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Entrevista 3

Sônia Maluf Florianópolis, dezembro de 2008

Natal em todo tipo de família


Fotos: Laura Daudén

Quando chorou na manjedoura, Jesus Cristo eternizou no imaginário ocidental um modelo familiar que se
reproduz todo 25 de dezembro. Maria, José e Jesus é a estrutura legitimada cultural e politicamente. Para
Sônia Maluf, antropóloga e professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa
Catarina, essa idéia é “culturalmente limitada”. Pesquisadora do feminismo, movimento que questiona a
hierarquia sexual, Maluf acredita que esta é a questão dramática na estrutura familiar: a família burguesa
é constituída em caráter hieráquico, apesar de vivermos numa sociedade supostamente igualitária. Em
entrevista ao Zero, Maluf mostra que nem toda família nasce onde cai uma estrela. Feliz Natal.
ero - Qual o principal propósito família. Separa-se conjugalidade de família, movimento para admitir o casamento gay, mas
da família? impedindo a adoção compartilhada. Um casal controlar a família. Não se admite esse tipo de
Maluf - A idéia que a gente tem de de duas mulheres não pode fazer um cadastro relação na família. Então a família é vista como
família universal – pai, mãe e filhos – é uma de adoção. Pode até tentar, mas é difícil con- um modo de reprodução social: quem vai criar
idéia culturalmente limitada. Essa é a família seguir a guarda conjunta. Só em casos muito os filhos, qual o modelo que vão seguir e uma
nuclear burguesa pós-século XIX. O conceito di- pontuais, no Brasil. série de outras coisas.
verge tanto historicamente, quanto em diferen- É engraçado que numa série de discursos,
tes sociedades, quanto em diferentes culturas Outras famílias também não reconhecem tanto jurídicos como no plano da assistência
dentro da nossa sociedade. formas familiares que fujam do princípio social, do Estado, eles utilizam um conceito que
A família é uma forma de organização social. O burguês? para a Antropologia é completamente inútil: fa-
mais importante, além dos laços internos, é a Quando uma família convive com outras fa- mília desestruturada. Muitas situações sociais,
relação dessa instituição com a sociedade mais mílias ou com indivíduos que vivem essa expe- como violência, narcotráfico, suicídio entre


ampla e com as outras famílias. riência há reconhecimento jovens, são explicadas por esses
Elas se organizam de duas formas: a primeira e formalização dessas rela- órgãos governamentais e até por
forma, histórica, é o estabelecimento de laços ções. Há várias famílias de Um modelo alguns pesquisadores com a idéia
com outras famílias – alianças de casamento,
de apoio, de solidariedade. A segunda forma,
duas mães com filhos que
convivem e chamam essas
hegemônico de de que são pessoas que vêm de fa-
mílias desestruturadas. Mas o que é
muito específica da nossa cultura moderna, é mães de mães, cujos avós re- relacionamento isso? “Ah, uma família que não tem
a fabricação de indivíduos que vão estar num
mundo produtivo.
conhecem essas mães como
mães. O que se vê na expe-
não corresponde a figura do pai”, eles dizem. Bom,
isso não é uma família desestrutu-
Essa é a condição dramática da família: há riência social, independente à prática social. rada, é uma família que tem outra
uma estrutura hierárquica em que as relações
internas se dão a partir de papéis – mãe e pai,
do Estado, de leis, do sistema
judiciário, é que isso é um
A população estrutura, centrada na figura da
mãe. E essa estrutura centrada na
irmão, irmã, neto, sobrinho, tio – mas que tem fato consumado, uma reali- vive relações figura da mãe não é nova, pelo me-
a função de fabricar indivíduos para uma so-
ciedade que, teoricamente, é igualitária, e não
dade dada.
A lei pode oficializar ou
sociais das nos em classes populares temos isso
desde o século XIX, XVIII. Então, o
hierárquica. não uma coisa, mas não mais diversas conceito de família estruturada

Sônia Weidner Maluf, gaúcha, Há certa rigidez na tradição do que é famí-


pode diluir uma realidade.
Mesmo que não reconheça o
possíveis” está muito ligado a uma idéia de
família, como falei no começo, de
é bolsista de produtividade em lia. Em que momentos somos confrontados casamento gay, a família ho- um modelo hegemônico. Mas não
pesquisa do CNPq (nível 2). Fez com isso? moafetiva, a paternidade ou maternidade gay, corresponde à prática social da população. A po-
doutorado em Antropologia Social Um pressuposto da Antropologia é admitir tudo isso existe. A lei não tem força para impe- pulação não vive um modelo de família, ela vive
e Etnologia pela Escola de Altos que exista uma variedade imensa de modelos dir as pessoas de continuarem a fazer isso. Há relações sociais das mais diversas e possíveis.
Estudos em Ciências Sociais, na de família. Mas o que a gente vê na sociedade flexibilidade na forma de a família se organizar
França, em 1996 em que vivemos é que algumas concepções do no Brasil que não é reconhecida pela lei. Mais Muitos acusam o individualismo de ser o
século XIX– aquela nuclear, de pai, mãe e filhos do que pensar em família como uma entidade, mal contemporâneo, inclusive a causa crise
– ainda mantêm uma hegemonia. Isso é tanto a gente tem que pensar em pessoas que se rela- da família. Você acha isso está diminuindo
cultural quanto oficial. Cultural porque essa é a cionam das mais diversas formas. com essa busca por novas formas de rela-
idéia que as pessoas têm, mesmo elas próprias Podemos pensar família como o núcleo cionamento?
vivendo outras estruturas. Oficial porque as fundamental de relação e cuidado no que diz A grande aposta do capitalismo tardio é no
próprias leis e o Estado acabam amparando um respeito a experiências que são quase que fun- indivíduo como grande consumidor e produtor.
modelo hegemônico de família. damentais no humano – a experiência de nas- Hoje proliferam produtos, espaços, situações,
cimento e morte. Se uma pessoa está no hospi- em que o indivíduo não precisa se relacionar.
Como o Estado interfere na conservação da tal, em coma, e alguém tem que ficar com ela, Ele pode passar uma vida inteira sozinho. Isso
família tradicional? quem vai ter o direito reconhecido de fazer isso é uma demanda e uma pressão do mundo que
Há vários impedimentos legais e formais que é a família legal. Agora, se o parceiro vive há a gente vive no sentido do consumo, do feti-
barram o reconhecimento e a institucionaliza- 15 anos com esse cara, mas não tem nenhum chismo do consumo.
ção de outras formas de família. Por exemplo, documento que comprove a união, não vai rece- Apesar disso as pessoas continuam buscando
até 1977, quando foi aprovado o divórcio no ber autorização para isso sem chamar a família relações sociais, mesmo no espaço de ficar sozi-
Brasil, havia uma restrição: quem tinha casado biológica do companheiro. Então, há situações nho. Na internet, por exemplo, as pessoas vão
até aquele momento legalmente e se separava vetadas pelo não-reconhecimento dessas fa- procurar alguém para conversar, entrar num ch
não poderia casar de novo. Esse é um exemplo mílias que são dramáticas para os sujeitos. O at. Ou seja, esse espaço que seria solitário está
de impedimento jurídico que foi derrubado por sentido da lei é aparar as pessoas na sua vida sendo mudado pelas pessoas, elas estão cons-
uma mudança na Constituição. Mas há outros, cotidiana, nas suas relações, e o que a lei faz truindo ali territórios de sociabilidade.
como o não-reconhecimento do casamento ou nessas horas é penalizar. Entrar em relação hoje é, de alguma manei-
da união civil entre parceiros do mesmo sexo. ra, romper com aquilo que a sociedade capita-
Há também um conjunto de dispositivos Um casal sem filhos é só um casal ou é uma lista pede da gente.
criados para impedir que, mesmo havendo casa- família?
mentos homossexuais, essa união se torne uma Essa é uma questão. O que eu vejo é um Fernanda Dutra

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 Entrevista
Florianópolis, XXXXX de 2008

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