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OS AGENTES DO COMÉRCIO DOS AÇORES NO SÉCULO XVII – PERFIL,

INSERÇÃO E AÇÃO

Joana Beatriz Pereira de Sousa, n. 202005885

RESUMO

O arquipélago dos Açores foi, desde a sua descoberta, um local utilizado e


exponenciado pelo reino português. Aquando da descoberta do “Novo Mundo”, o
território insular ficou numa situação de ponto intermédio entre as colónias e o reino
português. Não tardou para que essa posição estratégica fosse utilizada e os portos das
ilhas açorianas fossem desenvolvidos em consequência do afluir de mercadorias vindas
tanto com destino a Portugal como às terras do Novo Mundo.

Muitos encaravam o arquipélago açoriano como um simples ponto de ligação comercial


no oceano, mas a verdade é que o arquipélago teve uma ação própria no que concerne o
comércio e tirou vantagem dessa posição estratégica que ocupava. O objetivo deste
ensaio é compreender como funcionava esta organização comercial no arquipélago dos
Açores, quais os seus agentes, as suas áreas de ação, o seu impacto e de como isso
alterou a própria configuração do território insular.

Palavras-chave: Açores, Atlântico, Comércio açoriano, Séc. XVII

INTRODUÇÃO

Este estudo debruça-se sobre a atuação dos Açores no comércio da época moderna,
nomeadamente no séc. XVII, com o propósito de entender quais eram os agentes
atuantes no arquipélago e de que modo este se adaptou à posição que ocupava nas rotas
comerciais deste período.

Deste modo, o texto pretende refletir sobre as seguintes questões: Qual o perfil destes
agentes? Terá o arquipélago demonstrado uma ação passiva perante a posição
estratégica que ocupava ou terá tido também ele um papel ativo nas transações
comerciais? A pesquisa deste ensaio foi executada com base nestas perguntas.

Com efeito, a historiografia tem vindo nas últimas décadas a destacar o papel dos
territórios insulares em conjunto com as massas continentais ao longo da história, e é
considerável o número de obras existentes sobre estes locais e a sua ação. Utilizei o
método eletrónico do Google Schoolar, introduzindo as palavras-chave mencionadas
acima. Dessa pesquisa surgiram vários resultados, dos quais analisei grande parte para
que assim fosse possível delimitar o mais possível quais os instrumentos de estudo
realmente necessários.

Assim, selecionei um total de 6 artigos que entendi serem os mais próximos à categoria
central da temática. Estes artigos foram encontrados no arquivo da Universidade dos
Açores e em revistas científicas, todas elas mencionadas abaixo nas referências
bibliográficas.

Os procedimentos de análise que segui para a seleção foram: primeiramente, fiz a leitura
dos títulos para identificar o tema; em seguida, efetuei a leitura do resumo para
compreender do que tratavam e quais os resultados encontrados e, por fim, realizei a
análise interpretativa após a leitura integral de cada artigo para definir as principais
temáticas definidas pelos mesmos.

A INSERÇÃO DOS AÇORES NO MUNDO DA ÉPOCA MODERNA

Apesar do foco deste ensaio ser o século XVII, a verdade é que é impossível abordar a
história dos Açores sem ir até às suas raízes, ao momento em que o arquipélago foi
descoberto e fazer um balanço, ainda que breve, de toda a sua trajetória até ao período
referido, pois só assim somos capazes de compreender as profundas mudanças nele
efetuadas e como isso se traduz na sua crescente importância na época.

A pedra basilar na definição da importância deste território foi a viagem de Vasco da


Gama até à Índia. A ilha Terceira, nomeadamente Angra, foi assinalada como escala de
retorno na rota da viagem portuguesa. No artigo de José Damião Rodrigues é dito que as
viagens da carreira da Índia no século XVI consagraram os Açores como ponto de
referência, não só em termos de escala, como de orientação 1. Um exemplo disso é a
referência que se faz às ilhas açorianas nos itinerários quinhentistas 2 portugueses ou
estrangeiros.

A crescente importância dos Açores levou, como seria de esperar, a coroa portuguesa a
tomar uma série de medidas que confirmassem a posição vinculativa do arquipélago.
Assim, foi criada a armada das ilhas durante o reinado de D. Manuel e também o

1
Cf. ALBUQUERQUE (1989), pp. 61-76 e 79-92; MOTA (1971); e O Manuscrito “Valentim
Fernandes” (1940), pp. 11-24.
2
Roteiros Portugueses Inéditos da Carreira da Índia do século XVI (1940), pp. 112-113 e 173.
“Regimento para as naos da India nos Açores” e o dos juízes das alfândegas, ambos
datados de 1520. Por volta de 1527, foi criado o cargo de provedor das armadas, sediado
em Angra, que tinha como funções a proteção das embarcações através da sua escolta e
o guarnecimento das tripulações, tendo sido Pêro Anes do Canto o primeiro provedor
das armadas.

Há um claro destaque para o papel de Angra nesta fase no que diz respeito à sua
localização geográfica, o que a torna num ponto importante de escala e de apoio a
embarcações. Isto claro trouxe consequências para a estrutura urbana que se viu
transformada devido à paulatina importância do seu porto. O artigo de José Damião
Rodrigues descreve a forma como este local estava organizado, terminando com um
excerto que creio resumir toda essa descrição: “A originalidade de Angra reside
precisamente na adaptação da matriz continental à sua vocação marítima (…) numa
indicação clara da estreita relação entre Angra e o mar e da importância das suas
funções de entreposto comercial e base de apoio às armadas3.”.

Para além de Angra, outros locais também se destacaram. Ponta Delgada surge como
uma escala eventual e porto de exportação de trigo e outros bens essenciais para o
aprovisionamento das naus, para que a rota do Cabo fosse realizada com sucesso. O
resultado disto foi a elevação de ambas as vilas à categoria de cidade, Angra em 1534 e
Ponta Delgada em 1546. Deste modo, podemos concluir que a criação das duas novas
cidades se liga fundamentalmente às suas respetivas funções portuárias e comerciais, ou
seja, à sua “dimensão oceânica”4.

Este exemplo é significativo pois demonstra a notoriedade das ilhas como uma região
convergente de pessoas, embarcações e influências de tal modo que a própria estrutura
das mesmas vai sendo adaptada de acordo com as necessidades apresentadas e a sua
progressiva relevância no mundo da época moderna. Contudo, isto também acarretou
consequências negativas, sendo que o território açoriano se tornou também atrativo para
o corso. A situação escalou a tal ponto com o passar dos anos que foi levada a cabo a
construção de fortes nas localidades (forte de São Brás em Ponta Delgada e forte de São

3
A importância desta rua é descrita, cerca de 1715, pelo padre jesuíta António Cordeiro
(1640-1722), cronista terceirense. Cf. CORDEIRO (1981), p. 270.
4
RODRIGUES, José Damião - A contribuição dos Açores para a construção do
mundo atlântico: cidades portuárias insulares. XXII Coloquio de Historia Canario-Americana [Em
linha]. 12: 21 (2017) pp. 1-12. Disponível em WWW: <URL:
http://coloquioscanariasmerica.casadecolon.com/index.php/aea/article/view/9970>. ISSN 2386-6837.
Sebastião em Angra). Para além disso, a afluência de várias embarcações de distintas
proveniências que ali faziam escala, traziam consigo não só mercadorias e tripulantes,
como doenças que não esperavam pelo seu destino final para se propagarem. O maior
medo dos responsáveis pela fiscalização dos portos era, não muito surpreendentemente,
a peste. “Ainda no final do século XVI, na ilha Terceira, o ano de 1599 foi denominado
como o “ano do mal”. Nos séculos seguintes, as fontes continuam a referir-se aos surtos
de peste no arquipélago e as autoridades estiveram atentas aos problemas de contágio.” 5

A integração de Portugal na monarquia hispânica alterou, como seria de prever, a


conjuntura de poderes na Europa e mais uma vez o papel dos Açores é mencionado.
Uma carta enviada a D. Isabel I de Inglaterra é bastante elucidativa quando à
importância das ilhas, sobretudo da Terceira, sendo dito que quem tivesse domínio
sobre ela não teria necessidade de ir até à Índia ou passar ao mar do Sul 6 e que sem ela
“o rei de Portugal era incapaz de governar o seu reino” 7. Sendo esta carta verdadeira,
algo que não consegui confirmar, é mais uma amostra da centralidade geoestratégica do
arquipélago. Desta forma, os Açores tornaram-se num palco de operações militares e
navais no contexto das disputas imperiais e do controlo do mar.

Já no século XVII, o pólo de atração mudara de localização, sendo que o Índico fora
colocado em segundo plano face ao oceano Atlântico (apenas nos anos de 1644, 1645,
1646, 1649, 1652 e 1654 foi necessário prestar socorro às naus da Índia) 8. As
embarcações vindas da Índia eram cada vez mais escassas, tendo sido as frotas
provenientes do Brasil as novas protagonistas do circuito luso-atlântico. Assim, o
arquipélago açoriano vê-se mais uma vez forçado a adaptar-se às circunstâncias, pelo
que se o seu papel como escala da carreira da Índia (sobretudo o de Angra) termina,
outro tipo de função surge no horizonte insular, o de ponto de articulação entre as duas
margens do Atlântico, passando agora a desempenhar uma parte relevante no que
concerne o comércio euro-atlântico9. O artigo “O arquipélago dos Açores como região
de fronteira” cita Guillermo Céspedes que se refere ao Atlântico como uma “nova
5
ROCHA NUNES, Gilberta [et al.] - O arquipélago dos Açores como região de fronteira.
ARQUIPÉLAGO. História. ISSN 0871-7664. Nº. 2, vols. 9-10 (2005-2006) pp. 105-140
6
QUINN, D. B. (1979). England and the Azores 1581-1582: Three letters. “Série Separatas, CXXIII”,
Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, Centro de Estudos de Cartografia Antiga.;
SCAMMELL, G. V. (1987). “The English in the Atlantic Islands c. 1450-1650”, en Vice-Almirante A.
Teixeira da Mota: In Memoriam. Lisboa: Academia de Marinha-IICT, vol. I, pp. 329-352.
7
INGLESES NOS AÇORES (ATÉ AO SÉCULO XVIII). Enciclopédia Açoriana. Disponível em:
http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/default.aspx?id=9840.
8
BPARPD, LEC, Manuscritos, 78, vol. 2, fls. 96-97 v, carta sobre os serviços de João do Canto de
Castro, Lisboa, 16 de Dezembro de 1666.
fronteira”10, sendo um indicador dos vários papéis assumidos pelo oceano em questão e,
mais especificamente, os territórios insulares nele localizados.

Apesar da permanência do seu valor enquanto pólo político administrativo, a verdade é


que com a “ocidentalização” do império português e a secundarização da Rota do Cabo,
a Terceira perdeu parte da projeção que tivera no século XVI e primeiras décadas do
XVII no que toca ao setor económico. Tomavam agora as rédeas do comércio o porto de
Ponta Delgada nas relações comerciais com o reino, a Madeira e Mazagão e, por outro
lado, o porto da Horta destacara-se por ser um ponto de cruzamento entre os territórios
ingleses e as Américas, visto que o comércio com as colónias inglesas ganhara
importância desde finais do séc. XVII. Na junta convocada em 1670 para proporem a
elevação da vila da Horta a cidade, um dos argumentos apresentados para esse efeito foi
a quantidade considerável de navios no porto e a significativa frequência com que ali
vinham fazer negócio11. Nas décadas que se seguiram, a preponderância do Faial em
relação a São Miguel e Terceira nesse âmbito resultou da exportação do vinho e da
aguardente do Pico, graças ao papel que a Horta desempenhou como empório do
comércio inglês.

Resultado de movimentos migratórios, da afluência de gentes e mercadorias dos mais


variados lugares, seja como periferia do reino português e, consequentemente, sua
fronteira ou como território individual, os Açores tiveram um papel multifacetado. Este
papel afetou a dinâmica populacional e a evolução socioeconómica, tanto da própria
região, como daquelas que com ela entravam em contacto.

O ARQUIPÉLAGO AÇORIANO COMO PÓLO DE ATRAÇÃO DE


MERCADOS CONTINENTAIS E INSULARES

9
Cf. BPARPD, Variedades Açorianas, de José de Torres, Série Manuscrita, vol. XIII, “Memorias
para a Historia Açoriana”, fls. 138-159, maxime fl. 147.
10
Guillermo Céspedes del Castillo, “Raíces peninsulares y asentamiento indiano: los hombres de las fronteras”, in
Francisco de Solano (coord.), Proceso histórico al conquistador, “Alianza Universidad, 544”, Madrid, Alianza
Editorial-Sociedad Quinto Centenario, 1988, pp. 37-50, maxime pp. 44-45
11
Cf. Biblioteca Pública e Arquivo Regional João José da Graça (BPARJJG), Horta, Arquivo da Câmara
da Horta (ACH), Livros do Registo, Livro 6 (1665-1687), fls. 41-42 v. A importância desta junta foi
devidamente assinalada por António Lourenço da Silveira Macedo, que a referiu na sua narrativa e a
transcreveu, emborasem as assinaturas. MACEDO (1871), vol. I, pp. 182 e 414-415, “Documento N.º
37”.
No mundo dos comerciantes dos sécs. XVI e XVII, as ligações marítimas ocupavam um
lugar primordial. Então, não é de admirar que grande parte dos seus esforços fossem de
encontro a um melhoramento da rentabilidade dos transportes, visto estar diretamente
relacionada com a margem de lucro que iriam obter. Esta preocupação originava uma
vasta gama de soluções no intuito de encontrar as rotas mais seguras, as melhores
embarcações e condições de efetuar as transações mercantis.

A posição dos Açores nesta conjuntura é particular como nos alerta Maria Olímpia da
Rocha Gil no seu artigo “Açores – comércio e comunicações nos séculos XVI e XVII”.
Esta particularidade advém do facto de que para além de ser um entreposto das duas
margens do Atlântico, o arquipélago açoriano também era capaz de assumir
modalidades locais de negócio, fazendo parte ou não das redes já existentes. Isto leva-
nos a concluir que eram várias as formas de atuação dos mercadores na região de acordo
com os interesses de cada um, apesar de não podermos definir concretamente quais
devido à sua ambiguidade, resultado dos fatores anteriormente mencionados (como aliás
nos alerta a autora do artigo acima referido).

O mesmo artigo possui um excerto que sumariza esta situação de modo pertinente:
“Veremos assim exemplificadas nas ilhas açorianas, quer as formas mais antiquadas de
atuação (…), quer os processos mais evoluídos que o sector mercantil foi elaborando no
decurso desta fase do expansionismo europeu. Como objectivo imediato: a protecção
dos investimentos em barcos ou mercadorias, a defesa do grande ou pequeno tráfico, no
que diz respeito à salvaguarda das condições de transporte, utilizando o sistema de
seguros, a associação em «companhias» ou os contratos de frete de embarcações.”.
Existe no final deste artigo um vasto apêndice documental com vários tipos de contratos
estabelecidos na época.

Algo a ter em conta no processo de povoamento e colonização efetuado nas ilhas é a


rapidez com que o mesmo se desenrola, tendo em conta todos os obstáculos que se
impunham.12 E, curiosamente, desde a sua descoberta existe um interesse comercial por
parte dos mercadores. Este interesse é resultado de certos privilégios concedidos pela
Coroa em relação aos territórios e ao investimento de várias partes nas ilhas. Os
produtos explorados ou introduzidos no arquipélago tinham um objetivo universal – a

12
GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e a nova economia de mercado (séculos XVI-XVII).
ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº. 3 (1981) pp. 371-425
comercialização – pelo que todo o investimento no desbravamento e exploração do
território insular tinha em vista a obtenção de artigos valorizáveis numa economia de
mercado em expansão.

Entre a primeira fase de produção e a venda final da mercadoria nos vários mercados
existentes, intervinham proprietários, comerciantes e mercadores de todos os géneros. A
valorização dos produtos residia no investimento, na qualidade do trabalho efetuado
aquando da produção, no armazenamento, nas taxas de transporte e, claro, os custos da
mão-de-obra necessária para todo o processo. Tudo isto aflui na construção de
estruturas empresariais que passam a ser parte do contexto insular, sendo que todo o
capital comercial movimentado nas ilhas exigia uma expansão e diversificação de áreas
comerciais e mercados, embora certas estruturas tradicionais persistissem.

No artigo previamente citado é descrito o papel do capitão do donatário. Uma capitania


consistia num determinado território ultramarino doado pela Coroa a um particular (o
capitão do donatário) que tinha a função de povoar e explorar economicamente esse
mesmo território.13 Como privilégios, tinha o monopólio de vários produtos e meios de
produção, o poder de administrar a justiça (exceto as penas mais graves) e efetuava a
cobrança de impostos. A situação de capitão do donatário é um exemplar da resistência
das estruturas mais tradicionais, ainda que inseridas numa economia mercantilista, visto
que se assemelha em vários aspetos com o regime senhorial.

A carta de sesmaria era o documento elaborado pelo capitão do donatário para


comprovar a doação de terras a todos os colonos que lho pedissem, visto ser esta uma
das suas obrigações. “Entre os indivíduos que se foram apresentando a pedir terras em
sesmaria encontravam-se fidalgos, escuderios, capitães e outros que poderiam supor-se
membros de uma certa classe média dispondo de algum capital, crédito ou influência.
(…) Seria justamente esta camada aquela que, em pleno século XVI, iria estar em
condições de controlar a produção de pastel, trigo, vinho, etc.” 14. Este documento era,
portanto, uma representação da transição entre o mundo medieval e moderno, sendo
eficazes para cumprir o propósito de ocupar e explorar os arquipélagos atlânticos.

13
"Capitania (ou Donataria) - Dicionário" em Só História. Virtuous Tecnologia da Informação, 2009-
2022. Disponível em: http://www.sohistoria.com.br/dicionario/palavra.php?id=17.
14
GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e a nova economia de mercado (séculos XVI-XVII).
ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº. 3 (1981) pp. 371-425
No entanto, os Açores mantiveram-se abertos às possibilidades que o aumento da
economia de mercado proporcionava, sendo que o pastel açoriano é, possivelmente, um
dos mais flagrantes exemplos deste cenário. Em 1536, D. João III mandou publicar um
“Regimento sobre ho beneficiar do pastel e eleição dos lealdadores”, que substituindo
textos anteriores, definia um conjunto de premissas que pretendiam preservar a
capacidade de concorrência do artigo nos mercados internacionais. Todavia, as fraudes
pareciam persistir algo que indica o aumento de circulação de mercadorias e de
interesses envolvidos nas negociações.15 Na década de 60, o incremento do tráfico do
pastel obrigou o governo a tomar novas medidas para a normatização da produção e
circulação do artigo. As fraudes pareciam, todavia, persistir, pois em 1566, foi enviado
pelo rei um decreto no qual se exigia a mais rigorosa fiscalização no que dizia respeito à
produção do pastel e a todas as fases respetivas da sua elaboração.

Esta preocupação por parte da Coroa torna algo evidente o facto de a fabricação do
pastel açoriano ter influência no circuito comercial desse período. O governo (e não só)
manifesta a preocupação com as fraudes, o processo de laboração e a qualidade do
produto, desejando, contudo, que este seja produzido de modo mais acelerado.
“Portanto qualidade e quantidade. Os lavradores (…) procuravam ampliar os seus lucros
por outros processos que consistiam na mistura do pastel de boa e de má qualidade
(…)”16. Esta fraude poderia não só surgir no sentido de amplificar os lucros, como é dito
no artigo, mas também em responder às necessidades de procura por parte dos mercados
nacionais ou estrangeiros. A autora do artigo aponta para três justificativas: a primeira,
obter a maior quantidade possível para venda, a segunda, evitar os impostos (é dito que
a percentagem taxada nas alfândegas era muito elevada, o que diminuía
consideravelmente os lucros de quem produzia e negociava), e a terceira, responder à
procura dos mercados.

Não obstante, uma pergunta impõe-se: se a procura era elevada, sendo que tudo aponta
para essa direção, porque não aumentar os preços? A verdade é que não há uma resposta
concreta e satisfatória para essa pergunta, sendo que M. O. da Rocha Gil conclui que

15
Não obstante estas tentativas de controle, as mais variadas fraudes ocorriam. Em 1546, João Simão de
Sousa queixava-se ao rei: “e os pastees que se despacham per juramento dos mercadores que os carregam
com que Vosa A. Oerde muita ffazenda eles as almas porque pera menos pagarem se carregam mil
quintaes juram que sam b ͨ (500)”. Arquivo dos Açores, vol. VI, Ponta Delgada, 1884, pp. 282 e sgs.
citado em: GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e a nova economia de mercado (séculos XVI-
XVII). ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº. 3 (1981) pp. 371-425
16
GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e a nova economia de mercado (séculos XVI-XVII).
ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº. 3 (1981) pp. 371-425
seria de supor que algo impedia os responsáveis pela tabulação do produto de o
fazerem, uma razão forte o bastante para desincentivar qualquer investida. Quanto ao
motivo em si, permanece um mistério. Aliás, a tendência ao longo do séc. XVII é de
diminuição dos preços, pelo que se na maior parte da primeira metade do século, o valor
é de 800 reis por quintal (a unidade de valor estabelecida), já na segunda metade
(aproximadamente em 1676, segundo a autora) o produto não passava dos 450 reis por
quintal.

Embarcações Embarcações Embarcações saídas Embarcações


entradas no inglesas entradas no do arquipélago inglesas saídas do
arquipélago arquipélago arquipélago
1620 - 39 1620 – 17 1620 - 44 1620 - 28
1640 – 22 1640 – 8 1640 - 27 1640 – 9
1669 - 13 1669 – 3 1669 - 18 1669 - 4
1674 - 28 1674 – 0 1674 – 40 1674 - 1

Os dados obtidos no artigo já acima citado revelam uma mudança do sentido do tráfego
na segunda metade do século XVII. As relações com locais como a Madeira, Lisboa e
Canárias aumentam, enquanto os negócios com os portos nórdicos (sobretudo os
ingleses) decaem. Embora o mercado açoriano tenha deixado de ser apelativo no quesito
de oferta, a verdade é que mantinha o seu interesse como ponto estratégico no circuito
transatlântico. Assim, a expansão colonial permitia que se diversificassem os negócios,
o que permitia um avolumamento dos percursos e produtos, sendo que os ingleses não
eram exceção no que toca a adotar este método. “A rarefacção dos negócios é um facto
a salientar, mas, no conjunto, os Açores mantinham-se como um mercado regular para a
colocação de produtos manufacturados de origem nórdica.”17.

É também abordado o tópico da troca desigual. A troca desigual consistia na troca entre
tecidos provenientes da Inglaterra, Holanda e França pelo pastel açoriano. Era uma troca
desigual porque efetuava-se uma transação entre um produto manufaturado (ou seja, na
sua fase final de produção) e uma matéria-prima. De 1614 a 1616, alguns documentos
são testemunho de que até o próprio governo se incluía neste tipo de sistema cambista.

17
GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e a nova economia de mercado (séculos XVI-XVII).
ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº. 3 (1981) pp. 371-425
Um exemplo disso é um conhecimento datado de 1616 que indicava a receção de
tecidos equivalentes ao valor de 2250 quintais de pastel granado, tendo sido vendidos
por ordem de João Trigueiros a Guilherme de Bus, um mercador flamengo, por 900
reis/quintal18. Nesta troca, a importância dos tecidos sobrepunha-se e mesmo que ainda
estivesse nesta fase no arranque da indústria inglesa, a verdade é que esta já tinha
impacto, sobretudo no que concerne zonas de manufaturação mais fraca, como era o
caso do arquipélago. Os efeitos a longo prazo desta “troca desigual” foi o encerramento
do “ciclo” do pastel.

O restante artigo constitui-se por um vasto conjunto de documentos que são


comprovativos das afirmações feitas pela autora ao longo da sua análise, sendo que se
iniciam com o Regimento de 1536 promulgado por D. João III e termina com um
registo de uma carta régia ao Conde de Vila Franca sobre e em favor dos Ingleses19.

Com os seus altos e baixos, as suas mudanças de centro económico, os Açores


permaneceram como um território relevante, fosse como região apelativa no sentido
comercial, fosse como ponto de escala entre diferentes portos ou até mesmo como ponto
de fixação para aqueles que tinham capacidade de controlar os seus negócios através das
ilhas. Num tópico em que foi somente abordada a face “passiva” do arquipélago, numa
perspetiva em que apenas foi tido em conta como um pólo de atração, a realidade é que
já é admissível conceber que mais que um ponto de trocas, escala e absorvente de
influências, também existia uma dimensão de resiliência e adaptação por parte do
território insular, algo de que falaremos melhor no próximo tópico.

O TERRITÓRIO INSULAR COMO AGENTE ATIVO NO MUNDO


COMERCIAL DO SÉCULO XVII

O século XVII costuma ser encarado como um período geral de depressão ou


estagnação. Contudo, tal generalização não permitiria compreender a complexidade das

18
Arquivo da Alfândega de Ponta Delgada, Livro de Registos, 1603-1638, fl. 68 citado em: GIL, Maria
Olímpia da Rocha – Os Açores e a nova economia de mercado (séculos XVI-XVII). ARQUIPÉLAGO.
Ciências Humanas: Nº. 3 (1981) pp. 371-425

19
GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e a nova economia de mercado (séculos XVI-XVII).
ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº. 3 (1981) pp. 371-425
mudanças situadas nessa época, tanto no mundo europeu como fora dele 20. Ainda assim,
existem padrões que se podem estabelecer. Um gráfico de J. Meuvret, referente aos
preços do trigo entre 1675 e 1700, coloca os Açores ao lado de La Rochelle, Barcelona
e Carpentras, sendo as semelhanças notórias21. A última parte do séc. XVII é um
período particular, pois situa-se na transição entre a “prosperidade” do séc. XVI e a
“nova prosperidade” do séc. XVIII, existindo um confronto de supremacias, o
surgimento, fim ou manutenção de impérios coloniais, etc.

Na conjuntura geral, distingue-se, segundo F. Mauro, uma fase de depressão que ocorre,
aproximadamente, entre 1670 e 1690, seguida por uma fase de crescimento que se
estende até às duas primeiras décadas do séc. XVIII 22. Em Portugal, V. M. Godinho
aborda a queda dos preços do açúcar, do tabaco e do cravo em Lisboa, a partir de
166823. Para o porto de Ponta Delgada, o autor considerou-o “solidário” ao mercado de
Lisboa, apresentando médias quinquenais para o preço do trigo de 1659 a 170824.

Assim, entre os anos 70 e 90 do séc. XVII, Portugal indica ter passado por dificuldades,
como se este período tivesse sido uma espécie de “pausa” entre o ciclo do açúcar e o
advento do ouro e a nova prosperidade já referida anteriormente. Certas explicações
lineares poderiam ser dadas para explicar estes fenómenos, mas a verdade é que a
economia portuguesa inseria-se em quadros europeus e mundiais, cujo peso das suas
relações e estratos é de complexa apreciação (a guerra, o diferente ritmo de crescimento
de cada país e a concorrência de mercados são exemplos de fatores que alteravam o
peso destas conjunturas). Há também que ter em conta as variantes regionais: aquilo que
funcionava no litoral do país, não era o mesmo que funcionava no interior, o que era
válido no Norte, não se verificava no Sul. Condicionalismos que hoje não temos
20
Carlo M. Cipolla, História Económica de la Europa pre-industrial, trad. Espanhola, Madrid, 1981, pp.
245 e sgs., de “Storia económica dell’Europa pre-industrial”, Bolonha, 1974. citado em: GIL, Maria
Olímpia da Rocha – Os Açores e o comércio atlântico nos finais do século XVII (1680-1700).
ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº especial (1983) pp. 137-204

21
J. Meuvret, Études d’Histoire Économique, Recueil d’articles, Cahiers des Annales, Paris, 1971, p. 99.
citado em: GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e o comércio atlântico nos finais do século XVII
(1680-1700). ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº especial (1983) pp. 137-204
22
GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e o comércio atlântico nos finais do século XVII (1680-
1700). ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº especial (1983) pp. 137-204
23
Vitorino Magalhães Godinho, “Portugal, as frotas do açúcar e as frotas do ouro (1670-1770)” in
Ensaios, vol. 2, Lisboa, 1968, p. 293. citado em: GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e o comércio
atlântico nos finais do século XVII (1680-1700). ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº especial
(1983) pp. 137-204
24
Id., a partir dos dados de Ernesto do Canto. citado em: GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e o
comércio atlântico nos finais do século XVII (1680-1700). ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº
especial (1983) pp. 137-204
capacidade de apreciar, como refere a autora do artigo “Os Açores e o comércio
atlântico nos finais do século XVII (1680-1700)”, visto que por toda a Europa se
observavam situações de insularidade lado a lado com regiões de relações comerciais
ativas e frequentes.

Sendo assim, qual o papel das ilhas açorianas no quadro geral apresentado? Já foi
descrita a capacidade de adaptação das mesmas às circunstâncias que lhes eram
impostas. Contudo, até que ponto os Açores foi protagonista e membro interveniente na
economia da época?

A restauração da independência de Portugal traz um novo fôlego às atividades


diplomáticas realizadas nos Açores e na Madeira, algo que se atesta nas cartas, queixas,
pedidos ou relatórios cada vez mais numerosos, principalmente nos últimos 30 anos do
séc. XVII. Exemplos do nítido interesse nos arquipélagos são cartas como as do
mercador inglês William Bolton ou relatórios como os de Jean Angel Négre ou Jean
Harriague acerca dos mesmos.

À medida que o fim do século se aproxima, as atividades destes comerciantes


aumentam. Qual terá sido a evolução da economia açoriana? Maria O. da Rocha Gil faz
um balanço entre o movimento das embarcações no porto de Ponta Delgada, os registos
dos rendimentos da feitoria e das dízimas e redízimas 25. Certos resultados saltam à vista:
há um predomínio de embarcações inglesas, tanto nas saídas quanto nas entradas, sendo
seguidas das francesas, estas últimas cada vez mais frequentes nos finais do século. O
primeiro lugar nos registos de proveniência é ocupado pelas Canárias e a Madeira. Estes
dados têm de ser, como alerta a autora, analisados com reservas, visto que vários fatores
contribuíam para corruptibilidade dos registos alfandegários. Um exemplo que
fundamenta esta desconfiança é o de os mapas de movimento de entrada e saída de
navios relegarem para segundo plano uma área que era fundamental para as ilhas: o
território brasileiro. Ainda assim, os dados apresentados devem ser analisados, desde
que inseridos num contexto adequado. Deste modo, não deixa de despertar interesse os
números relativos às Canárias e Madeira, o que nos obriga a examinar as relações
existentes entre os três arquipélagos neste período.

25
GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e o comércio atlântico nos finais do século XVII (1680-
1700). ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº especial (1983) pp. 145-149
A fragilidade do porto de Ponta Delgada perante os condicionalismos do mercado
revela-se mais significativamente no gráfico respetivo às redízimas 26 provenientes das
importações e exportações. Excetuando 1692, 1693 e 1694, anos em que há
correspondência entre o crescimento da produção e o movimento das importações e
exportações, os anos restantes não apresentam a mesma evolução. “Uma produção
abundante não tem como consequência direta uma forte exportação e vice-versa” 27,
sendo que as necessidades dos mercados e o movimento dos preços é que podem
explicar estes valores. Com efeito, a escassez de cereais em determinados anos foi
criadora de tensão durante todo o séc. XVII. A saída de cereais em anos de fraca
colheita provocava reações por parte da população local afetada, sendo que esta reações
poderiam ir de uma simples queixa até ao motim declarado.

A exportação e saída de cerais sempre provocou entrechoques de preponderâncias


registados em atas de reuniões, queixas, pedidos dirigidos ao governo de Lisboa e
também proibições e concessões por parte do mesmo. Em Maio de 1694 é emitida uma
carta régia que proíbe a saída de trigo dos Açores para fora do reino sob perna de morte,
o que nos leva a supor que teria sido um ano de más colheitas. Durante o Verão e depois
dos meses de Outubro e Novembro foram dadas permissões a determinadas
embarcações para que levassem trigo de Ponta Delgada para a Madeira, Lisboa e
Mazagão. Nos primeiros meses do ano seguinte a situação piorara e o governo
pressionava a câmara de Ponta Delgada para que fosse exercida uma fiscalização
rigorosa que impedisse as fugas para fora do reino 28. Esta ordem fora dada em
Fevereiro. No mês seguinte, já uma revolta se alastrava por toda a ilha de S. Miguel,
tendo durado mais de um mês29. A situação fora dominada em Maio por parte do conde
da Ribeira Grande, tendo recomeçado as saídas do trigo da ilha. Em Junho de 1696 era
dada, por fim, a permissão da livre transação de cereais, indicativo de que se previa um
melhor ano agrícola. Os anos que se seguiram foram de oscilações entre anos em que o

26
GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e o comércio atlântico nos finais do século XVII (1680-
1700). ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº especial (1983) p. 149
27
GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e o comércio atlântico nos finais do século XVII (1680-
1700). ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº especial (1983) pp. 137-204
28
A.D.P.D., Livro 2º. De Registo da Câmara de Ponta Delgada, fl. 255. citado em: GIL, Maria Olímpia da
Rocha – Os Açores e o comércio atlântico nos finais do século XVII (1680-1700). ARQUIPÉLAGO.
Ciências Humanas: Nº especial (1983) pp. 137-204
29
Frei Agostinho de Mont’Alverne, Crónica da Província de S. João Evangelista das lhas dos Açores, vol.
I, Ponta Delgada, 1960, pp. 437 e segs. citado em: GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e o
comércio atlântico nos finais do século XVII (1680-1700). ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº
especial (1983) pp. 137-204
comércio insular abastecia vários mercados e anos em que a saída de produtos,
nomeadamente cereais, era expressamente proibida pelas autoridades reais.

Por mais complexa que a rede mercantilista portuguesa tenha sido, a verdade é que os
Açores sempre se apresentaram como peça fundamental em qualquer cenário. Prova
disso é a instituição de companhias comerciais como a Companhia de Comércio do
Brasil (chegada em 1649), Companhia de Cacheu e a Companhia de Cabo Verde
(ambas chegadas em 1690), as quais tinham como objetivo a comercialização de
escravos30. Os monopólios constituíam outra forma de ação que tinha por objetivo
desenvolver a economia de um determinado setor. Embora estes contratos pudessem
não parecer muito apelativos à primeira vista, a realidade é que com as facilidades
concedidas pelo governo possibilitavam o ampliamento da esfera de ação dos
comerciantes e a rede de relações existente poderia ser muito maior do que aquilo que
as linhas oficiais estabelecidas pelo acordo poderiam entrever.

O tabaco também foi ganhando importância na economia portuguesa durante o reinado


de Filipe III. Os registos de livros alfandegários das ilhas revelam que o tabaco vinha do
Brasil e que os mercadores locais demonstravam interesse pelo negócio. “Tabaco do
Pará e Maranhão chegava não só a S. Miguel e à Terceira, mas também à ilha do Faial
em quantidades importantes. É o que se depreende de diversas medidas de fiscalização
emitidas pelo governo e destinadas a essa ilha.” 31. Esta situação provocou uma
reorganização da administração também no que diz respeito ao comércio do açúcar e
outras mercadorias. O tráfico estava em crescimento no porto da Horta nos finais do
século, sendo que a atuação do provedor da Fazenda João Teles da Silva foi no sentido
de contornar essa situação32. O provedor também notara que surgiam novas atividades
lucrativas com o fabrico de pipas e recipientes destinados à exportação de vinhos do
Faial e do Pico. Assim, determinou que se procedesse à cobrança de um dízimo. Tendo
sido leiloado o imposto, foi Gedeão Labat que o arrematou, mas logo se deparou com a
oposição local que o levou a fazer queixa às autoridades. A decisão final confirmava a

30
A.D.A.H., L.R.A.C.O., 1650-1700, fl. 356-358 e 445 e segs. citado em: GIL, Maria Olímpia da Rocha –
Os Açores e o comércio atlântico nos finais do século XVII (1680-1700). ARQUIPÉLAGO. Ciências
Humanas: Nº especial (1983) pp. 137-204
31
A.D.A.H., L.R.L., 1685-1703, fl. 73. citado em: GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e o
comércio atlântico nos finais do século XVII (1680-1700). ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº
especial (1983) pp. 137-204
32
AD.A.H., L.R.M., 1685-1703, fls. 66 e segs. citado em: GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e o
comércio atlântico nos finais do século XVII (1680-1700). ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº
especial (1983) pp. 137-204
cobrança do imposto, mas o modo cauteloso como as ordens são dadas indica a
preocupação para a possibilidade de uma reação hostil por parte das populações ou
mesmo uma fuga ao pagamento33.

Uma situação de reação deste tipo já tinha ocorrido anteriormente relativa ao dízimo do
inhame. Em 1691, o dízimo já tinha sido cobrado na Terceira e no Faial, estando
previsto que na ilha de S. Jorge o lucro seria superior ao do Faial 34. Contudo, a reação
da população face à cobrança do imposto não foi pacífica e entre 1691 a 1694 a situação
deteriorou-se ao ponto de chegar-se a um confronto aberto. Estava a chegar o Inverno e
o ano tinha sido mau, a escassez e a fome abundavam. Não surpreende que o estado
fosse de tensão e hostilidade. Apenas em 1695 a situação é resolvida, com a ação do
desembargador de Lisboa que manobrou tropas a partir de Angra e da Horta.

Outro exemplo de reação das ilhas é observável na reação dos habitantes da Terceira
quando, em 1640, o governo continental tenta instaurar um governo geral na ilha 35.
Algumas reuniões e anos depois, D. João IV emitia finalmente um alvará, datado de
1654, em que declarava a sua desistência quanto à implementação desse mencionado
governo geral. Em 1670 a câmara de Ponta Delgada envia um protesto ao governo
lisboeta quanto aos novos impostos estabelecidos.

A situação mais significativa deste papel ativo e reacionário do arquipélago apresenta-


se, possivelmente, em 1680, quando em Angra, diversos homens de negócios redigiram
um texto em seu nome e de outros comerciantes para protestar contra o imposto dos 3%
do Consulado e, no plano jurídico, comprovaram a inaplicabilidade do imposto no
território insular. A sentença foi dada a seu favor no ano seguinte, o que revela a força
dos argumentos utilizados36.

Ao longo do texto, uma expressão particular chama a atenção: os homens de negócios


referem-se às ilhas como “fronteiras por mar”. Supõe-se assim que estes comerciantes

33
Ordens de 25-XI-1693 e de 4-XII-1693; A.D.A.H., L.R.M., 1685-1703, fls, 142 e segs. citado em: GIL,
Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e o comércio atlântico nos finais do século XVII (1680-1700).
ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº especial (1983) pp. 137-204
34
A.D.A.H., L.R.M., 1685-1703, fls. 116. citado em: GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e o
comércio atlântico nos finais do século XVII (1680-1700). ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº
especial (1983) pp. 137-204
35
A.Ferreira Drummond, Anais da Ilha Terceira, vol. II, Angra do Heroísmo, 1856, pp. 335 e segs, citado
em: GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e o comércio atlântico nos finais do século XVII (1680-
1700). ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº especial (1983) pp. 137-204
36
A.D.A.H., L.R.A.C.O., 1650-1700., fls. 358 e segs. citado em: GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os
Açores e o comércio atlântico nos finais do século XVII (1680-1700). ARQUIPÉLAGO. Ciências
Humanas: Nº especial (1983) pp. 137-204
compreendiam a ligação vital entre as ilhas e o mar e a importância do seu papel, numa
relação de fronteira que se expande e nunca de uma muralha isoladora. O mar é,
simultaneamente, um ponto frágil nesta articulação, mas é também ele que torna
possível a prolongação do espaço insular até onde for possível navegar.

Mais do que a ligação por mar, existe também a articulação entre os espaços insulares
entre si, sendo este o caso do triângulo formado pelos Açores, Madeira e Canárias. A
localização destes arquipélagos fomentou as relações frequentes entre si, comerciais ou
até mesmo de entreajuda. “Era habitual os Açores abastecerem com trigo a ilha da
Madeira; os mercadores estabelecidos no Funchal (…) mantinham activas relações com
os seus congéneres açorianos. Os mapas de entrada e saída de barcos do porto de Ponta
Delgada indicam que o movimento comercial entre os Açores e as Canárias era bastante
importante nos finais do século XVII, precisamente na ocasião em que a saída dos
vinhos canários podia deparar com dificuldades.”37.

Em suma, depois de ter-se assumido como plataforma de suporte à expansão


ultramarina, o arquipélago açoriano revelou no séc. XVII a sua capacidade como centro
de produção de artigos importantes no circuito internacional (pastel, trigo, vinho, etc.),
reagindo de modo significativo às pressões e aquilo que consideravam ser injustiças.
Este território não se satisfez com o seu posto de ponto de troca, sendo que foram, ao
longo dos anos, aprendendo a navegar com agilidade dentro dos mercados compatíveis
aos seus interesses. Assim, estas ilhas tiveram a aptidão de adaptarem-se às
circunstâncias que lhes eram impostas, mas também de traçarem as suas próprias linhas
de ação dentro do espaço em que se inseriam, que era muito maior do que aquele que
poderia parecer à primeira vista.

CONCLUSÃO

Se as ilhas açorianas surgiam, a vários títulos, como um espaço marginal, uma periferia
da economia-mundo europeia, paradoxalmente afirmavam-se como escala fundamental
no sistema de rotas oceânicas. Era uma plataforma giratória que tanto se deixava
influenciar por outros intervenientes, como tomava as rédeas do seu próprio destino e
reagia de acordo com as suas necessidades.

37
GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e o comércio atlântico nos finais do século XVII (1680-
1700). ARQUIPÉLAGO. Ciências Humanas: Nº especial (1983) pp. 137-204
Assumiram-se como centro produtor de diferentes artigos, ao mesmo tempo que
mantinham o seu papel de escala no traçado das rotas atlânticas. Devido à sua
localização geográfica, que se revelava vital, o arquipélago desempenhou um papel de
relevo e muitas vezes foi “vítima” de um protagonismo forçado, como vimos nas
situações de escassez em que ainda assim eram obrigados a abastecer outros mercados
ou até mesmo em cenários de guerra.

Relativamente ao século XVII, o arquipélago dos Açores começa a revelar na segunda


metade da centúria que não podia ser encarado apenas como um simples ponto de troca
e escala. O território insular deu provas que era capaz de mais e que também ele podia
ser uma entidade apta a construir o seu próprio espaço e ter direito ao seu próprio lugar
na imensa pluralidade do mundo que o Atlântico tornou possível.

Nos séculos seguintes, em conjunturas de paz ou de guerra, os Açores continuariam a


exercer um papel que bem conheciam, demonstrando em mais de uma ocasião a
relevância da sua posição no interior do sistema euro-atlântico e ilustrando a
permanência da sua importância na história.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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- GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e a nova economia de mercado (séculos


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- GIL, Maria Olímpia da Rocha – Os Açores e o comércio atlântico nos finais do século
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204

- LEITE, José Guilherme Reis – A historiografia de Maria Olímpia da Rocha Gil.


ARQUIPÉLAGO. História. ISSN 0871-7664. Nº. 2, vol. 1 (1995), pp. 9-18

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