Inquisicao Papal;
o Sumo Pontífice passou a nomeac Inquisidores (geralmente domini
canos) que, dotados de ampios poderes, iriam ao encalco dos herejes
em todo o territorio de urna nacao (Franca, Alemanha, Italia...).
5) A Inquisicao Papal era regulamentada por instrucdes e Bulas
dos Pontífices que visavam moderar os ánimos e evitar que paixoes
ou instintos de vinganga se exercessem nos processos inquisitoriais.
Tais normas, porém, nao conseguiram impedir que muitas vezes os
Inquisidores e seus oficiáis incorressem em graves erros no desem-
penho de suas funcOes.
6) No séc XIV, com Filipe IV o Belo, da Franca, comecaram a
surgir as monarquías absolutistas na Europa. Difícilmente os reis
doravante tolerariam que a justica fósse aplicada em seus territorios
segundo outro código legislativo e outros interésses que nao os do
prónrio reí. Conseqüentemente, o poder regio (que sempre tiyera
ingerencia nos processos da Inquisicao) passou a dominar mais; e
mais os trámites inquisitorios (nao era difícil aos medievais admitir
éste entrelacamento de autoridade religiosa e poder civil, já que os
reis da época professavam oficialmente a ReligiSo crista).
Assim a Inquisicao íoi-se tornando cada vez mais o instrumento
que o Estado regio manipulava a fim de impor sua políüca e atingir
seus objetivos nacionalistas; os juizes eclesiásticos e os rótulos reli
giosos que continuavam a marcar a face externa da Inquisigao, eram
¿penas capa para o exercício de planos que no fundo pouco ou nada
tinham de religioso. Tenham-se em vista, por exemplo o processo dos
Templarios empreendido por Filipe IV o Belo (cf. «P. R.» 16/1959,
qu. 7) e o de S. Joana d'Arc (cf. «P. R.» 8/1958, qu. 9).

7) A partir do séc. XVI, a Inquisicáo na península ibérica


tomou características políticas ainda mais marcantes : foi explo
rada pelos reis de Espanha e Portugal para se libertarem dos
judeus e árabes que haviam poderosamente influenciado a vida
da península na Idade Media.

— 135 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1967, qu. 6 e 7

Sdbre a Inquisicáo Espanhola já se encontra um artigo em «P. R.»


38/1961, qu. 6.
Voltemo-nos, pois, para

2. A Inquisigao em Portugal e no Brasil

Em 1531 o rei de Portugal D. Joáo m pediu á Santa Sé


o estabelecimento da Inquisicáo em seu reino.
Esta súplica era motivada principalmente pelo desejo de
reprimir os judeus e mugulmanos de Portugal. Note-se que o
erario público da Coroa no reino luso se achava nao raro em
situacóes dificéis; isto movia os monarcas a pretender usurpar
os bens dos judeus; para o conseguir, o pretexto religioso pa
recía o mais sumario e eficaz.
O Papa Clemente VII mostrou-se disposto a anuir ao apa
rente zélo religioso de D. Joáo m, contanto que o monarca
aceitasse certas cláusulas. Visto, porém, que estas nao satis-
faziam aos propósitos políticos de D. Joáo m, a tentativa foi
frustrada.
A Clemente VII sucedeu o Papa Paulo ni (1534), a quem
o rei portugués reiterou o seu pedido. Os trámites, porém,
foram infrutiferos, pois as condicóes estipuladas pela Santa
Sé nao atendiam plenamente as inteneóes anti-judaicas do mo
narca. Novos pedidos, apoiados pelo Imperador Germánico Car
los V, foram levados ao Papa, que julgou finalmente poder
instituir a Inquisicáo em Portugal mediante a Bula «Cum ad
nihil magis», de 23/V/1536. Foi nomeado Inquisidor-Mor o
bispo de Ceuta, D. Frei Diogo da Silva, que sem demora publi-
cou o catálogo de culpas doravante sujeitas á Inquisigáo : prá-
ticas judaicas, maometanas ou luteranas, feitigarias ou sorti
legios, bigamia...
Durante os dois primeiros anos, a Inquisigáo foi assaz serena em
Portugal, pois Frei Diogo da Silva era tolerante.
A situacáo, porém, mudou de aspecto quando em 22/VI/1539 íoi
nomeado Inquisidor Geral o infante D. Henrique, irmSo de D. Joáo III,
considerado inimigo figadal dos «crlstaos-novos» (judeus recém-con-
vertidos ao Cristianismo, cuja conversáo irritava as autoridades civis,
por parecer insincera óu por cancelar o pretenso motivo religioso
para a perseguicSo antl-semita).
Em 1552 foi dado á InqulsicSo portuguesa o seu primeiro Regi
mentó, que estipulava a organlzac&o do respectivo tribunal e o seu
direito penal. Éste era multo semelhante ao que se usava nos trlbunals
comuns do Reino, embora menos liberal e largamente influenciado
pela jurisprudencia inquisitorial da Idade Media (havía, além dos
Inquisidores, os promotores de justiga, os eserivaes, o meirinho, o
alcaide do cárcere, o solicitador, o porteiro e os qualificadores, incum
bidos da censura e revisáo dos livros). Outros Regimentos seguiram-se

— 136 —
«O SANTO INQUÉRITO

em 1613, 1640 e 1774; éste último, «o pombalino», íoi inspirado pelo


Marqués de Pombal e publicado «com o real beneplácito e regio
auxilio» !

Como se vé, a Inquisjgáo em Portugal surgiu sob fortes


influencias do poder civil, que orientaram constantemente o seu
rumo até que o próprio Marqués de Pombal (personagem noto
riamente anticlerical, cujos sentimentos cristáos eram muito
apagados) se tornou mentor da Inquisicáo. Estes fatos histó
ricos já bastam para evidenciar que nao se pode atribuir a
própria Igreja, ao clero ou á mentalidade católica o que foi dito
ou feito pela lnquisi;áo ñas térras de Portugal e de suas colonias.
Houve mesmo serias dissensóes entre a Inquisicáo portuguesa
e a autoridade papal, pois ésse tribunal atingía nao sómente
judeus e cristáos-novos, mas também «cristáos velhos» e sacer
dotes tidos como delinqüentes em materia de fé.
Alexandre HerQulano, nos seus tres volumes «A Historia da
Origem e Estabelecimento da Inquisicáo em Portugal» descreveu de
maneira hrilhante, mas um tanto apaixonada, a luta que se acendeu
entre Portugal e o Sumo Pontífice a lim de ser instalada a Inquisicáo
em Portugal.

No Reino, a Inquisigáo estabeleceu seus primeiros tribunais


em Évora (1536), Lisboa (1537), Coimbra (1541), Lamego e
Tamar (1541). Passou para Goa, na India, em 1560 e para a
Bahia, no Brasil, em 1579.
Nossa térra nao podia deixar de ser atentamente visada pela
Inquisicáo dos reis de Portugal. Com eíeito, para o Brasil refugiavam-
•se íreqüentemente os judeus e os cristáos-novos que conseguissem
escapar do tribunal da metrópole; outros, urna vez sentenciados pelos
Inquisidores, eram degredados para o Brasil. Esta colonia, vastissima
e despoliciada, dava ensejo a que todos recuperassem a liberdade
de acáo e, sem receio de repressáo ¡mediata, voltassem a professar
as crencas ancestrais.

Para controlar a disciplina geral dos eclesiásticos e dos


fiéis do Brasil, vinha de vez em quando um Visitador Inquisi
torial. Assim, com o governador Dom Francisco de Souza, veio
em nome da Inquisigáo o licenciado Heitor Furtado de Men-
donga (1591) : em 28 de julho de 1591 foi promovido o primeiro
auto-de-fé no Brasil; o Visitador percorreu, em indagagóes mi
nuciosas, o Recóncavo Baiano, Pernambuco, Itamaracá, e a
Paraiba. Finalmente, instalou urna mesa de Inquisigáo na Bahia
em 1593 : ésse tribunal, entre outras coisas, discutiu se deviam
ser tidos como réus os cidadáos que fornecessem armas aos
gentíos do Brasil; a solugáo dada a esta dúvida foi negativa,
visto que os indios nao faziam guerra aos cristáos por serem
cristáos, mas por outros motivos (29 de junho de 1593).

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1967, qu. 6 e 7

Em 1618 veio ao Brasil como Visitador Inquisitorial o


licenciado Marcos Teixeira. A mesa da Inquisicáo se instalou
na cidade do Salvador, desde setembro de 1618 a Janeiro de
1619; algumas dezenas de pessoas foram entáo denunciadas
por serem de algum modo coniventes com o judaismo. Por
ocasiáo dessa visita, foi diversas vézes incriminada a pretensa
frouxidáo das autoridades eclesiásticas da Bahia : eram tidas
como multo tolerantes em relacáo ás práticas de juda'smo.
O próprio Bispo da Bahia, D. Constantino Barradas, faleceu peran-
te o tribunal da Inquisicáo a 1' de novembro de 1618, após ter sido
acusado de libertar com facilidade os «réus» que a InquisiQáo julgaya
passiveis de penas; censuravam-no também por ter particular amizade
com o Pe. Baltazar Ribeiro «na nacao», isto é. de tp™> <'Hii. Aiem
de D Constantino Barradas, foram denunciados ao Visitador certos
sacerdotes de sangue judaico, tidos como culpados de praucas judai
zantes (alias, El-Rei de Portugal, em carta de 4 de fevereiro de 160á,
recomendara ao Bispo do Brasil, com sede na Bajiia, que colocasse a
frente das paróquias sacerdotes «cristaos velhos», pois constava que
a maioria délas estava entregue a sacerdotes «cristaosnovos»).
De passagem, pode-se notar que no inicio do séc. XVII se registrou
em Coimbra (Portugal) grande celeuma-: entre os cónegos da Sé de
Coimbra ioram descobertos alguns judaizantes, que chegavam a cons
tituir urna sinagoga sob a direcáo de um déles, o Cónego doutoral
Dr. Antonio Homem; éste fazia as vézes de sabio canonista e mereceu
o título de «Praeceptor infelix».
Éste fato bem mostra como era tenaz e complexa a resistencia
dos judeus á política dos monarcas portugueses; essa tenacidade
provocava lamentáveis equívocos, os quais por sua vez mais exacer-
bavam os ánimos.
Além dos títulos de acusagáo ácima recenseados, sábese que tam
bém eram objetos de Inquisigáo as crencas heréticas e as blasfemias,
as irreverencias para com as santas imagens e os lugares sagrados,
alguns casos de sodomía e luxúria. Contudo a documentagao referente
aos trámites inquisitorios no Brasil é assaz escassa, nao permitindo
aos historiadores de hoje averiguar de modo exato e até que ponto
a Inquisigáo no Brasil exerceu seus rigores.
Estas noticias sao mencionadas no presente artigo porque
concorrem para ilustrar como a Inquisigáo, embora conservasse
seus rótulos religiosos e sua linguagem tradicional, era mano
brada por agentes regios ou civis, cujo interésse era seryir-se
da Religiáo e das instituicóes católicas para atingir fins políticos
ou nacionalistas. Máxime no séc. XVTII, quando se levantou
a campanha geral contra a existencia da Companhia de Jesús,
a Inquisigáo foi explorada pelas cortes regias, que muitas vézes
eram mais absolutistas ou nacionalistas do que fiéis á Santa
Sé de Pedro.
O caso de Dona Branca, datado justamente do séc. XVIII
na Paraíba, e focalizado por Dias Gomes em «O Santo Inqué-

— 138 —
SANTO INQUÉRITO

rito», nao é própriamente um episodio de perseguicáo política


camuflada sob capa religiosa. É, sim, um caso de pretensas
práticas judaicas e de supersticáo; talvez o fato de Dona Branca
ler a Sagrada Escritura em vernáculo lhe tenha angariado a
suspeita de ser protestante (já que na época era o protestan
tismo que apregoáva o uso da Biblia, tirando déste Livro Sa
grado suas doutrinas erróneas). Como quer que seja, vé-se
que o tribunal que julgou Dona Branca, nao foi um tribunal
própria e auténticamente eclesiástico; nao procedeu segundo
a genuína inspiracáo da Santa Máe a Igreja Católica, mas,
sim, sob a orientacáo de urna mentalidade muito diluida e
turva do ponto de vista religioso.

3. O Pe. Antonio Vieira e a Inquisicáo

Será útil observar que mesmo o famoso e benemérito Pe.


Antonio Vieira S. J. foi vitima da Inquisicáo portuguesa.

Em Portugal, ésse Religioso pleiteava a causa dos judeus


e dos cristáos-novos, a fim de criar no país urna forte organi-
zagáo comercial. Proclamava a liberdade para os israelitas en-
carcerados; quería que fóssem chamados a Portugal os judeus
foragidos, dando-se-lhes a seguranca de nao serem vexados.
Isto, porém, lhe valeu fortes represalias por parte dos agentes
da Inquisigáo e outros magnatas. Quando morreu D. Joáo IV
(1656), foi encarcerado ñas prisóes do dito tribunal. Finalmente
a mudanga do quadro político da nacáo veio a favorecer o Pe.
Antonio Vieira, o qual assim foi posto em liberdade.
No Brasil, o Pe. Vieira, feito missionário, se bateu sempre,
pela palavra e pela agáo apostólica, em favor da promogáo dos
indios contra os escravagistas ou senhores que os queriam redu-
zir á servidáo. Incorreu, por isto, na inimizade dos habitantes de
Sao Luis do Maranháo. Nao podendo permanecer nem no Ma-
ranháo nem no Para, foi devolvido a Portugal. A Inquisicáo
entáo o aprisionou no cárcere «de Custodia» de Coimbra a
l/X/1665. Censuravam-no, entre outras coisas, por seu judais
mo, isto é, por causa das suas opinióes sobre os judeus; acusa-
vam-no de interpretar falsamente a S. Escritura e de defender
as suspeitas profecías de Bandarra. O Pe. Vieira foi entáo
vexado a ponto de mandarem que se ajoelhasse, recitasse o
«Pai-Nosso» e outras oragóes, findas as quais comentaram os
juízes : «E tudo disse bem !»
Vieira, assim oprimido, recorreu ao Conselho Geral de
Justiga; éste porém, nao sómente confirmou as acusagóes, mas

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PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 87/1967, qu^ 6__e_7_

também mandou tratá-lo como «pessoa de cuja qualidade de


sangue nao consta ao certo»... O «Padre Grande» permaneceu
recluso em urna casa religiosa até o dia em que a queda do rei
D. Afonso VI (1/1/1668) causou reviravolta na política de
Portugal. Foi entáo libertado; nao conseguindo, porém, modi
ficar os trámites inquisitorios de Portugal, partiu para Roma
(15/VÜI/1669). Empenhou-se ai por obter urna sentenca favo-
rável a si ñas suas desavengas com os Inquisidores de sua
patria; mas pouco conseguiu por causa da influencia de mag-
natas de Portugal que tinham interésse em prestigiar os trá
mites habituáis da Inquisigáo no reino luso. Em Roma, a rainha
Cristina da Suécia (que desde a sua abdicagáo lá residía)
nomeou-o seu pregador. Finalmente, por ordem de D. Pedro
de Portugal, que se ligara aos inimigos de Vieira, o denodado
jesuíta teve que abandonar a Cidade Eterna (23/V/1675);
antes de partir, porém, obteve do Papa um Breve que o subtraía
á jurisdigáo da Inquisigáo portuguesa !...
Regressando a Portugal, o Pe. Vieira viu-se cercado de
odios e calúnias, de modo que embarcou de novo para o Brasil
em Janeiro de 1681, onde viveu aínda pouco mais de quínze anos.
O caso do Pe. Vieira é mais um testemunho flagrante de
como se deve distinguir entre a Inquisigáo e a autoridade oficial
da Igreja. Realmente muitos e muitos dos feitos da Inquisigáo,
no decurso da sua longa historia, nao podem ser atribuidos á
S. Igreja; sao, antes, expressóes de lutas políticas, ñas quais
o espirito genuinamente cristáo foi quase sufocado por tenden
cias partidarias.

CORRESPONDENCIA MIODA

LEITE (Sao Paulo) : a respeito de Teilhard de Chardin, veja


«P. R.» 8/1958, qu. 1 assim como o próximo número 89 de «P. R.».
D. Estéváo Bettencourt O. S. B.

A RADIO TUPI DA GUANABARA

apresenta o programa

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

todos os domingos, das 6h 30 min ás 7h, na palavra de

D. Estéváo Bettencourt O. S. B.

— 140 —
NO PRÓXIMO NUMERO :

Existe o demonio ?

Milagre no século XX ?

Nova InstrucSo sobre matrimonios mistos

Ainda o Inquisicáo : o caso «Dolet»

Natural e sobrenatural

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