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A Comunhão gera a Vida

De coração a coração o Pe. Feliz da Costa Martins, missionário Comboniano, fala-nos da vida no Sudão e dos sinais
de Deus no meio do seu povo. Encontramos no seu testemunhos sementes desta vida que brota da comunhão com
Deus e entre os homens e mulheres no Sudão. O contrário, a divisão gera a morte, está igualmente presente neste
extracto do seu testemunho.

A lição de Omar

Tenho muito boas recordações das tuas gentes, querido Darfur. Que será feito do meu amigo Omar, aquele jovem
agricultor, filho da linda e simpática Khadija? Viviam em Kutum e aí tinham umas quantas dunas. Depois de um dia de
chuva intensa – a rara mas a maior bênção de Deus no deserto –, ele levou-me com a família para a sementeira do
milho. Eu nem imaginava que as dunas pudessem armazenar água suficiente para fazer germinar as sementes e
alimentar os pés. Mas o Omar, esperançado, disse-me que, se Deus abençoasse uma segunda vez aquelas areias,
haveria milho suficiente para a sua família, e também para mim e algumas famílias muito pobres. Apesar da sua
pobreza, Omar e os seus ajudavam muita gente, independentemente da tribo ou religião a que pertencessem.
A segunda bênção não veio e o milho não chegou a dar espigas. Foi assim que este amigo muçulmano que nunca
esquecerei me deu mais uma lição: apesar de não ter havido colheita, mobilizou muçulmanos e cristãos para
socorrerem as famílias que pensava ajudar, e que de outra forma estariam condenadas a passar fome ou mesmo a
morrer.
Mas nem todos os que se chamam Omar partilham esta fé que se traduz em obras. Ele próprio não percebia como é
que o seu homólogo de Cartum, o Presidente do Sudão, que detinha tanto poder, não fazia nada para ajudar quem
mais precisava e, pelo contrário, era responsável pela morte de tantos inocentes.
Enquanto ouvia o meu amigo Omar, relembrava a tomada de posse do Governo de Omar el Bashir. Foi no ano de
1989, na sequência de um golpe de Estado. Encontrava-me em Cartum e ouvi-o gritar bem alto: «Eu venho das
trincheiras, a minha cor é verde (esperança e islão) e trago comigo o projecto de paz para o Sudão.» Os aplausos
ressoaram por todos os recantos do país. Porém, quanto ao projecto de paz, só recentemente começou a ser
esboçado, depois de muita pressão exercida pela comunidade internacional. E justamente quando parecia desenhar-
se um acordo, as atrocidades praticadas no Darfur pelas milícias armadas por Cartum (os janjaweed) vieram pôr em
causa todo o processo. Entretanto, a tua população já suportou a morte de dezenas de milhares e a deslocação
forçada de mais de um milhão.

A fé do sargento

As milícias de Omar el Bashir, os janjawid, não vos dão tréguas. Os interesses do petróleo saltam à vista. Mas eu
tenho uma última pergunta a fazer-te. Diz-me, por favor: consegues localizar o meu amigo Paulino Matien, com a sua
mulher e os seus sete filhos? E que notícias me dás dos 11 familiares que ele conseguiu abrigar no seu pátio –
construindo barracas com sacos velhos e farrapos –, quando chegaram, fugidos dos horrores da guerra no Sul, mais
mortos do que vivos?
Paulino era um sargento que lutava para que todos pudessem sobreviver, mas não descurava a educação cristã da
sua tão alargada família. Lembras-te daquele domingo em que o capitão o foi procurar à igreja de El Fasher para que
fosse com os seus subalternos responder a uma emergência da guerrilha? E lembras-te da sua resposta? Eu lembro-
me: «Deus falou-me agora mesmo, através da leitura do Evangelho. E disse-me que eu devo obedecer antes a Ele do
que aos homens.» Lembro-me também da calma com que o capitão replicou, perguntando-lhe: «Talvez tenhas
razão... Posso rezar convosco aqui na vossa igreja, mesmo sendo muçulmano?» E da presença de espírito com que
Paulino lhe deu a resposta: «Claro que sim; e nem é preciso descalçares as botas, como na mesquita.»
Depois de uns momentos de oração sob o olhar desconfiado do resto dos fiéis, os dois desapareceram. Para onde?
Para obedecer a Deus ou aos homens? ... Mistérios do Sudão de ontem que são os teus dolorosos mistérios de hoje,
meu querido Darfur. A tua dor é a minha. Os teus filhos são meus irmãos. Não perco a esperança de que, num dia não
muito longínquo, os homens hão-de obedecer mais a Deus do que à crueldade dos janjawid ou ao poder do petróleo.

Ps. Lê todo o artigo do Pe. Feliz na Além-Mar de Setembro de 2004 e faz tu mesmo a experiência da comunhão que
gera a vida, na tua escola, na tua paróquia, na tua família.

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