Você está na página 1de 25

OS MUNICÍPIOS DAS

CIDADES ATLÂNTICAS
OS MUNICÍPIOS DAS CIDADES ATLÂNTICAS
sécs. XV e XVI

Alberto Vieira

APRESENTAÇÃO. O estudo dos municípios vem assumindo um papel significativo


na História das Instituições. Desde a década de oitenta do século XV que se
multiplicaram os trabalhos publicados a partir de linhas de investigação, de cursos
de mestrado ou doutoramento e da realização de seminários e colóquios. O
município adquiriu a verdadeira dimensão, que tinha direito, no discurso histórico.

Aproveitando a oportunidade do programa comemorativo do quinto centenário da


elevação do Funchal à categoria de cidade, que terá lugar em 2008, decidimos o
presente debate sobre as cidades atlânticas, no sentido de procurar entender quais as
razões da criação, as similitudes da evolução, nos primórdios da ocupação europeia,
isto é, nos séculos XV e XVI. A abordagem surge de forma comparativa, procurando-
se entender aquilo que aproxima ou afasta a estrutura peninsular do mundo ibérico,
lançada, respectivamente por castelhanos e portugueses no espaço atlântico.

BIBLIOGRAFIA E FONTES. Hoje, por força dos inúmeros trabalhos realizados, o


conhecimento que temos da história dos municípios é distinto e permite a presente
abordagem. Na verdade a lista de publicação de estudos e de fontes é enorme e
coloca à disposição do leigo ou historiador um conjunto riquíssimo de instrumentos
de trabalho.

Em 1998, no seguimento da realização do primeiro seminário Internacional sobre “O


Município no Mundo Português”, o Centro de Estudos de História do Atlântico decidiu
criar o Núcleo de Estudos de História no Mundo Português (NEHMP), bem como uma
colecção editorial sob o título de “História do Municipalismo”. O projecto surgiu a
partir de uma ideia de avançar com a História dos onze Municípios da Região
Autónoma da Madeira, entretanto suspensa, por supostas falsas imitações que
pretenderam entravaram o projecto, pois entendemos que a produção científica não
deve ser espaço para alimentar ódios, conflitos ou raivas pessoais. Com resultado
disso tivemos até ao presente a realização de dois seminários, como a publicação das
respectivas actas, e edição de alguns estudos inéditos. Por outro lado, O CEHA,
através do empenho de José Pereira da Costa, publicou as actas de vereações da
cidade do Funchal disponíveis para os séculos XV e XVI. Entretanto, de 1972 a 1974 o
então Arquivo Distrital do Funchal publicou o primeiro tomo do Registo Geral da
Câmara do Funchal. Para além dos estudos parcelares publicados nas actas dos
colóquios podemos assinalar outros onde a instituição municipal merece um
tratamento. É o caso dos estudos de Miguel Jasmins Rodrigues, José Manuel de
Azevedo e Silva, Nelson Veríssimo. Num âmbito mais especializado temos o nosso
trabalho sobre S. Vicente e os estudos de Fátima de Freitas Gomes e Ana Madalena
Trigo de Sousa.

Nos Açores o empenho por esta temática era já muito antigo, pelo que podemos
encontrar em alguns textos clássicos informações alargadas sobre a vida dos
municípios. Todavia, foi só na década de oitenta do século XX que tivemos os
primeiros estudos sobre a história do municipalismo, tal como hoje o entendemos. A
realização em 1983 de um Colóquio Internacional na Ilha Terceira foi decisiva para a
mudança. No conjunto podemos salientar três estudos que foram decisivos para a
consolidação da História dos Municípios nos Açores. Em 1984 João dos Santos
Pereira publica as vereações da vila das Velas na ilha de S. Jorge, que compreendem
os anos de 1159-1570-1571. Na mesma década tivemos o trabalho de Avelino de
Freitas Meneses sobre a Ilha do Pico. Mas na seguinte surgem estudos destacados de
Avelino de Freitas Meneses e José Damião Rodrigues sobre Ponta Delgada.
Nas Canárias a tradição de estudos sobre a vida municipal e a preocupação pela
divulgação histórica municipal são muito mais antigas e tem a ver com o empenho e
pessoal de Elias Serra Rafols e Leopoldo de La Rosa Olivera. A memória de
doutoramento apresentada por Leopoldo de La Rosa Olivera(1905-1983) na
Universidade Complutense de Madrid em 1944 e que foi publicada em 1946 situa-se
nos primórdios da valorização dos estudos institucionais, nomeadamente
municipais, para as Canárias. Certamente que foi esta situação que motivou Elias
Serra Ráfols a iniciar em 1949 a publicação dos acuerdos do cabildo de Tenerife, que
se iniciam em 1497, de que até ao momento estão publicados até ao ano de 1533. Para
as demais ilhas o panorama documental municipal dos tempos primitivos é pobre,
perdendo-se por conta de ataques piratas, nomeadamente os de Las Palmas e Santa
Cruz de La Palma. Assim dispomos da publicação dos de Fuerteventura, que cobrem
o período de 1605-1798 e depois os de Lanzarote para o século XVII , apenas a partir
de 9 de Julho de 1618 uma vez que o mais se perdeu com o ataque dos piratas nesse
ano, e de La Palma para o século XVII, depois de 1553.

O FORAL. A Madeira teve um foral próprio, primeiro concedido pelo infante D.


Henrique, que se perdeu, a que se seguiu em 1472 outro pelo monarca D. Afonso V,
seguindo-se em 1499 novo foral para o almoxarifado e em 1515 para os municípios
do Funchal, Ponta de Sol e Calheta (3). Estes regimentos e forais foram por sua vez
trasladados para os Açores (Terceira, S. Miguel) e adaptados às condições do meio
(4). As autoridades portuguesas que tutelavam não pretenderam inovar o regime
institucional, limitando-se apenas a adequar o existente às condições das novas
áreas. A Madeira, porque foi a primeira a ser alvo de ocupação efectiva, demarca-se
como a matriz que serviu de modelo à dinâmica institucional lançada pelos
portugueses no espaço atlântico.

O direito local insular canário está aparentado com a região que lhe serviu de
referência e de apoio no intento de conquista no século XV, isto é a Andaluzia. Às
ilhas chegaram os fueros de Baza ou Niebla, as mais recentes compilações de direito
local aquando da afirmação plena da soberania castelhana. O primeiro fuero foi
concedido a Gran Canaria a 20 de Dezembro de 1494 tendo influenciado o regime de
Tenerife e La Palma. O segundo foi dado apenas a Fuerteventura. Todavia em Gran
Canaria estamos perante um fenómeno particular pois o regime institucional,
nomeadamente o municipal, é definido pelos fueros de Baza (1494) e Granada (1497),
sendo a fiscalidade de acordo com o fuero de Sevilha de 1511 (2).

A CRIAÇÃO DOS MUNICIPIOS: Regime municipal implantado nas ilhas por


portugueses e castelhanos apresenta-se, no início como uma cópia fiel do sistema
peninsular; assim enquanto em Canárias esse regime estabelece-se de acordo com o
fuero de Baza, o qual estipulava a forma de eleição dos diversos oficiais -alcaldes,
regidores, personero, alguacil, mayordomo -bem como o modo do seu funciona-
mento (5), para a Madeira essa mesma estrutura dependerá da de Lisboa, donde se
fez o traslado do necessário regimento, mas apenas em 1508 (6).

Em síntese poder-se-á afirmar que a estrutura municipal ao longo do século XV


pelos peninsulares nas ilhas atlânticas se ajusta ao modelo peninsular sendo poucas
ou quase nulas as inovações. A preocupação do europeu foi apenas de instalar
localmente esta estrutura institucional, cabendo aos insulares, ao longo do século
XVI, a missão de inovar, através de sugestões e reclamações apresentadas à coroa,
que foram merecedoras de aprovação. As peculiaridades do sistema institucional
insular se situam apenas na instância de governo intermédio, que assumiu em cada
um dos arquipélagos uma forma diversa. O senhorio e as capitanias de Madeira e
Açores apresentaram traços inovadores, o mesmo não sucedendo com o adelantado
ou senhorio canários. Se é certo que ambas as estruturas de poder local implantadas
nas ilhas de Castela e Portugal apontam na origem para a tradição peninsular,
também não é menos certo que a forma de implantação foi diversa. Assim nas
Canárias notar-se-á diferenças significativas entre o cabildo das ilhas realengas e
senhoriais, situação muito semelhante à que sucedeu na Madeira no período de
afirmação de Senhorio (1434-1497), nomeadamente no governo do infante D.
Henrique (1433-1460). De uma forma genérica é patente a diferença entre o cabildo
de Canárias e o município da Madeira e Açores, pois enquanto no primeiro
arquipélago a cada ilha corresponde um município, nos dois últimos a unicidade
não se verificou, não obstante no início da ocupação persistir a tendência ao nível
das capitanias, mas havendo ilhas com duas capitanias (Madeira, Terceira), esta
correspondência não se tornou possível. Apenas, na capitania de Machico, a política
centralizadora teve eco na aristocracia local que sempre se manifestou contra a
criação de novos municípios. Como se poderá constatar com as questões
relacionadas com a criação dos municípios de Santa Cruz (1515) e S. Vicente (1744).

Nos primórdios do povoamento dos arquipélagos a incipiente estrutura institucional


favoreceu a concentração de poderes na figura do capitão ou senhorio, mas o rápido
processo evolutivo a que as ilhas estiveram submetidas, associado as incessantes e
reclamados abusos levaram ą inevitável quebra de poderes. Todavia não tanto como
seria desejável pela maioria. Note-se que no caso do Funchal a família do capitão
continuará a deter uma posição privilegiada até ao século XVII. A par disso o escasso
corpus legislativo disponível propiciou isto pelo que a forma mais adequada de o
combater foi o recurso a medidas regulamentadoras dos vários aspectos da
sociedade.

O governo local na Madeira até 1461 regeu-se pelo foral henriquino, concedido ą ilha
em data incerta. Mas nele não se consignavam todas as determinações possíveis,
pelo que muito ficava ao arbítrio do capitão. Foi contra o poder majestático do
capitão e servidores que os vizinhos do Funchal reclamaram ao novo senhor da ilha,
em 1461, a plena afirmação da estrutura municipal. Os regimentos e regulamentos
que se seguiram e uma maior actividade do ouvidor do senhorio motivaram a nova
estratégia de governo do infante D. Fernando para as áreas do senhorio.

A criação, ou melhor, a plena afirmação do município poderá ser considerado o


prelúdio, ainda que frustrado, de uma nova era para a História das recém-criadas
sociedades insulares. O município afirmou-se, em qualquer dos arquipélagos, num
momento avançado do povoamento, quando os povoadores tomaram consciência da
sua capacidade de intervir na vida política e sentiram os efeitos da política despótica
dos capitães ou seus ouvidores. A omnipresença destes foi substituída pela das
oligarquias locais. Facto comum a todos os arquipélagos. No Funchal ou em Ponta
Delgada, é patente o empenho do capitão em subordinar esta estrutura de poder aos
seus interesses, entregando os cargos a parentes e servidores, ou actuando ą margem
dela. Durante os séculos dezasseis e dezassete parte significativa dos conflitos
municipais são gerados por estes. Entende A. M. Hespanha que a questão foi o
detonador que faz gerar a dissolução da estrutura institucional medieval e afirmar a
moderna. Todavia esta é uma questão, que para as ilhas, ainda está em aberto e a
merecer a atenção de um dedicado investigador. Em todos as ilhas a política de
criação de novos municípios obedeceu a determinados princípios: primeiro
estabeleceu-se para cada capitania um município que depois se subdividiu, de
acordo com o progresso das localidades que ais emergem, do isolamento e da
capacidade reivindicativa dos munícipes. Excepção acontece nas ilhas de Cabo
Verde onde tardou o povoamento.

Os mais antigos são os madeirenses pois a tradição aponta a data de 1450 com a do
seu início na sede das capitanias do Funchal, Machico e Porto Santo. Todavia as
primeiras décadas de vida não permitiram a expressão destas instituições pois a
afirmação hegemónica dos capitães do donatário impediram esse processo. E só em
1461 em face da reclamação dos moradores do Funchal, o infante D. Fernando como
Senhor da ilha, permite a plena afirmação do município retirando-o da alçada do
capitão.

Nos Açores a instituição municipal desponta apenas nas trás última décadas do
século XV, altura em que este arquipélago sofre o necessário arranque socio-
económico. Tal como na Madeira a criação da nova instituição faz-se de acordo com
o progresso social e económico das ilhas e lugares. Primeiro surgiram os municípios
com uma jurisdição abrangente do espaço da capitania, funcionando no lugar-sede
da mesma, depois, a valorização dos diversos assentamentos populacionais
conduziu ą criação de novos municípios dentro desta jurisdição, desmembrando
assim a unicidade. O grande arranque da instituição municipal nos Açores dá-se na
primeira metade do século XVI com o aparecimento de novos municípios
abrangendo a totalidade do arquipélago. Aqui destaca-se a ilha de S. Miguel que, de
um município e sede em Vila Franca, se levantaram outros cinco -Ribeira Grande
(1507), Nordeste (1514), Agua de Pau (1515), Lagoa (1522), Ponta Delgada (1546).
Deste modo a ilha de S. Miguel materializa em pleno a realidade municipal por ter
sido de todavia que mais usufruiu da descentralização do poder local. Nem a
Madeira permitiu a desmultiplição institucional, pois a tendência hegemónica dos
capitães de ambas as capitanias apenas permitiu uma brecha em Machico com a
criação do município de Santa Cruz em 1515 e duas no Funchal com os da Ponta de
Sol (1501) e Calheta (1502). Nova subdivisão só surgirá tardiamente em Machico,
com activa resistência das gentes da vila-sede, aquando da criação em 1744 da vila
de S. Vicente.
Nas Canárias a instituição municipal assumirá outra dimensão, pois a cada ilha
corresponderá apenas um cabildo, sedeado no lugar-sede do inicial e mais
importante assentamento. Esta diferente perspectivação da realidade municipal
conduziu a uma mais fácil centralização do poder nos principais povoadores -
governadores, senhorio -e também condicionou o progresso desta forma de
descentralização do poder. O facto de estas ilhas se encontrarem habitadas, aquando
da chegada dos peninsulares, conduziu a uma diversa forma de ocupação que se
expressará numa continuidade das instituições de fronteira em uso no processo de
reconquista peninsular. A iniciativa de particulares, logo nos alvores do século XV,
só demoveu o empenho da Coroa nas trás décadas finais deste século, altura em que
se tornou possível a pacificação dos aborígenes e que permitiu a posse plena.

2. FORMAS DE EXPRESSÃO DA VIDA MUNICIPAL

EVOLUÇÃO DA ESTRUTURA DE PODER. O caso da Madeira é paradigmático. No


princípio todas as funções de mando ficaram centralizadas nos três homens que
comandaram o processo de povoamento das duas ilhas -- João Gonçalves Zarco,
Tristão Vaz e Bartolomeu Perestrelo. Foram eles que dinamizaram o povoamento da
área que lhes foi distribuída. Sobre eles pendia a solução das primeiras querelas
institucionais, que a nova sociedade gerou. Depois o progresso sócio-económico
criou novas necessidades, entre elas podemos anotar uma ajustada estrutura
institucional ajustada à nova realidade. A concessão em 1433 por carta régia do
governo das ilhas ao infante D. Henrique foi o início de uma nova era da vida
institucional insular. O infante permanecia como o senhorio, enquanto os escudeiros,
que haviam dado início ao povoamento do arquipélago, passaram a ser capitães, que
estavam subordinados ą alçada. Eles ficaram conhecidos como capitães do
donatário, permanecendo como tal até finais do século quinze. As cartas de doação
das áreas, conhecidas como capitanias, confirmaram-no juridicamente. Nelas ficaram
estabelecidas a alçada e privilégios.

Aos capitães juntaram-se, depois, os funcionários do próprio donatário -- o ouvidor


e o almoxarife -- e uma incipiente estrutura de poder local, o município. E com o
decorrer do tempo o progresso social e económico e a dispersão territorial
condicionaram novas mudanças que desembocaram, em finais do século XV,
princípios da centúria seguinte, com uma nova dinâmica institucional, que
perdurará por muitos anos. As instituições insulares não estavam elaboradas mas
foram-se definindo de acordo com as circunstâncias. Também os tradicionais
suportes de mando vigentes no reino poucas vezes se mostraram adequados ao
governo dos novos espaços. Por fim resta sublinhar que os portugueses não tinham
uma ideia definida sobre a forma de o concretizar. Pois, só a partir de princípios do
século dezasseis surgiu por parte da coroa uma visão clara sobre a realidade
institucional para o espaço atlântico. Isto sucedeu numa altura em que eram
passados quase cem anos sobre o início do povoamento da Madeira.

Os resultados positivos da experiência madeirense serviram de encorajamento para


outros espaços de ocupação portuguesa. A Madeira funcionou como modelo para as
novas sociedades e nunca como campo de ensaio. Algo diferente sucedeu nas
Canárias, onde a presença de uma população autóctone condicionou a fixação dos
castelhanos. Por outro lado, o processo de conquista das ilhas foi iniciado por
particulares. Só muito mais tarde a coroa castelhana interveio activamente no
processo. Sendo assim a experiência madeirense, acompanhada de perto pelos
castelhanos, não se ajustava à realidade do arquipélago vizinho, que foi buscar a
origem na estrutura estabelecida na península, nas terras conquistadas aos mouros.
Daí terá resultado o facto de o senhorio canário usufruir de uma jurisdição mais
ampla, em certos domínios. Também, as diversas formas de intervenção no processo
de conquista propiciaram a presença de dois modos de governo, de acordo com os
vários agentes conquistadores: as ilhas realengas e as ilhas de senhorio. No primeiro
caso estão as ilhas conquistadas por iniciativa da coroa, enquanto as segundas
pertenceram a iniciativa particular. Por outro lado a estrutura institucional parece ter
sido lançada com carácter perdulário, que permaneceu até às cortes de Cádiz (1811).
O senhorio português, ao contrário, foi circunstancial e não resistiu mais do que
sessenta e quatro anos (1498). Nas Canárias a centralização de poderes levada a cabo
pela coroa não conduziu ao apagamento da estrutura senhorial, mas apenas ao
cercear de algumas prerrogativas.

Partindo do princípio que os arquipélagos da Madeira e as Canárias materializaram


a primeira experiência das coroas peninsulares no espaço atlântico, adivinhava-se a
importância que assumiram em posteriores iniciativas de povoamento e valorização
económica de continentes ou ilhas. A Madeira funcionou como o modelo
institucional para o atlântico português, enquanto as Canárias exerceram idêntica
função para o mundo colonial castelhano. As capitanias madeirenses expandiram-se
nas ilhas portuguesas (Açores, Cabo Verde, S. Tomé) e Brasil, enquanto o sistema de
adelantado foi transplantado para a América e Antilhas espanholas.

A afirmação da estrutura de poder municipal é muitas vezes entendida como uma


resposta à omnipresença do capitão. Mas, esta comunhão de interesses nem sempre
vingou junto do senhorio e, depois, da coroa. São inúmeras as ocasiões em que o
monarca, correspondendo ao apelo dos capitães ou com o fim de agraciar os seus
serviços, estabelece prerrogativas de reforço da alçada. No caso do Funchal vimos a
jurisdição ser ampliada em finais do século XV e princípios do seguinte, momento
em que a tendência ia no sentido inverso. Em 1487 o poder de julgar os feitos cíveis
foi alargado para os 15.000 reis e no caso dos escravos foi-lhes atribuída a faculdade
de justiçar no corte de orelha (1509). A primeira medida tornou-se extensiva a todas
as capitanias por ordem régia de 1520. Entretanto em 1509 o capitão do Funchal
acumulava o cargo de vedor da fazenda. E foi precisamente no período que a coroa
interveio no sentido de reforçar o poder, retirando aos capitães algumas faculdades
governativas, que passaram a ser exercidas por novos funcionários, como o
almoxarife e o corregedor. Em simultâneo com isto assistiu-se ą plena afirmação do
município. Ele que estivera, por muito tempo, subjugado aos interesses do capitão
passou a usufruir de ampla autonomia. Perdeu a faculdade de presidir às eleições e
de confirmar os funcionários eleitos, revertendo para a coroa e funcionários régios.
Durante muito tempo foi evidente o conflito entre os seus interesses e do município,
tendo como pano de fundo a perda de prerrogativas governamentais. Na ilha de São
Miguel os conflitos foram mais evidentes e perpetuaram-se por mais de dois séculos,
sendo exemplo os municípios de Vila Franca do Campo e Ponta Delgada.

Se na Madeira isto ficou plenamente esclarecido com a divisão do território das duas
ilhas pelos trás iniciais povoadores, o mesmo não se poderá dizer, por exemplo, dos
Açores onde é difícil encontrar explicação para a forma como foram estabelecidas as
capitanias. Primeiro, foi Gonçalo Velho a surgir como capitão das ilhas ou de apenas
duas (S. Miguel e Santa Maria), sendo uma delas com a superfície superior à da
Madeira. Depois foi a divisão, iniciada com a Terceira em 1474 com duas capitanias,
entre Álvaro Martins Homem e João Vaz Corte Real. O último foi também capitão de
S. Jorge (1483). Esta derradeira situação pode ser considerada estranha, uma vez que
tem lugar no momento em que S. Miguel, a maior ilha de todo o arquipélago, é
confirmada apenas a um capitão, enquanto esta, que no início abrangia apenas uma
capitania, teve que ser dividida em duas partes, quando ainda existiam ilhas para
entrega, como o Pico, Graciosa, S. Jorge. Caso idêntico sucedeu em Cabo Verde onde
em Santiago foram estabelecidas duas capitanias, permanecendo as demais por
ocupar e sem capitão. Aqui, a exemplo da Terceira, surgem capitães em idênticas
circunstâncias de João Vaz Corte Real. Rodrigo Afonso foi detentor da capitania de
Alcatrazes (1490) e da ilha de Maio, enquanto Pedro Correia teve a parte de Santiago
(1522) e toda a de Boavista (1505).

Aos poucos houve necessidade de redefinir a política de entrega das terras


descobertas, de modo a que se pudesse contemplar todos os interessados. A
conjuntura ganhou forma a partir da década de sessenta com o governo do infante
D. Fernando. Na Terceira, de uma única capitania de Jácome de Bruges fez-se duas,
o que também sucedeu em Santiago e são Tomé. Mesmo assim subsiste uma dúvida:
haveria algum motivo para que a maior ilha do arquipélago açoriano (S.Miguel),
com uma superfície superior ą Madeira, continuasse na posse de apenas um capitão?
A única explicação possível deverá estar no facto de ela no princípio ter sido
desfavorável ą fixação de colonos. Os sismos e os permanentes fenómenos
vulcânicos afugentaram os primeiros colonos, como testemunha Gaspar Frutuoso,
pelo que foram poucos os que disputaram a posse. Apenas Rui Gonçalves da
Câmara, filho segundo do capitão do Funchal anteviu o futuro como capitão. Deste
modo poder-se-á concluir que a forma de entrega das capitanias estava de acordo
com as possibilidades que elas ofereciam, capazes de despertarem a cobiça do
numeroso grupo de interessados. Só assim se poderá compreender a diversidade de
opções na distribuição das capitanias: em vinte e quatro ilhas apenas quatro
(Madeira, Terceira, Santiago e S. Tomé) foram subdivididas, ficando as outras a
definir isoladamente (Porto Santo, Santa Maria, S. Miguel, Flores, Corvo. Graciosa,
Fogo, Santo Antão, Príncipe e Ano Bom), em grupo (Santa Maria/S. Miguel,
Flores/Corvo, Faial/Pico, S. Nicolau, S. Vicente, Brava, Sal e Santa Luzia) ou em
parte (Angra/S. Jorge, Alcatrazes /Maio e Boavista).

Em síntese a estrutura institucional que deu forma ą sociedade implantada pelos


portugueses nas ilhas, definida como senhorio, abrangendo os arquipélagos da
Madeira, Açores, Cabo Verde, manteve-se até o governo de D. Manuel. Ele, porque
foi em simultâneo senhorio e rei, contribuiu para acabar com situação em 1498.
Desapareceu o senhorio, forma intermédia de governo, mas mantiveram-se os
capitães, que passaram a responder junto da coroa. Também ficou demonstrado que
não há uniformidade quanto ao aspecto formal das capitanias, havendo ilhas na
posse de um capitão que dependiam directamente da coroa e outras subordinadas a
um senhorio. Por outro, lado os capitães poderiam ser detentores de uma ou mais
ilhas ou apenas duma parcela delas, como sucedeu na Madeira, Terceira, Graciosa,
Santiago e S. Tomé.

O título de posse da capitania estava sujeito a inúmeros impedimentos. Em primeiro


lugar, era precário devendo ser confirmado sempre que mudasse o rei. Além disso a
sucessão fazia-se obrigatoriamente pela linha varonil, pelo que a inexistência de tais
condições implicava a perda, revertendo a posse para a coroa. Foi pela última
situação que muitas capitanias foram extintas ou mudaram de mãos. Deste modo
torna-se difícil, senão impossível, traçar o quadro dos capitães dos donatários das
ilhas, a data das doações e confirmações bem como o período de governo. Apenas as
capitanias do Funchal e da ilha de S. Miguel se mantiveram na posse da mesma
família até à extinção com o Marquês de Pombal. A família dos Câmaras em ambos
os casos foi persistente na preservação deste direito, não obstante os inúmeros
contratempos que se sucederam. Em 1656 a do Funchal esteve em vias de ser extinta
pelo facto de João Gonçalves da Câmara morrer sem deixar filho varão, ficando,
excepcionalmente, na posse de D. Mariana de Lencastre Vasconcelos e Câmara.
FUNCIONAMENTO. Nas Canárias as sessões realizavam-se três vezes por semana
em Tenerife, enquanto em Fuerteventura tinham lugar apenas uma vez por mes (13),
o mesmo sucedendo em Lanzarote, onde a sessão tinha lugar na casa do governador
(14). Aqui, torna-se necessário distinguir, nas ilhas realengas, as sessões ordinárias,
que apenas apresentavam a finalidade atrás anunciada, e as "generales" que se
realizavam em Janeiro e 30 de Novembro para eleição dos diversos cargos, ou
acidentais para debate de questões de grande interesse para os vizinhos, enquanto
para as senhoriais se diferenciam as sessões ordinárias e as abertas em praça pública
para debate de assuntos de interesse comum (15). Nos três arquipélagos o mandato
iniciava-se em Janeiro, apenas nos Açores, mais propriamente nos municípios de
Vila Franca do Campo (1577) e Ponta Delgada (1605), para mais eficácia da acção
houve necessidade de ajustar o ano administrativo ao calendário agrícola, passando
a vereação a iniciar a actividade pelo dia de S. João (16).

As competências do cabildo ou município eram estabelecidas pelas ordenações e


fueros concedidos pelas coroas peninsulares. Aí estava exarado, não só, a norma de
funcionamento das instituições mas também a alçada que definia o espaço de mando
e noutro caso a jurisdição estabelecida para as instituições locais era idêntica,
diferenciando-se apenas na forma de aplicação ou activa intervenção nos diversos
aspectos do quotidiano do burgo e área limítrofe abrangida pela jurisdição. Tendo
em consideração que tinham como finalidade assegurar o bem-comum de acordo
com as solicitações dos locais onde se implantam, teremos uma activa intervenção no
quotidiano das gentes, abrangendo a moral, os usos e costumes, a sanidade, as
actividades económicas (produtivas, transformadoras e comerciais (17). Esta acção,
que abrange o domínio fiscal, económico, social, sanitário, das obras públicas e de
defesa, fazia-se conforme o estipulado nas competências emanadas pelas ordens do
reino. A expressão da realidade encontra-se lavrada nos acórdãos do Senado e nas
posturas que, em separado, são as peças legislativas mais importantes do poder local
em que se expressam as especificidades de cada área com as necessárias adaptações
das norma gerais do reino (18). A par disso a esta estrutura de poder local também
estava acometida jurisdição no domínio da justiça que corria a cargo de alguns
funcionários indigitados pelos vereadores, regidores ou governador/senhor,para as
ilhas portuguesas.

O poder municipal adquiriu a plena pujança apenas na primeira metade do século


dezasseis. Só então lhe foi concedida maior legitimidade governativa. Data também
daí a subdivisão das capitanias em mais que um município. No Funchal, surgiram os
de Ponta de Sol (1501) e Calheta (1502), enquanto em Machico apenas foi permitido o
de Santa Cruz (1515). Entretanto na ilha de S. Miguel, um pouco maior que a
Madeira, o primitivo município de Vila Franca do Campo deu lugar a outros cinco:
Ribeira Grande (1507), Nordeste (1514), Agua de Pau (1515), Lagoa (1522) e Ponta
Delgada (1546). Na pequena ilha de S. Jorge as dificuldades provocadas pela
orografia condicionaram a existência de trás municípios para pouco mais de trás mil
habitantes: Velas (> 1503), Topo (1510) e Calheta (1534). Enquanto na Terceira para
além dos dois municípios existentes, um em cada capitania, surgiu outro em 1503 no
lugar da Ribeira de Frei João, que se chamou de S. Sebastião. Isto contribui para
evidenciar, por um lado, a falta de um critério na política régia de criação dos
municípios, e, por outro, a maior capacidade reivindicativa dos açorianos, contrária
ą presença de uma oligarquia forte nas sedes das capitanias. Só assim foi possível o
alargamento da estrutura municipal.

Desconhecemos os primórdios da estrutura municipal nos arquipélagos do golfo e


costa da Guiné, mas sabemos terem existido nas ilhas inicialmente ocupadas, isto é,
Santiago, Fogo, S. Tomé e Príncipe. Na primeira, a existência de duas capitanias
justificou a subdivisão em dois municípios: um com sede na Ribeira Grande e o
outro em Alcatrazes. A estrutura de poder terá permanecido por muito tempo
incipiente, dominada por uma reduzida mas forte oligarquia local: o número
limitado de vizinhos habilitados para o exercício do poder -- os homens-bons --
levou a câmara da Ribeira Grande a solicitar em 1562 ą coroa que os almotacéis
servissem por trás meses uma vez que não era possível reunir um grupo de vinte
quatro homens habilitados para o exercício do cargo.

O grupo de funcionários que corporizavam a estrutura municipal nas ilhas era muito
mais reduzido do que o dos arquipélagos da Madeira e Açores, adequando-se aos
níveis de povoamento das ilhas. Em Cabo Verde nos dois municípios de Santiago
estávamos perante dois juízes e vereadores, um procurador do concelho, escrivão,
meirinho e físico, enquanto no do Fogo o grupo resumia-se apenas a um juiz, dois
vereadores e um escrivão. No primeiro caso a alçada dos juízes estava perfeitamente
definida: um dedicava-se às causas dos marinheiros e do mar enquanto o outro
atinha-se ą justiça dos que tinham assento em terra firme. Estávamos perante um
município original com alçada no espaço terrestre mais também marítimo. Tudo isto
porque Santiago era uma ilha de vocação marítima por excelência. Em S. Tomé, onde
existiu apenas um município com sede na Povoação. A estrutura do senado da
câmara era em tudo semelhante à de Santiago. Diferente foi o caso da ilha de
Príncipe onde a estrutura foi substituída pela presença de um capitão, almoxarife e
juiz ordinário.

OS FUNCIONÁRIOS. Em qualquer dos casos em análise a estrutura institucional


do município era definida por um conjunto variado de funcionários com
competências específicas, que podem ser escalonados da seguinte forma:

1. Oficiais de nomeação régia;


2. Oficiais eleitos por sufrágio indirecto, pelos vizinhos;
3. Funcionários administrativos, de provimento régio.

Esta disposição formal é gradativa e define as competências de cada. Os primeiros,


nomeadamente o corregedor e alcaide, detinham maior capacidade governativa do
que os outros. Os segundos -- vereadores, procurador do concelho, almotacéis,
guardas mores de saúde, procuradores dos mesteres -- eram eleitos de entre um
grupo restrito que a ele tinha acesso. O senhorio e a coroa intervinham activamente,
pois eram eles que estabeleciam as listas de homens-bons, donde se retiravam os
eleitos. A par disso os cargos de nomeação foram, num primeiro momento, de
iniciativa do senhorio e só depois, a partir de 1497, passaram a ser da
responsabilidade da coroa.

De acordo com os alvarás régios de confirmação das listas e da assiduidade às


reuniões do município é possível saber qual a importância e a capacidade
interventiva dos vários estratos sócio-profissionais na vida municipal. Alguns dos
estudos feitos para a Madeira e Açores confirmam a existência de uma oligarquia
local. A eleição dos oficiais concelhios era feita de modo indirecto a partir de uma
pauta onde estavam tombados todos os homens-bons do concelho, isto é, todos os
residentes que se encontravam aptos para o exercício das funções. Trienalmente
procedia-se, a partir da pauta, ą elaboração de trás róis para os cargos de juiz,
vereador e procurador com os nomes daqueles que haviam de exercer os cargos nos
trás próximos mandatos. Depois eram colocados individualmente em pequenas
bolas de cera (= pelouros) e distribuídos por trás sacos, de acordo com os cargos, e
guardados numa arca às ordens do porteiro da câmara e um dos juízes eleitos. No
final de cada mandato procedia-se ą abertura solene da arca e dos pelouros. Os
homens-bons, mesmo não fazendo parte da vereação, poderiam participar nas
reuniões concelhias e emitir parecer ou voto. Nas vereações quatrocentistas do
Funchal isto surge com assiduidade, quase sempre motivada pela necessidade de
estabelecer posturas sobre a cultura e comércio do açúcar. Das partes mais
recônditas da Calheta à Ribeira Brava, vinham os homens-bons, proprietários de
canaviais, a defender os seus interesses.

A presença dos demais vizinhos, em geral, estava simbolicamente estabelecida na


figura do procurador do concelho e depois, a partir de 1482, nos representantes dos
mesteres. No Funchal a lista era aprovada pela coroa, sendo o rei quem indicava os
vizinhos que ai deveriam constar. Das diversas listagens disponíveis a partir de 1470
sabe-se da presença maioritariamente do grupo possidente da capitania, que se
afirmara com a cultura açucareira. Os interesses eram coincidentes com os do
município funchalense. Idêntico foi o caso de Ponta Delgada, onde os produtores de
cereal fizeram mais do que uma vez aprovar medidas que lhes eram favoráveis.

A representatividade dos diversos estratos sociais nos municípios de Cabo Verde e


S. Tomé apresentava-se distinta, pois ai a diferente estrutura social, demarcada pela
forte presença de escravos e libertos gerou inúmeras dificuldades. No caso de S.
Tomé desembocaram num confronto racial: dum lado, os brancos e do outro os
mestiços. Tudo isto surgiu a partir de 1520, quando o rei autorizou os últimos,
vizinhos da ilha e na condição de casados, a poderem entrar para os cargos da
câmara. Em 1545 a situação estava expressa no senado onde os dois juízes
representavam, separadamente, os interesses de ambos os grupos. Foi em torno
deles que se gerou um alvoroço. Entretanto em 1554 os mestiços, descontentes com a
fraca representatividade no município manifestaram-se contra o sistema de eleição
por pelouros, reivindicando que fosse feita a "vozes". Mas como não foram
aprovados pelas autoridades, provocaram um motim que só foi sanado com a prisão
dos cabecilhas. O episódio define uma das únicas contestações conhecidas contra a
forma de eleição dos oficiais concelhios e ą representatividade.
A intervenção do município nos arquipélagos de S. Tomé e Cabo Verde não pode ser
rastreada uma vez que nos faltam os documentos capazes de elucidar sobre isso.
Perderam-se as actas camarárias e com elas o testemunho dos anseios e
preocupações das gentes. Surgem só para a vila de Santo António de Príncipe a
partir de 1672, enquanto no Funchal elas datam de 1472 e nos demais municípios da
Madeira e Açores aparecem com certa abundância nos séculos dezasseis e dezassete.
Apenas em S. Tomé estão disponíveis documentos que espelham a situação vivida
na segunda metade do século dezasseis com os alvoroços que tiveram lugar.

O funcionamento do município e o número de funcionários dependiam da


importância de cada um e do avolumar dos problemas em debate. As ordenações e
os regimentos régios estabeleciam a obrigatoriedade de duas sessões semanais para
o senado da câmara, mas a ordem só foi cumprida nos municípios de maior
dimensão, como Funchal, Ponta Delgada e Angra. Nos restantes apenas uma reunião
semanal ao sábado era o suficiente para atender aos problemas que a vivência
municipal colocava. Estão neste caso os municípios de Velas (S. Jorge), Ponta de Sol e
Calheta. Na Madeira e Açores o ritmo de actividade municipal era apenas quebrado
com o redobrar da faina dos campos em tempo das colheitas -- canaviais, cereais,
pastel e uvas --, passando as reuniões a realizarem-se quinzenalmente ou fazia-se
uma pausa, por um período determinado, nos meses de Verão. Por outro lado a
leitura das actas revela que os trás primeiros meses do ano eram aqueles de mais
intensa actividade.

A ALÇADA. Uma das principais preocupações do município estava no assegurar


aos munícipes os meios básicos de subsistência, procurando a evitar qualquer rotura
nos abastecimentos. As posturas definiam as regras que os oficiais procuravam
cumprir com o máximo dos escrúpulos. Todavia a não correspondência entre o ano
civil, porque se regia o governo municipal, e o ano agrícola, era gerador de
dificuldades. Daí surgiu a necessidade de se ajustar o ano administrativo ao
calendário agrícola. A medida parece ter sido seguida na Madeira até à década de
setenta do século quinze, enquanto nos Açores teve expressão prática em Vila Franca
desde 1577 e Ponta Delgada a partir de 1605. A partir daqui o mandato passou a ter
início no dia de S. João.

As prerrogativas que definiam a alçada do município estavam exaradas no foral,


concedido, pelo senhorio ou coroa, às localidades na situação. Na Madeira o
primeiro foi dado pelo infante D. Henrique, cujo texto se perdeu, seguindo-se outros
em 1472, 1499 e 1515. O penúltimo ficou conhecido como foral novo. O do século
dezasseis foi uma tentativa uniformizadora da capacidade de intervenção dos
municípios, pois foi extensivo a todos os da ilha. Depois foram utilizados nos
Açores, com ficou testemunhado no caso de Ponta Delgada e Angra. Para S. Tomé
suo conhecidos dois forais (1485 e 1524) concedidos em idênticos moldes dos
madeirenses. Os regimentos régios, ou as respostas pontuais às dúvidas colocadas
pelos munícipes complementavam a alçada e a capacidade de intervenção dos
funcionários. Algumas das ordens foram depois compiladas no articulado das
ordenações do reino. É o caso dos regimentos do feitor do trato de S. Tomé de 1532 e
de Santiago de 1520.

A alçada do município era estabelecida, de forma simbólica, pelo selo, bandeira e o


pelourinho. A eles juntava-se o foral onde era atribuído o estatuto de vila e as
regalias que tinha direito. As vilas criadas pelo infante D. Henrique na Madeira não
usufruíam de tais prerrogativas, pois as primeiras foram concedidas em 1461 pelo
infante D. Fernando, a pedido dos vizinhos do Funchal e o último, símbolo do braço
implacável da justiça, só foi dado em 1486 por D. Manuel.

A ideia básica de criação do município resultou da necessidade de regulamentar os


aspectos do quotidiano e a urgência no estabelecimento de uma estrutura
institucional que fosse porta-voz dos anseios das populações. Deste modo é legítimo
de concluir que os interesses locais estavam ą frente dos outros e que a sua acção
incidiu, principalmente, neste âmbito. A isto deverá juntar-se a limitada capacidade
judicial. De um modo geral podemos considerar que o município nos séculos XVI e
XVII desfrutava de ampla autonomia e de elevada participação das gentes na
governança. Todavia a prática municipal veio a revelar alguns atropelos que
levaram a coroa a limitar a alçada por meio de funcionários régios, como o
corregedor. Tendo em conta a situação criada pelos monarcas filipinos, quando da
união das coroas peninsulares (1580-1640), procuraram cercear os poderes dos
municípios portugueses procedendo a algumas mudanças na estrutura na orgânica.
A intervenção e a alçada dos cargos municipais, porque já definidas nas ordenações
e regimentos régios, não aparecem no código de posturas. Apenas se estabeleceram
normas para serviço dos funcionários municipais, como sucede com os rendeiros do
verde e os almotacéis. Pelos acórdãos e posturas, insistentemente divulgados em
praça pública, sabe-se do empenho dos vereadores sobre os aspectos do quotidiano
das gentes: defesa dos usos e costumes, da salubridade pública e a manutenção do
equilíbrio entre as actividades económicas. Dos aspectos da justiça, cuja actuação
está expressa no número variado de funcionários -- juiz de fora, juízes pedâneos,
alcaide, carcereiro, quadrilheiro, meirinho da serra e cidade, guardas mores --, é
necessário referir a limitada alçada, resumindo-se apenas aos feitos cíveis, referidos
nas posturas.

AS POSTURAS MUNICIPAIS

As posturas destacam-se neste domínio da vida municipal como a mais lídima


expressão da sua actividade e capacidade de intervenção, daí que a referência, aqui e
agora, se torna oportuna. Confrontadas as posturas das ilhas portuguesas com as das
Canárias surgem algumas diferenças pontuais neste domínio, pois o direito
municipal não se adequa à relativa autonomia definida pelos alvarás e regimentos
régios. Na Madeira e nos Açores onde o poder local desfruta de amplos poderes e a
sua capacidade legislativa está entravada pela insistência das ordenações régias e
regimentos, o legislador açoriano-madeirense é forçado a afinar pelo mesmo
diapasão peninsular, submetendo-se ao articulado das posturas de Lisboa. Ao invés
nas Canárias os munícipes desfrutam de ampla capacidade legislativa, elaborando o
código de posturas de acordo com as solicitações da mundividência do burgo. Este
rasgo de originalidade acentua-se em todos os municípios apenas no domínio socio-
económico. O direito local canário poderá ser definido como autónomo e multiforme
enquanto o madeirense e açoriano surgirão como uniformes e arreigados às
directrizes monopolizadoras e intervencionistas da coroa portuguesa.

A diferente fundamentação dos códigos de posturas insulares conduziu a uma


diversa valorização e empenho do legislador local. Nos arquipélagos da Madeira e
Açores essa permanente e excessiva intervenção da coroa conduziu a um paulatino
descrédito e esvaziar da capacidade legislativa do município. Deste modo, coarctada
a possibilidade de intervenção plena dos municípios na regulamentação da vivência
do burgo, o código de posturas é, em certa medida, marginalizado. Daí o relativo
menosprezo das autoridades municipais e a tendência para o carácter avulso desta
legislação que, segundo as ordenações do reino, deveria ser compilada e divulgada
junto dos munícipes. Na Madeira esta ordem só foi cumprida em 1572 e 1587,
enquanto nos Açores as primeiras compilações datam de 1655 (Angra) e 1670 (Ponta
Delgada). Nas Canárias, não obstante a tardia pacificação a ocupação, as referidas
compilações surgem em Gran Canárias e Tenerife em princípios de século XVI,
mantendo-se a permanente actualização e compilação nos séculos seguintes.

A par desta ambiência e em abono da diferente formulação do direito insular


português e castelhano teremos o próprio código de posturas e o seu campo de
intervenção. Em Tenerife e Gran Canaria o legislador local regulamenta de modo
rigoroso todos os aspectos da vida da população, definindo normas de conduta
social e um apertado espaço de intervenção para os diversos agentes económicos. O
mais rigoroso é o da ilha de Gran Canárias que se desenvolve em 486 capítulos. Aqui
todos os domínios da vida económica adquirem uma posição relevante.

O atrás referido expresso cabalmente a importância e âmbito atribuído nos trás


arquipélagos ao direito municipal. Além disso evidencia que a afirmação depende
de múltiplos factores em que se destaca a tendência concentracionista da autoridade
e instituições régias em ligação com a conjuntura político-económica.O código de
posturas, para além de surgir como a expressão dos anseios da quotidianeidade
insular, reflecte os vectores dominantes da conjuntura em que emerge e da dinâmica
institucional balizadora. Sendo assim nas Canárias o código de posturas como a mais
lídima expressão dos vectores institucionais emergentes da economia e sociedade
canaria enquanto na Madeira e nos Açores, para além de espelharem esta tendência
concentracionista da coroa, evidenciam a premência das orientações gerais do reino
na regulamentação da quotidianeidade local, no sentido de uma uniformização de
todo o Império. Estas cambiantes dão conta de uma orientação diversa do direito e
das instituições definida pelas coroas peninsulares, de acordo com a sua política
colonial, para o novo mundo atlântico.

As posturas, que surgiram como normas reguladoras dos múltiplos aspectos do


quotidiano do burgo, suam o testemunho mais evidente da mundividência do
município. De acordo com as ordens e regimentos concedidos ao burgo, o município
estava incumbido de atribuições legislativas particulares, resultantes,
nomeadamente, da necessidade de adaptar as ordens gerais do reino às
particularidades do espaço a que seriam aplicadas. Por um lado existiam as ordens
gerais, estabelecidas pela coroa, e por outras as normas de conduta
institucionalizadas no direito consuetudinário, que definia as peculiaridades da
vivência local.

As características ou vectores das sociedades e economias insulares reflectem-se no


articulado das posturas. Deste modo poder-se-á entender que a maior ou menor
valorização resulta da premência do quotidiano na política municipal
Contabilizadas as posturas dos cinco municípios constata-se, ao nível dos sectores de
actividade económica, a dominância do sector terciário com 53% delas, seguido do
secundário com 39% e do primário com apenas 8%. Esta tendência para a
terciarizaçäo da realidade sócio-económica resulta, por um lado, do facto de o meio
urbano contribuir com maior número de situações que carecem de normas e, por
outro, reflexo da sua dominância na vida económica. Todavia é necessário ter em
conta que isto não é igual nos diversos municípios. No Funchal os sectores
secundários e terciário encontram-se quase ao mesmo nível, ao contrário do que
sucede com Angra onde o último tem uma posição dominante.

A afirmação dos sectores secundária e terciário poderá ter diversas origens. Em


primeiro lugar convém referenciar que as posturas incidem preferencialmente sobre
a urbe, espaço privilegiado do sistema de trocas e oferta de serviços. Acresce ainda
que esta função sai reforçada pelo carácter atlântico e europeu das cidades em causa.
Isto torna-se mais evidente no Funchal, Angra e Ponta Delgada, importantes pólos
de atracção do movimento comercial insular e inter-continental. Além disso a
actividade oficinal e comercial do burgo implicava também uma maior atenção
mercê do maior número de situações anómalas.Ao contrário a mundividência rural
perpetuava técnicas e relações sociais ancestrais, sendo o processo regulado pela
rotina e ritmo das colheitas. Aķ pouco ou nada mudava com o decorrer dos anos.
Deste modo o legislador municipal orientava a atenção para o quotidiano do burgo,
marcado pelo sucedâneo de mudanças. Mas nas sociedades em que a faina rural se
tornava importante e definidora dos vectores sócio-económicos e onde as culturas
necessitavam de excessivos cuidados, este domínio não poderia ser menosprezado.
Daí resulta a presença desta temática em 13% das posturas, na sua maioria dos
municípios de Vila Franca do Campo e Ponta Delgada, ambos na ilha de S. Miguel.

Tal como tivemos oportunidade de o afirmar o povoamento e exploração do mundo


insular fez-se de acordo com os componentes da dieta alimentar do íncola -
trigo/vinho - e dos produtos impostos pelo mercado europeu para a satisfazer as
necessidades das praças europeias (açúcar e pastel). O primeiro grupo de produtos
agrícolas, pela importância que assumem para a vivência quotidiana das gentes
insulares, solicitava maior empenho do município. Daí resulta a sua repercussão em
pelo menos 50% das posturas. Note-se que o último grupo mereceu apenas
referência em 15% delas. A presença dos referidos produtos nos dois arquipélagos
não obedecia apenas às especificidades definidas pela orografia e clima, pois
também resultava das orientações da política agrícola definida pela da coroa e
necessidades emergentes da subsistência das populações. Tais condicionantes
implicaram uma ambiência típica no mundo insular atlântico, reflectindo-se na
vivência de cada burgo.

A abundância ou carência das culturas e produtos de subsistência conduziam


diversas atitudes por parte do legislador. No primeiro caso ela abrangia todos os
aspectos da vida económica do produto, enquanto no segundo incidem
preferencialmente sobre o abastecimento do mercado interno, com normas
adequadas ao normal Funcionamento dos circuitos de distribuição e troca. Assim, se
Justifica a similar importância atribuída às posturas cerealíferas em S. Miguel (Ponta
Delgada e Ribeira Grande) e Terceira (Angra). Enquanto a primeira se pode
considerar como um importante celeiro do mundo insular a última surge, desde
meados do século XVI, como uma área carente que assegurava o seu abastecimento
nas ilhas vizinhas. O mesmo ocorre semelhante ocorre no Funchal, Ponta Delgada e
Angra. Apenas com os produtos típicos da economia colonial - açúcar e pastel - a
situação é idêntica na Madeira e são Miguel.

A pecuária assume em todo o espaço agrícola insular um papel fundamental mercê


da tripla valorização económica na faina agrícola, dieta alimentar e indústria do
couro. Este sector foi relevante nos municípios de Ponta Delgada, Angra e Funchal.
O seu incentivo conduziu a um maior empenho da alçada municipal na venda de
carne nos açougues municipais bem como das indústrias de curtumes e calcado.
No caso da carne do legislador local intervém de modo diverso: a carência implicava
uma regulamentação mais cuidada e assídua do senado do que a abundância. Isto é
evidente em Angra e Ponta Delgada, municípios que faziam depender o
abastecimento pecuário das localidades ou ilhas vizinhas. Ponta Delgada assegurava
em Santa Maria, Ribeira Grande e Vila Franca do Campo a raçäo de carne e
derivados, enquanto Angra fazia depender o abastecimento das ilhas de S. Jorge e
Graciosa.

O desenvolvimento da indústria de couro tinha implicações na salubridade do burgo


o que levava o senado a regulamentar rigorosamente a actividade, definindo os
locais para curtir e lavar os couros, bem como o modo de laboração dos mesteres
ligados a indústria A par disso procurou-se assegurar a disponibilidade da matéria-
prima para a indústria do calcado, proibindo-se a saída. A conjuntura é comum a
Angra, Funchal e Ponta Delgada. Esta medida aliada a outras, tendentes à defesa da
salubridade do burgo, revelam que a pecuária era importante. Era daí que se
extraiam a carne para a alimentação, os couros, para a indústria de curtumes e o
estrume para fertilizar as terras, além do usufruto da forca motriz no transporte ou
lavra das terras. Este sector foi uma grande fonte de riqueza e, portanto, merecedor
de redobrado empenho pelos municípios do Funchal e Ponta Delgada.

A presença da pecuária e actividades dela derivadas geravam inúmeros problemas.


É o caso dos danos causados pelo gado solto, não apastorado, nas culturas,
nomeadamente vinhas, searas e canaviais. Daí resultou a necessidade de delimitar as
áreas de pasto e a obrigatoriedade de cercar as terras cultivadas. Depois um conjunto
variado de pragas infestava, com assiduidade, as culturas o que obrigava a uma
participação conjunta de todos os vizinhos. Uma das principais resultava dos efeitos
nefastos da presença dos pássaros, nomeadamente os canários e corvos: os primeiros
incidiam com frequência sobre o município de Vila Franca do Campo. Para os
combater os municípios estipulavam a obrigatoriedade de todos os vizinhos
apresentarem com periodicidade um número variado de cabeças dos referidos
pássaros, que depois seriam registadas em livro próprio. O número era variável de
acordo com o espaço agrícola e com a urgência do combate.

No domínio agrícola o empenho do município variava, de acordo com a dominância


das culturas existentes na extensa orla agrícola que cercava a vila. No Funchal, que
abarcava uma das mais importantes áreas de cultivo de cana-de-açúcar, quase todo o
empenho estava nos canaviais e engenhos, definindo a cada um o complexo
processo de cultivo e laboração do açúcar. Nos Açores, conhecidos desde o século
XV como o principal celeiro português, maior atenção foi atribuída ao problema
cerealífero.

Estranhamente a cultura do pastel, que tinha uma importância relevante na


economia micaelense, não mereceu grande empenho no código das posturas. Em
Ponta Delgada temos apenas duas e em Vila Franca do Campo sete, enquanto em
Angra só se referencia uma única sobre a urzela. As poucas referências às plantas
tintureiras deverão resultar certamente das existências de regimentos régios que
regulamentavam, até ao pormenor, o cultivo, transformação e comércio do produto.
Todavia no caso da Madeira com o açúcar existiram, em simultâneo, os regimentos
régios e as respectivas posturas.

O abastado celeiro açoriano, de finais do século XV e Princípios do XVI


apresentaram, a partir de meados do século XVI, como um apertado granel, incapaz
de suprir as necessidades de pão dos insulares, cada vez mais numerosa, e do
mercado lisboeta, norte africano e madeirense, carentes dos parcos excedentes da
produção açoriana. As sete espigas viçosas haviam perecido dando lugar a outras
raquíticas e improdutivas. O solo estéril e cansado negava-se a produzir o precioso
cereal na proporção que o havia fazendo. O ilhéu habituado ao consumo de pão viu-
se obrigado a procurar outras formas de alimento senão quisesse passar fome. Esta
conjuntura da cultura cerealífera conduziu ao depauperamento dos rendeiros,
enquanto os senhorios, mercê da acção especulativa e o contrabando, continuavam a
aumentar os seus proventos. Perante isto tornava-se urgente o estabelecimento de
uma política cerealífera capaz de os debelar e de evitar o desequilíbrio entre as
colheitas e o consumo. Mas isso só seria possível mediante o controlo total dos
circuitos de distribuição. Daí resultou a necessidade de manter as reservas
necessárias para o consumo local e provimento das naus da carreira das Índias, que
aportavam aos portos açorianos.

A política cerealífera do arquipélago açoriano não é original no contexto europeu,


pois que em toda a Europa e áreas oceânicas carentes se universalizaram tais
medidas. É certo que a cada área correspondia um caso variado e multifacetado,
onde esta orientação padronizada carecia dos necessários reajustamentos e
adaptações. Sendo o arquipélago açoriano definido, desde o início, como uma área
de comércio de cereais onde a conjuntura foi desfavorável, houve necessidade de
adequar a política de abastecimentos a esta realidade.Todo o empenho das
autoridades locais e régias estava na satisfação das necessidades do arquipélago, do
provimento das naus do reino e do trato obrigatório das áreas carentes (Madeira,
Norte de África). Deste modo o comércio rendoso tornava-se, quase impossível. A
vigilância constante sobre os preços lesava a classe mercantil impelindo-a para a
especulação e contrabando possíveis.

A política cerealífera açoriana baseava-se, essencialmente, em duas formas de


actuação diferenciadas, mas complementares:

1. Controlo/regulamentação/proibição do comércio e transporte de cereais no


mercado interno e externo;
2. Controlo das colheitas e dos circuitos de reabastecimento e guarda do cereal,
com o estabelecimento de uma reserva, o trigo do exame.

A actuação do município era variável e adaptava-se às circunstâncias emergentes do


ciclo vegetativo do cereal. De Julho a Agosto, com a colheita do cereal, era feita a
primeira vistoria aos granéis para avaliar os stocks da colheita e arrecadar a
percentagem de trigo dos exames, que ficaria de reserva. De Setembro a Novembro
carregava-se o trigo necessário para o mercado africano, madeirense e a exportação
possível.Concluídas estas iniciativas começavam a surgir as primeiras dificuldades
no provimento da população, sendo necessário por cobro ą actividade de
contrabando por meio de um apertado sistema de vigilância e controlo das saídas,
ou a proibição. Estas medidas estabeleciam-se de acordo com o volume da reserva
de cereal. A partir de Janeiro a falta de cereal tornava-se uma realidade permanente,
ameaçando o abastecimento do povo e dando azo _ especulação gerador, muitas
vezes, de motins populares. Mas somente entre Março/Abril/Maio se procedia ą
abertura do trigo dos exames nas diversas localidades, que tinha preço estabelecido
pelos vereadores. A sementeira havia esgotado os últimos alqueires dos stocks de
cereal dos rendeiros.

A exequibilidade das medidas tomadas ou estipuladas para cada momento


dependia, em primeiro lugar, da iniciativa do procurador do concelho e, depois, do
espírito reivindicativo das gentes, expresso quase sempre em motins. A actuação dos
vereadores era ambígua e expressava-se de acordo com a sua origem social. Note-se
que ai tinha assento representante do povo e dos grandes proprietários senhorios e
burguesia, comprometidos com o comércio de cereais.
Os componentes da dieta alimentar insular adquiriram um lugar de relevo na
intervenção dos municípios que a isso dedicaram 47% dos capítulos dos referidos
códigos de posturas. Tudo isto, a par da constante interpelação dos vereadores,
demonstra as assíduas dificuldades em assegurar as necessidades vitais dos
municípios. Tal empenho era, no entanto, muito variável, adequando-se ą realidade
agrícola e conjuntura produtiva de cada urbe. Tudo isto resultou, certamente, do
facto de a dieta alimentar manter a ancestral origem mediterrânica, sendo pouco
variada, o que colocava inúmeras dificuldades ao abastecimento do meio urbano. O
pouco uso dos legumes e peixe derivava do abuso de pão e vinho.

Sendo os mares insulares ricos em peixe e marisco, e toda a vivência das populações
dominada pelo mar e extensa costa, não se compreende o menosprezo pelas riquezas
alimentares marinhas em favor da carne. Note-se que as posturas referentes ą carne
duplicam em relação às que referenciam o peixe. O peixe aparece apenas nas
posturas em Angra e no Funchal: ai regulamenta-se, não só a venda, mas também a
pesca, dando-se especial relevo em Angra ą forma de distribuição no mercado local.

A importância relevante do pão e da carne nos hábitos alimentares das populações


das ilhas implicou um redobrado empenho do município sobre a sua circulação e
venda. Na verdade o código de posturas acompanhava todo o processo de criação,
transformação, transporte e venda. Igual foi a incidência sobre o quotidiano que
envolve a actividade dos meios de produção a eles ligados (azenhas, atafonas, fornos
e açougue municipal).

O moleiro deveria ser habilitado e diligente no ofício, tornando-se obrigatório o


exame e o juramento anual no senado da câmara. Além disso os vereadores
fiscalizavam, diariamente, o medir do cereal, da farinha e o acto de maquiar. Na
Madeira tal tarefa estava a cargo de um rendeiro dos moinhos. Este domínio
mereceu apenas uma cuidada atenção nas posturas de Angra, Ribeira Grande e
Funchal, o mesmo não sucedendo em Ponta Delgada, que fazia moer o seu trigo nos
moinhos existentes na Vila da Ribeira Grande.

Uma vez que os moinhos disponíveis eram movidos a água estavam,


obrigatoriamente, situados nos locais onde ela existia em abundância e podia ser
canalizada para tal fim. Na Terceira só Angra apresentava em 1694 doze moinhos,
estando outros treze repartidos pela ilha. Para o Funchal esta presença era evidente
também na cidade, onde existiu mais de oitenta, sendo o eixo de maior concentração
a margem direita da ribeira de Santa Luzia.

A necessidade de precaver o moinho contra qualquer dano na farinha e farelo levou


o município a estabelecer a proibição de existência nas proximidades de pocilga e
capoeira. Além disso a animação desusada do espaço circundante ao moinho
tornava necessária a estabelecer normas de conduta social no sentido de moralizar e
disciplinar o comportamento dos habituais frequentadores. Na Madeira as mulheres
casadas ou mancebas não podiam frequentar nem prestar qualquer serviço na
moenda.

Ao moinho sucedia o forno, colectivo ou privado, que assegurava a cozedura do pão


consumido no burgo. Mas a afirmação pública deste espaço resultava da existência
de factores propiciadores disso em cada ilha ou vila. Na Madeira e Açores, após uma
fase inicial em que eles foram privilégio do senhorio, assistiu-se a uma excessiva
proliferação de fornos no burgo e arredores. Todavia a maior parte do pão ai
consumido era resultado dos fornos públicos.

O município procurava exercer um controlo rigoroso sobre o peso e preço do pão.


Ambos eram fixados pela câmara de acordo com a situação das reservas de cereal
existente nos celeiros locais. Além disso, em momentos de penúria, eram os
vereadores que distribuíam o cereal às padeiras. Esta preocupação surge apenas no
Funchal, estando a cargo dos almotaceis que procuram manter o controlo sobre o
fornecimento do cereal ou farinha e o fabrico do pão, com a conferência do peso e
preço de venda ao público. Tenha-se em conta que a vila, e depois cidade, esteve
desde finais do século XV, sob o espectro da carência de cereais. Isto gerou, como é
óbvio, especiais cuidados por parte da vereação. O único reflexo de uma similar
atitude municipal nas ilhas açorianas situa-se apenas na feitura e venda do biscoito,
elemento indispensável para a dieta de bordo das inúmeras embarcações que
Demandavam o arquipélago. Sendo os portos de Angra, Funchal e Ponta Delgada
importantes entrepostos do comércio atlântico é natural a redobrada atenção
atribuída ao fabrico de biscoito.

O açúcar, pelo contrário, afirmou-se na economia insulana como o principal


incentivo para a manutenção e desenvolvimento do sistema de trocas. Tal facto,
associado ao carácter especializado da cultura e fabrico do açúcar, tornou necessária
a regulamentação pelo código de posturas na Madeira. A intervenção municipal não
se resumia apenas aos canaviais e ao processo de fabrico do açúcar, alargando-se
também a outros domínios que contribuíram de modo indirecto para o
desenvolvimento da cultura. Assim se justificava a extremada atenção concedida às
águas e madeiras, dois elementos imprescindíveis para a cultura e indústria
açucareira. Neste domínio a acção municipal adequava-se às condições geofísicas de
cada área produtora, variando as iniciativas de acordo com a maior ou menor
disponibilidade de ambos os factores de produção.

A Madeira, desfrutando de um vasto parque florestal e de abundantes caudais de


água, não necessitava de intervir exageradamente neste domínio, reservando maior
atenção às actividades em torno do engenho. As posturas definiam os cuidados a ter
com a cultura dos canaviais, transporte da cana e lenha pelos almocreves, bem como
a actividade dos diversos mesteres no engenho. A este numeroso grupo de agentes
de produção que asseguravam a o funcionamento do engenho era exigido o máximo
de esforço para que o açúcar branco extraído apresentasse as qualidades solicitadas
pelo mercado consumidor europeu. Neste caso valorizou-se a formação dos
operários especializados do fabrico de açúcar (refinadores, purgadores...) ao mesmo
tempo que era solicitado ao proprietário uma escolha criteriosa dos agentes, que
deveriam prestar juramento perante o senado da câmara todos os anos. Esta política
foi reforçada com ao aparecimento do lealdador, oficial concelhio que tinha por
missão fiscalizar a qualidade do açúcar laborado.

O uso abusivo, pelos agentes, do produto em laboração, levou o município a


estipular pesadas coimas para aqueles que roubavam cana, socas, mel e bagaço.
Além disso estabeleceu-se um travão ą existência de condições que apelassem para o
furto, proibindo-se a posse de porcos a qualquer agente que trabalhasse no engenho
e do pagamento dos serviços em espécie. Todavia, a última não foi tida em conta
pelos proprietários de engenho, que continuaram a pagar alguns dos serviços em
açúcar. Só assim se compreendem as quantias de açúcar disponível nas mãos de
muitos dos trabalhadores, na primeira metade do século dezasseis.

O processo de fabrico de artefactos surge também como um momento importante de


animação no burgo, ocupando um numeroso grupo de mesteres com assento em
áreas ou arruamentos estabelecidos pelo município. A necessidade de um apertado
sistema de controlo sobre a classe oficinal no sentido de uma maior exigência de
qualidade dos artefactos produzidos, de um tabelamento dos produtos e tarefas,
condicionaram este interesse do legislador insular, o que levou ao aparecimento
desta em 21% das posturas em análise. Esta política municipal para os ofícios não era
uniforme nos dois arquipélagos, uma vez que a postura vai de encontro a uma
multiplicidade de factores, condicionantes do desenvolvimento da estrutura oficinal.
Por isso a incidência foi maior nas posturas do Funchal, Angra e Vila Franca do
Campo do que nos restantes municípios. Por outro lado nos municípios açorianos
este sector de actividade não adquiriu a importância relevante que teve na Madeira,
o que poderá ser indício do fraco nível de desenvolvimento dos serviços e do sistema
de trocas.Tal expressão da vida oficinal do burgo não é igual em todas as posturas
dos municípios estudados. Apenas no Funchal é patente a maior incidência e
variedade dos ofícios abrangidos, ao contrário do que sucede nos municípios
açorianos. Por exemplo: em Vila Franca do Campo o empenho dos vereadores incide
quase exclusivamente sobre dois ofícios ligados aos transportes - barqueiro e
carreiro. É de salientar, ainda, a importância atribuída aos oleiros, actividade com
grandes tradições neste município. Em Angra e no Funchal eram os moleiros que
mais problemas causavam ao burgo, e por isso mesmo mereceram maior vigilância
dos almotaceis.

A maioria dos ofícios referenciados nas posturas pertence ao sector secundário e


terciário, tendo a primária fraca representatividade. Por aqui se confirma a
importância que os dois primeiros sectores de actividade assumiram para os
municípios. Os ofícios são o esqueleto em que assentava a vivência do burgo. Eram
eles que animavam o quotidiano dos arruamentos e praças. Daí resultou o grande
empenhamento demonstrado pelo código de posturas. Maior atenção foi dada ą
actividade transformadora e ao sector alimentar, com particular relevo, no primeiro
caso, para a indústria do calcado e, no segundo, da moenda do cereal e venda de
carne.De um modo geral os ofícios referenciados nas posturas pertencem aos
sectores secundário (56%) e terciário (36%), com especial incidência para a actividade
transformadora e alimentar. Só no Funchal o conjunto de ofícios do sector
secundário está muito próximo, mercê do elevado desenvolvimento da estrutura
oficinal. Note-se, ainda, que era no Funchal que se encontrava uma maior variedade
de ofícios, situação contrastante com a exígua referência e sobriedade dos
municípios açorianos.
Na Madeira regulamentou-se de forma exaustiva os ofícios ligados à produção
(canavieiro, esburgador), transporte (almocreve, barqueiro e mestre de navio),
transformação (alfaiate, caldeireiro, ferreiro, ferrador, forneiro, mestre de engenho,
moleiro, oleiro, ourives, tacheiro, tanoeiro, sapateiro) e comércio (carniceiro,
fanqueira, mercador, pescadeira, taverneiro e vendeira) dos produtos e artefactos.
Nos Açores, num ou noutro sector de actividade, as referências suo avulsas. Esta
diversidade de actuações resulta da conjuntura sócio-económica de cada burgo.
Assim Vila Franca do Campo, dominada por grandes áreas agrícolas viu
desenvolver-se o sector de transportes, necessário ao escoamento dos excedentes. O
mesmo sucedeu na cidade de Angra em que a missão de porto oceânico conduziu ao
forte desenvolvimento dos ofícios ligados ao sector alimentar.

A intervenção do legislador municipal na faina oficinal orientava-se no sentido da


regularizar a actividade. Aķ se Estabelecia de modo rigoroso o processo de fabrico e
a tabela de preços para as tarefas e artefactos. A qualidade do serviço e produto não
resultavam apenas da concorrência na praça mas fundamentalmente da vigilância
das corporações e da exigência do exame ao aprendiz. O juramento anual e a
necessidade de prestar fiança completavam a alçada municipal. Na Madeira os
ourives e tanoeiros deveriam apresentar aos vereadores a marca para que constasse
dos livros da Câmara.

A oficina dava lugar ao mercado ou praça, espaço privilegiado para a distribuição e


escoamento dos artefactos. O município redobrava aqui a vigilância, estabelecendo
regras definidoras do sistema de trocas. Esta foi uma das preocupações dominantes
nas posturas, expressa pela presença de 28% dela. Aqui a actuação repartia-se entre o
abastecimento de bens alimentares e artefactos.

A praça dominava o espaço urbanizado, estabelecendo uma peculiar


compartimentação de acordo com as exigências dos vectores internos e externos da
vida económica. Aos edifícios da fiscalidade sucedem-se os armazéns e lojas de
venda. A sua importância no quotidiano está justificada por uma dupla acção:
primeiro submetendo os diversos ofícios ao juramento e fiança anuais, depois por
meio da vigilância dos almotacéis.

As normas regulamentadoras do mercado insular estruturavam-se da seguinte


forma:

1. COMÉRCIO INTERNO, uma intervenção baseada num apertado sistema de


vigilância incidindo sobre o preço de venda, dos bens alimentares e artefactos,
fixados pelos vereadores;
2. COMÉRCIO EXTERNO, actuação no sentido de delimitar as trocas com o
exterior aos excedentes ou produtos a isso destinados.

Para o comércio externo o município intervinha de acordo com o nível de


desenvolvimento sócio-económico de cada cidade ou vila. Nas de grande animação
comercial com o exterior, como Angra, Funchal e Ponta Delgada, a atenção era
redobrada, principalmente ao nível do movimento de entrada e saída. A defesa das
culturas locais implicava algumas limitações no movimento de entrada. Ao invés a
carência, nomeadamente de bens alimentares, conduzia ao estabelecimento de
medidas incentivadoras da entrada e ao controlo rigoroso do transporte e
armazenamento. As últimas completavam-se com a proibição imposta quanto ą sua
saída. Estavam neste grupo o cereal, o vinho, o azeite, o pescado, o gado, a carne, o
biscoito, o linho e o couro.

A fragilidade do sistema económico insular associada ą extrema dependência do


mercado europeu e atlântico condicionaram o nível de desenvolvimento do sistema
de trocas, marcado por múltiplas dificuldades no abastecimento. Deste modo as
autoridades municipais faziam incidir a sua acção sobre o sistema de trocas de modo
a assegurar a subsistência das populações. Daí resultou o especial empenho para
com questões de abastecimento, onde o cereal era escasso ou anormal. A última
situação explicita o elevado número de posturas fragmentárias em S. Miguel,
considerada o principal celeiro do mundo insular português. Saliente-se que elas
surgem, com especial acuidade, nas décadas de trinta e quarenta, período crítico
para o abastecimento e comércio cerealífero micaelense.

A vinha e o vinho integram também o grupo de culturas e produtos protegidos,


mercê da importância que assumem na dieta e sistema de trocas insulares. As
posturas estipulavam medidas para evitar os danos causados pelo gado nas vinhas,
furtos de uvas, bem como as normas para a venda do vinho atavernado. No
primeiro caso proibia-se, em Ponta Delgada, Funchal e Angra, a venda de uvas sem
licença do dono. No segundo, coibia-se os seus interlocutores de processos
fraudulentos na venda, com a fuga ao pagamento dos direitos e ą baldeação de
vinhos de diferentes qualidades. Para isso cada taberna só poderia dispor de duas
pipas de vinho (branco e tinto), e ambas varejadas e abertas por um oficial concelhio,
o rendeiro do vinho. Neste contexto merece especial referência a preocupação do
município angrense em proibir a mistura dos vinhos. As indicações ao uso de
açúcar, mel de abelhas e canas dão a entender que a prática do "vinho a martelo" é
antiga e já tinha lugar em Angra.

A carne e o peixe, produtos que exigiam especiais cuidados no manuseio e venda,


tiveram também uma referência relevante nas posturas. Estabeleciam-se normas
reguladoras definidoras do processo de circulação e venda. A venda do peixe
deveria ter lugar na praça e por agentes habilitados pelo senado da câmara. Deste
modo aos proprietários de barcos, arrais ou pescadores estava vedado o comércio a
retalho. Ambos os produtos só depois de fiscalizados pelo almotacel eram postos ą
venda. No caso da carne o corte e venda eram feitos na presença de um oficial
concelhio.A venda por peso ou medida facilitava o dolo dos vendedores pouco
honestos que falsificavam os meios usados na mediçäo. Deste modo o município era
obrigado a redobrar a vigilância sobre o retalhista, sendo o alvo principal as
vendedeiras. Daí ter-se estipulado o uso obrigatório de pesos e medidas, aferidos
pelo padrão municipal, sendo anual a respectiva conferência a cargo do almotacel.
A sociabilidade no acanhado espaço insular não mereceu idêntica atenção por parte
dos municípios. Para isso contribuiu o facto de os marginais não terem sido motivo
de grande instabilidade, mercê da coacção social exercida pelo meio, que
impossibilitava uma fácil fuga e de certo modo dificultava os desvios. A urbe, espaço
compartimentado da mundividência insular era animada pela presença dos diversos
agentes económicos nos domínios da produção, transformação, transportes e
comércio. A múltipla sociabilidade, derivada das relações que se estabeleciam entre
os vários estratos sócio-profissionais, forasteiros, vizinhos e marginais, levou ao
estabelecimento de normas de convivência social. Um dos maiores problemas foi a
presença de um grupo de marginais, constituído por meretrizes, trabalhadores e
escravos fugitivos.

Os escravos constituíram a principal preocupação dos municípios no domínio social.


Deste modo no articulado das posturas estabeleceram-se, minuciosamente, os
padrões de comportamento, estipulando-se os limites de convívio social. Assim ao
escravo era vedado o acesso a casa própria e mesmo a possibilidade de coabitar na
urbe. Ele deveria residir nos anexos da fazenda ou quinta do senhor, não podendo
ausentar-se sem prévia anuência do amo. Fora do seu apertado circuito de convívio
o escravo deveria ser identificável pelo sinal e estava proibido de usar arma ou
permanecer fora de portas após o toque de recolher. O seu quotidiano estava
definido em termos espaciais e temporais: serviço na casa e terras do amo até o toque
de recolher. Além disso ninguém, nem mesmo os libertos, poderiam acolher, dar de
comer ou esconder qualquer escravo foragido.

A defesa da moral pública, devidamente regulamentada nas ordenações do reino,


mereceu as necessárias adaptações nas posturas das sociedades atlânticas, definindo
o espaço e formas de convívio social no burgo. Com a finalidade de defesa da
reputação da mulher casada, delimitava-se a área de convívio para mancebia, ao
mesmo tempo que se coagia o sexo oposto a manter um comportamento regrado
com as mulheres na fonte, ribeira e via pública. Na ilha Terceira foi intenção do
legislador estabelecer formas de convívio nos espaços de maior afluência de vizinhos
e forasteiros, como tavernas, de modo a evitar os delitos e descortesias.

A defesa das necessárias condições de vida do burgo completa-se com a procura de


um nível adequado de salubridade do espaço de convívio e labor social. A
premência das doenças, nomeadamente a peste, colocava ao município a obrigação
de intervir com medidas sanitárias, que se adequavam ao nível de salubridade e
dominância de vivência rural no município. Os principais problemas concernentes
com a salubridade resultam da permanente circulação de animais no burgo, do uso
abusivo da água das fontes, poços, levadas e ribeiras para lavar, beber e uso
industrial. A tudo isto se juntava as preocupações com asseio das ruas e praças
públicas. A solução de alguns destes problemas levou o município a delimitar a área
de trânsito e, no caso da Madeira, a construção de abrigos para os animais,
conhecidos como os palheiros.

A água, elemento vital do quotidiano e faina agrícola insular, mereceu o empenho


do município. Interferiu-se no sentido regularizar o uso, evitando o furto e dano
pelas actividades artesanais - linho e couro. A fonte, espaço privilegiado do
quotidiano da urbe, mereceu especial atenção: restringiu-se o uso e consumo de
água, coibindo-se o serviço de bebedouro para animais ou estendal de roupa. Esta
preocupação é dominante nas ilhas Terceira e são Miguel. O Funchal foi, sem divida,
de todos os municípios o que desfrutou de melhores condições de salubridade. A
cidade posicionada numa encosta talhada por trás ribeiras propiciou isso. As actas
das vereações e o código de posturas atribuem-lhe pouca atenção.

Idênticas, ou senão parecidas em alguns domínios, deveriam ser as normas lavradas


nas posturas dos municípios das ilhas de S. Tomé e Cabo Verde, cujo conteúdo nos
escapa pela ausência. Nas posturas aprovadas em 1732 pela câmara municipal de
Santo Antão é variado o leque de intervenções, coincidindo algumas com as
anteriormente referenciadas para a Madeira e Açores. Elas abrangiam a salubridade,
pesos e medidas, danos causados pelo gado, pássaros e consequentes medidas de
protecção.

Você também pode gostar