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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
MESTRADO EM GEOGRAFIA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO

A GEOGRAFIA ENTRE OS KADIWÉU

José Luiz de Souza

Belo Horizonte

2005
2

José Luiz de Souza

A GEOGRAFIA ENTRE OS KADIWÉU

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Geografia, Mestrado em
Geografia, do Instituto de Geociências da
Universidade Federal de Minas Gerais, como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Geografia.

Orientador: Prof. Dr. Cássio Eduardo Viana


Hissa

Belo Horizonte

Instituto de Geociências da UFMG

2005
3

Belo Horizonte, 20 de abril de 2005


4

S729g Souza, José Luiz de


2005 A geografia entre os Kadiwéu [manuscrito] / José Luiz de
Souza – 2005.
105 f. : il., mapas, fotos

Orientador: Cássio Eduardo Viana Hissa.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas


Gerais, Departamento de Geografia.
Inclui bibliografia.

1. Índio Kadiwéu - Teses. 2. Índios da América do Sul -


Educação - Teses. 3. Conhecimento científico - Teses. 4.
Transdisciplinaridade - Teses. 5. Geografia - Teses. I. Hissa,
Cássio Eduardo Viana. II. Universidade Federal de Minas Gerais,
Departamento de Geografia. III.Título.

CDU: 397(=98) (815.1)

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carta para Creative Commons, 171 Second Street, Suite 300, San
Francisco, California 94105, USA.
5

Aos meus amados pais, Possidônio e


Antonia, que sempre, em sua simplicidade e
amor, me incentivaram a ir à luta. Mesmo
sem compreender ao certo o que viria a ser
um mestrado e por que um filho tinha tanto
o que estudar. Com todo o amor desta vida, é
para vocês que dedico este fruto de meu
trabalho.
6

Agradecimentos

Devolvo-lhes, nestas poucas linhas, todo o carinho e a atenção que me dispensaram neste
caminho. Jornada feita de vitórias e de crescimento intelectual, mas, também, de cansaço e desânimo.
Foi nestas últimas horas que seu apoio me foi mais caro!
Ao Professor e amigo Cássio, que confiou em meu potencial e que, através de nossa trajetória
de mais de quatro anos juntos, reconheceu qualidades necessárias para que pudéssemos realizar um
belíssimo trabalho. Obrigado pelo carinho, pela cumplicidade e pelo amor filial e, também, por dividir
sua casa e sua família comigo. Sempre será minha referência amiga, um norte para mim. Assim, receba
o muitíssimo obrigado do Izé!
À Mara, minha revisora, que esteve sempre atenta ao meu texto, permitindo que o leitor
tivesse uma leitura mais clara e precisa, mantendo minhas referências de acordo com as normas. Além
disso, mais que revisora, tornou-se uma amiga, transformando meus momentos de angústia em
momentos de esperança. Obrigado pela compreensão, desculpe-me pelo trabalho dado.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pelo
investimento à pesquisa e pelo apoio aos pesquisadores através do Programa de Fomento à Pós-
graduação – PROF.
Ao Colegiado de Pós-Graduação de Geografia do Instituto de Geociências da Universidade
Federal de Minas Gerais, através dos Coordenadores Heloísa Soares de Moura Costa e Geraldo Magela
Costa, e, também, à sua Secretaria eficiente, através da Paula, da Noeli e das estagiárias, que sempre
compreenderam a falta de tempo e a urgência do pós-graduando. Sem vocês para organizar-nos, ficaria
muito mais difícil.
Ao Giovani, que com seu carinho e atenção, foi peça importante para que eu pudesse realizar
o mestrado. Se fôssemos questionar a validade de nossas discussões e broncas, a pesquisa pronta já
pode ser compreendida como resposta. Muitíssimo obrigado. À Giani, companheira de aldeia, que
segurou grandes e difíceis barras, devolvo-lhe todo o sacrifício em forma de uma pesquisa pronta.
Porém, se o espírito necessita de energia trazida pela presença do Jô, da determinação da Giani, o
corpo necessita de alimento preparado, com carinho, devoção e embalado ao som das rezas, pela Dona
Gregória, que, muitas vezes no papel de mãe, cuidava de minhas gripes e resfriados trazendo-me os
seus carinhos na forma de chás. Obrigado a vocês! Que Deus lhes abençoe e lhes proteja! Vocês são
muito caros para mim! Enfim, termina-se a tal “tese”.
7

Às minhas queridas irmãs Cida, Gorete, Márcia e Marilene, aos meus sobrinhos e cunhados,
segue este meu trabalho. Que mais esta etapa vencida possa servir de incentivo aos sonhos e projetos
que esperam por um caminho a ser trilhado. Com trabalho, tudo é possível!
Aos amigos e companheiros da turma de 2003. Às vezes torna-se imprescindível conversar
com os vivem as mesmas angústias. Embora seja igualmente importante mudar o rumo da prosa para
que possamos nos distanciar dos trabalhos. Muitos foram os companheiros e companheiras com os
quais pude contar nesses momentos. Em especial:
À querida Mônica Campolina Diniz Peixoto, que me proporcionou conversas deliciosas em
nossos encontros e passeios. À Fabiana Bernardes e seu marido Renato que, além da cumplicidade,
carinhosamente me ofereceram um delicioso banquete. Ao Vero, com quem pude compreender um
pouco mais sobre os atingidos, sobre sociologia e sobre a vida. À companheira de orientação Janete
Regina de Oliveira e seu marido Carlinhos, que me abrigaram em sua casa em Belo Horizonte nos
momentos em que estava em trânsito, além, é claro, dos momentos em que se precisava ouvir e ser
ouvido. À querida Mariana Lacerda que, mesmo na correria, tinha um sorriso a oferecer a todos. Saiba
que seus sorrisos contagiaram os meus dias com uma ótima energia. O desencontro é inevitável,
entretanto, a imagem que perdura é a da amizade que se fortalece a cada reencontro. O meu carinho e
respeito a todos aqueles com quem tive a feliz oportunidade de ser companheiro na fase de conclusão
de créditos e que, de vez em quando, conversávamos durante os intervalos regados a café e a pãozinho
de queijo mineiro.
À companheira de sala Maria Luiza Grossi Araújo e aos professores e professoras Heloísa
Soares de Moura Costa, Márcia Maria Duarte dos Santos, Roberto Célio Valadão, Alexandre Diniz,
José Antônio de Souza Deus, pelos momentos de aprendizagem descontraídos nas salas de aula do
IGC.
Um agradecimento especial aos estudantes e professores Kadiwéu da Escola Municipal
Indígena “Ejiwajegi” – Pólo, que me cativaram e, também, permitiram-me aprender com seus
percalços. Aos Kadiwéu, que “me desasnaram” e com quem pude compreender que os índios podem
contribuir com a sociedade não-índia, muito mais do que eles imaginam.
Algumas instituições, também, merecem destaque por considerá-las parceiras nesta idéia: a
Prefeitura Municipal de Porto Murtinho, através da Secretaria Municipal de Educação, Esporte e Lazer,
e à Fundação Nacional do Índio que permitiu minha permanência na Reserva Indígena Kadiwéu, por
acreditar na seriedade do trabalho ali desenvolvido.
À Professora Vânia Rubia Farias Vlach que, mesmo à distância e, também, nos encontros
científicos, sempre me incentivou, sem cobranças, só com palavras carinhosas dizendo para que eu não
esmorecesse.
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RESUMO

O processo de inserção da geografia entre os índios Kadiwéu, que vivem na Reserva


Indígena Kadiwéu, no município de Porto Murtinho, Estado de Mato Grosso do Sul,
motiva um conjunto de questionamentos. Em uma situação de contato entre culturas
diferentes — entre saberes distintos —, a ciência que se ensina procura se organizar nas
escolas, para que aproximações entre os saberes possam se efetuar. A sociedade Kadiwéu
pode, também, por diversas razões, ser compreendida como aquela que se deixou dominar
para sobreviver, mas, além disso, transformou, em algumas circunstâncias, nos seus
interiores, a cultura estrangeira. A partir de uma reflexão sobre a natureza do
conhecimento científico e a natureza do mito — aqui representado pelo saber indígena —,
analisam-se as possibilidades de encontros e desencontros entre a ciência e o saber
indígena. Apresenta-se um pequeno histórico da inserção da escola tradicional imposta às
comunidades indígenas e uma reflexão acerca do processo de integração a que são
submetidas essas comunidades. Analisa-se a definição de geografia no Referencial
Curricular Nacional para as Escolas Indígenas — RCNEI. Busca-se compreender, através
dos estudos realizados pela antropologia, os conceitos de aculturação, assimilação e
transfiguração étnica, a fim de que se possa discutir a atual situação dos índios Kadiwéu
frente à inserção do conhecimento científico, estrangeiro no lugar indígena Kadiwéu.
Questiona-se a existência de uma geografia indígena, originária da sociedade Kadiwéu,
como afirma o RCNEI. Apresentam-se depoimentos de índios Kadiwéu para que se possa
avaliar sua compreensão a respeito da geografia e a absorção dessa ciência em suas vidas.
Discute-se, ainda, a transformação da ciência, através de referências mais libertárias, para
que as esperadas trocas entre os saberes geográfico e indígena possam se desenvolver, sob
a referência da transdisciplinaridade.

Palavras-chaves: índios Kadiwéu; geografia; Referencial Curricular Nacional para as


Escolas Indígenas; conhecimento científico; transdisciplinaridade.
9

ABSTRACT

The process of geography insertion among the Kadiwéu Indians, who live in the Kadiwéu
Indian Reserve, in Porto Murtinho town, in Mato Grosso do Sul State, has motivated a set
of questionings. In a situation of different cultures in contact – among different knowledge
–, the science which is taught aims to organize itself in the schools, in order to approximate
the distinct knowledge. The Kadiwéu society can also be understood, for several reasons,
as the one that permitted itself to be dominated to guarantee its survival, however, it also
changed, in some way, the inner foreign culture. After considering the scientific
knowledge and myth nature – here it is represented by the Indian knowing –, it was
analyzed the possibilities of suitability and unsuitability between the science and the Indian
knowledge. It is presented a brief history of the traditional school insertion imposed to the
Indian communities and a reflection about the integration process, which involves these
communities. It is analyzed the definition of geography in the National Curricular
Referential to the Indian Schools (Referencial Curricular Nacional para as Escolas
Indígenas – RCNEI). It is intended to understand, based on the studies developed by the
anthropology, the concepts of acculturation, assimilation and ethnic transfiguration, with
the purpose of discussing current situation of Kadiwéu Indians facing the insertion of the
scientific knowledge, foreign in the Indian Kadiwéu place. It is called into question the
existence of an Indian geography that is originated from the Kadiwéu society, as it is
affirmed by RCNEI. It is presented some testimonies of Kadiwéu Indians in order to
evaluate their comprehension about the geography and the absorption of this science in
their lives. It is also discussed the transformation of the science, through more libertarian
references, so that the wished changes between the geographic and Indian knowledge can
be developed, under the transdiciplinarity reference.

Key words Kadiwéu Indians; geography; National Curricular Referential to the Indian
Schools; scientific knowledge; transdiciplinarity.
10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................................... 10

1. O SABER CIENTÍFICO ENTRE OS SABERES................................................................................ 26


1.1. O CONHECIMENTO CIENTÍFICO: REFLEXÕES SOBRE ALGUMAS CARACTERÍSTICAS .......................... 30
1.2. A NATUREZA DO MITO NAS CULTURAS PRIMITIVAS ................................................................................. 36
1.3. SUBTERRÂNEOS DA CULTURA KADIWÉU: HISTÓRIAS, MITOS E SABERES ............................................ 39

2. A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA E O REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL PARA AS


ESCOLAS INDÍGENAS (RCNEI) ........................................................................................................................ 50
2.1. AS CARACTERÍSTICAS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL: FOCALIZANDO
PERÍODOS DA HISTÓRIA ........................................................................................................................................ 52
2.1.1. Colônia e Império: a Educação Escolar Indígena ................................................................................... 55
2.1.2. A República e a Educação Escolar Indígena ........................................................................................... 60
2.2. INDÍGENAS, ATORES E LEGISLAÇÃO ........................................................................................................... 68
2.3. REFLEXÕES SOBRE O REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL PARA AS ESCOLAS INDÍGENAS ...... 71
2.3.1. A geografia no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas ........................................ 74

3. A GEOGRAFIA ENTRE OS KADIWÉU ........................................................................................................... 81


3.1. ACULTURAÇÃO, ASSIMILAÇÃO E INTEGRAÇÃO: A INSERÇÃO DE TECNOLOGIAS CIENTÍFICAS NO
LUGAR INDÍGENA KADIWÉU ............................................................................................................................... 84
3.1.1. Especificidades da cultura Kadiwéu: vontade de beleza e cerâmica .......................................................... 91
3.2. A GEOGRAFIA ENTRE OS KADIWÉU ........................................................................................................... 95
3.2.1. Interpretações complementares sobre a inserção da geografia na sociedade Kadiwéu .................... 104

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................................................... 114

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................................................... 119

ANEXOS ................................................................................................................................................................... 126


11

[...] E DALI HOUVEMOS VISTA DE HOMENS QUE


ANDAVAM PELA PRAIA, OBRA DE 7 OU 8,
SEGUNDO OS NAVIOS PEQUENOS DISSERAM POR
CHEGAREM PRIMEIRO. [...] PARDOS, TODOS NUS,
SEM NENHUMA COISA QUE LHES COBRISSE SUAS
VERGONHAS; TRAZIAM ARCOS NAS MÃOS E SUAS
SETAS; VINHAM TODOS RIJOS PARA O BATEL E
NICOLAO COELHO LHES FEZ SINAL QUE
PUSESSEM OS ARCOS, E ELES OS PUSERAM. ALI
NÃO PÔDE DELES HAVER FALA NEM
ENTENDIMENTO QUE APROVEITASSE, PELO MAR
QUEBRAR NA COSTA [...] (PERO VAZ DE
CAMINHA).
12

INTRODUÇÃO

No primeiro contato com os índios brasileiros, em 22 de abril de 1500, os


portugueses estabeleceram a comunicação entre não-índios e índios.1 Trocaram presentes,
na esperança de que os objetivos de Portugal não fossem, de certa forma, prejudicados. Os
tempos mudaram. Hoje, os descobrimentos são outros. Os índios encontrados na praia
pelos portugueses já não existem mais. O contato modificou-os e, ainda, os modifica. Os
não-índios, também, já não são os mesmos diante de uma cultura que, progressivamente, se
transformou.
A aproximação entre índios e não-índios, na contemporaneidade, se dá de outra
forma. A sociedade moderna, com tecnologia e conhecimento acumulados, se coloca a
serviço das populações indígenas. De fato, a sociedade moderna absorve a cultura indígena
ao longo da história. Mas, como tal absorção pode ser avaliada? Qual é a sua natureza? É
possível compreender essa aproximação como resgate de dívidas por anos de exploração e
extermínio de populações indígenas. No entanto, na aproximação pode estar implícito um
novo formato de subserviência, de novas formas de conflito.
A aproximação entre índios e não índios pode, também, dar origem a novas formas
de produção do saber, utilizando-se de métodos alternativos. Isso significa que, no nível da
disseminação do saber, algumas modificações ocorreram e seria necessário um esforço
para compreender as repercussões do processo nas sociedades indígenas. Pode-se, assim,
pensar na educação como um dos importantes instrumentos do processo de integração. Em
uma situação de contato entre culturas diferentes — entre saberes distintos —, a ciência
que se ensina procura se organizar, nas escolas, para que as aproximações possam se
efetivar. Entretanto, a ciência é pretensiosa e o rigor dos métodos utilizados por ela
representa um obstáculo aos diversos conhecimentos assinalados como tradicionais: o
saber indígena é um deles.

1 Na presente pesquisa adotou-se o uso do termo não-índio em substituição à expressão homem branco. A
substituição reflete o caráter que se pretende imprimir à diferenciação dos conceitos. Nas sociedades
indígenas, existem uniões matrimoniais entre índios e não-índios. Diante disso, não é mais possível afirmar
que um índio seja mesmo índio devido suas características físicas, ou seja, o fenótipo, visto que já não é base
segura para se compreender, de acordo com a antropologia, como se caracterizaria um indivíduo índio. Se o
fator cor da pele não satisfaz, então, faz-se necessária a diferenciação através de termos/conceitos que, na
tentativa de uma adequação na atualidade, “classificaria”, embora não resolveria a questão, os que pertencem
a uma sociedade indígena como índios e, por outro lado, os que pertencem à outra sociedade como não-
índios.
13

Alternativas de integração sempre estiveram presentes. Na história do Brasil


podem-se conferir as diversas formas de tentativas de integração dos índios à sociedade
“civilizada”. A imagem do índio como um ser que não possui características humanas, a
não ser o próprio corpo de “bons narizes”, foi paulatinamente trocada pela imagem de
“gentios” que necessitavam serem salvos. Na Carta ao Rei Dom Manuel, o autor, Pero Vaz
de Caminha, oferece uma sugestão:

[...] e em tal maneira é graciosa que querendo-a aproveitar, dar-se-á nela


tudo por bem das águas que tem; porém, o melhor fruto que nela se pode
fazer me parece que será salvar esta gente e esta deve ser a principal
semente [...]; e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber,
acrescentamento da nossa santa fé (FERRAZ, 2002, p. 69) .

Uma das maneiras utilizadas para integrar o índio à sociedade foi através da
religião. A prática desse “acrescentamento” foi aceita. A partir de trabalhos que serviram
às várias instituições que tinham como objetivo a profissão da fé, tanto católica como
protestante, muitas sociedades se perderam ou observaram profundas alterações em sua
tradição, principalmente no que se refere à língua indígena. Não se pode negar a existência
de instituições que, mesmo de caráter religioso, ao serem expulsas de áreas indígenas,
legaram ao idioma, antes com características exclusivamente orais, sua versão escrita.
Hoje, as sociedades indígenas que passaram por esse processo de estudos lingüísticos
procuram aproveitar a língua escrita para produzirem livros que apresentam vários
aspectos de suas tradições.
Posteriormente, outra maneira encontrada para integrar os índios foi através da
instituição escolar e, com ela, prossegue-se o desmantelamento da tradição original. Em
um processo exógeno, a escola procurou se enraizar, ainda nos moldes e estruturas
construídos desde a chegada dos padres catequizadores. As mudanças sofridas pela
sociedade moderna chegam às aldeias através da escola. Em direção contrária a essa escola
para os índios, surgiram, nesse contexto de imposição de valores culturais, os movimentos
das organizações indígenas alegando que a única contribuição dessa escola é acelerar o
processo de ratificação do desmantelamento das tradições da cultura indígena.
Diante disso, uma nova proposta de escola surge: a Educação Escolar Indígena —
superando os modelos de escola que foram/são transportados para as aldeias. O novo desta
escola estaria na forma como o conhecimento científico aborda os temas relativos ao
conhecimento indígena. No entanto, mesmo que ainda incipiente em seus projetos
14

educacionais, nessa escola descortina-se um modelo que nunca é descartado, mesmo


quando está provada uma ineficiente funcionalidade. O modelo revelado é o da escola do
não-índio que apresenta problemas relacionados à metodologia de ensino e,
conseqüentemente, à aprendizagem. O que sempre se afirma é que o objetivo da escola é a
propagação dos conhecimentos da sociedade que a originou. Isso significa que o
conhecimento científico, no qual se inclui a geografia, adentra as comunidades indígenas,
através do confronto ou da interação, a fim de que, posteriormente, se transformasse e
fosse transformado pelo saber indígena. Contudo, isso não se realiza da forma como se
deseja.
Em um contexto cultural que possui diversas particularidades, esta pesquisa se
originou diante das reflexões desenvolvidas acerca da inserção da geografia entre os
Kadiwéu, após três anos de trabalho frente a essa disciplina na Escola Municipal Indígena
“Ejiwajegi” – Pólo, em terras dessa sociedade indígena. Assim, neste trabalho, a geografia
é abordada como um fruto do conhecimento moderno que, inserido em meio a outras
formas de saber, tem seu ensino aplicado em um ambiente que exige referências históricas
e teóricas bastante específicas.2
Nas aulas de geografia, as dificuldades iniciais se apresentaram como desafios. A
insegurança em realizar trabalhos na educação em território indígena se situava exatamente
num único ponto: o que ensinar para os índios? Disso, surge o questionamento
metodológico: como ensinar geografia a eles? O que gostariam ou precisavam conhecer
sobre geografia? Entretanto, o principal questionamento surgiu através da pergunta: qual
geografia ensinar para os índios Kadiwéu? Esse principal questionamento decorreria de
uma suposta e equivocada interpretação que se transformaria em uma interrogação:
existiria mais de uma geografia ou a geografia seria feita de várias geografias? Além
disso, a sensação de estar invadindo espaços era constante, bem como a vontade de ajudar.
No entanto, a carência de informações sobre como é ser índio impedia que fosse realizado
um trabalho muito mais específico. Mas, como assinala Clifford Geertz (2002), seria
mesmo necessário um conhecimento tão específico para que seja possível estudar as
questões indígenas?

2 Cidadão urbano, originário do ABC paulista, fui convidado a realizar um trabalho de capacitação de
professores indígenas no município de Porto Murtinho, Estado de Mato Grosso do Sul. O que seria,
inicialmente, um trabalho de consultoria apenas aos professores indígenas, passou a ser realizado através de
aulas, diretamente com os filhos e filhas destes, pois, posteriormente, ocorreu a instalação da 5a a 8a séries
do Ensino Fundamental, no início de 2000.
15

A geografia foi apresentada, para os Kadiwéu, através do seu ensino na escola


pública: Escola Municipal Indígena “Ejiwajegi” em Porto Murtinho, no Mato Grosso do
Sul. Essa escola, inserida na Reserva Indígena Kadiwéu, existe desde 1998. Entretanto,
desde os anos quarenta do século XX — através do SPI (Serviço de Proteção aos Índios),
que concede origem à FUNAI (Fundação Nacional do Índio) — os Kadiwéu têm contato
com o ensino formal no qual se inclui, também, o ensino da geografia. Pode-se afirmar que
esse ensino formal é originário de um conhecimento científico moderno, próprio da cultura
ocidental, com todas as suas características. Já absorvidos pela cultura moderna, os índios
se posicionam diante dos conhecimentos da ciência como se fossem não-índios. Destinam,
à disciplina, um sentido bastante utilitarista e simplificado. Entretanto, pergunta-se: pode-
se afirmar que se apropriam desse conhecimento transformando-o com base no saber que,
supostamente, lhes dariam a particularidade tal como concebida?

Os Kadiwéu: primeiras considerações

Donos da maior área indígena do centro-sul brasileiro, os índios Kadiwéu vivem


em um território com aproximadamente 538.536 ha no município de Porto Murtinho (ver
Mapas 2 e 3, em anexo), em pleno Pantanal, Estado de Mato Grosso do Sul (ver Mapa 1,
em anexo). Segundo o Censo Kadiwéu3, de 1998, realizado pela Prefeitura Municipal de
Porto Murtinho, nessa área vivem 1.348 habitantes das etnias Kadiwéu, Kinikinau e
Terena, com predominância da primeira, distribuídos em cinco aldeias: 954 índios na
aldeia Bodoquena, 195 na aldeia São João, 88 na aldeia Tomázia, 74 na aldeia Campina e
37 índios na aldeia Barro Preto (PORTO MURTINHO, 1998). A sociedade Kadiwéu,
diferentemente das sociedades indígenas do Norte do país, tem acesso relativamente fácil à
cidade. A distância entre a maior aldeia — aldeia Bodoquena — e a cidade de mesmo
nome é de 70 km. Verifica-se quase a mesma proximidade da aldeia São João — a segunda
maior do território indígena em questão — com a cidade de Bonito: 80 km. Mesmo a

3 O Censo Kadiwéu 1998 foi realizado pela Prefeitura de Porto Murtinho, com o objetivo de conhecer,
estatisticamente, os índios que habitam a Reserva Indígena que está situado nesse município. Foram
elaborados questionários e os professores indígenas providenciaram a realização das entrevistas com índios
Kadiwéu, Kinikinau e Terena que ali habitam. De posse desses dados, a Prefeitura planejou sua atuação
frente à situação educacional precária que se encontrava na população indígena Kadiwéu.
16

existência de uma barreira física — a Serra da Bodoquena (600m) — não minimiza a


influência de agentes externos nas aldeias. A distância que separa os índios dos não-índios,
nesse caso, é muito pequena. Embora o acesso não esteja sempre disponível,4 o contato
entre as sociedades é evidente. A cultura estrangeira exerce influência na cultura local
indígena, a despeito de qualquer tipo de dificuldade inerente ao processo.
O espaço que ocupam, denominado popularmente de Campo dos Índios, foi
conhecido por antropólogos como Lévi-Strauss (1935) e, posteriormente, por Darcy
Ribeiro (1945), seguidos por Jaime Garcia Siqueira Junior, quarenta anos depois (1986) e,
mais recentemente, por Giovani José da Silva (1997). As anotações dos mencionados
autores parecem referendar a previsão de Darcy Ribeiro, no prefácio do livro Kadiwéu:
ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza, quando diz da sorte de quem os
visitar, pois encontrará, “[...] certamente, muito do que aqui se descreve sobre sua
mitologia, sua religião e sua arte. É certo que algumas crenças, instituições e costumes
parecerão degradados se não forem vistos como uma tradição atuante que sobrevive
justamente porque se altera” (RIBEIRO, 1980 a, p. 7).
Darcy Ribeiro observa que essas degradações são frutos da pressão de terríveis
compulsões exercidas sobre os Kadiwéu: refere-se, aqui, à expansão da sociedade nacional,
que traz consigo o conhecimento científico. Não parece que a sociedade indígena tenha
desejado, ao menos àquela época, o estranho conhecimento. Entretanto, hoje, esse
conhecimento se faz necessário por vários motivos. Um deles, senão o principal, é a
sobrevivência.
Esse saber estrangeiro, originário de uma cultura exógena, pode ser interpretado
como mesmo necessário, de modo a permitir a própria sobrevivência da cultura indígena.
Parece contraditório. De fato, a contradição é uma marca presente no pensamento que pode
se desenvolver sobre a trajetória desses grupos. Como a incorporação de saberes
estrangeiros, no qual se inclui a geografia, pode significar a possibilidade de continuidade
das tradições autóctones? Como a incorporação desses saberes estranhos pode implicar a
possibilidade de preservação da coerência no ambiente que se cria a partir de culturas que
se interpenetram? Uma outra interrogação, talvez mais reveladora de pontos críticos, deva
se ajuntar a essas reflexões preliminares: como conceber a continuidade de uma cultura

4 A estrada que liga a cidade de Bodoquena à aldeia de mesmo nome não é asfaltada, ficando intransitável
nos períodos de chuva. A manutenção é precária e muitas vezes realizada pelos próprios indígenas.
17

que se deixa invadir — para sobreviver à imposição estrangeira — e, simultaneamente,


não viola traços essenciais que ainda lhe concedem características próprias, originais?
Darcy Ribeiro (1980 a, p. 7) observa que os Kadiwéu “[...] são uma ilha cultural de
origem indígena, resistente à dominação e à assimilação”. Mas, é preciso refletir sobre os
significados de dominação e de assimilação e sobre as formas que como tudo isso se
realiza, diante da experiência indígena, no transcorrer do cotidiano no seu território. A
dominação e a assimilação não devem ser compreendidas como completa anulação, ainda
que possam ser percebidas, no lugar Kadiwéu, como inserções de idéias e de imagens
estrangeiras que subjugam o espírito nativo. De algum modo, isso poderia ser interpretado
como domesticação cultural? A domesticação, em princípio, emerge como uma imagem
forte — para que se faça referência à própria palavra. Ainda existem possibilidades de
interpretação do processo em questão, no que diz respeito aos Kadiwéu. Eles vivem: isso,
em primeiro lugar, significa que não foram extintos e detêm, ainda que não integralmente,
o seu território — mesmo que a idéia de propriedade original possa ser questionada. Além
disso, mais importante que afirmar a existência dos Kadiwéu, nos dias de hoje, é refletir
sobre como vivem e em que se transformam diante do processo de integração cultural. Em
segundo lugar, ainda há interpretações relevantes que se ajuntam à questão apresentada: a
sociedade Kadiwéu, nesse ambiente de interpenetração de culturas, pode ser, também,
avaliado como algo que se movimenta na direção ao estrangeiro.
Em outros termos, a cultura Kadiwéu pode, também, por diversas razões, ser
compreendida como aquela que se deixou dominar, que desejou a sua própria dominação
para sobreviver, mas, além disso, transformou, em algumas circunstâncias, nos seus
interiores, a cultura estrangeira. Adão e Eva já existem para os Kadiwéu. Entretanto,
vieram do buraco, de acordo com o mito de criação desenvolvido pela cultura local.5 O
exemplo acrescenta conceitos às idéias de resistência à dominação e à assimilação, tal
como observava Darcy Ribeiro (1980 a). Não são mais como no passado. Transformaram-
se noutra cultura sem que, por isso, deixassem de ser, vivamente, um pouco do que sempre
foram. São índios feitos de uma cultura estrangeira. São índios? De que maneira tais
indagações podem constituir elementos centrais para estudos mais aprofundados? De tais

5 Lévi-Strauss (2001, p. 147) registrou, em 1935, o mito de criação dos Kadiwéu: “[...] quando o ser
supremo, Gonoenhodi, decidiu criar os homens, tirou primeiro da terra os Guaná, depois as outras tribos; aos
primeiros, deu a agricultura como quinhão, e a caça aos segundos. O enganador, que é a outra divindade do
panteão indígena, percebeu então que os Mbaiá haviam sido esquecidos no fundo do buraco e os fez sair dali;
18

questões são feitas a presente pesquisa. Elas serão abordadas — direta e indiretamente —
no contexto do tratamento a ser encaminhado às questões centrais do trabalho.

QUESTÕES E METODOLOGIAS: FORMULAÇÃO DE PROBLEMAS E DE ABORDAGENS

Em um espaço onde é contemplado, secularmente, o saber indígena — vivido e


revivido por uma sociedade que possui regras engendradas por mitos que formulam e
reformulam sua identidade no mundo em que vive —, surge um outro saber, por conta da
aproximação de uma sociedade diferente.
O contato entre culturas, assim como entre saberes, suscita discussões conceituais.
Volta-se, então, à questão da superioridade científica. Cássio Hissa questiona a
superioridade entre os discursos que circulam na sociedade:

Existem diversas maneiras de se interpretar o problema feito dessa


matéria: o contato. O que se pode dizer é que, ao longo da história da
modernidade, o discurso produzido pela ciência adquire supremacia que
não se justifica mais. A partir de então, verifica-se uma reconstrução do
conhecimento. Essa reconstrução é, predominantemente, de natureza
ética e passa, também, pela valorização de outros discursos. A ciência se
transformaria em uma outra coisa, seguramente mais prática, mais
próxima das pessoas, mais legitimada politicamente, socialmente, e, da
mesma forma, mais equilibrada, menos pretensiosa, menos arrogante,
mais densa, mais rica, mais simples, mais inteligível, mais compreensível,
menos hermética, mais acessível, mais democrática, mais
democratizadora, mais socializante, qualquer que seja a ciência. Todas as
ciências. Todos os saberes se misturariam, assim como se misturariam
todas as formas de conhecimento: o religioso, o artístico. A esse
movimento de transformação se acostumou chamar de
transdisciplinaridade (HISSA, 2003, s.p.).

Muitos consideram o ensino das diversas disciplinas científicas, nas escolas


indígenas, indispensável ao processo de adaptação e ao movimento de integração. Assim,
as escolas, concebidas para índios, assumem o significado de fronteiras de contato entre as
culturas. Mas, de que é feito esse saber, científico, que se leva às sociedades indígenas? De

mas como não sobrava nada para eles, tiveram direito à única função ainda disponível, a de oprimir e
explorar os outros. Já houve contrato social mais profundo do que este?”.
19

que maneira ele é traduzido? Como discutir tais questões? Emergiria, daí, um novo saber,
distinto do que foi edificado pela cultura que assimila?
O significado de geografia para os Kadiwéu vem sempre carregado de um
utilitarismo com que percebem a ciência e a disciplina. De um modo geral, quando
interrogados sobre o significado de geografia, muitas vezes informalmente, os Kadiwéu
encaminham respostas básicas sobre a utilidade do conhecimento que recebem. Tudo isso
merece ser questionado.
Uma única problematização pode ser ressaltada por este estudo: como a geografia
está inserida na sociedade Kadiwéu. Entretanto, apresentam-se três questionamentos
principais que norteiam o desenvolvimento desta pesquisa. O primeiro deles refere-se ao
fato de o ensino da geografia para os indígenas ter sido rotulado como geografia indígena,
pressupondo, assim, que existiria uma diferenciação entre essa geografia (a dos índios) e a
geografia que se ensina nas escolas das sociedades não-indígenas. Tal expressão pode ser
encontrada no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas — RCNEI
(BRASIL, 1998). Imagina-se, diante da expressão, a existência de uma geografia feita de
uma outra natureza. Além disso, a expressão parece sugerir, ainda, a possibilidade de
existência de uma geografia que se refira a cada uma das sociedades indígenas. Questiona-
se, portanto: a partir da existência de dois conhecimentos, um indígena e um científico,
seria possível pressupor a existência de duas geografias, uma geografia indígena e uma
geografia científica? Se a geografia indígena é fruto do conhecimento indígena, qual seria
a natureza do seu objeto de pesquisa? De que esse objeto — cuja natureza não se ousa
sequer imaginar — consistiria? Em que ele se distinguiria do objeto da geografia
sistematizada pelos europeus, a partir do século XIX?
A geografia já realiza, há décadas, um investimento teórico sobre a natureza do seu
objeto de pesquisa. Trata-se de um campo do conhecimento sobre o qual ainda se
debruçam estudiosos, pesquisadores, pensadores. Métodos de pesquisa são freqüentemente
aperfeiçoados. Do mesmo modo, técnicas de pesquisa continuam sendo amadurecidas. A
geografia, avança, também, do ponto de vista epistemológico, no contexto das
transformações experimentadas pela ciência moderna. Como imaginar a existência de uma
geografia indígena, originária do conhecimento indígena? Afinal, não é a geografia, tal
como concebida desde o século XIX, dita científica, a ser ensinada nas escolas indígenas?
No segundo questionamento, abordado no conjunto da pesquisa, discute-se a
ciência geográfica inserida entre os Kadiwéu como mais um instrumento de integração,
20

que acaba por forçar essa sociedade a adaptar seu modo de vida e de estar no mundo,
diante da influência dos valores exógenos. A integração implica perdas de diversas
naturezas. Por mais que algumas sociedades indígenas sobreviventes possam reservar na
memória algumas de suas experiências, alguns de seus mitos, lendas e hábitos, a integração
significou, em vários casos, a perda da relativa espontaneidade da cultura original. A
integração significa, em termos gerais, adaptação a uma nova vida. Isso não se realiza em
pouco tempo. São algumas gerações que separam a tradição alóctone dos costumes
incorporados. Pensar como o não-índio significa abandonar, de fato, no desenvolvimento
da vida cotidiana, a ética indígena — feita de mitos, lendas, hábitos e experiências. Essa
idéia do movimento dos indígenas em direção ao que é estrangeiro pode, mesmo,
contradizer a afirmação de Darcy Ribeiro (1980 a) sobre a resistência cultural Kadiwéu.
A natureza da integração pressupõe uma idéia de harmonia no fim de seu processo.
Assim, pode-se imaginar um diálogo profícuo entre o conhecimento científico e o
indígena, pois, para isso, há grandes possibilidades. No entanto, entre os saberes que
circulam na sociedade Kadiwéu e a geografia é possível perceber características que os
diferem e que dificultam uma interação, permitindo assinalar, inclusive, a tão discutida
supremacia da ciência moderna sobre as outras formas de conhecimento. Essa é a terceira
questão que faz referência ao encontro de formas de conhecimento marcado por
dificuldades, impossibilidades, mas, também, de grandes possibilidades.
Para responder às questões pesquisadas adotam-se alguns procedimentos
metodológicos que devem ser explicitados. O primeiro deles baseia-se em uma revisão da
literatura que trata das questões relacionadas à ciência moderna, ao conhecimento indígena
e à geografia.
As discussões sobre a ciência moderna são bastante diversificadas. Devido a isso,
foram eleitos alguns críticos expoentes através dos quais será realizada uma busca
conceitual sobre o que já foi denominada de religião moderna. Os interlocutores
selecionados são, preferencialmente, Edgar Morin e Boaventura de Sousa Santos, pois
elaboram uma sistematização de conhecimentos a respeito da ciência moderna que muito
auxilia nas respostas a alguns questionamentos, como o primeiro e o terceiro, que tratam da
interação desses dois saberes: ciência e senso comum — aqui relacionado ao
conhecimento indígena. O contexto no qual se insere a geografia é de natureza
transdisciplinar. Assim, além de Edgar Morin, dialoga-se com os estudos de Cássio Hissa
que procuram abordar os desígnios da ciência geográfica. Em momentos especiais, o autor
21

ainda contribui para a discussão sobre a relação entre os saberes modernos — no qual se
insere a geografia — e os saberes ditos primitivos, como o conhecimento indígena
Kadiwéu e, também, as possibilidades de um intercâmbio, de caráter transdisciplinar, entre
esses saberes, o que atende as necessidades do primeiro e terceiro questionamentos da
pesquisa.
A maior parte da bibliografia que faz referência às populações indígenas e suas
tradições são advindas da antropologia. Autores consagrados, como Claude Lévi-Strauss e
Darcy Ribeiro, auxiliam a pesquisa através de estudos etnológicos, contribuindo com os
conhecimentos produzidos sobre mitos.
A obra Do índio ao Bugre: o processo de assimilação entre os Terena, do
consagrado antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, contribui para a abordagem do tema
central desta pesquisa, pois aborda os contatos interétnicos experimentados pela sociedade
Terena, no Mato Grosso do Sul. As pesquisas de Darcy Ribeiro sobre os Kadiwéu
disponibilizam mais informações sobre o intenso contato entre os Kadiwéu e os não-índios.
Para maiores fundamentações nos caminhos dos saberes e dos mitos Kadiwéu,
recorre-se ao arcabouço teórico acumulado por antropólogos, principalmente os que
desenvolveram trabalhos investigativos com essa sociedade indígena: autores como Darcy
Ribeiro, através da obra Kadiwéu: ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza e
Jaime Garcia Siqueira Jr, em sua dissertação de mestrado desenvolvida na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, “Esse campo custou o sangue dos nossos
avós”: a construção do tempo e espaço Kadiwéu. Giovani José da Silva, um dos últimos
antropólogos a estudar os Kadiwéu, também contribui com seu trabalho ao abordar, em sua
dissertação de mestrado — intitulada A construção física, social e simbólica da Reserva
Indígena Kadiwéu —, a formação histórica da Reserva Indígena Kadiwéu, se defrontando
com a força da identidade coletiva na forma de mitos e de tradições. Os estudos desses
autores contribuem para uma melhor compreensão do processo de integração a que foi
submetida a sociedade Kadiwéu durante o contato com os não-índios e, além disso,
fornecem informações necessárias que possibilitam a reflexão sobre a segunda questão da
presente pesquisa.
Através da legislação relativa às sociedades indígenas e sua educação escolar, são
discutidas algumas deliberações, portarias e decretos oficiais que contribuíram para uma
tentativa de organização de uma escola indígena que se mantenha ancorada pelos
paradigmas da pluralidade cultural e da interculturalidade e, além disso, que seja
22

comunitária, bilíngüe, específica e diferenciada. Entretanto, ressalta-se que esse modelo de


escola pode, também, ter corroborado para que o processo de inserção do conhecimento
estrangeiro nas sociedades indígenas fosse acelerado. O Referencial Curricular Nacional
para as Escolas Indígenas (RCNEI), fruto dessa legislação, é analisado visando,
principalmente, o conteúdo de geografia a ser lecionado nas escolas indígenas. A crítica à
legislação vigente contribui, também, para discutir a tendência dos governos federal,
estadual e municipal em promover um distanciamento controlado sobre as populações
indígenas, que contam, na atualidade, com escolas nas próprias aldeias, além de revelar-se
como agente do processo de integração das sociedades indígenas. Essas reflexões
contribuem com informações necessárias para analisar esse processo secular e, respondem,
também, a segunda problematização abordada.
O segundo procedimento metodológico adotado consiste na realização de
entrevistas informais com a comunidade indígena Kadiwéu. O estudo baseado na
experiência com essa comunidade aborda, principalmente, o questionamento sobre a
inserção da geografia entre os Kadiwéu, pois existe uma grande possibilidade de que a
geografia esteja presente na sociedade, sem, no entanto, ter sido absorvida por ela.
Procura-se, dessa forma, compreender a expectativa construída pelos índios em torno da
disciplina geográfica. Entretanto, diante da experiência adquirida através da vivência com
os alunos Kadiwéu, espera-se que essa metodologia estabeleça parâmetros importantes
para construir, também, respostas sobre a necessidade, por parte dos Kadiwéu, da inserção
de elementos da cultura estrangeira, transformando-os em aliados para a manutenção da
sua própria cultura. Afinal, questionar aos Kadiwéu o que vem a ser geografia, para que
serve essa ciência já inserida em suas vidas, principalmente através da instituição escolar,
fazem parte de um amplo e complexo processo: pensar sobre a ciência, os seus propósitos
e, também, pensar nas possibilidades de sua transformação e incorporação.

A ESTRUTURA DA PESQUISA: COMENTÁRIOS SOBRE CAPÍTULOS E TÓPICOS

Dividida em três capítulos, a pesquisa procura refletir acerca das possibilidades e


dificuldades de interação entre os saberes científicos e os saberes indígenas. Ao focalizar o
processo de inserção de elementos exógenos na cultura indígena, discute-se, também,
23

como a geografia pode fazer com que a sociedade Kadiwéu encontre, na ciência, uma
aliada para a manutenção de sua cultura, transformando, assim, os conhecimentos
científicos ao mesmo tempo em que é transformada por eles. A geografia que circula no
ambiente de troca, feito de não-índios e de índios assimilados, transformar-se-ia noutro
conhecimento sem que se perdessem referências de saber geográfico, sem que se
perdessem origens de conhecimento científico. Tratar-se-ia, aqui, de pensar na
possibilidade de transformação desse saber geográfico, científico, com base no
conhecimento indígena e, simultaneamente, a transformação dos saberes indígenas com
base na ciência geográfica.

O capítulo 1 está composto por três momentos conceituais: a) o conhecimento


científico e outras formas de conhecimento; b) a natureza do mito nas culturas primitivas; e
c) o conhecimento indígena Kadiwéu. Seu papel no conjunto da pesquisa é elaborar uma
reflexão conceitual sobre o próprio conhecimento científico e os saberes indígenas
representados através dos mitos. A partir da ruptura entre a ciência e as demais formas de
conhecimento, ao longo do desenvolvimento da modernidade, a ciência clássica assume a
pretensão da distância das outras formas de conhecimento, na suposição de que a referida
posição seja, de fato, possível e necessária para a edificação de um conhecimento
(científico) puro, preciso e objetivo.
Não se pode afirmar que a compreensão da ciência permite a leitura mais precisa
dos saberes tidos como não científicos. Entretanto, parece oportuna a interpretação da
ciência no contexto dos demais saberes e das outras formas de conhecimento. Ressalta-se,
ainda, que, transitando na direção contrária, também por negar as outras formas de
conhecimento, as verdades construídas pela ciência não têm a natureza do mito. Elas são
compreendidas como interpretações ou como explicações da realidade que, de algum
modo, são produzidas pela adoção sistemática de metodologias científicas.
Num segundo momento, ainda no primeiro capítulo da pesquisa, a antropologia é
solicitada para auxiliar na reflexão conceitual sobre o mito. Antropólogos como, Darcy
Ribeiro, Lévi-Strauss, Jaime Garcia Siqueira Jr, Giovani José da Silva, já citados
anteriormente, compõem um grupo de estudiosos que, com suas próprias metodologias,
recolheram impressões científicas acerca dos Kadiwéu, bem como de seus mitos. Como
produto das culturas ditas primitivas, servindo de referência tanto para as sociedades
indígenas como para as não-indígenas, o mito reproduz os valores e hábitos cotidianos
dessas sociedades. A compreensão do mito implica o entendimento do próprio grupo.
24

Antes de tudo, o mito é uma referência coletiva da qual se serve o indivíduo: ele se explica
no mundo e, também, a partir dele (do mito) explica o mundo no qual está inserido. Se há
uma aproximação dos saberes produzidos e reproduzidos pelas sociedades, esta se dá
através da compreensão do mito. Nesse momento da pesquisa, refletindo conceitualmente
sobre os saberes — incluindo os de natureza científica —, apresentando e discutindo o
significado de mito nas sociedades primitivas, desdobra-se a discussão acerca dos saberes
construídos pela sociedade indígena Kadiwéu.
Acredita-se que um contato mais próximo com a cultura Kadiwéu possa auxiliar o
leitor menos cônscio e confirmar as convicções do leitor mais experiente em questões
indígenas. As imagens construídas dos índios, e transmitidas aos distantes deles, deixam
impressões errôneas, bem como as imagens romanceadas de índios. Um senso comum se
forma. Para isso, em um terceiro momento do primeiro capítulo, apresenta-se uma
caracterização do lugar indígena Kadiwéu, onde se desenvolvem as tradições e a cultura
dessa sociedade indígena do Pantanal sul-mato-grossense, os contatos com não-índios e os
encontros de culturas. Nesse contexto, são também abordadas as formas de aquisição de
conhecimento dos índios. Nessa passagem da pesquisa apresentam-se, também, exemplos
de mitos e saberes desenvolvidos no lugar indígena Kadiwéu.
No Capítulo 2, busca-se, através de fontes documentais, recordar a história da
Educação Escolar Indígena quando, tanto os movimentos de organizações indígenas como
os movimentos de apoio à essa causa, deram origem às reivindicações de uma educação
com características “[...] multilingüe, intercultural, comunitária, diferenciada e específica”
(BRASIL, 1998, p. 24-25). Em seus desdobramentos, no processo de construção dessa
educação, relações foram estabelecidas entre os indígenas e os diversos atores que
promovem a Educação Escolar Indígena, tais como órgãos públicos, organizações
indígenas, organizações não-governamentais e a própria sociedade. Através de um olhar
geográfico — ao mesmo tempo científico —, procura-se compreender o que se espera da
geografia nesse contexto. Há quem possa afirmar, diante do processo secular de integração
das culturas indígenas, que o ensino formal é fundamental para a adaptação e para a
sobrevivência das sociedades que estiveram sob o intenso contato com outras sociedades.
Não se pode negar o caráter contraditório desse movimento: um saber estranho é inserido
na cultura indígena para que esta possa sobreviver.
Analisam-se algumas legislações e, principalmente, um outro documento oficial, o
Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI), que pretende servir de
25

referência (sugestões) para o desenvolvimento da Educação Escolar Indígena. A leitura do


RCNEI permite a realização de avaliações acerca da amplitude e da pretensão dessa
referência, assim como da possível dificuldade de compreensão do documento pelos
estudantes indígenas e pelos professores. No texto referente à geografia, do RCNEI, é
analisada a inserção dessa área do conhecimento em um documento oficial relativo à
educação formal para as populações indígenas. Dentro dessa análise surgem, ainda,
questionamentos no que tange à tradução ou à codificação da geografia quando se refere à
Educação Escolar Indígena. A geografia, segundo o RCNEI, deve cumprir papéis
aparentemente antagônicos (aparentemente, também, contraditórios), ou seja, deve ser um
agente de preservação de valores indígenas e, concomitantemente, um instrumento de
educação de valores autóctones à cultura a que se destina.
Da forma como a geografia está traduzida, no documento, sugere-se a existência de
várias geografias, uma para cada lugar onde atua. Afinal, se a cada tradução existir uma
geografia diferente, então, pergunta-se: o que é geografia? Qual geografia ensinar em cada
caso? Assim, existiria uma geografia indígena? Esse é o conteúdo do Capítulo 3, em que
são discutidas as propostas do RCNEI que remete à existência de uma geografia própria
das sociedades indígenas.
Da mesma forma, apresenta-se, também no Capítulo 3, uma reflexão sobre os
papéis da geografia para a inserção das comunidades indígenas nas sociedades modernas,
compreendendo-os como integradores ou desintegradores. Portanto, no conjunto da
pesquisa, o Capítulo 3 assume os seguintes papéis: a) o de pensar a ciência, em especial a
geografia, a partir do seu próprio ensino: o RCNEI é, nesse caso, a principal referência; b)
o de pensar a ciência, sobretudo a geografia, e sua importância para a comunidade
Kadiwéu; c) o de pensar a natureza da assimilação, integração e do contato interétnico; e d)
o de pensar a própria formação dos mediadores, professores, pesquisadores, que se põem
em contato com as sociedades indígenas.
Nesse contexto de particularidades, é necessário considerar a história do
progressivo desmantelamento das tradições indígenas assim como sua sempre questionada
absorção pela cultura ocidental; compreender que o processo de integração dos indígenas
sempre parece implicar algo mais que integração (ou algo muito menos do que isso), ou
seja, parece sempre equivaler à aculturação (qual o significado disso e qual a importância
disso, afinal?); questionar a postura paternalista do Estado que, em muitas circunstâncias,
por todas as considerações até então pontuadas, merece ser discutida e interrogada, e
26

refletir, após a consideração da história de integrações, até que ponto as culturas indígenas
são, de fato, autônomas em relação à cultura ocidental. O que é ser índio em pleno século
XXI? O que é ser um Kadiwéu? Em um processo de integração brutal como o que
sofreram as sociedades indígenas, o que há para ser preservado? Posto isso, é preciso que
se tenha em conta que o ensino da ciência (assim como o da geografia),
independentemente das legislações e das referências normativas, deve considerar os
interlocutores (afinal, o que significa ensinar?). Portanto, ensinar geografia para os índios
(e para os Kadiwéu, com as suas particularidades) é, sobretudo, refletir sobre um saber
(científico) considerando as particularidades dos interlocutores. Os alunos, incluindo os
indígenas, aprendem e aprendem a se conhecer e ao mundo do qual fazem parte, tomam
partido, pois se sentem incluídos no processo de aprendizagem.
27

O desafio da complexidade nos faz renunciar


para sempre ao mito da elucidação total do
universo, mas nos encoraja a prosseguir na
aventura do conhecimento que é o diálogo
com o universo (Edgar Morin).
28

1. O SABER CIENTÍFICO ENTRE OS SABERES

As reflexões que envolvem a natureza dos saberes, a sua origem e história, os seus
movimentos processuais, exigem, sempre, bastante investimento de leitura e de escrita. Em
muitas circunstâncias eles são necessários e, quase nunca, eles são desenvolvidos da
maneira como se deseja. Há, sempre, incompletude, nesse investimento que se caracteriza
por um ir e vir, por revisões de posturas, por apropriações de conhecimentos, por rupturas
com valores arraigados e tudo isso demanda muito tempo. Este primeiro capítulo, produto
de um esforço de leitura sistemática, é apresentado como uma das matrizes referenciais da
pesquisa.
O texto, que constitui o capítulo de abertura deste estudo, assume a condição
filosófica, teórica e metodológica. Contudo, ele deve ser compreendido, apenas, como uma
síntese de um texto imaginado a ser incorporado pela pesquisa. Assim, ainda que carregue
algumas responsabilidades, papéis e funções, o texto incorpora os riscos da síntese.
Entretanto, os seus papéis, no conjunto da dissertação, devem ser antecipados de modo a,
desde já, encaminhar os desenhos da articulação necessária.
Em primeiro lugar, a discussão acerca da natureza dos saberes e, em especial, dos
saberes ditos científicos, deve cumprir uma função bastante particular, diante da
expectativa da comunicação intercultural, frente à esperança e o desejo de troca entre os
saberes — entre a ciência que se ensina nas escolas indígenas e os saberes originários
dessa cultura assimilada (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976), transfigurada etnicamente
(RIBEIRO, 1980 a). Nesse caso, a função seria a de se discutir e de pensar os caminhos
apontados, na contemporaneidade, no sentido da transformação do conhecimento moderno.
Somente a ciência moderna transformada estaria apta a se fazer presente nesse processo de
troca (HISSA, 1999, 2002, 2003; MORIN, 2001, 2002; SANTOS, 2000 a, 2000 b, 2001,
2002). Para que se discutam os caminhos dessa necessária e desejável transformação, o
capítulo cumpre uma segunda função: a de apresentar a natureza do saber que, em
princípio, se transformaria a partir de referências mais libertárias. Assim, seriam
29

desenvolvidas condições mais apropriadas para a leitura crítica que deve ser encaminhada
à ciência moderna que, através das escolas indígenas, é levada para o lugar Kadiwéu.
De maneira geral, as sociedades, sejam elas modernas ou ditas primitivas, possuem
seu modo próprio de explicar o mundo em que vivem. Há quem escolha entender que
existe alguma maneira mais correta de se fazer a leitura do mundo. Mas, o mundo é feito
de complexidades.
O mundo não encaminha apenas uma única resposta para as questões e, também,
comporta, com clareza, muito mais do que uma única pergunta. O mundo é construído por
tantas realidades distintas quanto forem os olhares lançados a ele e pela conjunção de
respostas obtidas através dos olhares que constituem o mundo.
Nas sociedades modernas, o olhar da ciência é construído através do estudo da
realidade pelo uso de metodologias próprias: as científicas. No desenvolvimento da
ciência, os resultados obtidos se apresentaram supostamente mais objetivos e exatos,
promovendo um “etnocentrismo científico” (SANTOS, 2001, p. 40).
Nas sociedades tradicionais, o conhecimento originário do senso comum está ligado
às explicações da realidade. Por uma série de razões, é considerado pela ciência como
superficial, ilusório e falso. A verdade construída pelo senso comum não é a verdade da
ciência — que, por sua vez, compartimenta e fragmenta os saberes.
Boaventura de Sousa Santos desvencilhou-se da definição convencional de senso
comum, construída pela ciência. Esse autor explicita que as características dadas por ela (a
ciência) são “[...] saturadas de negatividade (ilusão, falsidade, conservadorismo,
superficialidade, enviesamento, etc.)” (SANTOS, 2001, p. 40). Ao se referir ao senso
comum, o autor observa:

[...] subjaz-lhe uma visão do mundo assente na ação e no princípio da


criatividade e das responsabilidades individuais. O senso comum é
prático e pragmático; reproduz-se colado às trajetórias e às experiências
de vida de um dado grupo social e nessa correspondência se afirma de
confiança e dá segurança. O senso comum é transparente e evidente [...]
O senso comum é superficial porque desdenha das estruturas que estão
para além da consciência, mas, por isso mesmo, é exímio em captar a
profundidade horizontal das relações entre pessoas e entre pessoas e
coisas. [...] reproduz-se espontaneamente no suceder quotidiano da vida.
Por último, o senso comum é retórico e metafórico; não ensina, persuade
(SANTOS, 2001, p. 56).
30

No entanto, são desenvolvidas algumas tentativas de amainar a imagem negativa do


senso comum, assinalada pela ciência. Júlio César Melatti enfatiza a possibilidade do
surgimento, entre as sociedades indígenas, de uma ciência embrionária. Em suas palavras,
afirma que as técnicas e os conhecimentos produzidos pelos índios “[...] talvez possam ser
considerados como constituintes de uma ciência incipiente, pois, sem dúvida, derivam da
observação e experimentação” (MELATTI, 1993, p. 149). Não se nega a capacidade de
produção de saberes pelas sociedades indígenas. As suas ferramentas, seus artefatos, sua
riqueza material, suas artes e suas explicações de mundo consumiriam quaisquer
questionamentos.
Contudo, Julio César Melatti não é o único a prognosticar uma ciência incipiente
com base enraizada no empírico. Claude Lévi-Strauss, após várias pesquisas com os povos
indígenas, afirma que “[...] cada uma das técnicas supõe séculos de observação ativa e
metódica, hipóteses ousadas e controladas, a fim de rejeitá-las ou confirmá-las através de
experiências incansavelmente repetidas” (LÉVI-STRAUSS, apud GRUPIONI, 1994, p.
186).6
Paul Claval — ao elaborar uma comparação entre conhecimentos — afirma que os
saberes tradicionais não seguem critérios que a sociedade moderna julga essenciais. E,
ainda, verifica-se, na exposição desse autor, a possibilidade da ciência auxiliar esses
saberes guiando-lhes a ação:

Os saberes tradicionais elaboram freqüentemente inventários admiráveis


da diversidade do real. [...] As classificações não estão baseadas,
entretanto, na compreensão dos processos realizados na natureza. Esses
conhecimentos permitem uma descrição satisfatória, mas dizem pouco
sobre os encadeamentos causais reais. [...] A ciência explora, ao contrário,
as determinações causais e as regulações realizadas no mundo. No
universo tradicional, os conhecimentos que as elites educadas dispõem
sobre o meio são, freqüentemente, de natureza mitológica ou astrológica
e não ajudam a agir sobre o mesmo. O pensamento científico, ao
contrário, permite guiar a ação. As etnotecnologias refletiam a
diversidade de saberes imperfeitamente racionalizados. A ciência
moderna conduz à unificação dos métodos de ação sobre o real e do
universo instrumental que estes implicam (CLAVAL, 2001, p. 226-227).

6 Claude Lévi-Strauss (1981, p. 17) já havia assinalado perdas de percurso da modernidade e Marilena Chauí
volta a enfatizá-las: “[...] talvez nós tenhamos perdido inteiramente, justamente porque acreditamos na idéia
do progresso. E que foi o progresso? O progresso foi a separação de tudo [...]. O que a cultura indígena nos
ensina é que o verdadeiro progresso é [...] essa integração entre o sagrado e o profano, o humano e a natureza
e as relações de liberdade, justiça, comunidade, igualdade entre os próprios seres humanos” (CHAUÍ, apud
GRUPIONI, 1994, p. 192).
31

Marilena Chauí ressalta a compartimentação dos saberes modernos comparando-os


com os saberes indígenas:

A nossa civilização é toda compartimentada, toda fragmentada, toda


separada. Enquanto isso, na sociedade indígena, cada ato, cada objeto,
cada instituição da sociedade é sempre uma unidade, e isso é que é
fundamental na existência dos seres humanos [...] (CHAUÍ, apud
GRUPIONI, 1994, p. 192).

Na presença de dois saberes distintos, em que o conhecimento científico é tratado


como a religião da modernidade e o senso comum tratado com preconceitos pelo primeiro,
se faz necessária uma reflexão da natureza de cada um deles.

1.1. O CONHECIMENTO CIENTÍFICO: REFLEXÕES SOBRE ALGUMAS CARACTERÍSTICAS

Compreender a ciência no contexto da cultura em que foi engendrada significa


buscar conhecimentos a respeito dessa própria cultura. É isso que se busca quando se visita
pela primeira vez um novo lugar. Busca-se conhecer as diferenças, o novo — mesmo que
cause estranhamentos ao estrangeiro —, as formas como cada sociedade busca suas
verdades frente a um mundo cheio de mistérios e os fenômenos a serem desvendados.
Na busca da verdade pela sociedade — iniciada pelos pré-socráticos — foram
utilizadas perguntas simples, entretanto, com o passar dos tempos e acontecimentos, a
simplicidade é levada a uma condição periférica. Como afirma Boaventura de Sousa
Santos (2001, p. 6), “[...] é necessário voltar às coisas simples, à capacidade de formular
perguntas simples” a partir da crença que o mundo possa “[...] ser ordenado por arranjo
humano” (BRONOWSKI, 1977, p. 55).
Organizar para conhecer: a idéia de ordem pertencente ao processo de estruturação
lógica concebido pela ciência moderna. Na maioria das vezes, processos de organização
passam pela concepção, desenvolvimento e aplicação de modelos de natureza matemática.
Para que essa ordem pudesse ser concretizada, foram realizados agrupamentos e/ou
classificações dos fenômenos: isso significa que do próprio processo de conhecimento,
fundamentado em agrupamentos e classificações, também emerge a imagem de ordem.
Desenvolve-se o argumento da perfeição matemática em que os fenômenos se assemelham
32

a máquinas. Mas, segundo Bronowski (1977, p. 56), o modelo é “[...] um conceito com
propriedades definidas que se podem isolar e reproduzir no espaço e no tempo, e cujo
comportamento se pode prever”.
Como assegura Boaventura de Sousa Santos (2001, p. 17), “[...] esta idéia do
mundo máquina é de tal modo poderosa que se vai transformar na grande hipótese
universal da época moderna, o mecanicismo”. O mecanicismo é definido quando o
movimento do objeto é determinado por lei causal rigorosa, independentemente do seu fim
ou da qualidade oculta para a determinação dos fenômenos naturais. A partir do momento
em que se define qual é a lei que o determina, passa-se a construção do modelo que a
imitará. No seu conceito, Bronowski, entende que

[...] o modelo define um conjunto de unidades fundamentais e estabelece


leis e axiomas a que devem obedecer; e mostra que se o mundo real fosse
de fato constituído por essas unidades, se obedecesse a essas leis, seu
comportamento coincidiria com o que observamos (BRONOWSKI, 1977,
p. 56-57).

Como toda máquina, o modelo é passível de erros. Pode em algum momento auferir
um elemento novo aperiódico — a natureza pode ser imprevisível e inserir não apenas um
único elemento novo, mas múltiplos — e, com isso, destruir uma de suas engrenagens,
interrompendo o funcionamento normal e confirmando a defasagem do modelo que foi
construído. Da mesma forma que a máquina, o modelo pode se tornar obsoleto. No
entanto, o elemento novo inserido indevidamente será estudado e o modelo revisto e
reconstruído, tal como as teorias. Isso traz a idéia de que as teorias são falíveis e que
podem ser eliminadas. Afinal, “[...] as teorias científicas são mortais e são mortais por
serem científicas” (MORIN, 2002, p. 22).
As teorias ou paradigmas surgem para manter esses modelos funcionando, ou seja,
para orientar, metodologicamente, o estudo dos fenômenos. São esses paradigmas que
definem o que pode ser considerado ciência e o que não pode. Diante disso, corre-se o
risco de não ser considerado científico e, por conseguinte, não ter validade, qualquer
estudo que não siga tais paradigmas.7

7 Edgar Morin aponta uma não cientificidade presente no seio das teorias científicas: “Os diversos trabalhos,
em muitos pontos antagônicos, de Popper, Kuhn, Lakatos, Feyerabend, entre outros, têm como traço comum
à demonstração de que as teorias científicas, como os icebergs, têm enorme parte imersa não científica, mas
indispensável ao desenvolvimento da ciência” (MORIN, 2002, p. 21). Para os estudiosos da epistemologia
científica, o que faz com que um conhecimento seja ou não científico está definido na obra Estrutura das
33

A ciência, de patamares supostamente mais elevados, definiria, portanto, a partir de


então, o que é e o que não é científico. Consideram-se não científicos os conhecimentos
que não seguem quaisquer paradigmas. A ciência se volta contra esses conhecimentos
arredios, pois, sob seus auspícios, rompe com o que não confia. Desconfia da imediatez
das crenças. A ciência critica a falta de crítica e curiosidade. Essa é a atitude científica que
privilegia a objetividade e o racionalismo. Esse caráter objetivo e racional da ciência gera
uma suposta superioridade. Torna-se necessário romper com conhecimentos que aceitam
os fenômenos apenas por sua existência, assim como é imperiosa a criação de novos
códigos e “[...] todo um sistema de novos conceitos e de relações entre conceitos”
(SANTOS, 2000 a, p. 32). A ciência se apresenta autônoma em relação às demais formas e
práticas de conhecimento. Faz-se, portanto, necessária uma ruptura epistemológica.
Frente à autonomia científica, Boaventura de Sousa Santos alerta para a
incongruência entre a formulação do rompimento e seu cumprimento. O rompimento
avesso a um conhecimento anterior não permite aos “[...] cientistas manterem sempre uma
relação realista com sua prática científica” (SANTOS, 2000 a, p. 33), pois podem ceder ao
impulso da utilização das idéias vulgares do senso comum, recobrindo-as com jargões
científicos. A ruptura epistemológica, segundo Boaventura de Sousa Santos, obriga a
ciência e os cientistas — que são tão vulneráveis ao senso comum como os demais — a
gerar, também, uma “vigilância epistemológica” (SANTOS, 2000 a, p. 33).
Esses obstáculos epistemológicos são inerentes à ruptura. Uma ciência da ciência
poderia auxiliar nas dificuldades apresentadas ao conhecimento científico. Assim, o
conhecimento, de pretensa autonomia, que nega os mitos, se mitifica. Boaventura de Sousa
Santos assinala a dogmatização da ciência. Por sua vez, Marilena Chauí refere-se à
mitologia científica como uma

[...] crença na ciência como se fosse magia e poderio ilimitado sobre as


coisas e os homens, dando-lhe o lugar que muitos costumam dar às
religiões, isto é, um conjunto doutrinário de verdades intemporais
absolutas e inquestionáveis (CHAUÍ, 1996, p. 281).

Revoluções Científicas, de Thomas Kuhn (1992). Alan Chalmers buscou, nas palavras de Kuhn, definições
que esclarecem ainda mais essa questão. Veja-se com o autor: “A característica mais importante de um
campo de indagação quanto à distinção entre a ciência e não ciência, afirma Kuhn, é a extensão em que o
campo é capaz de sustentar uma tradição científica normal. Nas palavras de Kuhn: ‘é difícil encontrar um
outro critério que proclame de maneira tão clara um campo como ciência’” (CHALMERS, 1993, p. 147).
34

Esse caráter mitológico da ciência tem afinidade com o seu sonho de objetividade.
Esse caráter mitológico é reforçado, ainda, pelo hermetismo dos discursos científicos. Com
isso, observa-se um maior distanciamento entre a ciência e a sociedade que, na
denominada sociedade da informação, poderia ser minimizado pelo desenvolvimento de
instrumentos de divulgação científica. Entretanto, isso não acontece.8
A ciência pretende ser objetiva para desvendar os fenômenos no mundo,
procurando localizar-se do alto, à distância, o que contribui para o seu processo auto-
mitificador. Com total rigor excêntrico, ela busca explicar como o mundo é e, em algumas
circunstâncias, o que deveria ser representação assume a condição de inútil reprodução —
como a cartografia de escala um “por um”, presente na caricatura desenvolvida por Jorge
Luís Borges e discutida por Cássio Hissa (2002, p. 31). Com isso, a ciência nega a sua
própria condição: a arte da representação, da interpretação, que demanda, sempre, a
liberdade nos processos criativos.
Na expectativa de que pudesse potencializar processos interpretativos, a ciência
ainda promove uma territorialização dos saberes. Limites são construídos a fim de precisar
o objeto de cada disciplina. Ao existir, deveriam proteger seu objeto de estudo de supostas
invasões de outras disciplinas. Cássio Hissa (2002) discute a natureza das fronteiras e dos
limites que expressam um certo poder da ciência ou mesmo de uma área do conhecimento,
ao mesmo tempo em se fragiliza o saber:

Uma reflexão sobre limites e fronteiras é, também, uma reflexão sobre o


poder. Fronteiras e limites são desenvolvidos para estabelecer domínios e
demarcar territórios. Foram concebidos para insinuar precisão: a precisão
que pede o poder. Enquanto forma de controle, a precisão é necessária
para o exercício pleno do poder, em suas diversas instâncias. Fronteiras e
limites reclamam pela exatidão, pela presença insinuante da linha visual

8 As formas de propagação do conhecimento científico caracterizam-se por uma linguagem técnica,


hermética, de difícil acesso, cooperando para a incomunicabilidade entre os cientistas e os homens comuns.
São expressões recém saídas dos laboratórios, que circulam em todos os setores da sociedade. No entanto, ao
público leigo — longe das pesquisas e bancadas de laboratórios — resta imaginar e sentir o fazer ciência. Em
muitos momentos, dize-se que poder-se-ia empregar a arte para uma tradução da linguagem da ciência,
tornando o seu discurso compreensível a todos: jornalistas e público em geral. Segundo Cláudia Juberg,
“Ciência e arte são inseparáveis. Observar com olhares atentos cenas da natureza, das ciências físicas,
matemáticas ou biológicas a partir de uma vivência pessoal e transformar em resultados de pesquisa é como
dar formas e cores em arte. Do nada, ou quase nada, chega-se ao concreto. Assim se configura também o
trabalho do assessor de imprensa e do divulgador de ciências. Com olhos atentos e um feeling aguçado,
procuramos dar forma e textura a algo até então desconhecido e incompreensível. Às vezes, conseguimos”
(JURBERG , 2002, p. 209). Cláudia Jurberg é assessora de eventos científicos do Instituto Oswaldo Cruz. O
assessor tem um papel fundamental como intermediário entre a “[...] ciência e a mídia e se utiliza da sua
experiência para confrontar idéias e objetivos, apaziguar conflitos e criar a possibilidade do diálogo entre a
ciência e a sociedade” (JURBERG, 2002, p. 209).
35

que muitas vezes não possuem. Fronteiras e limites reclamam a imagem,


o marco — concretude que, substituindo a abstração, possa fornecer a
idéia de exatidão (HISSA, 2002, p. 35).

Por sua vez, da ciência compartimentada emerge a figura do especialista. A cada


um deles caberia uma peça do conhecimento para, assim, procurar uma aproximação mais
objetiva na explicação da realidade. Para Bronowski (1977, p. 14), a existência de
especialistas é um fato tão moderno como a ciência, afinal “[...] o ‘cientista’, palavra que
tem apenas cem anos [...]”, segue aceitando as regras imperativas de um jogo da ciência.
“A ciência não é um privilégio de uma teoria ou de uma mente” (MORIN, 2002, p. 40), a
ciência é o resultado do aceite dos cientistas diante de regras do paradigma a ser seguido.9
Ao mesmo tempo em que a ciência se torna um conhecimento questionador e
desconfiado, apresenta-se como um conhecimento que “[...] desenvolveu metodologias tão
surpreendentes e hábeis para apreender todos os objetos a ela externos” (MORIN, 2002, p.
20), bem como metodologias de pesquisa respeitáveis. Entretanto, é um conhecimento que
não se conhece. Segundo Edgar Morin (2002, p. 20), “[...] essa ciência não dispõe de
nenhum método para se conhecer e se pensar”. Boaventura de Sousa Santos, ao citar
Bachelard, assegura que um autoconhecimento da ciência é possível a partir de seu
confronto consigo mesma. Assim,

[...] como diz Bachelard, a teoria do objetivo deve ser construída contra o
objeto, assim também só aplicando a ciência contra a ciência é possível
levá-la a dizer não só o que se sabe de si, mas tudo aquilo que tem de
ignorar a seu respeito para poder saber da sociedade o que esperamos
que ela saiba (SANTOS, 2000 a, p. 13-14).

A ciência tece sua própria teia e muitas vezes representa perigos. São perigos que
podem refletir na construção de produtos que, ao invés de construir, destruiriam o mundo,

9 A especialização, na medicina, desenvolveu uma cartografia do paciente, reticulada, na expectativa de


abordar, por partes, processos patológicos. No entanto, no momento da doença é o corpo inteiro que adoece.
A abordagem à retícula, nesses termos, é esterilizada pela contaminação de toda a rede feita de vida, de corpo
e mente. O mesmo pode ser pensado para a economia, a química, a física. Para minimizar esses males
causados pela hiperespecialização, surgem novas disciplinas como a biofísica, a bioquímica, num processo
denominado de interdisciplinaridade. No entanto, nada se resolve: a cada surgimento correspondem um
especialista e um fragmento de leitura. Esses são problemas gerados no bojo do conhecimento científico e
que urgem soluções que não serão apresentadas pelo paradigma dominante e muito menos pelos cientistas —
mesmo porque estes dependem do primeiro. O problema já não se limita a hiperespecialização ou
interdisciplinaridade. “O paradigma dominante é que constitui o verdadeiro problema de que decorrem todos
os outros” (SANTOS, 2000 a, p. 47).
36

juntamente com todos os fenômenos a serem estudados. A ciência, que deveria existir para
se aproximar do mundo, afasta-se da sociedade.10
A crítica feita à ideologia cientificista está relacionada ao fato de que o propósito da
ciência seria o de servir a sociedade ficando, então, próxima dela. No entanto, se observa
um distanciamento entre a ciência e a sociedade que a originou, pois a orientação do uso
das ciências é definida sem o controle dessa sociedade. Faz-se necessário o caminhar para
além das reflexões sobre o mundo. Faz-se necessária uma reflexão sobre a “[...] ciência e
sobre os limites que a fraturam e, simultaneamente, a separam do mundo que busca
representar” (HISSA, 2002, p. 43).11
A ciência moderna é feita de fraturas, fragmentos que afastam o conhecimento de
outras formas de saber. Para que as distâncias pudessem ser diminuídas, imagina-se que a
ciência pudesse romper com algumas das suas tradições com base na experiência de
contato com outros saberes, que, também, seriam transformados a partir da ciência.
Apenas, assim, imagina-se a ciência integrada, democraticamente, aos saberes locais feitos
de senso comum, de mitos, de conhecimentos práticos. Como afirma Cássio Hissa (2003, s.
p.), “[...] todos os saberes se misturariam, assim como se misturariam todas as formas de
conhecimento: o religioso, o artístico. A esse movimento de transformação se acostumou
chamar de transdisciplinaridade”.
Boaventura de Sousa Santos preocupa-se com o desenvolvimento pleno tanto do
senso comum como do conhecimento científico. O autor afirma que “[...] o senso comum
só poderá desenvolver em pleno a sua positividade no interior de uma configuração

10 Os resultados de pesquisas científicas acarretam na fabricação de armas nucleares e materiais bélicos. As


ciências já ocupam lugar de destaque na economia e na política. Marilena Chauí lembra: “A automação, a
informatização, a telecomunicação determinam formas de poder econômico, modos de organizar o trabalho
industrial os serviços, criam profissões e ocupações novas, destroem profissões e ocupações antigas,
introduzem a velocidade na produção de mercadorias e, em sua distribuição e consumo, modificando padrões
industriais, comerciais e estilos de vida. [...] a ciência tornou-se agente econômico e político. [...] Não é por
acaso, por exemplo, que governos criem ministérios e secretarias de ciência e tecnologia e que destinem
verbas para financiar pesquisas civis e militares” (CHAUÍ, 1996, p. 285-286). A autonomia e o desinteresse
científico se proscrevem, durante as décadas de 1930 e 1940, diante da industrialização da ciência. A
sociedade, então, tolerou dupla decepção com a ciência: o conhecimento originado em seu interior relutava
em se aproximar e, a partir do fenômeno global da industrialização científica, foi sujeita a presenciar a “[...]
introdução maciça da tecnologia [que] provocava o desemprego tecnológico” (SANTOS, 2000 a, p. 122). O
autor afirma: “[Na] década de quarenta a ‘posição social’ da ciência nos EUA caracterizava-se, ao nível
interno, por uma reação difusa, mas cada vez mais intensa, de hostilidade contra a ciência e suas aplicações e,
ao nível internacional, pela politização da ciência levada a cabo pelo nacional-socialismo na Alemanha”
(SANTOS, 2001, p. 34- 35).
11 “A crise implica a instalação de um ambiente de dúvidas e indefinições, sugere transformação, pode
significar mudança, estimular crescimento, além de criar alguma condição para rupturas”, já anunciava
Cássio Hissa (2002, p. 63). “As promessas não cumpridas pela ciência [...]” (HISSA, 2002, p. 63) se
apresentam como um motivo importante para que se rediscuta o modelo clássico dos saberes.
37

cognitiva em que tanto ele como a ciência moderna se superem a si mesmos para dar lugar
a uma outra forma de conhecimento” (SANTOS, 2000 a, p. 41). Para que isto aconteça, é
indispensável ocorrer uma ruptura com a ruptura epistemológica, quando esta rompe com
o senso comum. Tanto o senso comum como o conhecimento científico possuem
características que os afastam, mas que, também, os aproximam. O contato dos saberes não
significa, nesses termos, a exclusão de algum deles. A pergunta continua a ser feita por
Boaventura de Sousa Santos (2001, p. 8-9): a ciência continuará considerando irrelevante,
falso e ilusório o conhecimento que se utiliza para dar sentido à prática da vida individual
ou coletiva? Qual é o papel do conhecimento científico acumulado no enriquecimento ou
no empobrecimento prático de nossas vidas?

1.2. A NATUREZA DO MITO NAS CULTURAS PRIMITIVAS

O mito é referência importante à medida que em seu bojo incide a trajetória


histórica da memória dos grupos sociais. Esta memória (presente nos mitos) enraíza a
noção de território para uma sociedade indígena. Para elas, cada lugar tem sua história e,
assim, cria-se um mito. Nomes de lugares vão surgindo e percorrendo os espaços-tempos.
Para o estrangeiro do lugar, a relação entre a nominação e o lugar em si é inexistente,
embora para o nativo apenas o nome é suficiente para que toda uma memória coletiva
daquele ponto seja realçada e, principalmente, explicada. Sendo assim, o mito deve ser
entendido como um dos vários elementos que compõem a memória coletiva, em que a
lembrança é caracterizada como momento que une manifestações socioculturais.
O saber indígena é, ao mesmo tempo, o produtor e o produto do mito. 12 É o mito
que dá as qualidades à sociedade indígena. Sua identidade se forma e se qualifica através
do mito. Por sua vez, o mito é, também, qualificado e reformado para manter aquilo que
identifica a sociedade. Não é estático, é vivo. Por não ser estático, sofre influências
exógenas como as da ciência moderna que o posterga.

12 Ao sistematizar a definição de mito, depara-se com idéias elaboradas por pensadores que buscaram
apreender a natureza do mito nas culturas ditas primitivas e suas características. Entre eles está o etnólogo
Claude Lévi-Strauss, com as obras Mito e significado e Tristes Trópicos. Bronislaw Malinowski, por sua vez,
descreve o papel do mito na vida de vários povos estudados por ele de uma forma funcionalista, no qual o
38

Mesmo existindo tantos estudiosos das questões relacionadas aos mitos, ainda não
foi possível definir com exatidão o que vem a ser o mito. Embora as características deste
fenômeno, como nos diz Everardo Rocha (1996, p. 7-15), sejam claras para muitos
mitólogos que arriscariam a definir o mito como uma narrativa, uma fala. Sua difícil
localização no tempo não permite descobrir, calcular ou mensurar quando determinado fato
se transforma num mito; sua fala indireta oculta alguma mensagem, necessita de
interpretação, não de uma interpretação científica, mas de uma interpretação que reúna
todos os sentidos para decifrar suas mensagens. Para a ciência, uma outra característica do
mito é a sua inverdade, que faz dele algo inexato e que inibe qualquer possibilidade de
predição dos fatos. Além disso, para se explicar um mito há que se necessitar de outro,
com a mesma carga de significados que, aos olhos da ciência, não teriam utilidade
nenhuma. É o que se denominaria de vago contrapondo-se ao preciso da ciência (HISSA,
2002, p. 35).
Cássio Hissa contribui para a compreensão do que pode ser uma das principais
características do mito: buscar explicar a realidade. Veja-se com o autor:

Para o mundo contemporâneo, que assume todas contradições da


modernidade, os “mitos primitivos” não são mais do que fantasias
transformadas em lendas. O que é o mito, no entanto, para os povos
primitivos? O mito é um meio através do qual os povos primitivos
buscam explicar a realidade. A primitividade dispensa o conhecimento,
tal como concebido na modernidade pelos parâmetros ou critérios
próprios desses outros espaços-tempos. Entretanto, mais do que um meio
de interpretação, os povos primitivos têm, no mito, um instrumento de
viabilização de sua existência e sua situação no mundo (HISSA, 2002, p.
49).

A ciência, para ser compreendida, necessita de uma incursão na sociedade em que


foi gerada: com o mito não haveria de ser diferente. Os mitos são inerentes às coisas do
mundo natural e cultural. Tratar o mito na base cultural em que foi engendrado pode
tornar-se um caminho profícuo para qualquer discussão.
O etnólogo Claude Lévi-Strauss (1981) entende o mito como uma interpretação ou
revelação do pensamento de uma sociedade, ou seja, a concepção da existência e das
relações que os homens devem manter entre si e com o mundo que os cerca.

mito servia socialmente, ou seja, “[...] ora funcionava como explicação que saciava a ânsia de conhecimento,
ora funcionava como satisfação de profundos desejos religiosos” (ROCHA, 1996, p. 40).
39

Da mesma forma, não é possível relegar o caminhar histórico de uma sociedade. Os


tempos de antigamente tornam-se importantes à medida que através dos feitos, das viagens
e das incursões pelo território indígena, memórias vão sendo formadas. A partir delas
surgem estereótipos presentes no mito coletivo de uma dada sociedade — embora isso não
ocorra antes que a lembrança dos tempos de antigamente sofra as mutações passíveis de
influências do presente.
Egon Schaden (1988) retrata alguns dos mitos de criação de várias sociedades
indígenas. Em muitos deles cita, freqüentemente, um ente heróico que protagoniza os fatos.
Nos Kadiwéu, por exemplo, o carcará, um gavião do Pantanal, é um dos auxiliares de
Deus.
Darcy Ribeiro aponta que se foi possível a afirmação da sociedade Kadiwéu no
tempo e no espaço, ela se viabilizou pela existência de uma mitologia viva e presente:

A mitologia assegurou à sociedade Kadiwéu, no período de sua máxima


expansão — quando sua coesão e solidariedade estavam ameaçadas pela
presença de uma maioria de cativos tomados a diferentes tribos — um
núcleo de valores altamente consistente e unanimemente co-participado,
que contribuiu para a preservação de sua unidade política. Através de
suas representações episódicas, a mitologia assegurou ao grupo a
consciência de uma origem, situação e destino comuns, acentuando a
noção de sua especificidade como povo diferenciado pelos costumes e
pela “destinação” (RIBEIRO, 1980 a, p. 92).

À medida que influências exógenas adentram uma cultura, podem, muitas vezes,
reformular os mitos, reforçando-os em sua condição de interpretador da realidade. No caso
dos Kadiwéu:

[...] a [sua] atual mitologia [...] reflete seus esforços para adaptar-se às
condições de vida que lhe foram impostas; é em grande parte uma
expressão da nova visão do mundo que vão adquirindo como povo
dominado, impedido de fazer a guerra e que tem de acomodar-se aos
meios de vida aprovados pelos seus vizinhos neobrasileiros (RIBEIRO,
1980 a, p. 92).

Mônica Pechincha evidencia a característica do mito que pune os que transgridem


regras sociais. Os simbolismos presentes nos mitos só podem ser resolvidos por eles
mesmos. Rita Segato, citada por Mônica Pechincha, afirma:

O mito é capaz de encarnar, de dramatizar numa narrativa um leque de


40

verdades relevantes ou possíveis que, mais do que expressar, revela,


torna patente o horizonte mesmo sobre o qual uma sociedade constrói
sua existência (SEGATO, apud PECHINCHA, 1994, p. 108).

Diante dos conhecimentos indígenas adquiridos através dos espaços-tempos, com


base no observar e no fazer, seria interessante o questionamento sobre a possibilidade de
existir, dentre os indígenas, algum intelectual que se sobressaia nas aldeias. Para tanto,
Jack Goody levanta um questionamento a respeito da possibilidade de existirem
intelectuais nas sociedades pré-letradas. O autor inicia sua busca através da análise de
Durkheim que afirma:

[...] esta preguiça intelectual atinge necessariamente o seu máximo entre


os povos primitivos. Estes seres fracos, que tanto trabalho têm a manter a
vida contra o ataque de todas as forças que os desafiaram, não se podem
permitir o luxo da especulação. Não refletem, a não ser quando são
incitados a tal (DURKHEIM apud GOODY, 1988, p. 32-33).

Durkheim não era um antiintelectualista a ponto de evitar a consideração das coisas


intelectuais no universo das formas elementares. Porém, o que mais lhe interessa são
essencialmente os aspectos sociais destas categorias e especulações.

Uma atividade intelectual especial [...] infinitamente mais rica e complexa


que a do indivíduo. A partir daí pode-se compreender como foi a razão
capaz de ir além dos limites do conhecimento empírico. E isto não ficou a
dever-se a qualquer vaga virtude misteriosa mas, simplesmente, ao fato
de, segundo uma velha fórmula, o homem ser duplo. Nele, coexistem
dois seres: o ser individual que tem a sua base no organismo e cujo
círculo de atividades está por isso mesmo severamente limitado, e o ser
social que representa na ordem intelectual e moral, a mais elevada
realidade que a observação nos permite conhecer, isto é, a sociedade
(DURKHEIM apud GOODY, 1988, p. 32).

Como se observa, a intelectualidade está diretamente relacionada com a sociedade.


O conhecimento é um processo social e não individual. Como lembra Durkheim, a base do
individual é o organismo que o limita. No entanto, é através do social que o indivíduo
rompe suas barreiras orgânicas e desenvolve outras habilidades.
Na história do Brasil encontramos relatos e casos de extinção de sociedades inteiras,
como rememora Marcos Terena, “[...] quando morre um povo indígena, ele nunca mais
volta. Desaparece uma civilização, sua língua que nunca mais é redescoberta” (TERENA,
41

apud MORIN, 2001, p. 17). Com esse extermínio, saberes se perderam para sempre. Com
eles, um pouco do mundo em que se vive.

1.3. SUBTERRÂNEOS DA CULTURA KADIWÉU: HISTÓRIAS, MITOS E SABERES

Os Kadiwéu fazem parte de uma família maior que viveu no Brasil, mais
precisamente no Chaco paraguaio: os Guaikuru. Dessa família, os Kadiwéu são os únicos
representantes. São conhecidos como índios cavaleiros, devido a suas habilidades com
cavalos adquiridos através do contato com os portugueses. Os Kadiwéu se autodenominam
Ejiwajegi13, palavra que os diferem dos animais: sou gente.
Donos da maior área indígena do centro-sul brasileiro, os Kadiwéu creditam este
feito a uma doação realizada por D. Pedro II — embora sem qualquer documento que
comprove este fato —, como retribuição à sua colaboração na guerra do Brasil contra o
Paraguai. Conforme registrado na obra de Guido Boggiani:

Na guerra do Brasil, Argentina e Uruguai contra o Paraguai, em 1865, os


Caduveos, instigados e armados de fuzis pelos Brasileiros, penetraram no
rio Apa, assaltando as aldeias e os exércitos paraguaios. [...] Depois dessa
guerra o Brasil reforçou sua influência sôbre os Mbayá que, atraídos
pelos presentes recebidos das autoridades do Império, visitam
anualmente Corumbá, Coimbra e Albuquerque, onde trocam os seus
troços por pólvora, panos, facas e outras coisas: lá são atraídos com
presentes de fuzis antigos, de uniformes de refugo e diplomas de oficiais
do exército imperial. (BOGGIANI, 1975, p. 267).

O fato também está registrado na memória dos próprios Kadiwéu, como se percebe
no depoimento de Durila Bernaldino, cujo nome indígena é Nigodena14:

13 Lê-se EDJIUADIGUI.
14 Nigodena é o nome indígena da mulher que, em 2005, nascida no mês de agosto, supostamente,
completará 121 anos. A anciã não afirma a idade que tem. Consta da sua certidão, que nasceu em 1902.
Guido Boggiani esteve presente, na aldeia, em 1892 — dez anos antes do registro de nascimento de
Nigodena. Entretanto, é interessante observar que ela, sem a menor intenção de forjar a lembrança de fatos,
se recorda de histórias que são anteriores ao seu nascimento — considerando que tenha nascido, mesmo, em
1902. Ela se recorda do pesquisador italiano, presente nas histórias que Nigodena narra. Além disso, ela
reconhece palavras italianas, sendo analfabeta. Nigodena: imagem viva e presente na cultura Kadiwéu, que,
entretanto, está confinada na memória dos antigos. Nigodena, atualmente, é relativamente margilinalizada. A
comunidade é indiferente à existência dos antigos que detêm a memória do povo. A escola assume o centro
do conhecimento e desloca sombras para os saberes originários do interior da própria cultura Kadiwéu. Muito
42

[...] ninguém jamais poderá tomar posse desse campo, isto vem desde
antigamente, ninguém podia entrar. Hoje é diferente, ninguém teme mais
os índios, ninguém mais respeita, nós que tememos as altas autoridades,
parece que eles que querem ser o dono do que na realidade é nosso, mas
foi uma autoridade superior de quem o capitão ganhou esta terra, como
recompensa no término de guerra contra os paraguaios. Dizia para ele: —
Tome esta terra capitão, esta será sua, se eu pagasse em dinheiro não
daria, mas esta terra durará para sempre, cuide sempre desta terra, não
deixe que ninguém a tome (SIQUEIRA JR., 1993, p. 209, grifos do autor).

Jaime Garcia Siqueira Jr., que recolheu este depoimento, completa:

A importância desse acontecimento para os Kadiwéu reside no fato de


terem o território que habitavam reconhecido oficialmente por D. Pedro
II e pelas “autoridades”. Os brasileiros, aproveitando-se da histórica
rivalidade dos Guaikuru com os espanhóis e paraguaios, cooptaram os
índios disponíveis naquele momento, entre eles os Kadiwéu, Terena e
outros, para barrarem o avanço das tropas paraguaias. Os índios foram
na verdade, usados como “bucha de canhão” pelos brasileiros, sofrendo
muitas baixas em função do conflito (SIQUEIRA JR., 1993, p. 211).

Esse é o poder do mito que explica todo um modo de vida. Nesse caso, a
manipulação de um evento, transformado agora em um mito que, por sua vez, é
transmitido entre as gerações, destaca a valentia e a coragem de seus guerreiros. Os
Kadiwéu explicam que outras sociedades indígenas possuem pouca terra porque fugiram
da guerra e, assim, não foram contempladas. Mesmo que essa versão Kadiwéu dos fatos
sobre a Guerra do Paraguai seja desmentida pela ciência, não afetará em nada a vida deles,
pois são duas formas distintas de se abordar a mesma questão. Assim, pode-se dizer, ainda,
que esse suposto conhecimento científico sofreria uma reelaboração por parte do saber
indígena Kadiwéu.
Os Guaikuru, família que deu origem aos Kadiwéu, tiveram sua sociedade estudada
por vários cronistas, viajantes e antropólogos que mantiveram contato com o grupo ao
longo do tempo. Os primeiros contatos com os Guaikuru datam desde o século XVI.
Dentre os que estiveram em contato com os Kadiwéu, é importante ressaltar o colecionador
de objetos etnográficos, Guido Boggiani. Esse italiano esteve entre os índios no ano de

se perde, já. Nigodena narra contos e mitos, homenageia visitantes com cânticos através de uma linguagem
arcaica, de origem Kadiwéu, que os índios mais jovens não reconhecem.
43

1892, retornando posteriormente em 1897, quando foi morto por índios Chamacoco15. Os
momentos vividos por Guido Boggiani em 1892 estão registrados na obra Os Caduveos,
mas os registros de 1897 ainda não foram publicados e continuam sob a forma de um
diário de viagem. Em suas anotações, Guido Boggiani descreve, sem preocupação
científica alguma, o seu contato com os terrenos alagadiços do pantanal e seu comércio
com os Kadiwéu.

Boggiani visitou os Caduveo no seu centro principal, em Nalique, onde


permaneceu por dois meses e meio com os índios dormindo nas suas
cabanas, comendo com eles e tomando parte nos seus divertimentos, nos
seus jogos e nas suas festas. Durante esse tempo ele foi, dia a dia,
acuradamente anotando quanto ouvia e observava que pudesse
interessar à geografia e à etnografia (BOGGIANI, 1975, p. 50).

A sociedade Kadiwéu, a exemplo de seus antepassados Guaikuru, está dividida em


“senhores ou nobres” e em “cativos”. Na percepção de um não-índio a situação parece
assustadora, embora, para eles, ela seja natural, pois Deus quis assim. Foi Deus quem deu o
poder para subjugar os povos do mundo todo: este é o mito de criação da sociedade
Kadiwéu. Segundo Alfred Métraux, os antepassados dos Kadiwéu, os Mbayá, se dividiam
em duas classes: a primeira composta pela nobreza, que ele denomina de sangue.

A nobreza de sangue propriamente dita estava dividida em duas classes.


O grupo superior comprendía os membros mayores de uma linhagem
aristocrática, e estava formado pelos caciques de bandas grandes e
subgrupos. A segunda classe de nobres incluía todos os caciques menores
e todos os descendentes (dos grandes caciques) e parentes de ambos
sexos, “em qualquer linha ou grau” (MÉTRAUX, 1996, p. 161-165,
tradução e adaptação do autor).16

E os cativos:

Entre eles havia representantes das seguintes tribos: Guachí, Guató,


Guarani, Kaingang. Bororo, Kayapó, Chiquito, Chamacoco, e uns poucos
mestiços paraguayos. […] Recebiam bom tratamento de maneira geral, e
se consideravam como membros legítimos da familia do seu senhor.
Comiam com ele, tomavam parte nos jogos como homens livres, e ainda
permitiam-lhes assistir aos Conselhos de guerra. Apesar de que dava

15 Os índios Chamacoco se transformaram em cativos de famílias Guaicuru durante anos. Eles estão
incluídos nos mitos Kadiwéu, citados neste capítulo. Atualmente, ainda vivem na Bolívia, podendo-se
encontrar alguns de seus representantes, ou descendentes, no próprio território dos Kadiwéu.
16 Traduzido e adaptado do original em espanhol.
44

ênfase claramente definida na pureza do sangue, eram bastante


freqüentes os matrimônios entre mulheres cativas e homens livres, ou
entre mulheres livres e escravos. Muitos prestigiosos caciques Mbayá
tinham mães Guaná ou Chamacoco. O status dos escravos não melhorava
com estas uniões, mas os filhos que resultavam delas eram homens livres,
apesar de que sua origem parcialmente servil era uma mancha na qual
podiam referir-se pessoas malévolas. Uns poucos escravos podiam
liberar-se, mediante méritos pessoais ou depois da morte de seus
senhores (MÉTRAUX, 1996, p. 161-165, tradução e adaptação do autor).17

Darcy Ribeiro, que viveu entre os Kadiwéu, analisou profundamente a relação entre
“senhores” e “cativos”:

A estrutura social Kadiwéu se baseia numa estratificação étnica em


camadas de senhores e servos, sendo a camada de servos constituída de
indivíduos capturados ou comprados de outras tribos e seus
descendentes em primeira e segunda geração. [...] As relações entre
senhores e servos são assimétricas de submissão dos primeiros aos
últimos, e é comum o tratamento recíproco de “meu senhor” e “meu
cativo” entre uns e outros. A expectativa de comportamento dos senhores
é de que os servos mantenham uma atitude respeitosa diante deles, e, em
muitos casos, que prestem serviços sem esperar retribuições e lhes dêem
uma parte do produto de seu trabalho. Esse padrão é claramente
manifestado na afirmação seguinte que ouvimos de uma “cativa”
[Idalina, de Campina]: “a gente respeita o dono mais do que os outros
homens e quando ele vem na casa, a gente tem que dar do melhor para
ele comer” (RIBEIRO, 1980 b, p. 75).

Nos dias atuais, os Kadiwéu continuam a valorizar este sistema “senhorial”, embora
nem todos o façam. Relações como estas não são tão visíveis quanto parecem. Estão
implícitas nos jogos, nas danças, nas relações comerciais, no luto, no nascimento, no
matrimônio e, também, no espaço escolar. Uma forma que demonstra essa relação é a
distribuição de terras.
A Reserva Indígena Kadiwéu é dividida em fazendas pela necessidade de maior
controle dos índios sobre suas terras. No entanto, percebe-se um fenômeno natural que
ocorre no período das cheias, que dura cerca de 5 meses. As fazendas de não-índios estão
situadas em áreas alagáveis do Pantanal e, em época de cheias, os rebanhos dessas
fazendas fogem para as áreas mais altas e secas que são, exatamente, as terras dos índios
Kadiwéu. Planas, altas e possuidoras de ótimos pastos, eram freqüentemente invadidas
pelos animais dos vizinhos não-índios.

17 Traduzido e adaptado do original em espanhol.


45

Dessa situação resultaram muitos conflitos, pois as constantes invasões de rebanhos,


seguidas de não-índios, promoveram grandes confrontos entre Kadiwéu e seus vizinhos.
Surgem, assim, a partir da década de 1950, os arrendamentos criados pelo SPI (Serviço de
Proteção dos Índios). Com o fechamento do SPI na década de 1960, é criado outro órgão
destinado à proteção dos índios: a FUNAI (Fundação Nacional do Índio). Os
arrendamentos passam, então, a ser administrados por este órgão.
A partir de 1989, o arrendamento foi controlado pela ACIRK (Associação da
Comunidade Indígena da Reserva Kadiwéu), organização indígena criada pelos Kadiwéu.
Em 1990, o arrendamento foi considerado ilegal, iniciando-se, assim, uma série de
despejos. A organização indígena ACIRK cria um estudo de parcerias, nome dado
atualmente ao contrato firmado entre o fazendeiro (dono do rebanho) e o índio (dono do
pasto), através de contratos com interesses individuais garantidos juridicamente. Muitos
índios continuam sem fazendas e, por isso, não estão inseridos neste sistema. Embora haja
reuniões na comunidade para discutir cada caso, o que se observa é que, coincidentemente
ou não, essa minoria está composta por cativos.
Para quem não tem direito às fazendas uma saída é a roça de subsistência, onde
plantam milho, mandioca, feijão, batata doce e arroz. A técnica utilizada é a de roça de
toco, denominação dada à roça feita após a derrubada de mata, onde ficam pedaços de
tronco das árvores com a raiz enterrada. Para as mulheres, o artesanato produzido, com
técnicas de seus ancestrais, contribui na renda familiar. São verdadeiras obras de arte.
Apesar de se diferenciarem muito em forma, tamanho e acabamento, todas as peças são
bastante coloridas e de grande refinamento estético. As mulheres utilizam barros coloridos
e uma espécie de resina produzida a partir do pau-santo na confecção de suas peças
artesanais.18
A sociedade Kadiwéu está relativamente próxima à cidade. Os contatos com a
sociedade envolvente são freqüentes, além de várias famílias Kadiwéu possuírem parcerias
com fazendeiros que lhes arrendam os pastos para a pecuária extensiva em toda área
indígena. Além disso, a população indígena é atendida por vários programas sociais:
Programa de Segurança Alimentar, que oferece uma cesta básica mensal para cada família;
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), que visa retirar do trabalho as
crianças em idade escolar; Bolsa Escola, que oferece uma ajuda no valor de R$ 25,00 para

18 Pau-santo é uma arvoreta da família das gutíferas (Kielmeyera coriacea), muito comuns no cerrado, de
folhas grandes e duríssimas, flores amplas e lindamente alvas ou rosadas, e frutos que são cápsulas.
46

cada criança que permanece na escola e que tenha entre 7 e 15 anos; Vale Gás, que se
constitui em um auxílio financeiro para aquisição de gás de cozinha. É válido lembrar que,
excetuando o Programa de Segurança Alimentar, para todos os outros é necessária a
retirada do recurso financeiro, através de cartões magnéticos no banco da cidade, obtendo-
se, desse modo, outros contatos intersociais. O dinheiro recebido pelos programas é
utilizado, principalmente, para compra de alimentos e vestuários, uma vez que a prefeitura
oferece o material escolar gratuitamente.
O que fez com que os Kadiwéu resistissem aos ataques e às invasões de terras por
um lado, e, pelo outro, à invasão de sua cultura por fenômenos exógenos a ela? Muitas
sociedades indígenas do Brasil, principalmente as que ficaram muito tempo expostas às
influências dos não-índios, não tiveram como continuar existindo, tornando-se extintas. No
entanto, os Kadiwéu podem ser compreendidos como uma exceção. Assimilaram o uso do
cavalo tomado dos espanhóis, ou seja,

Os padrões culturais elaborados pela comunidade tribal eram de


natureza a favorecer tanto a integração de elementos novos (uso do ferro
e da prata, criação de gado bovino e lanígero, principalmente cavalar)
como o aproveitamento destes no sentido de dar nova vitalidade à tribo
toda — a ponto de se tornar genuíno povo de dominadores (SCHADEN,
1988, p. 61).

Foi imprescindível aos Kadiwéu a assimilação de elementos novos pela sua cultura
para que sobrevivessem. Além disso, a dinâmica de sua cultura, as modificações realizadas
nos mitos, as tradições que foram inseridas — como a do cavalo — não lhes forjaram
qualquer inferiorização, muito pelo contrário: deixaram-nos mais fortes culturalmente.
Esse caráter dominador da sociedade Kadiwéu está registrado nas várias versões do
mito de criação. As versões diferem em vários pontos, mas em todas percebe-se a natureza
dominadora que foi herdada pelos Kadiwéu para subjugar, conforme o mito que procuram
reproduzir, todos os povos da face da terra. Eis o mito, recolhido por Claude Lévi-Strauss,
em 1935:

Quando o ser supremo, Gonoenhodi19, decidiu criar os homens, tirou

19 Em todas as bibliografias em que se encontram palavras na língua Kadiwéu, observa-se algum diferencial
na grafia. Esse diferencial é fruto do estudo que a língua obteve, durante 30 anos, iniciado em 1968, pelo
Summer Institute of Linguistic, hoje, Sociedade Internacional de Lingüística. De acordo com o Dicionário da
Língua Kadiwéu, fruto desse trabalho, a grafia correta desta palavra, para os dias atuais, é šonoenoºodite e
seu significado tanto pode ser nosso Deus como herói de lendas (SIL, 2002, p. 63).
47

primeiro da terra os Guaná, depois as outras tribos; aos primeiros, deu a


agricultura como quinhão, e a caça aos segundos. O Enganador, que é a
outra divindade do panteão indígena, percebeu então que os Mbaiá
[Mbayá] haviam sido esquecidos no fundo do buraco e os fez sair dali;
mas como não sobrava nada para eles, tiveram direito à única função
ainda disponível, a de oprimir e explorar os outros. (LÉVI-STRAUSS,
2001, p. 170).

A antropóloga Mônica Pechincha colheu em seu trabalho, em 1994, o seguinte mito


de criação:

No início do mundo, γγonoenoγodi [onoenoodi] tirou primeiro os


índios Kadiwéu e depois o branco, o paraguaio, o boliviano, o alemão.
γγonoenoγodi [onoenoodi] tirou e fez todos os tipos de índios.
Quando terminou, a Carancho lhe disse: ”o senhor esqueceu o seu povo
Xamakôko”. γγonoenoγodi [onoenoodi] quebrou um pau, limpou-se
e jogou no mato. De repente o Xamakôko gritou, ei! E γγonoenoγodi
[onoenoodi] falou que ele seria sempre assim, do mato (João de
Barros) (PECHINCHA, 1994, p. 109).

Quanto ao território, é interessante notar como o mitológico influencia na sua


definição. O território de uma sociedade indígena representa o início de tudo. Trata-se da
referência para as suas vidas. Entre os Kadiwéu não é diferente: o espaço é o suporte para a
sua sociedade. O conhecimento que os Kadiwéu possuem de seu território está gravado em
um mito que promove o modo de vida desses índios quando

[...] os Kadiwéu eram viajantes. Saíam viajando pelo Pantanal. Os índios


saíam para o campo e comiam o que eles achavam de caça. Eles comiam
tartaruga, queixada, porco-do-mato, todos os que eles sabiam que era
bom para comer, até os peixes, e também os pés de coqueiro. Deus não
deu para os Kadiwéu uma fama de ser ricos. Ele deu para os Kadiwéu
para serem viajantes pelo Pantanal (João Matexua) (PECHINCHA, 1994,
p. 113).

Mônica Pechincha (1994), ao analisar o mito de criação dos Kadiwéu, afirma que o
desígnio do criador quis que o Kadiwéu fosse um viajante do Pantanal. Atualmente, isso é
impossível. A demarcação de seu território, em meados de 1980, completou o processo de
sedentarização dessa sociedade. Hoje o Pantanal está repleto de fazendas. Os índios não
podem mais transitar como no passado, e como Deus quis.
Assim como os Kadiwéu foram criados, os mitos explicam como foi a criação dos
outros povos e qual a utilidade deles na terra. Mônica Pechincha (1994, p. 114) afirma que
48

“[...] a posição de cada nação e seu destino histórico é um presente feito pelo criador e
assim as coisas devem permanecer”.
Quanto a inferiorização do Kadiwéu perante o não-índio, Mônica Pechincha revela
que eles não só aceitam o desígnio de viver caçando e morando em casas de palha como o
preferem, pois, “[...] aceitar tal desígnio corresponde a afirmar-se enquanto povo.
Aceitando, ele não se ressente da desproporção tecnológica frente ao branco. Tudo o que
quer é continuar a existir como índio” (PECHINCHA, 1994, p. 115).
A história — a científica —, juntamente com a antropologia, ao estudarem os mitos,
as memórias coletivas dos índios, estão, de certa forma, auxiliando demasiadamente a
geografia. Os caminhos traçados pelo território compõem-se de momentos históricos da
sociedade indígena, os mitos também são referenciados por pontos importantes do
território, podendo essa referência ser representada por um morro, um córrego, um grande
rio, uma barranca, uma aldeia antiga, o cemitério. A mitologia também está intimamente
ligada à morte, pois, para os Kadiwéu, a ampliação do espaço destinado ao cemitério não é
permitida. A explicação vinda de um deles é clara, simples e precisa: se aumentar, morrerá
mais Kadiwéu, pois caberá mais gente.
Torna-se necessário refletir o que é conhecimento para que se compreenda como o
saber indígena Kadiwéu se instala no seio dessa sociedade. Primeiramente, quando se fala
em conhecimento, entende-se uma ou várias formas de apreender os fatos, os objetos, os
fenômenos externos e também internos, na busca de explicações sobre nós mesmos. De
maneira geral, a diferenciação entre os diversos conhecimentos se dá a partir do modo
como foi realizada essa busca. O conhecimento científico, por exemplo, possui uma
maneira metódica para chegar ao conhecimento de qualquer fato, fenômeno ou ser. O
método utilizado nesse caso é o científico, que, para a realização de qualquer pesquisa,
conta com a presença de três peças fundamentais: quem pesquisa (sujeito), o que se
pesquisa (objeto) e como se faz a pesquisa (metodologia), entendendo, dessa forma, que
toda e qualquer pesquisa encerre em si um propósito, ou seja, a justificativa.
No caso do conhecimento não científico, e aqui se enquadraria o conhecimento
adquirido pelos Kadiwéu, desconhece-se o objeto de estudo. Caberia melhor dizer que esse
objeto é inexistente. O que se estuda, como, quem estuda, ou seja, qual a natureza do seu
objeto e a sua metodologia de análise? São perguntas que não serão respondidas, pois não é
um conhecimento estruturado na forma da ciência moderna.
49

Os Kadiwéu possuem, como todo e qualquer povo, indígena ou não, os próprios


mitos e crenças. Estão ligados aos animais, aos seres que vivem nas matas, às forças
espirituais que vagueiam pelos campos e aos fenômenos. Esses mitos têm influências em
suas atividades cotidianas. Não se trabalham mitos individuais, apenas os coletivos, pois os
individuais, de uma maneira ou de outra, estariam dissolvidos neste coletivo. O mito
coletivo, esse sim, permeia a vida na aldeia, explicando a realidade, inserindo-lhe regras,
como estas que estão no imaginário coletivo e que qualquer Kadiwéu conhece, recolhidas
através de depoimentos:

[...] quando as pessoas ouvem o macawan cantar dizem que é notícia e


que pode morrer alguém em acidentes; quando a moça se menstrua pela
primeira vez não pode sair de casa, tem que ficar deitada de jejum o dia
inteiro, por que se ela sair e pisar em algum coco de bicho, ela pode virar
o bicho ou pode ficar louca; só podia comer caramujo, pois caramujo não
tem sangue; na noite de lua clara não deixar crianças brincando, por que
dizem que uma vez quando umas crianças estavam brincando, veio um
pássaro do céu, desceu e as levou; o lobinho quando canta, não presta,
por que adivinha morto; quando a curicaca começa a cantar é sinal de
que vai esquentar demais o sol; é proibido comer canela do veado,
porque causa cãibra. É proibido comer o tutano de qualquer animal, pois
quem come, se é machucado, não verte sangue. É preciso cozinhar a
carne do caitetu e não pode só comer a carne, mas também tomar a sopa.
O perigo em não se cumprir estas recomendações está em assustar-se à
toa, como queixada e repetir seus grunhidos. A carne do veado pururuca
da mesma forma deve ser cozida, senão o infrator torna-se presa fácil do
inimigo; quando um tatu cava um buraco no esteio de uma casa é sinal
que essa pessoa vai mudar do lugar.20

Nos Kadiwéu, a força da identidade está registrada em vários mitos, mas o principal
é o de criação, que possui várias versões. No mito de criação, Aneotodooji (Deus)
lhes dá toda a força para subjugar todos os povos criados anteriormente (SIQUEIRA JR.,
1993, p. 57). Um mito que demonstra a coragem e o heroísmo dos Kadiwéu foi criado
através dos acontecimentos da Guerra do Paraguai. Já na Guerra do Paraguai, os alunos
recontam que os Kadiwéu lutaram com os paraguaios e mataram a todos. É essa
superioridade que, sublinhada nesses episódios, preside a identidade desse povo.
Conhecer a natureza desse mito, conseqüentemente desse saber, colabora para que
se entenda como a relação entre o conhecimento Kadiwéu e o conhecimento científico se

20 Fauna do Pantanal: macawan (macauã), ave que tem um canto triste e doído; lobinho, animal com
características de um lobo e que difere pelo seu pequeno porte; curicaca, ave que sempre está em dupla, tem
seu bico bem curvo, feito Íbis, para ciscar os insetos da terra. (Informações coletadas pelo autor, através de
aulas e conversas informais, 2000 e 2003).
50

dá. Não são raras as vezes que não-índios presentes em uma aldeia são questionados no
que se refere à interferência na cultura, conseqüentemente nos mitos, com o ensino de
coisas do branco. As idéias que são expostas representam o imaginário romântico na figura
do índio das literaturas. Muitas dessas idéias não colaboram para um entendimento mais
real sobre os índios de hoje, principalmente no Brasil que, como já foi ressaltado, possui
mais de duzentos povos indígenas, ocupando, tradicionalmente21, 12, 24% do território
nacional (GRUPIONI, 2002).
Frente a um número tão expressivo, muitos concordam em dizer que os índios
deveriam permanecer onde estão. Talvez, em função da exigüidade de informações, a
realidade indígena, com seus mitos, e os registros das invasões de terras por não-índios,
através da exploração de madeira, caça, pesca turística ou exploratória, não deve estar
suficientemente divulgada. Afinal, os índios não estão tão distantes da nossa sociedade
como se pensa. Vivem nas cidades, estão freqüentando as mesmas escolas que nossos
filhos, se alimentam dos mesmos produtos industrializados. Mas onde quer que estejam,
possuem uma sociedade diferente ao seu redor e isto implica em não ficar imune a esta
sociedade. Ainda trocam-se espelhos por arcos e flechas.

21 Entende-se por terras tradicionais, as terras reconhecidas, através de estudos antropológicos, como sendo
da sociedade indígena que ali vive e onde viveram seus antepassados.
51

[...] seria necessário conhecer a diferença, não


como ameaça a ser destruída, mas como
alternativa a ser preservada, seria uma grande
contribuição ao patrimônio de esperanças da
humanidade (Everardo Rocha).
52

2. A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA E O REFERENCIAL CURRICULAR


NACIONAL PARA AS ESCOLAS INDÍGENAS (RCNEI)

O segundo capítulo da pesquisa cumpre funções bastante particulares no conjunto da


dissertação. Algumas delas, por si só, nem mesmo apenas servindo de referência para a
compreensão de todo o trabalho ou para o desenvolvimento do capítulo subseqüente,
cumprem papéis, com alguma autonomia, de fornecer imagens sobre a escola, sobre as
suas origens, que, em princípio, serviria de lugar de encontro entre culturas. Entretanto, a
escola, tal como apresentada neste capítulo, não é, de fato, uma escola indígena, tal como
deveria ser, tal como se desejaria que fosse. Os princípios da escola são os da escola
clássica, tradicional, conservadora. Assim, aqui, se faz uma apresentação da escola,
encaminhando alguns detalhes da sua história, da sua origem, e, ainda, se desenvolve uma
crítica ao modelo de escola da qual se servem os indígenas assimilados. Portanto, um dos
papéis desse capítulo é assumido pela crítica e pela leitura encaminhada ao projeto contido
na Educação Escolar Indígena.
O caminho percorrido pela educação formal levada às populações indígenas
permite avaliar a ciência em suas pretensões de se constituir um conhecimento único,
verdadeiro e hegemônico, sobrepondo-se aos outros — incluindo os saberes locais
existentes. A educação formal inserida nas aldeias, colocada ao exercício da economia e da
dominação colonial, não difere, atualmente, do uso científico realizado pelo poder
econômico. Afinal, a educação e a ciência são elementos de uma mesma cultura que se
apresenta dinâmica, e dela herdam suas idéias.
Neste capítulo é apresentado o caminho da inserção da educação formal nas
comunidades indígenas brasileiras. Uma educação que procurou, e ainda procura,
alternativas de se concretizar e, também, praticar o que já foi tema de vários encontros
indígenas e reivindicações de várias organizações indígenas e não-indígenas: uma escola
do índio que esteja ao seu serviço.
A história da Educação Escolar Indígena (E.E.I.) perpassa as fases da história do
Brasil, iniciando-se no período colonial, através dos padres jesuítas e suas gramáticas, e
passando pelo período imperial, quando Cartas Régias e determinações do Príncipe
53

Regente estimulavam a expropriação de terras dos índios pela população não-índia e


inseriam na sociedade indígena uma escola severa.
Enquanto nos períodos colonial e imperial não foram observadas mudanças no tipo
de integração imposta às populações indígenas, no período republicano a Educação Escolar
Indígena se altera consideravelmente, pois, em 1910, com a criação do Serviço de Proteção
ao Índio (SPI), a Igreja perde o privilégio especial de catequizar os índios. Somente a partir
do final da década de 1980, a E.E.I. ganha um amplo apoio jurídico, através da legislação a
favor dos indígenas do Brasil, que normatizou quaisquer intervenções nas comunidades
indígenas.
A implantação da educação formal nas aldeias indígenas, um processo contínuo, é
examinada neste capítulo, tomando-se como referência os processos ocorridos desde o
período colonial até a inserção de documentos pedagógicos e de natureza científica, como
o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI).
O Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI) , fruto da
atuação do Estado, não se apresenta como uma lei ou deliberação, mas pretende definir,
através de referências (sugestões), a prática do profissional da educação na escola indígena.
É um documento muito difundido entre os professores e agentes da E.E.I. por sua
pretensão de ser referência. Entretanto, os docentes indígenas apresentam dificuldades em
seu cumprimento (ou de tomá-lo como referência) por, principalmente, não estarem
totalmente capacitados para compreendê-lo. Tal qual os Parâmetros Curriculares
Nacionais, o RCNEI ancorou nas aldeias como uma obrigatoriedade intrínseca, por ser o
único material elaborado para atender, particularmente, as populações indígenas. Diante de
um material rico em sugestões, encontra-se um conhecimento científico fraturado. Apesar
disso, espera-se que uma prática interdisciplinar possa ser aplicada no decorrer do processo
de educação nas escolas indígenas.
Ao diferenciar-se da Educação Indígena, num sistema formal e sistematizado, a
E.E.I. segue — mesmo que tateando — suprindo as necessidades das sociedades indígenas
no Brasil. Algumas vezes, autoritária e intransigente e, em outras, atenta para os aspectos
positivos que podem advir da nova relação entre as populações indígenas e o Estado, a
E.E.I. atende aos paradigmas que a caracteriza: interculturalidade, bilingüismo,
especificidade e respeito à diferença.
Os atores que agenciaram esse novo processo de educação surgiram entre os
próprios indígenas através de organizações que reivindicaram novos rumos diante de uma
54

nova situação de contato. Além de representantes da comunidade indígena, observa-se,


também, a interferência do poder público, representado pelas esferas federal, estadual e
municipal, oferecendo suporte jurídico e material para que se atenda — mesmo que
minimamente, mesmo que subordinado às exigências externas, mesmo que em um
movimento de cima para baixo e de fora para dentro — ao que foi solicitado pelas
comunidades indígenas.
O suporte jurídico é composto por uma ampla legislação — leis, portarias,
diretrizes e deliberações — que aponta direções no sentido de se constituir uma escola que
atenda às necessidades dos indígenas. Nesse contexto, a partir de observações das
realidades locais anteriores, a legislação que vigora atualmente, a partir da Constituição de
1988, busca apontar caminhos que norteiem a construção da escola indígena tanto no que
diz respeito ao seu espaço físico — levando em consideração os aspectos arquitetônicos —
como, também, no que diz respeito ao ensino — pedagogias específicas para atender os
processos próprios de aprendizagem. Isso não significa que, na execução, as
reivindicações sejam plenamente satisfeitas.
A geografia participa do currículo dessa escola diferenciada e, para tanto, depara-se
com exigências que ultrapassam suas fronteiras, sem que, nesse contexto específico, sofra
quaisquer intervenções em sua natureza científica. A geografia é um conhecimento
científico que poderia se integrar aos saberes indígenas, relacionando-se com eles,
transformando-os e sendo transformada por eles. Não se pode esquecer que, como saber
estrangeiro, levado às populações indígenas, traz em seu bojo as concepções de uma
cultura, igualmente estrangeira.

2.1. As características da Educação Escolar Indígena no Brasil: focalizando


períodos da história

Dentre os fatores que colaboraram para a intensificação da cultura estrangeira nas


sociedades indígenas, podem ser listados: as tecnologias inseridas nas agriculturas, através
de maquinários e implementos agrícolas; os sistemas de divisão de terras no interior das
reservas indígenas; e as alterações nas instituições sociais das sociedades indígenas que
desfiguram, consideravelmente, sua forma de representação.
Um outro fator, igualmente importante, é a escolarização. Foi através da escola, uma
instituição estrangeira inserida nas aldeias, que a sociedade nacional encontrou uma porta
55

aberta para o mundo indígena. O percurso da escolarização indígena é longo: desde 1595.
A partir das primeiras gramáticas elaboradas pelos jesuítas, introduziu-se o sistema
educativo formal nas sociedades indígenas do Brasil. Assim, pretende-se aqui, através de
um pequeno histórico da Educação Escolar Indígena no Brasil, observar os procedimentos
utilizados pelos governos, através da educação formal, para que se integrasse os índios à
sociedade nacional.
Anterior à Educação Escolar Indígena, um outro sistema educativo pôde ser
percebido nas comunidades indígenas. Construída pelos próprios índios, a Educação
Indígena difere da Educação Escolar Indígena, embora as duas devessem atender às
necessidades advindas da produção social de cada sociedade. Bartomeu Melià, um
antropólogo e padre jesuíta interessado no estudo dos processos educacionais observados
nas populações indígenas, afirmou esse caráter social da Educação Indígena e vai além,
pois contrapõe a Educação Indígena à Educação Escolar:

A Educação de cada índio é interesse da comunidade toda. [...] Os


sistemas indígenas pretendem produzir pessoas que sejam um “bom
Paresi”, um “bom Boróro”, um “Xavante autêntico”, com todas as suas
características específicas. Para nós até parece que, por vezes, o ideal de
um bom brasileiro é ser um “bom norte-americano”, como assim de um
camponês é fazer do filho um “bom doutor” (MELIÀ, 1979, p. 10).

A educação é um processo global para os índios, como afirma Melià. A cultura e a


tradição indígenas são ensinadas e aprendidas em termos de socialização integrante,
embora não seja pertinente a todas as sociedades indígenas. A Educação Indígena, como
um processo, deve ser pensada a partir da forma pela qual os membros de uma dada
sociedade agregam as novas gerações, objetivando a continuidade dos valores e
instituições consideradas fundamentais. Essas maneiras são específicas e estão inseridas
nos padrões da cultura tradicional.
Na Educação Indígena inexiste uma formalização dos sistemas educacionais como
ocorre na Educação Escolar, pois, segundo Egon Shaden, “[...] educar é, enfim, formar o
tipo de homem ou de mulher que, segundo o ideal válido para a comunidade, corresponda
à verdadeira expressão da natureza humana” (SHADEN, apud MELIÀ, 1979, p. 12). A
maioria das sociedades indígenas reflete essa natureza humana em seus próprios nomes: os
Guarani se autodenominam avá (homem adulto), ou mbyá (gente); os Paresi se
56

autodenominam halití (pessoa humana); os Xavante, awe (povo autêntico); os Bororo, boe
(gente) e os Kadiwéu, ejiwajegi (gente).
Na sociedade dos não-índios se desconhece um sistema educacional que não tenha
um vínculo com a escrita, mesmo porque a escola surgiu para atender aos anseios de uma
elite. Ao contrário disso, Bartomeu Melià mostra que uma educação pode existir sem
alfabetização. O autor assinala, ainda, que muitas sociedades indígenas se “[...] educaram
perfeitamente durante séculos sem recorrer à alfabetização, conseguindo, com meios quase
que exclusivamente orais, criar e transmitir uma rica herança cultural” (MELIÀ, 1979, p.
7). No entanto, é desconhecido o fato de que, no Brasil, alguma sociedade indígena
mantenha, exclusivamente, essa herança da oralidade e não tenha, em pleno século XXI, se
sujeitado aos desígnios de uma escola formal.
Essa herança cultural permitia o acesso irrestrito a todos os membros da
comunidade em que a oralidade imperasse, mas, ao contrário disso, com a escrita — como
ficou provado na história das sociedades —, passaria a ser uma ferramenta de poder diante
dos que não a detêm, pois, como afirma o geógrafo Paul Claval (2001, p. 70): “[...] com o
aparecimento da escrita, a situação muda: às culturas populares daqueles que continuam a
ser unicamente formados pelo gesto e pela palavra, opõem-se os conhecimentos
transmitidos por escrito dominados pelas elites”. Dessa forma, a escrita desenvolveria uma
nova camada social e, nas sociedades indígenas sem escrita, essa auferiria maior domínio
sobre as outras.

2.1.1. Colônia e Império: a Educação Escolar Indígena

O processo de educação nas populações indígenas é datado como contemporâneo


do período colonial por alguns pesquisadores. Um deles, Márcio Ferreira da Silva (1994, p.
43), afirma que a Educação Indígena está relacionada aos primeiros jesuítas que aqui
estiveram e dedicaram a essa tarefa “[...] muita reflexão, tenacidade e esforço”.22
Foi nesse período que se realizou a primeira atividade de pesquisa relacionada ao
estudo das línguas indígenas: Arte de Gramática da Língua mais Usada na Costa do

22 O antropólogo não especifica a qual educação está se referindo. Ao utilizar a expressão Educação
Indígena ao invés de Educação Escolar Indígena, termina por generalizar os sistemas educacionais existentes.
Denomina de Educação Indígena quaisquer sistemas de educação dos índios e para os índios.
57

Brasil. Publicada em 1595 pelo padre José de Anchieta, essa obra foi de suma importância,
pois serviu de instrumento para a elaboração dos catecismos que seriam criados
posteriormente.23 Para Marcio Ferreira da Silva (1994, p. 43), o “[...] colonialismo, a
Educação [Escolar] Indígena e o proselitismo religioso são práticas que têm, no Brasil, a
mesma origem e mais ou menos a mesma idade”. O autor considera a implantação de
projetos escolares civilizatórios como práticas freqüentes nos tempos coloniais e que
sempre estiveram “[...] ligadas aos métodos de controle político” (SILVA, 1994, p. 43).
Até o fim do período colonial, a Educação Escolar Indígena permaneceu a cargo de
missionários católicos de diversas ordens, por delegação tácita ou explícita da Coroa
Portuguesa. Com o advento do Império nenhuma alteração foi verificada.24
Com a solicitação do Governo Imperial, para que se promovesse a catequese e a
civilização dos índios, uma das missões presentes no Brasil desde 1612, e que permaneceu
até a República, atendeu ao pedido e se apresentou, pois já realizava trabalhos
missionários: os Capuchinhos (franceses e italianos). Os objetivos da missão estavam
explícitos:

É bem sabido que a religião católica muito contribuiu para adoçar os


costumes bárbaros de grande parte da Europa, e que no Brasil, e em
outros lugares da América os Missionários lutarão em tempos antigos
contra os interesses dos colonos emprenhados na escravidão do índio e
alcançarão os mais felizes resultados (BEOZZO, apud SGANZERLA,
1992, p. 63).

A mentalidade governamental no decurso do Império foi traduzida, sem dúvida,


pela tentativa de civilizar os índios para integrá-los à sociedade nos moldes ocidentais e,
assim, utilizar as terras ocupadas pelos índios. Por muitas razões os índios se constituíram
em um empecilho ao crescimento do Império. Com relação à economia, as imensas e ricas
áreas ocupadas pelos índios geravam contínuos conflitos entre não-índios e indígenas. Por
outro lado, o governo imperial tinha o direito de padroado25 e devia se empenhar em

23 Catecismo é um termo vindo do grego e trata-se de um livro elementar de instrução e ensino dos dogmas e
preceitos de uma religião. Os catecismos que seriam criados posteriormente são: Catecismo na Língua
Brasílica, em 1618, e Catecismo de Doutrina Cristã na Língua Brasílica da Nação Kiriri, em 1698 (SILVA,
1994, p. 43).
24 Segundo Márcio Ferreira da Silva (1994, p. 44), previu-se, no Projeto Constitucional de 1823, a “[...]
criação de estabelecimentos para a Catechese e civilização dos índios [...]”. A Constituição de 1824 foi
omissa no que se referiu aos índios. No entanto, dez anos depois, um ato adicional “[...] corrigiu a lacuna, e
atribuiu competência às Assembléias e ao Governo Geral para a catechese e a civilização do indígena e o
estabelecimento de colônias” (SILVA, 1994, p. 44).
25 Refere-se ao fato do Império ter o direito de proteger os índios (SGANZERLA, 1992, p. 63).
58

transformar os índios em cristãos. As atitudes, denominadas bárbaras, que os índios


cometiam em relação às expedições e aos avanços do progresso eram tomadas como um
fator negativo perante a sociedade mundial da época. Por esse motivo, o governo
catequizou os indígenas e os utilizou como mão-de-obra na sociedade. Hoje, a Organização
das Nações Unidas (ONU), através da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
discrimina os países que permitem a violação dos Direitos Humanos, verificando, em seu
território, crimes contra as populações indígenas.26
A política indigenista adotada por D. João VI, em 1808, teve como principal
objetivo promover a ocupação efetiva das áreas indígenas em Minas Gerais e no Paraná,
concedendo aos colonos interessados em explorá-las todos os direitos legais de
propriedade (VASCONCELOS, 1999, p. 37). Além disso, reservava aos colonos o direito
de exploração do trabalho compulsório do índio. Segundo Cláudio Alves de Vasconcelos,

As cartas régias de 13 de maio e de 5 de novembro de 1808 ilustram o


teor da política indigenista do príncipe regente. Elas concederam, aos
colonos que buscavam terras e gente para trabalhar, o aparato legal que
vinham pleiteando havia tempos. Cabe ressaltar o fato de que as ações
violentas cometidas contra os índios eram até então cautelosas, pois
vigoram de 1755 a 1798 as medidas adotadas no período do Diretório
Pombalino, isto é, as que protegiam os índios a partir do pressuposto de
que eram senhores naturais das terras (VASCONCELOS, 1999, p. 37-38).

Os índios foram praticamente caçados, pois as cartas régias propunham o uso da


violência como meio de civilizar povos bárbaros, através de uma escola severa
(GAGLIARDI, 1989, p. 30).27 Os não-índios acreditavam que o uso da violência seria o
bastante para exterminar o obstáculo que impedia o seu acesso a terra.
As forças liberais que atuaram no processo que proclamou a Independência
tomaram consciência da necessidade de definir, a partir de 1822, uma política indigenista
para o Império. O documento mais significativo desse período foi o projeto elaborado por
José Bonifácio de Andrada e Silva, apresentado à Assembléia Geral Constituinte, em 1823.
O autor acreditava que, caso se mudasse o método de atração, o indígena poderia integrar-
se pacificamente à sociedade brasileira. Surgem, então, quatro princípios básicos que

26 Cf. BRASIL, 2004.


27 A Carta Régia de 5 de novembro de 1808 propõe, ainda, a prática da escravidão para os índios que
caíssem prisioneiros nas mãos dos responsáveis pela caçada: “[...] que todo miliciano, ou qualquer morador,
que segurar algum destes índios, poderá considerá-lo, por 15 anos, como prisioneiro de guerra, destinando-o
ao serviço que mais lhe convier” (CARTA RÉGIA, 5/11/1808, apud GAGLIARDI, 1989, p. 30).
59

nortearam o relacionamento entre o Estado e as populações indígenas: Justiça:


reconhecimento dos índios como os legítimos senhores das terras em que viviam. Com
isso, não seriam expropriados, mas o Estado compraria suas terras. Brandura, constância e
sofrimento: para cativar seus sentimentos e pregar-lhes a fé cristã.
Entre outros meios apontados por José Bonifácio de Andrada e Silva para civilizar
os índios são citados, por José Mauro Gagliardi (1989, p. 31-32), as introduções: do
comércio, como forma de aproximação entre os não-índios e índios; dos casamentos
mistos, entre não-índios, mulatos e índios, para misturar as raças unindo os interesses de
todos numa só nação; do trabalho de catequese, que deveria ficar a cargo de um colégio
missionário que enviaria párocos às aldeias com instruções sobre as línguas indígenas, usos
e costumes; e, por último, da inserção dos índios na agricultura, a fim de que produzissem
gêneros alimentícios, tanto para o autoconsumo como, também, para o comércio.
O projeto de José Bonifácio não foi adotado imediatamente, mas suas concepções
básicas orientaram e integraram a política indigenista que vigorou até o período
republicano. Além disso, os decretos e determinações do governo imperial eram expedidos
ao sabor das circunstâncias. As leis foram produzidas a partir dos acontecimentos e das
reivindicações, variando de estilo e conteúdo, de província para província. Os pressupostos
básicos das leis, decretos e determinações imperiais estavam sempre relacionados à
expulsão dos índios de suas terras liberando o caminho para a população não-índia
(VASCONCELOS, 1999; GAGLIARDI, 1989).
Entretanto, o maior obstáculo para esse intento surgiu no interior da cultura das
sociedades indígenas: a língua indígena. O genocídio, o aprisionamento, a catequização se
tornaram métodos mais práticos do que promover uma comunicação entre não-índios e
índios. O general Couto de Magalhães, Presidente das Províncias de Goiás e de Mato
Grosso28, empenhou-se na difusão de um método fácil de aprendizagem da língua Tupi,
por ser a mais falada. Segundo o próprio general, a história demonstra que “[...] com um
povo bárbaro que entra em contato com uma raça civilizada, esta se viu forçada ou a
exterminá-la, ou a ensinar-lhe sua língua” (MAGALHÃES, apud SGANZERLA, 1992, p.
70).
É importante enfatizar que nem todos os índios foram exterminados como previu
Couto de Magalhães, mas a própria palavra exterminação pode revelar muito. Não

28 Nesse período, designava-se Presidente de Província o que se denomina, atualmente, Governador de


Estado.
60

necessariamente a morte ou eliminação de uma sociedade, mas, talvez, sua anulação


perante uma cultura dominante, fruto de uma intervenção intensa, a ponto de não mais
existir como a sociedade original.
Verifica-se a utilização de dois procedimentos básicos para a eliminação dos índios.
O primeiro deles, o genocídio, tem suas conseqüências refletidas até os dias atuais, pois
ocasionou a exterminação física de algumas sociedades indígenas. O segundo
procedimento adotado, o etnocídio, significa a destruição sistemática da cultura de um
grupo, isto é, a eliminação por todos os meios, não somente de seus modos de vida, mas,
também, de seus pensamentos, como observa Denys Cuche (2002). Segundo o autor, o
“[...] ‘Etnocídio’ remete à realidade de operações sistemáticas de erradicação cultural e
religiosa nas populações indígenas para fins de assimilação na cultura e na religião dos
conquistadores, atestada pelos historiadores e pelos etnólogos” (CUCHE, 2002, p. 123).
Demonstrações de reconhecimento da alteridade na história permitiram algumas
alterações nas terminologias utilizadas para designar índios. Se, no século XVII, o índio
era chamado de gentio, termo que se contrapõe ao cristão, na documentação do século
XIX, o índio é o selvagem, que se contrapõe ao civilizado (SGANZERLA, 1992, p. 70).
Não obstante, continuaram necessários a presença e o trabalho dos missionários,
pois se tratava mais de integrar o índio à vida social pela instrução do que à vida da igreja
pela catequese. Para Couto de Magalhães, o trabalho de amansamento dos selvagens devia
apoiar-se em um tripé: colônia militar, intérprete, missionário:

[...] temos o primeiro e o terceiro: falta-nos organizar os elementos para


ter o segundo [...] a idéia de utilizar nossas colônias militares como
auxiliado povoamento dos sertões, para nelas se colocarem intérpretes
que falando a língua das populações selvagens circunvizinhas lhes
facilitaram as relações [...] (MAGALHÃES, apud SGANZERLA, 1992, p.
71).

Os índios, apenas pela sua existência, trouxeram tantas dificuldades aos não-índios,
que esses últimos estudaram-no, pesquisaram-no, categorizaram-no. Existiam, em pleno
Império, os pensadores oficiais de índios do Imperador. Esses pensadores criaram uma
classificação das diversas sociedades indígenas em três categorias: “1a. as [sociedades] que
vivem sob as nossas vistas; a 2a. as [sociedades] que [estão] vivendo ainda no primitivo
estado de independência, todavia relacionão-se comnosco, e a 3a. as que nos hostilizão e
mostrão-se não dispostas a mudarem seo modo de existência” (BARROS, 1989, p. 186).
61

A educação formal deveria produzir uma transformação nesses índios para que
pudessem ser civilizados, ou seja, totalmente integrados. Deveria provocar uma mudança
no modo de existência dessas sociedades indígenas para assimilá-las completamente.

2.1.2. A República e a Educação Escolar Indígena

Se, no período colonial, as missões jesuíticas atendiam aos interesses da metrópole


e, no período imperial, aplicaram métodos de catequização e inserção de novas instituições
nas populações indígenas com objetivos explícitos de expropriação de suas terras, no
período republicano o quadro se alterou consideravelmente.
O governo republicano retirou da Igreja a função de cuidar dos índios e criou, a
partir de 1910, o Serviço de Proteção dos Índios (SPI). Este, por sua vez, com a
responsabilidade de proteger os índios brasileiros e oferecer-lhes assistência necessária
para sua sobrevivência, insere programas educacionais nos moldes do período imperial. Os
resultados foram perseguições e castigos. Uma escola homogeneizadora e formal
funcionava, então, nas aldeias, castigando índios que não falassem a língua portuguesa.
Normalmente, os profissionais do ensino eram não-índios ou índios urbanizados que não
tinham formação superior. No caso dos Kadiwéu, as professoras do SPI pertenciam à outra
etnia (Terena) e negavam a merenda àqueles que não a pedissem na língua portuguesa,
conforme depoimentos gravados por alunos no filme Os incendiários (2001).
Em 1967, vários atos de corrupção e fraude dos funcionários do SPI foram
verificados, ocasionando a extinção do órgão. No entanto, no seu lugar, foi criada a
Fundação Nacional do Índio (FUNAI), cuja função é a proteção dos índios e a promoção
de ações em todos os processos inseridos nas sociedades indígenas, tais como: delimitação
e demarcação de terras indígenas, educação, saúde, relação entre índios e não-índios, entre
outros.
Na década de 1970, ocorreu “[...] a mobilização de setores da população brasileira para a
29
criação de entidades de apoio e colaboração com os povos indígenas” (BRASIL, 1998,
p. 27) e, com isso, aumentou a oposição contra a política de caráter integracionista. Nessa
década, foram realizados Encontros de Professores Indígenas (ver Mapa 5, em anexo), a
62

partir dos quais elaboraram-se documentos que estabeleceram os princípios de uma


Educação Escolar Indígena diferenciada.
A instituição escolar já não é um elemento tão estranho para as populações indígenas.
Inserida desde o período colonial, através dos missionários, a escola foi assumida pelos
índios, porém, sempre funcionou com metodologias que não valorizavam o diálogo entre
os saberes. Enfim, a formação dos profissionais, bem como as dificuldades encontradas nas
escolas das aldeias, não estabeleciam as condições necessárias para que existisse uma
escola de qualidade para as populações indígenas. Para tanto, a reivindicação por uma
nova escola formal partiu das próprias populações indígenas e, através dessa reivindicação,
puderam criticar o modelo de escola existente até então que, na realidade, pouco lhes
atendia.
Em período ainda nebuloso da história nacional, a partir dos anos 1970, uma
pequena rede de organizações não-governamentais30 passou não só a existir, mas, também,
a desenvolver ações locais de apoio a algumas sociedades indígenas, sobretudo no Norte e
no Centro-Oeste do país. Essas ações contribuíram para a tomada de consciência dos
direitos indígenas e para a instalação de uma política pública dirigida a essas sociedades,
até então desconsideradas em suas particularidades antropológicas e jurídicas (MONTE,
2000, p. 121).
A partir da promulgação da Constituição de 1988, a expressão direitos indígenas
aparece com freqüência na variada literatura que trata da questão indígena. Nos dias atuais,
essa expressão remeteria a outra reflexão: compensação de perdas. João Pacheco de
Oliveira afirma que os direitos indígenas

[...] não decorrem de uma condição de primitividade ou de pureza


cultural a ser comprovada nos índios e coletividades indígenas atuais,
mas sim, do reconhecimento pelo Estado brasileiro de sua condição de
descendentes da população autóctone. Trata-se de um mecanismo
compensatório pela expropriação territorial, pelo extermínio de
incontável número de etnias e pela perda de uma significativa parcela de

29 Dentre essas entidades podemos incluir a Igreja Católica, através do Conselho Missionário Indigenista
(CIMI), e organizações não-governamentais que auxiliaram na criação de organizações indígenas na Região
Amazônica.
30 Alguns antropólogos dedicados a pesquisas e ao apoio à nascente questão indígena foram os principais
fundadores das mais significativas ONG’s de caráter civil que se formaram nesse período, como é o caso da
Comissão Pro-Índio de São Paulo, Comissão Pro-Índio do Rio de Janeiro e Comissão Pro-Índio do Acre, do
Centro de Trabalho Indigenista de São Paulo, da Associação Nacional Apoio ao Índio da Bahia e do Centro
Magüta em Benjamim Constant, para citar algumas delas (MONTE, 2000).
63

seus conhecimentos e do seu patrimônio cultural (OLIVEIRA, 1999, p.


118).

Na busca do reconhecimento de tais direitos, os movimentos citados contribuíram,


consideravelmente, para o aumento da pressão sobre o governo federal, que abriu espaços
para discussões de ementas populares, relacionadas aos direitos das sociedades indígenas,
frente à Assembléia Nacional Constituinte. Um desses momentos foi anotado pelo assessor
do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o advogado Júlio Gaiger:

Assim, na primeira fase da ANC (Assembléia Nacional Constituinte),


oferecimento de sugestões, através de propostas firmadas por
constituintes, as entidades e líderes indígenas discutiram uma proposta
básica, unitária, sobre os direitos indígenas, que foi subscrita por um
constituinte (o deputado federal Carlos Sabóia) e protocolada junto à
Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e da
Ordem Social. Mas, além disso, se deu a entrega da mesma proposta por
uma expressiva delegação indígena que esteve na Subcomissão, pela
primeira vez, em 22 de abril de 1987 (data em que completavam os 487
anos do “descobrimento” do Brasil) (GAIGER, 1988, p. 47-48, tradução do
autor).31

Após tanto tempo vinculada às terras indígenas, a escolarização é, agora,


demandada pelos próprios índios. Este novo modelo de instituição se desenvolve a partir
de outra cultura, cujos conhecimentos alóctones estão atrelados à nova escola. A
modalidade de ensino Educação Escolar Indígena transfere para a Educação Indígena —
já modificada pela imposição da formalidade na educação — um sistema educacional
baseado no letramento e na escola, que se institucionaliza nas comunidades indígenas. De
acordo com as políticas públicas desenvolvidas, é possível considerar que o que foi
formulado e executado até o presente momento pelo poder público possui mais
características de E.E.I. do que de Educação Indígena propriamente dita.
Ressalta-se que a Educação Indígena, por seu caráter cultural, não poderia ser
modificada diretamente pelo sistema educacional do não-índio, a não ser através de uma
reação em cadeia.32 Essa mudança é absorvida pela lógica própria da cultura, que se
adapta, provocando uma série de reajustes sucessivos. É o que se observa em várias
sociedades indígenas: uma profunda modificação no caráter utilitário da Educação
Indígena, devido à inserção da educação formal.

31 Traduzido do original em espanhol.


32 Cf. CUCHE (2002, p. 128-133).
64

A quantidade de leis, decretos, portarias, deliberações que garantem direitos aos indígenas,
principalmente a uma escola diferente da familiar do não-índio, está intrínseca na temática
indígena. Na literatura que discute a questão, percebe-se uma preocupação quanto à leitura
e a interpretação dessa legislação por parte dos atores que promoverão a escola indígena.
Espera-se que, com a legislação, os interesses dos indígenas não sejam deixados de lado.
Marcio Ferreira da Silva observa:

[...] o que as escolas indígenas devem ou não ensinar é matéria cuja


decisão depende exclusivamente dos povos indígenas para os quais ela
existe. A experiência acumulada de mais de quatro séculos demonstra
como as escolas indígenas podem fazer estragos, quando estão sob o
controle de agências não-indígenas. São os povos indígenas, através de
seus mecanismos políticos tradicionais, de suas organizações e de seus
professores, os únicos detentores do direito de decidir sobre o que deve
acontecer ou não em suas escolas (SILVA, 1994, p. 45-46).

Deve-se observar, também, a existência de uma diferenciação entre as escolas das


regiões meridional e setentrional brasileiras. A especificidade se amplia à medida que a
sociedade se afasta dos centros urbanos, como é o caso das populações indígenas da
Região Norte. Não se pode afirmar que, nesta região, os indígenas possuam maior pureza
cultural do que os da porção Centro-sul do país, devido ao uso reiterado de plumagens ou
por andarem menos vestidos. São índios que, pela localização geográfica de suas aldeias,
estiveram menor tempo em contato interétnico. De acordo com a história, as bandeiras
desbravaram o Centro-sul em primeiro lugar, pois o interesse pela região amazônica veio,
tardiamente, com o ciclo da borracha. O intervalo de tempo em que as populações do Norte
brasileiro foram expostas aos elementos culturais da sociedade nacional foi menor do que
em outras partes do país.
O contato estrangeiro com as populações indígenas é, sem dúvida, inevitável. Os
índios denominados isolados, pela FUNAI — dos quais não se possuem informações
alguma —, são contatados e, posteriormente, estudados para que se suas terras tradicionais
sejam localizadas e demarcadas, evitando conflitos com não-índios que exploram a mesma
região ocupada por essas populações. Dessa forma, todas as sociedades indígenas de que se
possuem informações já experimentaram algum contato com os não-índios.
Enfatiza-se, também, a presença de organizações não-governamentais (ONG’s)
atuantes na Região Norte: Conselho Missionário Indigenista (CIMI), Instituto
Socioambiental (ISA), Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-AC), entre outras. O Terceiro
65

Setor termina por ocupar os lugares em que o Estado não atinge e, assim, as ONG’s atraem
os investimentos nacionais ou internacionais para projetos ligados à educação, ao
extrativismo, à educação ambiental e outros. Índios da Região Norte seriam mais
autênticos que os índios de outras regiões do país? A forma como mantêm suas tradições
— danças, o uso de plumagens e adornos33 — difere de acordo com a região onde se
encontram.
Outra discussão que merece uma reflexão relaciona-se com a utilização da língua
materna. O pluralismo lingüístico é tão diversificado como o pluralismo cultural. Devido a
isso, os índios têm sua própria língua materna e, em muitos casos, é a própria língua
portuguesa. Pode-se compreender melhor a questão lingüística através desse exemplo: o
Parque Indígena do Xingu tem 26 mil quilômetros quadrados, um território do tamanho da
Bélgica, onde vivem 14 etnias diferentes. Para se comunicar nessa área, o índio deve ser
fluente, ao menos, em dez idiomas xinguanos (Yawalapiti, Kamayurá, Waurá, Mehinaku,
Aweti, Kuikuro, Kalapalo, Nanukhwá, Matipu e Trumai), além da língua portuguesa
(XIMENES, 2004, p. 49).
A mesma situação pode ser percebida no Alto Rio Negro, no Estado do Amazonas,
onde se encontram 22 sociedades indígenas, cada qual com seu idioma (RICARDO, 2000,
p. 245). Em qual língua se expressar? No artigo 210, § 2o. da Constituição de 1988,
verifica-se que “[...] o ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa,
assegurada às comunidades indígenas também o uso de suas línguas maternas e processos
próprios de aprendizagem” (BRASIL, 1998, p. 32).
Assim, a Constituição Federal representa um grande marco da história da E.E.I. no
Brasil, pois, a partir de então, percebe-se o desenvolvimento de uma reflexão sobre as
especificidades dessa modalidade de educação. José Ribamar Freire aponta:

[...] uma mudança substancial na política de educação indígena ocorreu


com a promulgação, em outubro de 1988, da Constituição Federal, que
reconhece aos índios o direito à diferença. Os índios deixaram de ser
considerados como categorias transitórias, em vias de extinção. Agora
cabe ao Estado, constitucionalmente, proteger as manifestações das
culturas indígenas e assegurar o uso de suas línguas maternas e
processos próprios de aprendizagem (FREIRE, J., 2002, p. 96).

33 Para cada etnia, os acessórios, enfeites ou itens de rituais recebem uma denominação.
66

Privilégio dos países que possuem sociedades indígenas em seu território, a E.E.I.34,
antes de ser considerada uma característica própria da educação brasileira, surgiu a partir
de discussões internacionais, cuja pauta encontravam-se os processos educacionais para
essas sociedades. Nietta Lindenberg Monte explica que:

[...] parte dos direitos sociais das Constituições Federais de vários países
latino-americanos, incorporada ao tema às Declarações e Convênios dos
organismos internacionais como Organização dos Estados Americanos
(OEA) e a Organização das Nações Unidas (ONU) e às metas das
Políticas Públicas na América, contaminou os discursos oficiais. [...]
Países com grande ou pequena população indígena passam a reconhecer,
a partir dos anos 80, uma modalidade especial de Educação, postulando
o papel que devem cumprir a diversidade e pluralidade na construção de
uma nova representação da “identidade nacional” — una e múltipla a
partir dos ideais da democracia (MONTE, 1998, p. 71).

No Brasil, a E.E.I. estendeu-se desde a discussão de grupos organizados, já citados


anteriormente, à legislação de fato. Essa legislação foi elaborada nos últimos dezessete
anos e reflete o que já vinha ocorrendo na prática, no cotidiano de muitas escolas e
comunidades indígenas no país. No entanto, diante de um governo autoritário e
alfabetizador, os debates, antes comandados pelas representações indígenas e organizações
de apoio a elas, passaram a ser liderados pelo governo, de cima para baixo.
Poderia até ser dito que, pela ampla legislação aqui existente, o Brasil é um dos
países que tem uma grande preocupação com as sociedades indígenas presentes no
território nacional. Entretanto, ainda há muito que fazer. A distância entre a lei e a sua
execução continua enorme, pois não há profissionais qualificados para trabalhar com tanta
diversidade cultural e, ainda, há muita discussão relativa às formas de concretização da
interculturalidade.
O contato entre culturas ocorre há muito tempo. A Educação Escolar Indígena é um
processo recente e, por isso, os agentes que a promovem ainda não têm a total dimensão de
como torná-la prática. Na ânsia de promover processos criativos de mediação entre os
contextos sociais e culturais diferenciados, muitos programas de formação de professores
terminam por confrontar as culturas, ao invés de fortalecê-las: etnocentrismo.
Reinaldo Matias Fleuri, ao estudar os desafios emergentes da interculturalidade no
contexto dos movimentos sociais, observou que juntamente com a elaboração crítica e

34 Nos demais países da América Latina, esse processo educacional é denominado de Educação Intercultural
67

criativa das relações entre sujeitos diferentes segue o compromisso de se assumir a


conflitividade deste processo, pois

[...] requer criar condições para compreendê-la e para atuar em contextos


complexos, justamente para se conseguir elaborar formas emancipatórias
de relação social que favoreçam a superação dos processos de sujeição e
exploração que têm marcado nossa história (FLEURI, 1998, p. 45).

Na busca de compreensão de uma realidade a partir de diferentes pontos de vista, o


diálogo entre duas culturas não dissimula a dificuldade de se assumir duas lógicas, duas
naturezas, dois princípios que são coligados em uma unidade sem que com isso a dualidade
se dissolva nela. Parafraseando Edgar Morin (2002, p. 136), a verdadeira questão não
consiste em fazer interculturalidade, mas que interculturalidade é preciso fazer.
Pensar em interculturalidade é refletir sobre duas culturas que se interpenetram
através de um diálogo possível. Entretanto, o conceito de cultura traz em si a referência dos
conhecimentos originados na sociedade que essa cultura se apresenta. Ao se referir à
cultura moderna, lhe atribuindo um tempo histórico, reflete-se sobre a ciência moderna que
a moldou. O caminhar da modernidade sobrepõe-se ao percorrer da ciência racional, rígida,
exata e pragmática. Apesar das fragilidades decorrentes do processo, a ciência se fortalece,
estabelecendo fronteiras entre os campos do saber. Dessa forma, ocorre a
compartimentalização dos saberes, perante as referências da ciência moderna. Diante da
pretensão da ciência moderna de elaborar uma mais rigorosa explicação da realidade,
através da adoção de metodologias supostamente objetivas, e a partir de uma postura
neutra e imparcial do sujeito diante daquilo que procura conhecer, revelam-se promessas
não cumpridas (HISSA, 2003).
Torna-se necessário promover uma religação dos saberes (MORIN, 2002, p. 13-
21) e não manter o procedimento de empilhar os saberes, num arranjo em que se assuma
uma ordem hierárquica de importância. Afinal, para que serve a ciência e,
conseqüentemente, o seu ensino? Para formar os especialistas mais rigorosos em seu
campo de estudo e negar-lhes a integração desse conhecimento com a vida e com o
cotidiano?
A formação do professor — indígena ou não —, deve, também, ser transdisciplinar
para que possa ter condições de elaborar as leituras necessárias. Esse entendimento se torna

Bilíngüe e Etnoeducação e utilizam a sigla EIB para identificá-la (MONTE, 1998, p. 71).
68

importante, principalmente na E.E.I. — que propõe uma educação bilíngüe e intercultural


—, para que se compreenda como se dá esse processo intercultural. Muitas vezes, o que se
presencia é a dificuldade que existe em tratar a alteridade, com todas as peculiaridades
inerentes, sem ser etnocêntrico. Essa dificuldade resulta, tão somente, em alternativas que
estimulam um confronto de culturas. A preocupação demasiada em se realizar a
interculturalidade em um contexto de diversidade cultural impede que ela ocorra. Essa
angústia é gerada pela pressão em atender a legislação expressa nos artigos 78 e 79 da Lei
de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional (LDBEN).
Nesse processo de busca da interculturalidade, os atores da E.E.I. se esquecem que
a “[...] totalidade é ao mesmo tempo verdade e não-verdade, e a complexidade reside
justamente nisto: na conjunção de conceitos que se combatem reciprocamente” (MORIN,
apud FLEURI, 1998, p. 47). Esse combate é necessário para que haja uma transformação
dos conceitos e, assim, obter-se a formação de um novo. As conexões entre culturas,
conceitos e práticas em lugares distantes e diferentes revelam, em uma lógica da
complexidade, alguns aspectos de afinidade que estimulam a formação de novos olhares e
a elaboração de novas estratégias de ação no contexto dos grupos sociais. A Educação
Escolar Indígena, nesse amplo e complexo processo de transformação não supera as
dificuldades de lidar com tal complexidade.
Como desenvolver ações sobre a complexidade desse contexto? Como negar a demanda,
em conseqüência do resultado de séculos de intervenção, das sociedades indígenas pelo
saber estrangeiro? A existência de legislações privilegia uma prática atuante, mas não
evidencia metodologias, caminhos a serem seguidos:

[...] oferecimento de uma educação escolar bilíngüe e intercultural, que


fortaleça as práticas socioculturais e a língua materna de cada
comunidade indígena, e proporcione a oportunidade de recuperar suas
memórias históricas e reafirmar suas identidades, dando-lhes, também,
acesso aos conhecimentos técnico-científicos da sociedade nacional
(BRASIL, 2001 a, p. 21).

Esses conhecimentos técnico-científicos podem mesmo ser interpretados como


necessários à cultura indígena, de maneira que permitam a própria sobrevivência dessa
cultura. Da mesma forma, é necessário compreender o caráter contraditório que sugere a
leitura da legislação. Como a inserção de um saber estrangeiro, através do acesso aos
conhecimentos técnico-científicos da sociedade nacional, pode proporcionar a recuperação
69

de memórias históricas e a reafirmação de suas identidades, concomitante ao


fortalecimento de suas práticas socioculturais e língua? Como conceber a continuidade de
uma cultura que permite uma invasão — para a sua sobrevivência — e, ainda assim, não
ter características essenciais transgredidas?

2.2. INDÍGENAS, ATORES E LEGISLAÇÕES

A escola, um dos pontos de referência em que se observa a confluência entre os


saberes científico e indígena, possui um tripé de personagens. Encontram-se os próprios
índios, os não-índios, ocupando a função de capacitadores, tendo, como mediadora, uma
ampla legislação. No entanto, alguns depoimentos, como o do índio Ailton Krenak,
apresentam uma situação de desarmonia entre as partes do tripé, que afeta, diretamente, o
resultado nas escolas indígenas:

[...] as experiências que têm ocorrido em algumas regiões do Brasil têm


mostrado que, na maioria das vezes, o resultado desse empreendimento
de lidar com especificidades no geral, abordando-as como uma coisa
genérica, resulta na própria negação dessas especificidades, na caricatura
daquilo que seria um objeto de um trabalho com as comunidades de
cultura diferenciadas, seja com crianças ou adultos. Seja trabalhando nos
cursos bilíngües, seja trabalhando com alfabetização na língua
portuguesa, o que nós temos observado é que a gente luta com um
esforço enorme e num plano muito precário, resultando deste esforço a
formação de turmas de pessoas meio alfabetizadas, com uma
compreensão esquisita do que sejam essas referências culturais
introduzidas na escola [...] (KRENAK, 1996, p. 94).

Ailton Krenak35 mostrou, através de suas palavras, as diferenças entre o projeto e a


execução da Educação Escolar Indígena. O que se observa, diante de depoimentos deste
tipo, é que se o projeto da E.E.I. tem seus méritos, a sua prática não atende às populações
indígenas, público alvo do próprio projeto.
Na realidade, nem todas as sociedades indígenas aceitam esse modelo de escola
diferenciada propagado pela Educação Escolar Indígena. O professor indígena tem sua

35 Os Krenak vivem no Estado de Minas Gerais e têm Ailton Krenak como um grande líder preocupado com
os direitos indígenas, não apenas de sua comunidade, mas de todas as sociedades indígenas do Brasil.
70

prática dificultada, principalmente, pelo órgão público a que estiver subordinada a escola
indígena.36
Segundo Luís Donizete Grupioni (2002, p. 95), das 1.392 escolas indígenas
existentes no Brasil, 763 são municipais, 584 são estaduais, 11 são federais e 24 são
particulares. Nas escolas indígenas públicas, a situação do professor indígena é
contraditória, pois recebe a capacitação do governo federal, no que concerne a Educação
Escolar Indígena, para que possa realizar um trabalho educacional que seja intercultural,
bilíngüe, diferenciado e específico, mas ao colocar seu trabalho em prática, encontra os
obstáculos burocráticos que o impedem de concretizá-lo, bem como problemas em sua
própria formação.
A política pública para a E.E.I. no Brasil é elaborada pelas esferas públicas
governamentais, mas, também, dificultada por elas. Embora a legislação determine as
responsabilidades de cada nível político, percebe-se um descumprimento ou mesmo uma
negligência por parte da esfera estadual a respeito do que versam as leis.
Segundo a Resolução CEB n. 3/99 de 10 de novembro de 1999 à União cabe
legislar sobre as diretrizes e políticas para a E.E.I., além de:

[...] apoiar técnica e financeiramente os sistemas de ensino no provimento


dos programas de educação intercultural de ensino e pesquisa, [...]
orientar, acompanhar e avaliar o desenvolvimento de ações na área de
formação de professores indígenas, [...] elaborar e publicar,
sistematicamente, material didático específico e diferenciado, destinado
às escolas indígenas (BRASIL, 2001 c, p. 59-60).

De acordo com essa Resolução, não cabe ao poder federal a responsabilidade pela
oferta e pela execução da E.E.I.. Tal responsabilidade ficaria a cargo do governo estadual.
No entanto, segundo a mesma legislação, os Estados podem, em regime de colaboração,
executar as ações ou mesmo “[...] efetuar convênios com os municípios para que estes
assumam, quando for o caso, escolas indígenas em sua jurisdição” (BRASIL, 2001 c, p.
61). Muitas dificuldades surgem quando nem uma instância e nem outra assumem suas

36 Em um depoimento, uma professora cursista do Projeto Ára Verá (Curso Normal em Nível Médio)
Formação de Professores Guarani/Kaiowá, em Dourados, afirmou: “Tem professores na minha escola que
não trabalham diferenciado, dizem que não é correto e que a Secretaria Municipal de Educação não aceita
esse trabalho diferenciado. Daí que eu fico sozinha trabalhando assim. Se é para trabalhar diferenciado, todos
deveriam trabalhar assim” (Reunião Preparatória da 4a Etapa Presencial, Dourados, setembro de 2003).
71

responsabilidades, ou as fazem sem constância. Assim versa o Parecer 14/99 do Conselho


Nacional de Educação, ao tratar das responsabilidades de cada instância:

[...] II - aos Estados competirá: a) responsabilizar-se pela oferta e execução


da educação escolar indígena, diretamente ou por meio de regime de
colaboração com seus municípios; b) regulamentar administrativamente
as escolas indígenas, nos respectivos Estados, integrando-as como
unidades próprias, autônomas e específicas no sistema estadual; c)
prover as escolas indígenas de recursos humanos, materiais e financeiros,
para o seu pleno funcionamento; d) instituir e regulamentar a
profissionalização e o reconhecimento público do magistério indígena, a
ser admitido mediante concurso público específico; e) promover a
formação inicial e continuada de professores indígenas; f) elaborar e
publicar sistematicamente material didático, específico e diferenciado,
para uso nas escolas indígenas (BRASIL, 2001 b, p. 71).

Aos municípios que se interessarem em executar programas em Educação Escolar


Indígena, podem fazê-lo desde que possuam sistema de educação próprio, ou seja,
constituir um Conselho Municipal de Educação. O fato de executar um programa de E.E.I.
não impede de realizar parcerias, principalmente com o Estado. O que se percebe em uma
situação deste tipo é que, quando o Estado assume a E.E.I. em um determinado município,
o faz de maneira improdutiva, não ativando todos os recursos que o Governo Federal
coloca à disposição. Por outro lado, quando o município assume, o faz sozinho, pois o
Estado se retira.
Muito se tem realizado em termos de política pública para a Educação Escolar
Indígena, mas se o governo federal está atento a essa questão, encontram-se problemas de
ordem financeira nas autarquias estaduais e municipais, ao menos é o que justificam. Em
termos de formação de professores indígenas há muito que realizar. Os cursos de formação
de professores devem prepará-los para ações em um ambiente complexo, entre saberes
diversos, ou seja, a formação de professor indígena já não basta ser interdisciplinar como
vem ocorrendo — as práticas interdisciplinares nas escolas indígenas possuem leituras, no
mínimo incomuns e urgem reflexões —, necessita de um viés transdisciplinar. No entanto,
depara-se com outro obstáculo: a formação dos capacitadores ministrantes, pois estes
devem estar preparados para orientar os professores/alunos nesta questão.
72

2.3. Reflexões sobre o Referencial Curricular Nacional para as Escolas


Indígenas

A legitimação da Escola Indígena é feita através de documentos elaborados pelo


governo federal, sendo o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas,
conhecido como RCNEI, um desses documentos. Sua função é formativa e não normativa
e seu objetivo, de acordo com o próprio documento, é:

[...] oferecer subsídios para: a) a elaboração e implementação de


programas de educação escolar que melhor atendam aos anseios e
interesses das comunidades indígenas, b) a formação de educadores
capazes de assumir essas tarefas e de técnicos aptos a apoiá-las e
viabilizá-las (BRASIL, 1998, p. 13).

Ao atender a legislação criada pela instância governamental, tais documentos


pretendem desempenhar funções de referências (sugestões) a partir das quais a E.E.I. possa
ser realizada. Para isso, o RCNEI tem a pretensão de

[...] servir como um instrumento auxiliar nesta discussão e reflexão, já


que ele se propõe a: a) explicitar os marcos comuns que distinguem
escolas indígenas de escolas não-indígenas, b) refletir as novas intenções
educativas que devem orientar as políticas públicas educacionais para as
escolas indígenas brasileiras, c) apresentar os princípios mínimos
necessários, em cada área de estudo do currículo, para que se possam
traduzir os objetivos que se quer alcançar em procedimentos de sala de
aula (BRASIL, 1998, p. 13).

Não obstante, a fim de ser inserida essa ferramenta nas aldeias, o MEC necessitou
de uma ampla divulgação entre os técnicos governamentais, secretarias municipais e
estaduais. A divulgação foi realizada a partir do Programa de Capacitação em Educação
Escolar Indígena para Técnicos Governamentais. O Programa reuniu, em grande encontro,
todos os agentes da E.E.I. de 26 municípios dos 78 existentes.37 Na oportunidade, foram
repassadas e discutidas algumas informações relativas à antropologia, história, lingüística e
localização geográfica dos povos indígenas do Estado de Mato Grosso do Sul. Consultores
e especialistas do Ministério de Educação e Cultura (MEC) e da Secretaria de Educação

37 Dos 78 municípios do Estado do Mato Grosso do Sul, 26 contemplam populações indígenas em seus
territórios. Infelizmente, em várias reuniões que tratavam de questão indígena, principalmente E.E.I., nem
todos esses municípios estavam representados.
73

Fundamental (SEF) ministraram os módulos para os agentes da Educação Escolar Indígena


dos municípios representados.
Outro grande evento que merece ser citado é o Programa Parâmetros em Ação de
Educação Escolar Indígena, realizado a partir de 2002, em parceria com as secretarias
estadual e municipal de educação. O principal objetivo desse programa é a implementação
do RCNEI nas Escolas Indígenas. Dividido em doze módulos, sete deles abordam as áreas
do conhecimento presentes no RCNEI — línguas, matemática, história, geografia, ciências,
artes e educação física — além de orientações pedagógicas e temas transversais. Como o
Programa depende de parceiros para ser realizado, a maioria dos 26 municípios
participantes ainda não completou os módulos ou nem conseguiu iniciá-los. Como prevê a
implementação do RCNEI, esse documento é exaustivamente discutido em uma carga
horária de 265 horas.
Os lançamentos dos programas do governo federal são muito aguardados pelos
técnicos que procuram realizar um trabalho sincero38 nas comunidades indígenas, pois
juntamente com esses programas federais são elaborados e produzidos materiais para as
Escolas Indígenas como mapas específicos39, dados estatísticos sobre as populações
indígenas do Brasil e fitas de vídeo com gravações relacionadas ao tema indígena. Esses
frutos de programas se tornam importantes para escolas em que a carência de materiais
específicos, didáticos ou não, é freqüente.
A leitura do RCNEI permite avaliações: a amplitude e a pretensão da referência; a
dificuldade de compreensão do documento como uma referência a ser cumprida pelos
estudantes indígenas e professores. Este Referencial procura atender as 206 sociedades
indígenas que vivem no Brasil.40 É definitivamente um risco assumido pelo governo
federal e alertado no próprio documento, isso representa uma grande possibilidade de que o
RCNEI já tenha nascido desatualizado:

38 Profissionais despreparados adentram as aldeias com o objetivo de aplicarem seus conhecimentos. No


entanto, deixam mais problemas do que soluções. Os principais problemas referem-se às relações entre não-
índios e índios e à dificuldade em trabalhar diversos temas em uma perspectiva interdisciplinar ou
transdisciplinar.
39 Dentre os mapas publicados estão os Mapas das Terras Indígenas no Brasil (2002), Mapa etnográfico
ilustrado do Brasil (2002) e Mapa etno-histórico de Curt Nimuendajú (2002), reeditado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
40 O número de sociedades indígenas presentes no Brasil varia conforme a fonte consultada. O RCNEI
refere-se a 206, embora na lista da página 17 encontram-se bem mais do que isso: 229. O Instituto
Socioambiental divulga 210 sociedades indígenas. Tamanha diversidade cultural dificulta a quantificação do
número de sociedades e, principalmente, a quantidade de indígenas no país.
74

Ainda que se tenha considerado o maior número de contextos possíveis,


é preciso lembrar que este é um país de dimensões continentais e que são
206 os povos indígenas contemplados. Nos limites históricos de qualquer
referencial curricular, o presente documento é apenas a versão atual de
parte do que se conseguiu reunir, registrar e refletir, sobre o trabalho de
construção da Educação Escolar Indígena no Brasil, devendo ser
reescrito, aprimorado e ampliado mais à frente (BRASIL, 1998, p. 16).

No Mato Grosso do Sul, uma sociedade indígena aumenta a lista dos excluídos do
RCNEI: os Kinikinau. Esse grupo foi dado como extinto pelo antropólogo Roberto
Cardoso de Oliveira, no livro Do índio ao bugre: o processo de assimilação dos Terena:
“[...] dentre as inúmeras tribos ou subtribos a desaparecerem ainda no presente século,
podemos apontar os Kinikináu (Guaná) e os Ofaié-Xavante” (CARDOSO DE OLIVEIRA,
1976, p. 27). Os Kinikinau ressentem a não inclusão de sua sociedade, pois não estão na
lista dos povos contemplados pelo RCNEI. Entretanto já possuem dois professores
formados no Curso de Formação de Professores Kadiwéu e Kinikinau, realizado pela
Prefeitura de Porto Murtinho, entre 2002 e 2004. Essa sociedade está se mobilizando para
sair da invisibilidade imposta, principalmente pelo órgão indigenista oficial (FUNAI) e
recentemente, entre os dias 16 e 18 de junho de 2004 em Bonito – MS, realizaram o
Seminário: Povo Kinikinawa: persistindo a resistência.41
Essa é a pretensão almejada pelo documento. Os riscos são reais como tão real é a
possível não utilização do material por vários entendimentos. A utilização de um material
em que a sociedade não se espelha ou um material que um grupo não ajudou a construir,
poderá encontrar muitas dificuldades para ser aceito no interior de uma sociedade. Em
algumas etnias há uma transformação do Referencial em livro didático, porém o
Referencial não é um livro didático, não tem a obrigatoriedade implícita de ser cumprido,
não tem a estética de um livro didático, recheado de fotografias e cores. O exemplar do
RCNEI é único para o professor indígena, não há um RCNEI/aluno.
O que deveria ser o norteador das atividades práticas, transmuda-se em senhor,
colocando o professor índio como escravo de um documento, como comumente acontece
nas escolas dos não-índios. Se não foi no período colonial que se conseguiu escravizar os

41 Fui um dos consultores ministrantes e presenciei a força dessa sociedade como um grupo quando se
decidiu qual seria o nome a ser divulgado: Kinikinawa ou Kinikinau? A definição Kinikinau foi acertada
entre todos e publicada na Carta de Bonito, datada de 18/06/2004.
75

índios, pelo visto, o RCNEI não o fará. Devido a isso, o MEC possui um programa para
publicação de livros produzidos por índios, já com vários títulos.42
Em uma pesquisa realizada sobre o documento, os resultados são as duas
tendências teórico-metodológicas apontadas por Maria das Graças Cota na proposta de
geografia do RCNEI:

A primeira tendência, que vai além da proposta de ensino de Geografia,


perpassando todo RCNE/indígena, concebe a aprendizagem como um
processo que passa por estágios de evolução baseados na concepção
evolucionista de aprendizagem de Piaget. A segunda denominamos
“populista científica” [...]. Essa corrente da Geografia dá o nome de
ciência (Geografia) ao conhecimento que o aluno e/ou a comunidade
possui sem nenhuma reflexão e/ou definição do conceito (COTA, 1999,
p. 40).

Maria das Graças Cota refere-se ao item III do RCNEI (BRASIL, 1998, p. 230) —
Sugestões de temas — que propõe iniciar o estudo de geografia a partir do local para o
global, ou seja, partir da aldeia para, depois, se estudar o mundo, como a autora observou,
numa concepção evolucionista de aprendizagem piagetiana.
É importante observar que os professores têm outras demandas, tais como quais
conteúdos da geografia devem ser trabalhados e, por isso, não há como se aprofundar,
principalmente nos cursos de formação de professores indígenas, nesta ou naquela
tendência, seja ela piagetiana, vigotskyana, montessoriana etc. A questão suscitada por
Maria das Graças Cota tem a sua relevância, porém um outro questionamento pode ser
feito e está intimamente relacionado a qual geografia ensinar e, principalmente, para que
serve a geografia para uma população indígena? Essas questões são analisadas no Capítulo
3 para que se reflita sobre a inserção da geografia nas comunidades indígenas.

2.3.1. A geografia no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas

42 No entanto, o MEC impõe dificuldades na publicação quando o livro foi organizado por não-índios,
mesmo produzido no contexto de um Curso de Formação de Professores. Talvez não se tenha clareza, ainda,
dos critérios utilizados pelo MEC para avaliação de livros a serem publicados ou não, nesta categoria. O
autor passou por essa experiência no início de 2004.
76

Na contemporaneidade, a geografia tem sua condição de ciência reforçada através


da exploração de ricos diálogos estabelecidos por ela com outros saberes.43 Entretanto, a
geografia na escola, na maioria das vezes, ainda é apresentada de maneira factual, de forma
desconectada da realidade. O discurso, sempre presente, é que a geografia, como todas as
outras disciplinas, pode se aproveitar dos conhecimentos prévios dos estudantes para
aprofundar as questões a serem trabalhadas. Professores de geografia poderiam, portanto,
considerar os conhecimentos anteriores e a identidade dos estudantes para que a dinâmica
em sala de aula pudesse ser, sempre, rica e proveitosa. Para que os alunos sejam sujeitos
ativos no processo de conhecimento, se faz necessário que a sala de aula se transforme no
espaço em que o diálogo entre professor e alunos propicie a troca de saberes (HISSA e
SOUZA, 2004).
A geografia adentra o ambiente indígena como uma das disciplinas do currículo a
ser empregado na escola indígena e, assim sendo, é exigida, através do RCNEI, a
apresentação de “[...] princípios mínimos necessários, em cada área de estudo do currículo,
para que se possam traduzir os objetivos que se quer alcançar em procedimentos de sala de
aula” (BRASIL, 1998, p. 13). No entanto, a geografia pode oferecer mais do que
“princípios mínimos” pois, em um ambiente transdisciplinar, existe a possibilidade da
ciência contribuir com o diálogo entre o saber científico e o indígena. Além disso, sempre
se torna importante conhecer os objetivos que se pretende atingir em sala de aula para que
se possa apresentar, não apenas princípios mínimos, mas sim toda a capacidade da
geografia de estabelecer um profícuo diálogo com a cultura indígena e, ainda assim,
desenvolver a interpretação de objetos que a geografia toma para si.
A seguinte poesia, extraída do RCNEI, retrata essa diversidade de temas nos quais podem
ser realizados os estudos da disciplina:

Geografia é onde o rio está


Onde o município está.
É para onde vem o sol.
É para onde vai o sol.
Este rio para onde vai?
Geografia é a divisão das águas
É igarapé, igapó, lago, açude, mar
É a medição da terra, a demarcação
É fotografia, desenho, cor, é um mapa

43 No capítulo anterior foi realizada uma reflexão sobre transdisciplinaridade, um movimento dos diversos
saberes para além de suas fronteiras. A geografia, através dos seus contatos interdisciplinares, também, deve
ser pensada nesses termos e a partir de tais referências (HISSA, 2002).
77

É descobrir e aprender o que tem um mapa.


Geografia é o homem que transforma muitas coisas,
a mata numa cidade, a terra num roçado, a folha num remédio,
a madeira em barco, a macaxeira em farinha.
Geografia é o entendimento da aldeia e do mundo
Do nosso mundo e do mundo do branco.
É a cidade, o Brasil e os outros países
Geografia é a história do mundo
O mundo é a terra é a aldeia, o rio,
O rio que cai num outro rio, que cai num outro rio,
Que cai no mar. Geografia é o depois do mar (PROFESSORES
KAXINAWÁ, YAWANAWA, SHAWANAWÁ, MANCHINERI,
APURINÃ, KATUKINA, ASHENINKA; GAVAZZI; RESENDE, apud
BRASIL, 1998, p. 226).

A tradução ou a codificação da geografia proposta pelo RCNEI vem carregada de


questionamentos. Percebe-se uma insistência na utilização da expressão geografia
indígena. Tal expressão pode ser encontrada no RCNEI. Imagina-se, diante dela, a
existência de uma geografia feita de uma outra natureza. Além disso, a expressão parece
sugerir, ainda, a possibilidade de existência de uma geografia que se refira a cada uma das
sociedades indígenas. Mas, afinal, a que mundo pertence a geografia? Quais são as suas
origens, qual é a sua natureza? O próprio RCNEI não parece negar a natureza da geografia,
a despeito da possibilidade de merecer diversos questionamentos. Não se percebe, no geral,
qualquer violação de integridade nesse conhecimento científico a preencher os espaços das
escolas indígenas. Focaliza-se uma definição do que é geografia, contida no RCNEI:

A geografia permite, assim, conhecer e explicar o mundo por meio do


estudo do espaço geográfico levando em conta o que se vê — as
paisagens; o que se sente e com o que a pessoa se identifica — os lugares;
e o que são referências significativas para os povos e os indivíduos, para
conviver, trabalhar, e produzir sua cultura — os territórios (BRASIL,
1998, p. 227).

Não se questiona, aqui, a definição de geografia apresentada. Mas, não há como


deixar de ressaltar que a definição, mesmo sem explorar o pensamento que dela se origina,
sublinha as indispensáveis categorias de análise das quais a geografia moderna se serve
para produzir o conhecimento: paisagens, lugares, território. O RCNEI apresenta uma
definição de geografia conforme os paradigmas da modernidade. Não se trata, portanto, de
uma geografia organizada a partir de referências alheias à cultura que lhe dá origem e que
lhe concede significado à sua natureza (HISSA e SOUZA, 2004). Não se trata, portanto, de
fato, de uma geografia indígena, gestada no interior das sociedades indígenas.
78

A leitura realizada da proposta de geografia do RCNEI permite entender que, tal


como a sua definição, o próprio conhecimento geográfico — sistematizado no século XIX
— tenha migrado íntegro para a cultura indígena. Se fosse o oposto disso, seria possível
refletir sobre uma geografia para cada povo, cada gueto: assim, cada uma das 206
sociedades indígenas possuiria uma geografia própria. Desse modo, existiria algo em torno
de 206 geografias distintas umas das outras? Cada uma delas com características próprias,
objetos de estudo distintos e métodos próprios? A qual geografia está se referindo?
A observação sobre o fato de se denominar geografia o conhecimento que o aluno
e/ou a comunidade possui sem nenhuma reflexão e/ou definição do conceito é uma questão
importante que deve ser analisada. Os indígenas possuem, além do conhecimento do
espaço, o domínio da natureza que os cerca. À geografia caberia aprimorar esse domínio,
dotando-o de uma capacidade de criticar. Os índios, despreparados diante do avanço
tecnológico que adentra o seu território, deparam-se com uma rápida degradação
ambiental. A geografia poderia auxiliar, dotando-os de informações necessárias para que,
juntamente com os seus próprios saberes, pudessem elaborar uma leitura relativamente
mais crítica sobre o referido quadro ambiental instalado no seu território.
No RCNEI, a expressão geografia — que remete à idéia de uma geografia para cada
sociedade — pode ser substituída por outra que melhor se ajustaria ao conceito que se
pretende explorar ou representar. O conceito de espacialidade reflete, nesse caso, uma
abordagem mais ampla dos conhecimentos espaciais que se absorve de um lugar. Além do
que, a geografia se serve da análise das espacialidades humanas a fim de proceder a uma
leitura mais crítica da realidade.
Diante do exposto, considera-se que a diversidade cultural permite variações que se
referem ao modo como uma sociedade se relaciona com o espaço, produzindo-o ou
modificando-o. No entanto, denominar diferentes modos de intervenção sobre o espaço de
uma geografia própria, significa negar todo um investimento realizado pela ciência
geográfica. Não se trata, apenas, de uma discussão sobre usos de vocábulos, mas sobre
aquilo que se ensina através das palavras. Em uma releitura, utilizando-se o conceito de
espacialidade em substituição ao termo geografia, a idéia de uma geografia para cada
sociedade desaparece completamente. Focalizam-se, assim, as afirmações contidas no
RCNEI que parecem concordar com a possibilidade de existirem outras geografias:

a) [...] Seja onde for que viva um povo, ele se relaciona com o seu espaço
e cria um modo de entendê-lo e explicá-lo, ou seja, a sua geografia [...]; b)
79

[...] O Brasil é formado por diferentes povos e cada um tem a sua forma
de viver e ocupar o espaço. Alguns possuem mais tecnologias, outros
menos. Uns ocupam grandes áreas, outros áreas pequenas, mas cada um
se relaciona com seu espaço e cria a sua geografia [...]; c) [...] Da vida de
cada povo nasce uma geografia. Os alunos e alunas indígenas como
todos os outros, trazem para a escola seus conhecimentos geográficos.
Esse conhecimento deve ser o ponto de partida e de chegada da geografia
na escola. No caminho, há o diálogo entre o conhecimento geográfico do
aluno e a geografia escolar não-indígena [...]; d) [...] A geografia deve ser
também um instrumento para o índio compreender melhor o mundo do
não-índio e poder dialogar com ele, descobrindo que não existe só uma
“geografia do branco”, mas várias, dependendo de quem é esse branco,
onde ele vive, como ele vive [...] (BRASIL, 1998, p. 225-229, grifos do
autor).

Não parece que o ensino de geografia — ensino da ciência — tenha sofrido


alterações ao migrar para a escola indígena. Afinal, o próprio texto do RCNEI afirma que o
diálogo entre os professores e alunos deve ser concebido como uma forma de interação
entre saberes e, ainda, que o conhecimento do aluno deve ser considerado como “ponto de
partida e de chegada”. Assim, se estabeleceria um diálogo entre o conhecimento científico
e o conhecimento indígena. Qual seria a natureza desse diálogo? A geografia, para isso,
inserida nos ambientes escolares, procuraria um diálogo de modo a se fazer compreender e,
sobretudo, deixar-se apreender pelos índios. Assim, os alunos se sentiriam sujeitos ativos
do processo de aprendizagem, além de preservarem os professores das perguntas
embaraçosas, mas, também, relativamente impertinentes e de aparência utilitarista: “Para
que serve o que estou fazendo? Como ligar os estudos à minha vida?” (LERBERT, 2002,
p. 530).
Perguntas como essas são inerentes ao processo de busca do conhecimento. Da
mesma forma, questionamentos formulados dessa maneira refletem os momentos em que
saberes são empilhados, tendo, ainda, o conhecimento científico acima de todas as formas
de conhecimento. O movimento da geografia em direção ao saber indígena não edificaria
uma nova disciplina. Tal movimento tem sido o da geografia, bem como o de cada
disciplina, em qualquer ambiente: na cidade, nas metrópoles, nas escolas públicas, nas
particulares, nas favelas, nas escolas rurais.
Em um contexto de particularidades e especificidades, como a sociedade indígena,
um outro questionamento merece ser analisado. A geografia inserida na comunidade
indígena poderia ajudar a melhor compreender os processos relacionados às modificações
produzidas em seu espaço, na sua cultura e, principalmente, no modo de vida dos índios,
pois como elemento exógeno, sistematiza o saber indígena.
80

Já se fez referência à necessidade de um diálogo entre a geografia e os diversos


conhecimentos e, principalmente, aos benefícios advindos desse movimento de
aproximação entre os saberes: a geografia para ser transdisciplinar deve ir além de suas
fronteiras. Isso reflete, diretamente, a crise do paradigma vivido na contemporaneidade. A
geografia, bem como os demais campos do saber científico, fecham-se em torno de seus
frágeis e questionáveis limites. Tanto para Edgar Morin (2002) como para Boaventura de
Sousa Santos (2002), a superação dos obstáculos para o desenvolvimento das trocas
interdisciplinares é essencial para que se conceba um saber científico mais consistente e
mais próximo de suas promessas. Como afirma Boaventura de Sousa Santos (2002), a
ciência poderá se tornar mais rica, mais prática, aproximando-se da sociedade, pois se
transformaria nos outros saberes e, por outro lado, também, os transformaria.44
A geografia também possui tais referências. Através de sua inserção no lugar indígena
Kadiwéu, onde as fragilidades científicas também ecoam, a geografia poderia se preparar
para estabelecer esse diálogo com os saberes indígenas. No entanto, a função da geografia
é aparentemente antagônica — aparentemente, também, contraditória: deve servir de
instrumento para a continuidade dos valores tradicionais e, ao mesmo tempo, ser um
agente da educação de valores científicos, estrangeiros à cultura indígena.
A geografia pode realizar as duas funções: a de preservar os valores indígenas e a
de inserir-lhe valores autóctones. Não se pode negar que em um ambiente de troca, de
diálogo entre saberes, tanto um quanto outro se modificam, carregam em si um pouco do
que apreenderam do outro saber. As modificações ocorridas em ambos podem não ser
absolutas, mas existem e são importantes e, estão diretamente ligadas à vida dos índios. O
ensino da geografia carrega consigo os valores da cultura moderna, não há como separá-
los. As referências da geografia são as mesmas da ciência moderna, não há outras. Assim,
a geografia que permeia o saber indígena, insere os valores da sociedade moderna, mesmo
que, posteriormente, esses valores possam ser ressignificados pelos índios.
Saberes indígenas: saberes feitos de estranhamento, diante da cultura que integra,
que absorve, que fornece a adaptação como a única forma de sobrevivência — que, acima
de tudo, merece ser debatida e questionada. Assim, sociedades indígenas sentem-se
compelidas a se adaptar, a pensar como o conjunto que as absorve. Dos saberes indígenas

44 As diferenças entre a ciência e o senso comum existem e são significativas, mas não são absolutas, como
afirmou Boaventura de Sousa Santos. Se o “[...] senso comum e a ciência fossem totalmente distintos, a
81

(feitos de uma ética indígena) aos processos de adaptação, são recolhidos os traços de
incursões do conjunto que incorpora, que assimila. Um dos instrumentos poderosos de
assimilação reside no saber: saber é pensar e agir. O saber do conjunto que
incorpora/integra, a ciência é levada para as escolas indígenas, trazendo consigo sua
arrogância. No ambiente indígena, o conhecimento científico continua rompendo com o
que não se pauta em seus métodos.45
Percebe-se que a ciência suscita o conhecimento indígena a uma desintegração.
Verifica-se a modificação dos valores comunitários que, por sua vez, são rejeitados pelo
conhecimento científico. É dessa forma que a geografia poderá ser um agente de
preservação de valores indígenas? A geografia, através do seu ensino, deve encontrar
novos caminhos que não seja o da desintegração dos valores indígenas, sem abandonar o
seu caráter científico.

ciência não pretenderia transformar-se em senso comum, por outro lado, se fossem idênticos, a ciência não
poderia transformar o senso comum” (SANTOS, 2002, p. 50).
45 A inserção da ciência moderna, bem como da geografia, na cultura indígena sempre se mostra como um
momento tenso, como afirmou Boaventura de Sousa Santos: “Apesar do seu caráter cósmico, e de modo
muito semelhante à dominação e ao direito estatal, a ciência moderna só funciona em constelação com outras
formas caósmicas de conhecimento. [...] Mas a ciência também se constela com todos os outros sensos
comuns estruturais, quer em relações conflituais, quer em relações complementares. Por exemplo, a
constelação da ciência com o conhecimento próprio do espaço da comunidade é uma constelação tensa. Por
um lado, na sua pulsão hegemônica, a ciência aspira a rejeitar e a substituir inteiramente os conhecimentos
locais; a própria idéia de uma ‘comunidade científica’ sugere que a ciência se considera o único valor
identitário moderno sobre a base do qual podem florescer os ideais comunitários” (SANTOS, 2002, p. 305-
306).
82

Por muito tempo pareceu que grupos étnicos


estavam sendo lentamente absorvidos pelas
nações nas quais viviam. Eram vistos como restos
de uma outra era, e pensava-se que, gradualmente,
à medida que as pessoas se modernizavam,
naturalmente abandonariam sua identidade étnica
em favor de uma identidade nacional. Em vez
disso ficam cada vez mais fortes no mundo
moderno (J. WEATHERFORD).
83

3. A GEOGRAFIA ENTRE OS KADIWÉU

O presente capítulo, dentre algumas funções que procura desempenhar, assume o


propósito de confrontar a geografia moderna, sistematizada a partir do século XIX, com a
denominada geografia indígena. Supõe-se que a geografia com a qual os Kadiwéu já estão
familiarizados não seja uma geografia indígena. Não existiria, em princípio, postas as
circunstâncias históricas, a possibilidade de que alguma área do conhecimento, por mais
adjacente que esteja às populações indígenas, se transforme em uma ciência que seja
própria dessas sociedades. A única possibilidade dessa transformação residiria no processo
de apropriação desse saber estrangeiro pela comunidade Kadiwéu, o que, de fato, não
acontece. Mesmo assim, diante dessa possibilidade, ainda haveria muito a ser pensado e
discutido. A contribuição do conhecimento científico — principalmente da geografia —
encontra-se no processo de sistematização das informações sobre o lugar Kadiwéu,
provenientes do precário diálogo entre esse conhecimento e o saber indígena. Não há um
conhecimento geográfico que não seja o estrangeiro. Em outros termos, não há uma
geografia indígena, mas uma geografia (científica / escolar, originária dos paradigmas da
modernidade) inserida como um saber intruso, demandado pelos próprios indígenas para
que sobrevivam e se adaptem aos novos tempos.
A geografia inserida na escola indígena a partir dos anos 40 do século XX, apesar
de ser um elemento exógeno à sociedade Kadiwéu, hoje já faz parte da cultura desse grupo.
Através da inserção de escolas nas comunidades indígenas, como uma das etapas do
processo de integração promovido pelo governo brasileiro, a ciência moderna enraizou-se
como a única forma de conhecimento possível. Mesmo a instituição escolar, nitidamente
estrangeira, está presente na cultura desse grupo. No entanto, fazer parte da cultura
Kadiwéu não significa estar plenamente absorvida pela sociedade em questão. Essa
inserção não atingiu a tradição Kadiwéu, ou seja, a parte que demora a se alterar, o núcleo
duro da sociedade. Lá está a geografia, burocraticamente inserida, como se não estivesse.
Ao contrário de outros elementos culturais, como o uso do cavalo e a fabricação de
cerâmica, apesar do tempo em que a ciência está presente na comunidade, é possível
observar que a geografia não foi totalmente absorvida e compreendida pela sociedade
Kadiwéu. A geografia ainda é tomada, pelos indígenas, como um elemento estranho. Sua
84

presença tornou-se apenas costumeira, pela obrigatoriedade de sua aprendizagem, pela


imposição de um currículo escolar baseado em saberes estrangeiros, já que os Kadiwéu
não possuem um modelo curricular próprio.
Após vários contatos interculturais observados por antropólogos ao longo do século
XX, a sociedade Kadiwéu passou a demandar o conhecimento científico. Dessa forma, é
possível listar algumas instituições que se mostraram importantes agências de aproximação
entre as sociedades indígenas e não-indígenas. As instituições que foram se inserindo nas
sociedades indígenas, apresentando projetos ditos indigenistas, ou que possuíam o objetivo
de resgatar a cultura perdida, fizeram com que a escola deixasse de ser o único meio de
contato entre os índios e o conhecimento científico.
Os Kadiwéu já possuem uma escola que lhes oferece os Ensinos Fundamental e
Médio. Nas séries iniciais do Ensino Fundamental, as aulas são ministradas por um
professor ou uma professora Kadiwéu que vive as tradições do grupo ao qual pertence. É o
momento da ciência ensinada ser expressa em outra língua sem que haja modificações
conceituais ou metodológicas. Entretanto, o que se observa é uma tradução dos
conhecimentos para o idioma Kadiwéu, respeitando as possibilidades oferecidas pela
língua indígena, ou seja, as traduções nem sempre são totalmente possíveis pela
inexistência de palavras Kadiwéu correspondentes àquelas da língua portuguesa.
Entre os anos de 2002 e 2004, os professores indígenas que não possuíam
habilitação receberam uma formação específica para atuarem nas séries iniciais do Ensino
Fundamental, através de um Curso Normal em Nível Médio. O curso oferecido aos
indígenas priorizou as metodologias de ensino na busca do aperfeiçoamento dos
professores em sua performance em sala de aula.
O Ensino Superior representa, ainda, outra demanda dos Kadiwéu. Fruto de
conquistas de outros grupos indígenas nos Estados de Roraima e Mato Grosso, os
indígenas do Mato Grosso do Sul pretendem, também, usufruir as cotas universitárias para
índios instituídas pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, ou cursar as
licenciaturas indígenas, ainda em discussão. O movimento em direção à ciência vai se
completando com o encontro entre os indígenas e as universidades. Isso poderia ser
entendido como aculturação, integração. O índio deixaria de ser índio? Essas idéias são
discutidas a seguir, pois envolvem questões referentes à cultura, identidade étnica e,
principalmente, alteridade.
85

3.1. ACULTURAÇÃO, ASSIMILAÇÃO E INTEGRAÇÃO: A INSERÇÃO DE TECNOLOGIAS

CIENTÍFICAS NO LUGAR INDÍGENA KADIWÉU

Estudar as populações indígenas é deparar-se com um mundo próprio, repleto de


peculiaridades que se relacionam diretamente com a cultura de uma sociedade. A cultura,
um conceito que foi e continua sendo muito estudado, é o que difere as sociedades.46 O
conceito de cultura pode ser entendido como o princípio básico e central do qual se ocupa a
antropologia, além do que, é um campo de estudo comum entre o conjunto das ciências
humanas, embora cada área do saber aborde esse conceito segundo perspectivas diferentes.
Desde o final do século XIX já se encontram divergências nas definições do conceito de
cultura, como mostram Zélia Marconi e Marina Presotto:

O conceito de cultura varia no tempo, no espaço e em sua essência. Tylor,


Linton, Boas e Malinowski consideram a cultura como idéias. Para
Kroeber e Kluckhohn, Beals e Hoijer ela consiste em abstrações do
comportamento. Keesing e Foster a definem como comportamento
aprendido. A colocação de Geertz difere das anteriores, na medida em
que propõe a cultura como um “mecanismo de controle” do
comportamento (MARCONI e PRESOTTO, 1986, p. 43).

Clifford Geertz (1989) apresenta uma série de definições para cultura.47 Dentre
elas, seguindo uma linha weberiana, em que retrata o homem como um animal amarrado a
teias de significados que ele mesmo cria, Clifford Geertz afirma:

A cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos


casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as
instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles
podem ser descritos de forma inteligível — isto é, descritos com
densidade (GEERTZ, 1989, p. 10).

46 Segundo Zélia Marconi e Marina Presotto (1986), mais de 160 definições para cultura já foram
observadas.
47 Concorda-se com Clifford Geertz (1978, p. 24) quando afirma que cultura é “[...] o tecido do significado,
em cujos termos os seres humanos interpretam sua experiência e orientam sua ação [...]”.
86

Clifford Geertz destaca-se por chamar a atenção dos antropólogos para o fato de
que toda etnografia não passa de interpretação e que, em última instância, o nativo é o
único que obtém dados em primeira mão, posto que é ele quem vive “a” e “na” cultura em
estudo. Os dados obtidos pelos cientistas, etnólogos etc., são, portanto, de segunda mão,
pois são recolhidos através de uma releitura da realidade que se desenvolve,
particularmente, através de revisões bibliográficas.
Tantos estudos justificam uma preocupação com a diferença:

O plano onde as diferenças se encontram, onde o “eu” e o “outro” se


podem olhar como iguais, onde a comparação se traduz num
enriquecimento de possibilidades existenciais, é o plano mais amplo e
profundo de um humanismo do qual o etnocentrismo se ausenta
(ROCHA, 1996, p. 61).

Na medida em que os diferentes se encontram, surgem questionamentos e teorias,


conceitos e idéias, senso comum e generalizações. Por décadas, os estudiosos acreditavam
que padrões de cultura poderiam classificar sociedades, como aqueles definidos por Ruth
Benedict, no início da década de 1930, em que tratava explicitamente das diversas culturas
nativas americanas.48 As indagações sobre cultura também se tornaram uma preocupação
entre os geógrafos. Em Paul Claval, mais recentemente, verificam-se outras indagações:
“[...] como identificar uma cultura? Como compreender os limites de sua extensão e as
formas que têm sua inserção no espaço? Qual a natureza e a importância das barreiras e
fronteiras culturais, e suas fronteiras políticas?” (CLAVAL, 2001, p. 11).
A antropologia buscou entender como operam as culturas bem como as formas de
transmissão cultural e, principalmente, a capacidade de uma determinada cultura
permanecer com as mesmas características ao longo do tempo, frente ao contato com outra
distinta. Para isso, encontrou nas mudanças culturais uma forma de se estudar a
aculturação, compreendida por alguns antropólogos como um processo e para outros,
como um estado, ou seja, os efeitos conseqüentes da aproximação com outra cultura seriam
permanentes. O conceito de aculturação foi divulgado através do Memorando sobre o
Estudo Antropológico de Aculturação Americana (1936), fruto dos estudos estadunidenses
que o define como “[...] o conjunto de fenômenos que resultam de um contato contínuo e
87

direto entre grupos de indivíduos de culturas diferentes e que provocam mudanças nos
modelos (patterns) culturais iniciais de um ou dos dois grupos” (REDFIELD; LINTON;
HERSKOVITS, apud CUCHE, 2002, p. 115).
De acordo com a antropóloga Joana Fernandes, desde a década de 1970, a
antropologia questiona a teoria da aculturação que orientou a maioria dos estudos sobre as
sociedades indígenas brasileiras, pois,

[...] de um conceito teórico, a teoria da aculturação transforma-se em


discurso, em julgamento de valor, em definição de linhas políticas para
conduzir a política indigenista brasileira. Passa mesmo a ser sinônimo de
índio descaracterizado, de índio que perdeu sua cultura, de índio que não
é de verdade (FERNANDES, 1993, p. 17).

Houve, por muito tempo, um consenso entre antropólogos no Brasil de que o termo
aculturação referia-se à perda total da cultura original frente à influência de outra cultura
considerada mais forte em relação à primeira. Assim, com o passar do tempo e como
resultado dessa troca entre culturas, “[...] uma seria absorvida, assimilada pela outra
desaparecendo, portanto, enquanto sociedade” (FERNANDES, 1993, p. 17).
A teoria da aculturação, sob os diversos enfoques, ocupou-se em entender a cultura
como um sistema fechado com padrões homogêneos, com as “[...] coincidências de
conduta, manifestados pelos membros de uma sociedade e que dão ao modo de vida uma
coerência, uma continuidade e forma diferenciada” (HERSKOVITS, apud MARCONI e
PRESOTTO, 1986, p. 54). Como um sistema fechado, ao sofrer quaisquer alterações, essa
sociedade tenderia a se desestruturar, de tal forma, a ponto de desaparecer.
Desse modo, tornou-se necessário compreender como aconteciam as trocas entre
culturas. Ao discutir a aculturação, os antropólogos deveriam analisar a difusão cultural e
a função de cada um dos elementos culturais. Segundo Roque de Barros Laraia, a difusão
cultural consiste em empréstimos culturais realizados entre grupos distintos, pois “[...]
grande parte dos padrões culturais de um dado sistema não foram criados por um processo
autóctone, foram copiados de outros sistemas culturais” (LARAIA, 1999, p. 109). Através
da difusão, os elementos culturais tenderiam a se estender a outras regiões ou grupos,
dependendo das condições sociais, favoráveis ou não, a essa difusão. Além disso, esse

48 Estudos como os de Ruth Benedict (1972) compõem a gama de investigações e análises sobre culturas
88

processo poderia acontecer de maneira pacífica entre sociedades, através de uma troca
contínua de pensamentos e invenções. Por outro lado, poderia haver rejeições a certos
traços culturais, pois nem tudo seria aceito imediatamente.49
Uma questão importante a ser lembrada é que, com o passar do tempo e com a
ampliação dos estudos, os cientistas sociais foram percebendo que a idéia de padrão
cultural (pattern), elaborado por Ruth Benedict, é falha, pois repercutiu a imagem de que o
sistema cultural é simultaneamente homogêneo e fechado. Entretanto, no mundo atual, de
fluxos e interações globais, torna-se sem sentido referir-se a uma cultura pura e única.
Assim, não se poderia, por exemplo, fazer qualquer referência a uma cultura japonesa, ou a
uma cultura estadunidense, que defina todos os japoneses ou todos os estadunidenses, e,
ainda, os distinga de outras sociedades. Todas as sociedades, inclusive as ocidentais, foram
incorporando alguns valores e descartando outros valores e símbolos. À medida que as
interações culturais aumentam torna-se cada vez mais complicado classificar as culturas,
tal como em Ruth Benedict.50
No Brasil, alguns antropólogos, como Roberto Cardoso de Oliveira e Darcy
Ribeiro, utilizam a idéia de que as culturas se alteram em contato com outras. Roberto
Cardoso de Oliveira, em sua obra clássica Do índio ao bugre, publicada em 1976, expôs as
idéias elaboradas para um relatório sobre os índios Terena do, então, sul do Estado de
Mato Grosso (hoje Mato Grosso do Sul), em 1959, quando compunha a Seção de Estudos
do Serviço de Proteção aos Índios e a Divisão de Antropologia do Museu Nacional. De
acordo com a experiência que possuía na época e o conjunto de dados que recolheu,
Roberto Cardoso de Oliveira aplicou o seguinte conceito de assimilação às suas pesquisas:
“[...] [é o processo] pelo qual um grupo étnico se incorpora noutro, perdendo sua
peculiaridade cultural e sua identificação étnica anterior [...]” (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 1976, p.103).
Roberto Cardoso de Oliveira iniciou seus estudos discutindo o conceito de
aculturação nas sociedades indígenas que estudou. Entre o final da década de 1950 e o
início da década de 1960 aprimorou esses estudos, mas não chegou a abandonar
completamente o conceito. As discussões sobre os contatos interétnicos se intensificaram a
partir do deslocamento de enfoque proposto pelo autor do conceito de aculturação para o

que, por sua vez, estruturam o discurso da antropologia estadunidense.


49 Cf. MARCONI e PRESOTTO, 1986; LARAIA, 1999.
50 Cf. BENEDICT, 1972; BENEDICT, s.d.
89

de relações sociais e de conflito, através do exame de cada situação específica de contato.


A partir desse enfoque, ficou claro que para entender a fricção interétnica, conceito
proposto a partir de então pelo antropólogo, é preciso levar em conta os interesses
econômicos, sociais e políticos locais, como ponto de partida para avaliar a situação e os
problemas dos índios no conjunto da sociedade nacional. O conceito de fricção interétnica
contribuiu decisivamente para dar visibilidade a vários conflitos em curso na época, além
de mostrar a tenacidade da luta pela sobrevivência por parte de grupos indígenas de alto
grau de contato com as chamadas frentes de expansão:

O conhecimento do contato interétnico será alcançado de modo mais


completo se focalizarmos as relações interétnicas enquanto relações de
“fricção”. [...] Do mesmo modo que, por exemplo, a sociedade nacional é
um sistema social susceptível de ser analisado através de sua estrutura de
classes, a situação de contato, graças ao sistema de relações que lhe é
inerente, pode ser analisada mediante o que denominei fricção interétnica
— o que seria o equivalente lógico (mas não ontológico) do que os
sociólogos chamam de “luta de classes” (CARDOSO DE OLIVEIRA,
1976, p. 85).

De acordo com os estudos realizados entre os Tikuna, no Amazonas, Roberto


Cardoso de Oliveira pôde analisar a presença e o contato interétnico entre os indígenas e os
seringalistas, sendo que entre esses dois grupos encontravam-se os seringueiros. Para a
realização desses estudos, o antropólogo se preocupou em analisar as relações sociais,
principalmente no que diz respeito ao sistema econômico das sociedades. Através da
sociedade Tikuna, entendeu que o sistema econômico representa a principal porta de
entrada para as trocas de elementos culturais e acarreta uma forte dependência desse grupo
em relação à economia não-indígena. O antropólogo afirmou, ainda, que após a fase de
integração do índio à sociedade nacional, haveria o que ele denominou de assimilação, ou
seja, o indivíduo indígena seria totalmente integrado à sociedade nacional, deixando de ser
índio. De acordo com as idéias de Roberto Cardoso de Oliveira, o índio assimilado estaria
entre as duas culturas: a indígena e a do não-índio. Tanto Cardoso de Oliveira como Darcy
Ribeiro previam fases para que o índio se integrasse totalmente à sociedade nacional.
Darcy Ribeiro, a partir dos trabalhos de campo com os Kadiwéu, entre 1947 e 1948,
e, posteriormente, com os Urubu-Kaapor, no início da década de 1950, não afirmou que o
índio estaria deixando de ser índio. No entanto, ao observar os Kadiwéu vestidos como
90

vaqueiros, falando português e trabalhando para não-índios, definiu-os como


transfigurados etnicamente:

O modo de ser dos Kadiwéu é, hoje, essencialmente, uma variante do


modo de ser dos brasileiros. Andam vestidos como a gente mais pobre da
região onde vivem, quase todos os homens adultos se exprimem bem em
português e muitos deles trabalham, por temporadas, nas fazendas
vizinhas. Constitui, porém, uma variante singular, porque recheada de
valores culturais próprios e, sobretudo, porque os Kadiwéu não se
identificam como “brasileiros” e sim como uma identidade étnica em si,
distinta de todas as demais: como um povo oprimido pelo grande mundo
dos brancos que os cerca e os hostiliza por todos os lados e de todas as
formas (RIBEIRO, 1980 a, p. 7).

Para Darcy Ribeiro, a transfiguração étnica é um processo que somente se


completa após a conclusão de algumas etapas. Assim, no primeiro contato pacífico com os
não-índios, os indígenas se tornam receptivos aos elementos culturais da sociedade
nacional, “[...] em virtude de sua superioridade técnica [...] adotando tanto os que possam
ser de utilidade imediata como outros, supérfluos e até inconvenientes” (RIBEIRO, 1970,
p. 443). Após firmar novos hábitos e novas necessidades, os contatos entre índios e não-
índios se intensificam. No entanto, quando a mortalidade e a desorganização interna
surgem, devido às compulsões a que se submetem, “[...] sobrevêm fases de violenta contra-
aculturação [...]” (RIBEIRO, 1970, p. 443) e, na maioria das vezes, é sempre tarde para se
voltar atrás. A sociedade indígena reconhece, então, que a fuga é impraticável ou está
traumatizada pelas dúvidas e interesses de alguns de seus membros.
A preocupação de Darcy Ribeiro com as transformações ocorridas entre as
populações indígenas traduziu-se em previsões para aquelas populações. De acordo com
seus estudos sobre a transfiguração étnica:

[...] prevê-se uma redução progressiva da população indígena, à medida


em que os diversos grupos passem da condição de isolamento à de
integração. Esta redução não condenará a parcela indígena da população
ao desaparecimento como contingente humano, porque os grupos
indígenas, ao alcançarem a integração, tendem a experimentar certo grau
de incremento demográfico (RIBEIRO, 1970, p. 445).
91

Darcy Ribeiro foi correto em sua previsão concernente ao certo grau de incremento
demográfico da população indígena após a integração à sociedade nacional. Para ele, os
grupos indígenas que se encontram integrados participam “[...] intensamente da economia
e das principais formas de comportamento institucionalizado da sociedade brasileira”
(RIBEIRO, apud CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996, p. 45) e sofrem profunda
descaracterização em suas línguas e culturas.
A importância do contexto histórico e da estrutura econômica regional foi realçada
por Darcy Ribeiro a ponto de formular um conceito específico de manipulação
simultaneamente ao conceito de aculturação. O conceito de integração foi utilizado por
Darcy Ribeiro mais como um estado do que como um processo. Na categoria dos índios
integrados, o antropólogo inseriu

[...] os grupos que, tendo experimentado todas as compulsões referidas e


conseguindo sobreviver, chegaram ao século XX ilhados em meio à
população nacional, a cuja vida econômica se haviam incorporado como
reserva de mão-de-obra ou como produtores especializados de certos
artigos para comércio. Estavam confinados em parcelas do antigo
território ou despojados de suas terras, perambulavam de um lugar a
outro, sempre escorraçados [...] (RIBEIRO, apud CARDOSO DE
OLIVEIRA, 1996, p. 57).

Mesmo sendo imposto ou submetendo-se a um outro modo de vida, há uma


essência da tradição indígena que não reflete tantas alterações como outros valores
culturais. Com os Kadiwéu esta situação não é diferente, embora, na metade do século XX,
Darcy Ribeiro tenha imaginado que eles também desapareceriam em breve. Os Kadiwéu
não desapareceriam exatamente por causa de uma drástica diminuição do seu contingente
humano, mas devido ao processo de transfiguração étnica a que foi submetida a sociedade
indígena.
A transfiguração étnica, tal como a expressão-conceito é apresentada por Darcy
Ribeiro (1980 a), deve ser mais bem trabalhada. O próprio antropólogo, preocupado com
outras questões, não focaliza o conceito e as imagens que dele são derivadas. A
transfiguração étnica, em princípio, deve ser compreendida como um movimento, em
processo de desenvolvimento no qual se estabelece o curso da cultura, que se assemelha ao
conceito de assimilação, tal como apresentado por Roberto Cardoso de Oliveira (1976). No
entanto, a própria palavra, transfiguração, já carrega, por si só, um significado do qual não
92

se pode escapar. Transfiguração: transformação, metamorfose. A transfiguração ainda diz


respeito à alteração de figura, de feições, de forma. Isso, por sua vez, encaminha imagens
teóricas a respeito das alterações processuais associadas à própria natureza contemporânea
das figuras, feições e formas. Isso significa que naturezas e origens são compreendidas
como processos históricos que se articulam no tempo, no passado e no presente. A
transfiguração, finalmente, ainda diz respeito às modificações na maneira de se proceder,
de se pensar e de sentir, no âmbito dos indivíduos, dos grupos, das sociedades. A utilização
da expressão-conceito, transfiguração étnica, conduz a reflexão para as observadas
transformações nos procedimentos, no pensar e no sentir dos indígenas assimilados. A
despeito de sua origem indígena, ao experimentar a cultura alheia, ao absorvê-la como
não-índios, deixam de sentir ou de pensar o mundo tal como indígenas.

3.1.1. Especificidades da cultura Kadiwéu: vontade de beleza e cerâmica

Quando Darcy Ribeiro os conheceu, os Kadiwéu somavam 235 indivíduos. Passado


meio século de suas visitas, a sociedade Kadiwéu já contaria com 1.183 representantes,
como mostra a Tabela 1. Nesse caso, especificamente, o nomadismo dos ancestrais
Kadiwéu traz consigo algumas características interessantes. Para percorrerem o território
tradicional — muito maior em extensão do que a atual área que ocupam —, os Kadiwéu
limitavam o número de filhos praticando o infanticídio ou o aborto (RIBEIRO, 1980 a, p.
20). Afinal, as dificuldades de movimentação pelos terrenos extensos impediam que
levassem, além dos objetos de viagem, mais que uma única criança. Porém, roubavam
crianças de outros grupos, que iriam formar as famílias de cativos que os atenderiam.
Entretanto, em fins do século XIX e início do século XX, os Kadiwéu já se
encontravam praticamente sedentarizados nas terras que ocupam atualmente (ver mapas 04
e 05, em anexo). Com o fim das incursões guerreiras, o aborto e o infanticídio foram,
gradativamente, abandonados como práticas culturais. Hoje, quando interrogados sobre o
assunto, negam que seus ancestrais o fizessem, pois o contato com a religião cristã
ocidental fez com que se envergonhassem desse período da história da cultura Kadiwéu.
93

Tabela 1 - Variações demográficas da população Kadiwéu — 1892-1998

Denominação Período População Fonte

Caduveos 1892 200 BOGGIANI (1975, p. 282)


Caduveos 1939 100 FREUNDT (1946, p. 5)
Kadiwéu 1948 235 RIBEIRO (1980 b, p. 62)
Kadiwéu 1998 1.183 Censo Kadiwéu (PORTO MURTINHO, 1998)

A tabela 1 apresenta as variações demográficas da sociedade Kadiwéu, mostrando


um aumento populacional de 235 para 1.183 indivíduos. Dessa forma, Darcy Ribeiro
estava correto em prever um incremento demográfico entre os Kadiwéu. No entanto,
quando se refere à diminuição drástica das populações indígenas, não se aponta para a
quantidade de indígenas, mas sim, às características que possibilitam um indivíduo ser
identificado como um indígena. Mesmo assim, diante do processo de integração das
sociedades indígenas pela sociedade nacional, havia a idéia de que o número de sociedades
indígenas diminuiria. Porém, o que se percebe, hoje, é exatamente o inverso: o
ressurgimento de sociedades das quais estudos classificavam como extintas, como os
Kinikinau, em Mato Grosso do Sul, e os Tupinambá, na Bahia. O texto de epígrafe (no)
contido no início deste capítulo retrata que além dos ressurgimentos, um fortalecimento da
identidade étnica se anuncia.51 No caso dos Kadiwéu, apesar da maioria utilizar o idioma
correntemente, embora diversas palavras novas, em português, tenham sido incorporadas
ao vocabulário do grupo e, além disso, hoje, ainda, serem realizados rituais, tais como a
Festa da Moça (Ganakigi), a Dança do Navio (Etogo) e a Dança dos Bobos (Bobotedi),
estes últimos foram transformados em rituais periféricos.
Manuela Carneiro da Cunha faz coro a vários antropólogos sobre a existência de
uma tradição que seja original de cada grupo étnico. A tradição original da sociedade, “[...]
na diáspora ou em situações de intenso contato, não se perde ou se funde simplesmente,
mas adquire uma nova função, essencial e que se acresce às outras [...]” (CARNEIRO DA
CUNHA, 1986, p. 99). Essa tradição tende a “[...] se acentuar, adquirindo maior
visibilidade, e a se simplificar e enrijecer, reduzindo-se a um número menor de traços que
se tornam diacríticos [...]” (CARNEIRO DA CUNHA, 1986, p. 99). Os sinais diacríticos,

51 Cf. WEATHERFORD, J. Savages and civilization. Nova York: Crown apud MATHEWS, Gordon.
Cultura Global e identidade individual: à procura de um lar no supermercado cultural. Bauru: EDUSC, 2002.
p. 31.
94

por sua vez, são aqueles capazes de distinguir, de separar o indivíduo indígena do não-
indígena.
Nos Kadiwéu, essa essência se reflete, entre outras práticas, na cerâmica. A
produção em argila se transformou. O padrão, no qual a cerâmica era produzida há tempos,
foi transformado. No entanto, fazer cerâmica para as mulheres compõe a parte que não se
altera da tradição Kadiwéu. Dessa forma, é possível referir-se ao que pertence à tradição e
ao que pertence à cultura: nem tudo o que se refere à cultura é tradição, mas tudo o que é
tradição compõe a cultura.
As índias Kadiwéu fazem cerâmicas há muito tempo — e fazer cerâmica e
desenhos envolvem questões de gênero, assim como o uso da língua.52 O primeiro registro
escrito, mais sistematizado, sobre a fabricação de cerâmica é datado de 1886. Isso significa
que, ainda nessa época, a cerâmica já era confeccionada pelas mulheres.53 No entanto, não
se têm notícias, na fase nômade, sobre tal atividade entre os Kadiwéu, o que faz acreditar
que a cerâmica começou a ser produzida quando os índios já estavam fixados em aldeias.
Através da obra de Branislava Susnik (1978), verifica-se que os Kadiwéu aprenderam a
fazer cerâmica com outra sociedade indígena: os Guaná (ancestrais dos Terena). A autora
afirma:

[...] as aldeias dos Cadiguegodis [Kadiwéu] não tinham locação separada


das aldeias Guaná; a plantação, [...] e o lote apto para o pastoreio de
cavalos [...] se uniam; no habitat Kadiwéu se intercambiavam a “dimi”
(casa grande de esteiras) com as “peti” (casas comunais) Guaná. Esta
estreita convivência local contribuiu a uma maior “guana-ização” dos
elementos culturais dos Kadiwéu que se transformaram posteriormente
excelentes ceramistas e bons tecedores (SUSNIK, 1978, p. 11-12, tradução
do autor).54

Percebem-se importantes alterações na cerâmica Kadiwéu, pois a textura, a


qualidade e, principalmente, a função sofreram mudanças. O que antes era para uso próprio

52 Na sociedade Kadiwéu, os homens falam uma língua e as mulheres falam outra. Mesmo que o diferencial
seja uma simples sonorização, como na expressão eu vi: JINADI (masculino) e JINAADI (feminino), ou uma
mudança total da linguagem, como é o caso da expressão Boa tarde!: ELE šOKIDI! (masculino) e ELE
AWII! (feminino). Quem ensina o pequeno Kadiwéu é a própria mãe, pois ela deve conhecer as duas versões
da língua, embora não fale a forma masculina em público. Esse procedimento deve ser respeitado e o
contrário não seria aceito pelo grupo maior. A mesma regra também deve ser seguida pelas crianças.
Informação pessoal da Profª Martina de Almeida, 2002.
53 Cf. SMITH, 1922.
54 Traduzido do original em espanhol.
95

e para a troca, hoje é transportado em ônibus para ser vendido nas cidades mais próximas à
Reserva, aproveitando a atividade turística em cidades do Estado de Mato Grosso do Sul,
tais como Campo Grande e Bonito. Desse modo, não se pode afirmar que a prática esteja
acabando ou que, com a inserção e uso de vasilhas de plástico e panelas de alumínio, as
cerâmicas Kadiwéu deixam de ser produzidas (ver fotos, em anexo). Segundo Darcy
Ribeiro,

[...] os Kadiwéu são conhecidos como os criadores de uma das melhores


cerâmicas indígenas brasileiras, pela forma e pela decoração. Suas
mulheres continuam fabricando estas louças de barro, porém, antes como
curiosidade e por um prazer de virtuosas, que pela sua utilidade, já que a
lataria civilizada vai substituindo galhardamente as antigas funções da
cerâmica. Encontram um forte estímulo para a conservação desta técnica,
na admiração que ela provoca nos seus raros visitantes que quase sempre
a comparam à cerâmica dos Tereno, muito boa, quanto à técnica de
fabrico, porém de decoração mais pobre (RIBEIRO, 1980 a, p. 287).

Com o fim das incursões guerreiras, os Kadiwéu deixaram de trazer novos cativos
para as aldeias. Eram as mulheres cativas que realizavam os serviços domésticos, liberando
as Kadiwéu nobres que, assim, conseguiam tempo para a criação e produção das pinturas
corporais. Gradualmente, o corpo deixou de ser o suporte para essas pinturas pelo fato de
que isso não era bem visto pela sociedade não-índia, além de outros motivos. Por outro
lado, na passagem do século XIX para o século XX, há uma desestruturação social
Kadiwéu, pois quem fazia as pinturas eram apenas as mulheres nobres. Assim, todas as
mulheres Kadiwéu, nobres e cativas, transportaram para a cerâmica a “vontade de beleza”
com que eram feitas as pinturas corporais (RIBEIRO, 1980 a, p. 255) .
As peças ganharam novos significados, sentidos, tessituras e, também, novos
formatos. Atualmente, além da “vontade de beleza”, as índias Kadiwéu produzem
cerâmicas, também, para a subsistência das famílias. João Pacheco de Oliveira (1999, p.
117) denomina esse processo de ressignificação, ao afirmar que: “[...] operadores externos
são ressemantizados e fundamentais para a preservação ou adaptação de uma organização
social e um modo de vida indígena”. As artesãs deram outras funções às cerâmicas, ou
seja, as ressemantizaram. Continuam a fazer e são estimuladas a isso, principalmente,
porque é intrínseco ao ser Kadiwéu e ao ser mulher Kadiwéu. Pela experiência adquirida
entre os anos 2000 e 2003, na aldeia Bodoquena, pode-se afirmar que a produção de
96

cerâmica Kadiwéu vai existir por muito tempo, tal como a utilização da língua. Há, ainda,
uma questão estética, como no passado:

[...] Quais os campos de atividade a que a sociedade Kadiwéu dá mais


atenção? Não pode haver dúvida que tem sido o embelezamento do
próprio corpo e dos objetos de uso pessoal, a fabricação de vasilhames de
barro para uso doméstico, os trabalhos em madeira, os trançados e
tecidos que começavam pela própria casa, antigamente feita de esteiras,
os artefatos de couro, de metal e de sementes e contas (RIBEIRO, 1980 a,
p. 258-259).

O fabrico de cerâmica é uma das marcas da identidade étnica dos Kadiwéu. O


sentimento estético, chamado por Darcy Ribeiro de “vontade de beleza”, “[...] um surplus
de trabalho e beleza vindos da importância do objeto e do prazer de construí-lo”
(PADILHA, 1996, p. 54). Os Kadiwéu se reconhecem nisso e são identificados por isso,
independentemente de todas as elucubrações que se possa fazer a respeito.
Darcy Ribeiro (1980 a, p. 259) citou outros modos de expressar essa “vontade de
beleza”, modos que não tinham tanta atração econômica aos olhos dos outros — dos não-
índios: “[...] os trabalhos em madeira, [...] os artefatos de couro, de metal e de sementes e
contas [...]”. Esses modos, sim, foram desaparecendo no decorrer do século XX (ver fotos
em anexo). Dois principais motivos fizeram com que tais modos desaparecessem: um deles
é decorrente do processo de sedentarização que eliminou as incursões guerreiras,
dificultando, assim, a aquisição, através de trocas, de metais que, quando amassados,
transformavam-se em jóias. Além disso, hoje, o fato das moedas possuírem valor
econômico afastou a possibilidade de os Kadiwéu continuarem as amassando. Os antigos o
faziam, pois não tinham sequer a noção da valoração econômica do metal.

3.2. A GEOGRAFIA ENTRE OS KADIWÉU

Algumas instituições mantêm contato direto com a Reserva Indígena Kadiwéu e,


dessa forma, poderiam ajudá-los, através, por exemplo, do fornecimento de ferramentas e
informações. Dentre elas podem ser citados o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). O
97

IBAMA recomenda aos índios que não cortem as árvores de seus territórios. Percebem-se
implícitas nessa ordem, noções de conservacionismo e biodiversidade. Porém, esses
conceitos são estrangeiros aos índios, fugindo, assim, completamente, de seus esquemas
mentais. Tanto o IBAMA como a FUNAI podem ser considerados portas de entrada para
o contato sistemático com o conhecimento geográfico, principalmente, através de imagens
de satélite e de mapas, levados para as aldeias, que indicam os limites da Reserva Indígena
Kadiwéu. Os índios, ao observarem a utilização de tais instrumentos por técnicos,
compreendem sua importância na ampliação do conhecimento e defesa da terra indígena
demarcada pelo governo federal, embora essa compreensão não os habilite a utilizá-los.
Além da FUNAI e do IBAMA, outras instituições adentram a terra indígena, como, por
exemplo, as organizações não-governamentais (ONG’s). As ONG’s vêm municiadas por
mapas, imagens de satélite e outras tecnologias, além de informações que, inevitavelmente,
(trazem consigo) representam marcas do conhecimento científico.
Nas cinco aldeias existentes na Reserva Indígena Kadiwéu, atualmente, o uso do
rádio facilita o contato intercultural. Sem o provimento de energia elétrica, existe a
possibilidade de cada família possuir, no mínimo, um aparelho, pois, a praticidade do
funcionamento à pilha difunde ainda mais a sua utilização. Através do rádio os Kadiwéu se
informam sobre os acontecimentos que envolvem as cidades da região, o Brasil e o mundo.
Em visita à aldeia São João, situada ao sul da Reserva, um professor Kinikinau55 foi
observado acompanhando, pelo rádio, programas em línguas francesa e espanhola. Muitas
dessas informações chegam até a sala de aula sob a forma de questionamentos56. Essa é
uma das formas de contato que os Kadiwéu possuem com o mundo. Esse mundo
desconhecido e de difícil compreensão é alvo de fascínio e sedução.
Na instalação das primeiras unidades escolares pelo SPI, foi introjetada, nas
comunidades indígenas, a imagem de escola como o lugar em que o conhecimento deve ser
apreendido, não através da autonomia e sim da autoridade. Os professores da época
aplicavam castigos e agressões físicas em nome da aprendizagem. Essa imagem de escola,
durante muito tempo, fez parte do “horizonte mental” dos Kadiwéu, como diria Clifford
Geertz (2002, p. 88). As escolas mantidas pelo SPI e, posteriormente, pela FUNAI,

55 Ressalta-se que esse professor teve sua formação fora da aldeia, prestou serviços militares e é casado com
uma mulher não-índia.
56 Um dos alunos questionou a relação entre o envolvimento do presidente do Senado Federal e a
manipulação do placar de votação do Senado Federal, em Brasília, e a queda das ações na Bolsa de Valores
98

ficavam à mercê de professores não habilitados e, em muitos casos, na ausência desses


professores, era a esposa do chefe de Posto da FUNAI que ocupava o cargo.
Como em uma resposta às agressões, os estudantes compreenderam que, na
ausência do professor autoritário, tudo é permitido. Dessa forma, os Kadiwéu apenas
aplicam um modelo de escola que conhecem e que, infelizmente, não se difere do que se vê
em outros lugares do Brasil.
A concepção “bancária” de ensino,57 tão criticada por Paulo Freire, também foi
transferida para as aldeias Kadiwéu, ao contrário da “prática da liberdade”, proposta pelo
pedagogo, em que o professor, através do diálogo com o estudante, também se educa.
Nesse caso, professores e estudantes “[...] se tornam os sujeitos do processo em que
crescem juntos e em que os ‘argumentos de autoridade’ já não valem. Em que, para ser-se,
funcionalmente, autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra
elas” (FREIRE, 2002 b, p. 68).
Apesar da geografia ter sido inserida na cultura indígena por outras instituições
além da escola, é através dela que se promove o ensino da ciência geográfica, com todas as
dificuldades encontradas nesse processo.
Trata-se do ensino de geografia para uma população indígena. O ensino de uma
forma de pensar que não é própria do lugar. A forma de pensar do Kadiwéu reflete-se
através das praticidades concedidas pelo mito: “O mito é um meio através do qual os povos
primitivos buscam explicar a realidade”, como afirma Cássio Hissa (2002, p. 49). A
ciência não observa tal característica: o sim às perguntas simples. Entretanto, se verificam
tendências expressas do pensamento moderno em interpretar os mitos segundo “[...]
critérios exógenos ao ambiente em que ele foi engendrado” (HISSA, 2002, p. 50). Uma
dúvida, aparentemente sem importância, se segue: haveria alguma possibilidade dos
Kadiwéu interpretarem a geografia a partir de seus próprios critérios? Imagina-se que não.
De acordo com Roger Bastide, um traço cultural que apresentar maior proximidade
da cultura que o recebe “[...] qualquer que seja a sua forma, será mais bem aceito e
integrado se puder adotar uma significação de acordo com esta cultura [...]” (BASTIDE
apud CUCHE, 2002, p. 119).

de São Paulo, em 2001. Percebe-se a grande dificuldade do aluno em compreender como um fato está ligado
a outro, pois são, aparentemente, muito diferentes e desconectados.
57 De acordo com Paulo Freire (2002 b, p. 58), “Na visão ‘bancária da educação, o ‘saber’ é uma doação dos
que se julgam sábios aos que julgam nada saber”. O autor ainda completa que, nessa concepção, [...] a
99

Percebe-se que a geografia, tal como compreendida pelos indígenas Kadiwéu, está
prenhe de um caráter utilitarista, aparentemente, próxima dos saberes indígenas58. Por sua
vez, saberes indígenas são práticos, míticos e, sobretudo, estão associados à sua
sobrevivência. Pensam eles, os índios, nas escolas, sobre os seus próprios saberes?
Novamente, imagina-se que não. Convidados a pensar sobre a geografia, como imaginá-los
pensando de uma maneira descolada da forma como experimentam os seus saberes —
através da sua vivência, a partir das explicações que encontram nos seus mitos e lendas?
A geografia, para eles, deveria ser prática, deveria se somar e se transformar
naquilo que já conhecem a partir do que experimentam do seu mundo, já tão modificado.
Somente assim a geografia teria alguma representação entre os Kadiwéu.59 A ciência
geográfica, diante disso, perde muito do seu significado — desejando manter, a todo custo,
sua integridade, como se o diálogo com o saber indígena pudesse desviá-la de seus
propósitos e, ainda, negar a sua própria natureza e a sua condição científica (HISSA e
SOUZA, 2004).
Também entre os Kadiwéu, quanto mais próximo do seu cotidiano estiver a matéria
que se estuda em sala de aula, mais espontânea será a assimilação do conhecimento.
Afinal, a vida dos Kadiwéu, desenvolvida através de mitos, torna-se muito mais simples do
que a existência pensada a partir dos jogos intelectuais da ciência moderna. Assim, como
em qualquer disciplina, há os momentos em que o conhecimento pode ser utilizado
diretamente, no dia-a-dia da comunidade. Existem outros, entretanto, em que a praticidade
imaginada pelos estudantes, está ausente implicando em dificuldades e desinteresses,
inerentes ao processo de aprendizagem.
Como exemplo de conteúdos cujo conhecimento torna-se pouco prático entre os
Kadiwéu, cita-se o ensino de mapas. O mapa, como objeto em si, corresponde, muito

educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos [...] (FREIRE, 2002 b, p.
59).
58 Esse caráter utilitarista não seria decorrente de uma postura que explicita a “transfiguração étnica”?
59 Para que a imagem de ciência pudesse encontrar alguma representação nos lugares indígenas, incluindo as
salas de aula indígenas, seria necessário que esse conhecimento (científico) se preparasse para o referido
movimento. Para tanto, os índios deveriam se sentir estimulados, habitualmente, a desenvolver mapas
mentais, de natureza teórica, assim como de caráter temático, de modo a conduzir significados ao
conhecimento que se transmite e se discute nas salas de aula. Os professores, portanto, também, seriam um
instrumento desse processo e, para isso, deveriam se preparar, também, rotineiramente, para esse processo.
Entretanto, a ciência e os professores se dirigem para a sala de aula e lá se posicionam, do alto, como se nada
houvesse a trocar. Essa posição hierárquica dos professores e da ciência é, por sua vez, reforçada e legitimada
pelos indígenas que, na sua condição de assimilados, nada mais fazem do que ratificar a demanda pelo ensino
tradicional. Nessa postura, nada há de prático, nada há de interessante. Pelas mesmas razões nada pode ser
100

positivamente, à perspectiva estética dos Kadiwéu. É atraente para os estudantes indígenas.


Contudo, nota-se a dificuldade para a compreensão e a aplicabilidade da escala em
trabalhos cartográficos. Mesmo após a utilização de técnicas e metodologias diferenciadas,
a compreensão da matéria exige uma abstração matemática da qual os Kadiwéu, também,
não estão acostumados a exercitar. Observa-se, aqui, uma característica inerente à própria
natureza do saber: a dificuldade de sua absorção.
Contudo, não é possível referir-se, nestes termos, em relação a outros conteúdos,
um pouco mais concretos. Dentre os conteúdos da geografia muito próximos a eles e,
portanto, práticos, citam-se o assoreamento dos cursos de água e a conseqüente escassez
desse recurso.
Na aldeia Bodoquena, o abastecimento de água pelas famílias Kadiwéu é feito nos
córregos, desde o consumo até a lavagem de roupas e banho. O assunto, portanto,
compreende uma questão de vital importância para a comunidade. Se nas escolas das
cidades é, no mínimo complicado, levar os alunos para observar um rio ou um córrego, na
aldeia, os córregos cercam a escola, facilitando o trabalho de campo. Entretanto,
inesperadamente, a saída da sala de aula para uma pesquisa de apresenta-se como uma
novidade para os Kadiwéu. Conforme o modelo de escola que absorveram até o momento,
as aulas só são possíveis entre quatro paredes. Mesmo em aulas herméticas como essas,
não se tem a prática de incorporar a diversidade de temas que professores e alunos podem
relacionar e pesquisar em um ambiente externo à sala de aula. Através de uma importante
ferramenta utilizada pela geografia, o trabalho de campo, os alunos indígenas podem
analisar e pesquisar o córrego assoreado bem próximo à unidade escolar e, assim, se iniciar
um processo de investigações e de descobertas de possíveis soluções frente àquela
situação, interrompendo, dessa forma, a metodologia tradicional.60
Muitos professores indígenas concluíram seus estudos em escolas dos não-índios.
Ao retornarem para a aldeia, no entanto, levam em sua bagagem, não apenas o diploma,
mas, também, a forma de pensar não-índio. Entretanto, não se discute, aqui, se o indígena
deixou ou não de ser índio. Refere-se a suas atitudes frente ao próprio saber indígena que

dito a favor da existência de trocas interculturais ou da existência de uma geografia indígena. Nada se
transforma na sala de aula, onde pouco movimento acontece.
60 Refere-se à metodologia tradicional, as aulas ministradas, apenas, entre quatro paredes, e que são baseadas
unicamente no livro didático de geografia, não importando se o conteúdo está inserido no contexto
sociocultural do aluno. A utilização do livro didático se limita a respostas de questionários, sem um maior
aprofundamento dos conceitos inerentes à geografia. Os professores que concluíam a sua formação em
101

poderia ser presenciado na escola. É contraditório um professor indígena, no interior da


escola que se denomina indígena, não dialogar com o saber criado no interior da sua
sociedade. Um professor não-índio, em uma sala de aula na universidade, poderia ensinar
algo que fosse diferente do que ciência moderna? O professor indígena, em princípio,
deteria o saber indígena, pois isso seria inerente ao ser índio. Mesmo assim, na escola, ele
ocupa a função de professor para ministrar aulas em que o carro-chefe é o conhecimento
científico que ele, por sua vez, não domina.61 Caso haja domínio do que ensinar, atesta o
grau de proximidade com os conceitos e valores da cultura estrangeira.
Imagina-se que o saber indígena e a geografia, juntos, poderiam transformar o
processo de ensino em algo que extrapolaria as salas de aula, sendo que, nesse caso, o
professor Kadiwéu teria muitas responsabilidades nesse processo imaginado. Uma
reconstrução dos saberes, da forma como pensada por Edgar Morin (2002) e rediscutida
por Cássio Hissa (2002, 2003). A ciência seria transformada em algo mais próxima das
pessoas, mais prática, mais acessível,

[...] mais legitimada politicamente, socialmente, e, da mesma forma, mais


equilibrada, menos pretensiosa, menos arrogante, mais densa, mais rica,
mais simples, mais inteligível, mais compreensível, menos hermética,
mais democrática, mais democratizadora, mais socializante, qualquer que
seja a ciência. Todas as ciências (HISSA, 2003, s.p.).

Mas, e esse saber indígena? Poder-se-ia imaginar, também, que o saber indígena
absorveria a criticidade da ciência moderna, continuando a ter a liberdade de captar a
profundidade das relações entre pessoas e entre pessoas e coisas, de reproduzir-se
espontaneamente no suceder do cotidiano da vida, de ser retórico e metafórico e de não
ensinar, mas persuadir (SANTOS, 2001).
A liberdade, também, deveria estar presente no ensino. O trabalho de campo,
mesmo que venha ocorrer no jardim da escola, deveria, como qualquer aula, estar pleno de
criatividade. Mesmo os cientistas, diante de métodos científicos rígidos, podem ser
criativos e ótimos resultados serem obtidos em suas pesquisas. Sem ferir códigos, regras e,
principalmente, o paradigma a que estão subordinados:

escolas de não-índios absorveram este modelo de escola e de metodologia. Assim, acreditando, talvez, que
seja a única e a mais correta, reproduzem-na no interior da escola indígena.
61 Não domina, mesmo sendo tão próximo do conhecimento que se pretende ensinar. Não se trata, portanto,
de uma carência específica dos indígenas. Os professores não-índios, de qualquer instituição de ensino,
apresentam a mesma “performance”.
102

Do mesmo modo, refere-se à autonomia e maturidade com que são


manipuladas as metodologias e técnicas (elas, também, um produto do
método livre de investigação) disponíveis para o processo criativo, nas
artes e na ciência. A liberdade, também, exterioriza-se na compreensão
das relações entre todos os saberes. Na criação, ela reflete a formação e o
espírito abertos indispensáveis à construção da crítica (HISSA, 2002, p.
139).

Os estudantes Kadiwéu descobriram o trabalho de campo em uma escola na qual os


próprios professores desconheciam a referida prática pedagógica-científica, devido a sua
formação precária. Entre alunos e professores há uma interdependência. Os estudantes se
subordinam aos professores que, por sua vez, necessitam dos alunos para estimular-lhes a
criatividade e a liberdade de aprender.
O trabalho de campo, ferramenta da ciência moderna, é interpretado, pelos pais e
mães de alunos Kadiwéu, conhecedores da natureza que os cerca, não como aulas de
verdade, mas como fingimento dos professores que realizavam passeios com os alunos.62 O
trabalho de campo pode, também, ser compreendido como um passeio em direção ao
conhecimento.
Nas experiências de campo, efetuadas entre 2000 e 2003, em séries do Ensino
Fundamental, observa-se que, devido ao tratamento anteriormente dado às disciplinas por
professores que reproduziam métodos apreendidos nas escolas não-índias, o ensino da
geografia se resumia na cópia de textos e respostas a questionários retirados de livros
didáticos63 incompatíveis com o ambiente no qual estavam inseridos, pois, excluíam o
mundo em que vivem os índios. A renovação e a inovação em metodologias, rompem com
o círculo vicioso lousa-giz-cópia-questionário.64 Entretanto, para que ocorram renovações

62 Essa concepção do trabalho de campo como um passeio não é exclusividade de pais de alunos Kadiwéu.
A maioria dos professores de geografia, em escolas de qualquer localidade, se ressente do mesmo problema.
Os pais, sem o conhecimento da necessidade de uma atividade extra-classe, como o trabalho de campo,
tomam-na como desnecessária, como excursões sem finalidade didática.
63 Cf. SOUZA; JOSÉ DA SILVA; PIRES, 2002. Para incentivar a produção de material didático próprio,
bem como livros a serem utilizados da 1a. a 4a. séries, foi elaborado um projeto intitulado: Construindo com
as próprias mãos: o ensino de artes, geografia e história na escola Kadiwéu. Esse projeto teve como objetivo
a produção de livros didáticos pelos professores Kadiwéu. Foi ganhador de dois prêmios nacionais: a) II
Prêmio Mostra PUC-Rio, promovido pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em agosto de
2002, e b) Segundo Prêmio Educar para a Igualdade Racial, promovido pelo Centro de Estudos e Relações de
Trabalho e Desigualdades (CEERT), em setembro de 2004.
64 Os professores indígenas deveriam fazer uso dos vários incentivos do governo federal à elaboração de
projetos que possibilitem a construção de livros didáticos que propiciem estudos do lugar Kadiwéu e não
apenas os estudos da cultura nacional, como retratam os livros enviados pelo MEC.
103

e inovações em sala de aula é necessário um importante investimento na formação dos


professores.
Na escola da aldeia, buscar novos conhecimentos, através de trabalhos de campo,
por exemplo, tornou-se uma inovação pedagógica, pois, através dessas atividades externas,
os conceitos que anteriormente fugiam aos esquemas mentais, e, portanto, não eram
absorvidos pelos alunos indígenas, tornaram-se mais acessíveis e práticos.65
A fim de minimizar o déficit de professores e, também, da formação dos
professores indígenas que atuam nas escolas das aldeias, é comum a instalação de cursos
normais em nível médio pelos órgãos ligados à educação, com o aval da comunidade
Kadiwéu. Permitido pela LDBEN, tais cursos habilitam profissionais para atuarem como
professores na Educação Infantil e nas séries iniciais do Ensino Fundamental, através do
Ensino Médio.
A principal característica desses cursos é a ênfase dada às metodologias de ensino
das diversas disciplinas a serem oferecidas. A especificidade desses cursos de formação se
mistura às peculiaridades da comunidade indígena onde são aplicados. São cursos
específicos para a formação de professores em que são priorizados os conteúdos relativos à
pedagogia e às metodologias de ensino.
Parece contraditório formar professores indígenas a partir do ensino de
metodologias. Em outras palavras, ensinar “como fazer” preterindo o “o que” fazer — logo
para professores que possuem tanta carência de conceitos, como os indígenas. Ao observar
a especificidade do lugar em que são oferecidos esses cursos, como as comunidades
indígenas, percebe-se que há, também, uma carência de profissionais. Além disso, os
professores que já realizam trabalhos em comunidades indígenas fazem apenas o que
sabem ou o que conseguem fazer.
Em dois Cursos de Formação de Professores66 pôde se perceber que, em alguns
momentos, se priorizava o como fazer, porém, em outros se tornou necessário dar a devida
atenção à carência de conceitos que os professores/alunos traziam para a sala de aula. No
entanto, em ambos os cursos priorizou-se o ensino da metodologia sem os conteúdos.

65 O assoreamento de cursos d’água, citado como conteúdo nas aulas de geografia do Ensino Fundamental,
por exemplo, é estudado em livros, mas não existia nenhuma correspondência com os problemas reais. Por
isso, a surpresa dos alunos em saber que poderia haver uma conexão entre a escola e o dia-a-dia.
66 Tive a oportunidade de participar como professor ministrante do curso de geografia em dois projetos de
formação de professores: o primeiro, entre os índios Kadiwéu e Kinikinau no Projeto Kadiwéu e Kinikinau
— Formação de Professores Kadiwéu e Kinikinau, em Porto Murtinho, o segundo, entre índios Guarani-
104

Como se pode ensinar um professor a ministrar aulas de geografia sem que ele conheça os
conceitos que são inerentes à disciplina?
Os professores indígenas já compreendem os limites teóricos e metodológicos do
RCNEI, pois, como referência, o documento nunca se tornou suficiente para atender às
necessidades em sala de aula. Como orientação metodológica e não conteudista, ele não
serve como livro didático. Além disso, a realidade encontrada no RCNEI também difere da
realidade dos Kadiwéu. As comunidades indígenas da Região Norte tornaram-se a
referência do RCNEI, sendo que as realidades divergem quando se trata das populações
indígenas do Centro-Sul brasileiro — tal como os livros didáticos, que possuem o caráter
de universalizar os conteúdos, embora, termine por generalizá-lo.
No RCNEI é possível verificar a exigência dos conceitos de geografia nas diversas
sugestões. Cita-se, apenas uma delas:

Como é o território indígena e como representar este território com sua


hidrografia, relevo, economia etc., usando recursos da linguagem dos
mapas como título, escala e legenda. A escala pode ser feita com
maneiras de medir de seu povo indígena, como por exemplo: para fazer
seus mapas, os Kaxinawá determinaram que 1 cm era igual a 1 hora de
caminhada; no Xacriabá, 1 cm = 3 horas a cavalo; no Macuxi, 1 cm = 1
hora de bicicleta... Qual é a escala para o nosso mapa? E a legenda?
Podemos criar legenda com símbolos e cores de nosso povo, para
representar cada informação que colocamos no mapa (BRASIL, 1998, p.
239).

Os conceitos de cartografia que são solicitados, neste exemplo, extrapolam o nível


de formação que os professores indígenas atingiram. A abstração, igualmente exigida para
o desenvolvimento desses conceitos, padecerá de adiamento. Isso acontece, pois os
professores indígenas decidem o que ensinar na sala de aula, estabelecendo uma espécie de
ordem hierárquica para os conteúdos, seguindo critérios imaginários, criados por eles:
aquilo que é fácil de ser ensinado; aquilo que sei ensinar e aquilo que acredito saber, mas
não tenho convicção alguma disso.
“Da vida de cada povo, nasce uma geografia”, afirma o RCNEI (BRASIL, 1998, p.
229). Da vida dos Kadiwéu, também nasceria uma geografia? Essa é uma importante

Kaiowá e Guarani-Ñandeva no Projeto Ára Verá — Formação de Professores Guarani/Kaiowá, em


Dourados, ambos em MS.
105

leitura a ser feita. Novamente se questiona a natureza dessa geografia indicada pelo
documento oficial afirmando a existência de várias geografias.
A partir da leitura e interpretação dos diversos depoimentos, anotados em encontros
informais com os estudantes e professores da Escola Municipal Indígena “Ejiwajegi” –
Pólo, é possível afirmar que a geografia inserida entre os Kadiwéu nunca demonstrou
sinais de que poderia ser algo tão diferente da geografia moderna. Ao se apresentar em um
ambiente com particularidades como o indígena, esta ciência mal cumpre as suas
tradicionais promessas. No que se refere ao diálogo com outras formas de saber e à sua
integração com outros discursos, tampouco se cogita a sua existência, mesmo como
promessa: “A geografia tem essa ambição de querer reunir tudo — a economia, a cultura, a
sociedade, as características físicas de um lugar”, já afirmava Milton Santos (apud HISSA,
2002, p. 274). A ciência é complexa. Todos devem se preparar para o seu estudo. Por que
deveria ser diferente nas denominadas escolas indígenas?

3.2.1. Interpretações complementares sobre a inserção da geografia na


sociedade Kadiwéu

Os depoimentos que se seguem foram recolhidos, informalmente, entre os anos de


2000 e 2003, na Escola Municipal Indígena “Ejiwajegi” – Pólo, na aldeia Bodoquena, no
decorrer das aulas de geografia ou em encontros informais. Alguns deles foram anotados
antes mesmo do processo de delimitação do objeto de pesquisa, enquanto outros
depoimentos foram recolhidos durante o mesmo processo. No entanto, a sistematização
desses depoimentos se realiza, neste estudo, sob a orientação das próprias referências
originárias da pesquisa que se estruturou a partir dos questionamentos realizados.
O estudo, realizado com base na experiência desenvolvida a partir do contato com a
comunidade escolar indígena, busca organizar interpretações de acordo com a própria
leitura apresentada pelos índios em torno da geografia. Trata-se, portanto, neste momento
da pesquisa, de refletir analiticamente sobre a inserção da ciência geográfica entre os
Kadiwéu, que se daria através da apropriação de conceitos originários da disciplina pelos
estudantes indígenas.
Muitas respostas antecipam grandes possibilidades de reflexão. Outras, contudo,
sendo bastante fechadas, demonstram um pequeno processamento e a restrita absorção dos
106

significados da disciplina e de seus conceitos fundamentais pelos índios. Focalizam-se os


depoimentos, encaminhados de forma espontânea pelos indígenas que tiveram os seus
nomes substituídos por nomes genéricos (letras):

Entrevistados Depoimentos
A Geografia é o desenho das coisas que a gente encontra na nossa aldeia.
B Os ecalailegi conhecem tudo e nós precisamos conhecer o que eles já sabem.
A gente escuta no rádio as coisas acontecendo, mas nós não sabemos onde é o lugar que aconteceu.
C Aquela bomba que fez o prédio cair. Eu sei que é num lugar bem longe que tem o nome de Estados
Unidos, mas nós não sabemos onde fica.
No meu livro que eu trabalhei na 2ª série, lá fala que tenho que ensinar as coisas do bairro onde a
D criança mora. Mas nós não temos bairro na aldeia. E lá no bairro que tá no livro tem prédio, a
estrada não é de terra, tem avião, tem trem. Essas coisas que não chegou aqui.
E Eu quero aprender geografia para saber das minhas coisas. Não quero ficar sabendo só as coisas
dos brasileiros.
Os índios precisam aprender geografia para conhecer o sistema do branco, pois os índios sabem que
não sabe tudo. Esse negócio de mapa, por exemplo, eu aprendi agora. Já tinha visto na FUNAI um
F mapa da minha terra, mas só via uns rabiscos. Agora eu sei, eu aprendi, por isso que é importante
aprender geografia, para conhecer o que o branco conhece e não ser explorado mais.
G Meu pai diz essas coisas de geografia. Diz que quando ele foi na escola era muito difícil pra ele
entender o que a professora mostrava pra ele.
H Eu não entendo esse negócio de escala, professor! Não tem uma coisa mais fácil não?
I Como eu vou poder desenhar a minha escola olhando de cima? Eu não sou passarinho para voar lá
em cima e olhar.
J A geografia fala para nós o lugar que é nosso até onde ele vai, até onde nós podemos chegar.
Depois desse lugar não é mais nosso, é dos outros.
K Eu não sei por que minha terra tem cerca. Quando eu nasci já tinha muita cerca na minha terra.
L É muito importante aprender geografia porque nós aprendemos a preservar o nosso lugar.
M Nós temos que saber para que as coisas servem, as águas, os matos, os bichos. Porque nós
precisamos cuidar de tudo isso que tá aqui que é pra não acabar.
N A geografia serve para nos ensinar a fazer mapas para nos localizarmos na nossa aldeia.
A geografia estuda o lugar das coisas neste mundo. Onde estão as águas, as matas, as terras boas
O para plantar, para caçar. Onde estão os rios cheios de peixe e a época de pescar.

Os depoimentos apresentados permitem realizar algumas reflexões acerca da


ciência geográfica e do seu ensino, inserida entre os Kadiwéu. Pode-se afirmar, após a
leitura dos relatos, que esse ensino formal carrega traços marcantes da escola clássica.
Pode-se afirmar, ainda, que a interpretação dos relatos conduz a uma inevitável associação
entre a educação clássica e o conhecimento científico moderno, próprio da cultura
ocidental, inseridos no lugar indígena sob leitura. Já relativamente absorvidos pela cultura
moderna, os índios se esforçam para absorver, também, os conhecimentos da ciência. Esse
esforço, de algum modo, é resultado dos estímulos que recebem da sociedade não-índia.
Esse esforço, frustrado, em muitas circunstâncias, reflete, em parte, a fragilidade das
comunidades que buscam a adaptação e a sobrevivência. Muitos desses relatos aqui
107

organizados demonstram a ingenuidade e a ausência de espontaneidade, contendo, na


maioria das situações, as respostas estimuladas pela própria comunidade não-índia que
assume, sob as orientações do RCNEI, o comando das salas de aula.
De um modo geral, os estudantes indígenas destinam, à geografia, um sentido
bastante utilitarista e simplificado, mas, de forma alguma, pode-se afirmar que se
apropriam e que transformam esse conhecimento científico com base no saber que,
supostamente, lhes dariam a particularidade tal como imaginada. A partir dos depoimentos
apresentados, não há nenhuma evidência de que a geografia que se estuda na escola
indígena seja a denominada geografia indígena, alheia, portanto, aos paradigmas da
modernidade e à cultura que lhe dá origem e que lhe concede significado à sua natureza.
Os referidos depoimentos atestam a presença da geografia moderna e, em especial, das
correntes mais combatidas que dizem respeito ao referido campo do conhecimento. Mas,
os investimentos relativamente frustrados não devem ser atribuídos, de modo algum, à
presença das correntes convencionais nos lugares indígenas e, em particular, na sociedade
Kadiwéu. O ensino de geografia é penalizado, também entre os Kadiwéu, pela
precariedade da formação dos professores. Os depoimentos dos indígenas são titubeantes,
pouco argumentativos, pouco convincentes, pouco espontâneos, atestando um grande
desencontro entre os estudantes e a matéria que se discute nas salas de aula.
Algumas respostas fazem referência, direta ou indiretamente, às indispensáveis
categorias de análise das quais a geografia moderna se serve para produzir o
conhecimento: paisagem, lugar, território e fronteira. Essas categorias, de acordo com os
depoimentos, são trabalhadas em forma de desenhos que refletem os assuntos estudados
em sala de aula. Como se observa, através do depoimento dos alunos A, J e K,
respectivamente: “Geografia é o desenho das coisas que a gente encontra na nossa aldeia”;
“A geografia fala para nós o lugar que é nosso até onde ele vai, até onde nós podemos
chegar. Depois desse lugar não é mais nosso, é dos outros”; “Eu não sei por que minha
terra tem cerca. Quando eu nasci já tinha muita cerca na minha terra”. Não se questiona a
forma escolhida para estudar as diversas categorias ditas geográficas, mesmo porque os
Kadiwéu possuem tal percepção visual e captam minuciosos detalhes da realidade em que
vivem. Entretanto, os alunos e professores Kadiwéu estão preparados para utilizar-se da
lente geográfica que vai buscar na realidade o conhecimento que se espera acerca das
categorias com as quais a geografia se utiliza? Caso contrário, o ensino da ciência
108

transmuda-se em aulas que banalizam o conhecimento.67 Percebe-se, ainda, que o professor


enfatiza as funções sociais da disciplina, através dos estudos de limites fabricados pelas
“cercas” e que assinala “até onde vai o nosso lugar”. Refere-se, no entanto, à própria
geografia moderna e aos seus propósitos, da forma como sempre são anunciados pelos
professores que ensinam a ciência geográfica.
Para os Kadiwéu e, também, como para quaisquer alunos, quanto mais próximo o
saber da sua vida cotidiana, mais fácil será sua absorção. É o que se observa da leitura feita
a partir dos relatos dos alunos G, H e I, respectivamente: “Meu pai diz essas coisas de
geografia. Diz que quando ele foi na escola era muito difícil pra ele entender o que a
professora mostrava pra ele”; “Eu não entendo esse negócio de escala, professor! Não tem
uma coisa mais fácil não?”; “Como eu vou poder desenhar a minha escola olhando de
cima? Eu não sou passarinho para voar lá em cima e olhar”. Do mesmo modo, também
entre os Kadiwéu, quanto mais próximo do seu cotidiano estiver a matéria que se estuda
em sala de aula, mais espontânea será a assimilação do conhecimento: as trocas
resultariam, também, desse encontro que, quase sempre, é bastante frágil.68 Observa-se
uma característica inerente à própria natureza do saber: a dificuldade de sua absorção. Para
facilitar a aprendizagem é necessário, também, que o saber possa ser utilizado pelo aluno
no seu cotidiano, para que possa aplicá-lo em sua vida. É isso o que os alunos esperam da
matemática, da história e, também, da geografia inserida em sua vida, demonstrando um
excessivo pragmatismo. O professor é o facilitador do processo de aprendizagem.
Entretanto, o ensino pressupõe um domínio do que se pretende ensinar. Ensinar, por sua
vez, pressupõe um progressivo investimento em leitura, estudo e pesquisa. O ensino é o
resultado do investimento em pesquisa, mesmo que o conhecimento que se deseja ensinar
seja, aparentemente, de pouca utilidade para os estudantes, ou de difícil absorção como os
estudos sobre escala e outros conteúdos. O ensino deve, também, ser compreendido como

67 Diante das anotações que envolvem o ensino da geografia nas escolas indígenas, uma interrogação
merece, também, ser encaminhada com destaque, ainda que com a exclusiva finalidade de reflexão: a
geografia não é, ao longo da sua história, quase sempre banalizada em todas as instituições, em todos os
níveis de ensino? Diversas obras referenciam a interrogação que, assim, não é destituída de fundamento.
Talvez, o mais incisivo questionamento histórico tenha origem na obra de Yves Lacoste (1976). Em grande
medida, ele continua atual.
68 Através de contatos com o corpo de professores que atuam na Escola Municipal Indígena Ejiwajegi,
obtém-se, ao longo do período 2000-2003, algumas informações que dizem respeito ao ensino de várias
outras disciplinas. O ensino da educação física apresenta-se como a exceção, diante da motivação dos
estudantes indígenas e tendo como referência a dificuldade de troca entre professores e estudantes, assim
como o obstáculo à absorção dos conteúdos. Todas as outras disciplinas encontram dificuldades nas salas de
aula.
109

fruto do importante diálogo entre professores e alunos, entre saberes, especialmente nesse
momento em que o conhecimento é discutido em sala de aula. Ensinar é ensinar e
aprender.
A geografia entre os Kadiwéu ainda é utilizada em sua forma tradicional, da mesma
maneira como ela se apresenta ao mundo: como um dicionário de lugares, um atlas que
responde as questões meramente informativas. É o que se observa através do aluno C, em
seu depoimento: “A gente escuta no rádio as coisas acontecendo, mas nós não sabemos
onde é o lugar que aconteceu. Aquela bomba que fez o prédio cair. Eu sei que é num lugar
bem longe que tem o nome de Estados Unidos, mas nós não sabemos onde fica”. Da forma
como o conhecimento está empregado, é possível que os meios de comunicação cumpram
melhor esse papel de caráter meramente informativo ou mesmo os livros didáticos
utilizados pelos professores Kadiwéu. Trata-se, essa, de uma discussão que já atravessa
décadas, e ainda, pelo menos nas salas de aula, não se resolve. Veja-se o questionamento
histórico de Yves Lacoste (1976, p. 6, tradução e adaptação do autor)69, ao se referir a uma
geografia desprestigiada em função daquilo que aborda e em função de como aborda:
“Outrora, talvez, ela [a geografia] teria servido para alguma coisa, mas, hoje, a televisão, as
revistas, os jornais não apresentam melhor todos os países, e o cinema não mostra bem
melhor as paisagens?” As interrogações do geógrafo francês podem, ainda, muito bem,
experimentar a transposição histórica para uma avaliação do que se tem feito da geografia.
Além disso, o desenvolvimento tecnológico, ainda em curso, que permite a transmissão ao
vivo de determinados fenômenos, atualiza o questionamento de Yves Lacoste. Apesar de
haver experimentado um enorme avanço teórico, ao longo dos últimos 30 anos, a geografia
sempre careceu, nas salas de aula, de posturas mais críticas e de uma formação mais
aprofundada.
Existe incompatibilidade concernente aos livros didáticos e o ambiente escolar no
qual estão inseridos, conforme a leitura que se faz do depoimento da professora, de origem
Kadiwéu: “No meu livro que eu trabalhei na 2ª série, lá fala que tenho que ensinar as
coisas do bairro onde a criança mora. Mas nós não temos bairro na aldeia. E lá no bairro
que tá no livro tem prédio, a estrada não é de terra, tem avião, tem trem. Essas coisas que
não chegou aqui”. Os mesmos livros recebidos pelas escolas situadas nas cidades são
enviados, pelo governo federal, para as escolas das aldeias. Não obstante, isso é passível de

69 Traduzido e adaptado do original, em francês.


110

ocorrer em outros lugares que não sejam as aldeias, pois ocorre nas escolas das zonas
rurais, por exemplo. Entretanto, sabe-se que a deficiência de material didático específico
sobre os lugares, de um modo geral, deve ser compreendida como um importante obstáculo
para o ensino fundamental. Ressalta-se que esta questão merece maior atenção quando se
trata de professores em processo de formação, como os indígenas, pois, em muitos casos,
eles também enfatizam os livros didáticos em suas práticas de ensino cotidianas. Os livros
didáticos são o seu roteiro, muitas vezes o único a ser seguido. Inevitavelmente, em muitos
casos, torna-se, a única fonte de pesquisa. Para que tal situação possa ser modificada, todos
os professores — indígenas ou não — devem ser aqueles que, a partir da prática da leitura
e da pesquisa, elaboram os seus próprios roteiros de trabalho em sala: isso pressupõe uma
autonomia intelectual que poucos desenvolvem e compartilham, mesmo nas salas de aula
das universidades (HISSA, 1999, 2002). Existem os programas que incentivam os
professores a elaborarem livros específicos, como os das escolas indígenas, embora, ainda,
não sejam acessíveis à todos. Além da questão do livro didático, é importante perceber que
a geografia que se ensina para os Kadiwéu aborda problemas como a geografia ensinada
nas escolas de todo o país, mesmo que ocorra de uma forma precária, superficial e
enviesada, a partir dos livros didáticos.
Para os Kadiwéu, a geografia é a disciplina dos mapas. O relato do estudante N
ressalta, aqui, a referida imagem da disciplina: “A geografia serve para nos ensinar a fazer
mapas para nos localizarmos na nossa aldeia”. Esta é uma reflexão importante a ser
realizada, pois há muito tempo as sociedades indígenas têm travado contato com este tipo
de ferramenta, seja no ambiente escolar, seja no momento da demarcação de suas terras. É
certo que os índios são capazes de construírem mapas mentais complexos. Dessa forma, a
cartografia poderia incorporar essa capacidade indígena e, simultaneamente, encaminhar
possibilidades de diálogo com os saberes indígenas. Os Kadiwéu não possuem a
compreensão do que se define por mapas mentais, pois se trata de um conceito tão
estrangeiro como a ciência. Mas, alguns deles, em sala de aula, já fazem uso de mapas,
uma ferramenta igualmente estrangeira no lugar. Entretanto, os indígenas não
confeccionam mapas. Os professores, também, não. O depoimento reforça a leitura que se
faz sobre a expectativa ingênua do estudante indígena, estimulada, por seu turno, pela
própria cultura moderna, não-índia, presente nas salas de aula através do ensino da
geografia. Mais uma vez é possível avaliar que tanto professores como alunos ainda não
absorveram as informações acerca da utilização de mapas nos estudos geográficos.
111

O “lugar das coisas neste mundo”, “as terras boas para plantar e para caçar” já são
conhecidos dos indígenas. Como é possível observar no relato do aluno O: “A geografia
estuda o lugar das coisas neste mundo. Onde estão as águas, as matas, as terras boas para
plantar, para caçar. Onde estão os rios cheios de peixe e a época de pescar”. As roças estão
próximas aos leitos de rios e córregos, os animais estão dentro das áreas de matas e
florestas. Percebe-se que os depoimentos estão carregados de “respostas forjadas” e
refletem a natureza da geografia levada para a escola indígena e como esse conhecimento é
trabalhado nas salas de aula. É possível verificar que os conceitos da geografia ainda não
foram absorvidos pelos Kadiwéu, talvez como decorrência da formação incompleta dos
profissionais. Os Kadiwéu possuem o domínio sobre a natureza que os cerca. No entanto,
faltam-lhes a criticidade para compreender que, entre essa natureza e eles próprios, existe
uma sociedade que insere-lhes tecnologias produzindo uma rápida degradação no ambiente
Kadiwéu. Na medida em que os problemas vão surgindo, como degradação e compactação
do solo, assoreamento de rios e córregos, os Kadiwéu também percebem que essa natureza
é finita. A geografia pode auxiliar nesse processo municiando os índios com as
informações pertinentes a esses problemas ambientais. Essas informações, juntamente com
os seus próprios saberes, podem fazer com que os Kadiwéu elaborem uma leitura
relativamente mais crítica sobre o quadro ambiental instalado no seu território, advindo
desse diálogo possíveis soluções. Entretanto, como fazê-lo?
“É muito importante aprender geografia porque nós aprendemos a preservar o
nosso lugar”; “Nós temos que saber para que as coisas servem, as águas, os matos, os
bichos. Porque nós precisamos cuidar de tudo isso que tá aqui que é pra não acabar”. Os
relatos dos alunos L e M, por seu turno, permitem verificar o sentido utilitarista que é
destinado à disciplina. Quando se é encaminhado o questionamento sobre que é geografia,
o estudante devolve para que serve e porque é importante estudar a disciplina. A
geografia, para isso, inserida nos ambientes escolares, deveria procurar o diálogo de modo
a se fazer compreender e, sobretudo, se deixar apreender para os índios. Somente assim,
através do intercâmbio, seria possível imaginar uma apropriação da geografia pelos índios
que derivasse de uma transformação da ciência — nos moldes apresentados por
Boaventura de Sousa Santos — com base nos saberes indígenas. Entretanto, tal
“movimento” não edificaria uma “nova disciplina”. Tal movimento deveria ser o da
disciplina em qualquer ambiente: na cidade, nas metrópoles, nas universidades, nas escolas
públicas, nas particulares, nas favelas, nas escolas rurais. A geografia se transformaria,
112

assim, nas salas de aula, naquilo que sempre deveria ter sido: uma disciplina científica
“que se ensina” a partir do conhecimento com o qual procura dialogar (HISSA e SOUZA,
2004).
“Os ecalailegi conhecem tudo e nós precisamos conhecer o que eles já sabem”; “Eu
quero aprender geografia para saber das minhas coisas. Não quero ficar sabendo só as
coisas dos brasileiros”; “Os índios precisam aprender geografia para conhecer o sistema do
branco, pois os índios sabem que não sabe tudo. Esse negócio de mapa, por exemplo, eu
aprendi agora. Já tinha visto na FUNAI um mapa da minha terra, mas só via uns rabiscos.
Agora eu sei, eu aprendi, por isso que é importante aprender geografia, para conhecer o
que o branco conhece e não ser explorado mais”. Esses depoimentos, dos alunos B, E e F,
não estão se referindo diretamente à geografia, mas ao processo do contato com saberes
estrangeiros. Devido a esse processo, os Kadiwéu sentem-se compelidos a se adaptar, a
pensar como o conjunto que os absorve. Dos saberes indígenas — feitos de uma ética
indígena — aos processos de adaptação, são recolhidos os traços de incursões do conjunto
que incorpora, que assimila. Um dos instrumentos poderosos de assimilação reside no
saber: saber é pensar e agir. O saber do conjunto que incorpora / integra, a ciência é
levada para as escolas indígenas. A geografia, mais de meio século presente entre os
Kadiwéu, reproduz os conceitos e valores da cultura que a originou, e, de modo algum,
deixou de existir como geografia moderna, tal como sistematizada a partir do século XIX.
Por sua vez, o encontro entre os saberes científico e indígena é constituído de
desencontros.
Os referidos desencontros, reflexo de um conjunto de contradições, de despreparos,
de equívocos, no momento impossibilitam uma confluência entre a geografia e os saberes
que circulam na sociedade Kadiwéu. A geografia, em função da sua proximidade com a
vida cotidiana dos indígenas, poderia exercer um poderoso papel de integração e de
democratização, especialmente desses grupos que vivem sob o domínio do preconceito.
Refere-se, aqui, à possibilidade de transformação do saber geográfico com base no saber
indígena e, simultaneamente, à transformação dos saberes indígenas com base na ciência
geográfica. A geografia, assim, seria dotada de maior praticidade — porque trabalhada sob
a referência dos práticos saberes originários da cultura indígena. Os saberes indígenas, por
sua vez, seriam dotados de maior criticidade — porque trabalhados sob a referência do
conhecimento científico. Não é o caso, portanto, de se pensar de forma maniqueísta: a
geografia a ser transportada para a cultura indígena jamais deixaria de ser geografia,
113

mesmo que transcendesse a si mesma — transformando-se, oportunamente, naquilo que


resulta do encontro: apenas por isso, imagina-se que possa ser transportada para tais
universos culturais; os saberes indígenas, por sua vez, jamais deixariam de assim ser,
mesmo que transcendessem as suas fronteiras e passem a incorporar novos valores (HISSA
e SOUZA, 2004; SANTOS, 2000a, 2000b, 2001).
114

Aos poucos, com a acumulação das experiências e


vivências, os índios me foram desasnando, fazendo-
me ver que eles eram gente. Gente capaz de dor, de
tristeza, de amor, de gozo, de desengano, de vergonha.
Gente que sofria a dor suprema de ser índio num
mundo hostil, mas ainda assim guardava no peito um
louco orgulho de si mesmos, como índios. Gente
muito mais capaz que nós de compor existências livres
e solidárias (Darcy Ribeiro).
115

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os saberes míticos, conhecimentos populares e científicos coexistindo? É uma


possibilidade. Para além disso: saberes míticos, populares e científicos entrelaçados, em
uma situação de interação, de troca, que leva à transformação de todos eles? A literatura
contemporânea que trata das questões relativas ao conhecimento, tidas como de vanguarda,
sinalizam para essas possibilidades e, mais do que tudo, apresentam tais possibilidades
como o caminho necessário para a reconstrução do homem e de suas práticas. Além disso,
responde àquela necessidade do fantástico, do mágico, que existe dentro do ser humano. A
comunidade indígena Kadiwéu, por diversas razões, reúne características que propiciam o
estudo simultâneo: a) da inserção da cultura não-índia, moderna, através do ensino de
diversas disciplinas científicas; b) da inserção do ensino de geografia, conforme as
orientações do RCNEI, e a intensidade com que os indígenas assimilam os ensinamentos;
c) da própria natureza da cultura indígena, tal como ela se caracteriza a partir do contato
histórico com as culturas “estrangeiras”. Muitas interpretações desenvolvidas ao longo do
texto da pesquisa não se submetem à síntese conclusiva, pois carregam o caráter teórico
próprio das reflexões. Ainda assim, são transportadas para esse fragmento de dissertação,
correndo-se o risco de simplificações. Outras interpretações, contudo, dada a sua condição,
mantêm a sua integridade ao compor esse texto de fechamento de um trabalho que, ainda,
pede a sua revisão, o seu aprofundamento, a sua continuidade.
Os mitos ainda são encontrados entre os Kadiwéu, nos esconderijos dessa cultura
assimilada. Eles estão presentes em falas não ditas, em depoimentos não realizados, em
práticas esquecidas e postas à margem. Muitos desses mitos, presentes no discurso oral dos
mais antigos Kadiwéu, não mais fazem parte do cotidiano da comunidade. Os anciãos e
anciãs, guardiões e guardiãs da memória desse grupo —de seus mitos, histórias e cânticos
—não são procurados como antigamente. Como marginalizados de um grupo social, por
pertencerem a uma história que se rejeita, à luz da modernidade que invade os terrenos
indígenas, mitos, anciãos, lendas, magias e fantasias são o oposto do que se procura na
sociedade que se transfigura, que busca a sua sobrevivência, que se integra e é assimilada.
Os grupos, seguindo o instinto da sobrevivência, procura o que lhe convém. Procura
116

conveniente: talvez seja o mínimo a se pensar diante da resistência conveniente e do


processo de assimilação ainda em curso. A escola é um dos instrumentos do processo de
integração, de assimilação, de transfiguração. A escola é uma instituição moderna que se
constitui uma importante representação desse poderoso objeto de desejo do índio
assimilado, passando a ocupar, na atualidade, a posição de locus do conhecimento,
marginalizando esses senhores da memória. Para a periferia social são encaminhados os
saberes locais. Como pensar a ciência e os seus papéis a desempenhar, quando introduzida,
formalmente, nos territórios indígenas? As escolas são um instrumento dessa inserção e
algumas interpretações sobre o seu caráter devem ser ainda, aqui, sintetizadas.
É comum se analisar o distanciamento entre a teoria e a prática. No caso da E.E.I.
esse distanciamento também pode ser observado. Os objetivos propostos pelo projeto de
E.E.I. não são atingidos. Alguns sucessos reconhecidos representam casos isolados, como
nas sociedades indígenas mais afastadas dos grandes centros. A grande diversidade de
sociedades indígenas não é levada em conta pela E.E.I. e não há uma reflexão sobre os
processos de integração a que estão submetidas por imposições ou por necessidade e
sobrevivência.
Conclui-se, também, que o adjetivo indígena não representa, de forma alguma, um
instrumento de diferenciação entre o que se é construído a partir de uma ética e uma lógica
indígena e o que se é produzido a partir das referências de outra cultura, como a moderna.
Surgem expressões com a finalidade de designar pretensas disciplinas ligadas às
comunidades indígenas: geografia indígena, história indígena, ciência indígena, química
indígena, entre outras. Uma leitura interpretativa dessas expressões, a princípio, permite
imaginar uma ciência originária das comunidades indígenas. Porém, uma interpretação
dessa questão, desenvolvida no contato com a comunidade Kadiwéu, permite compreender
que os projetos de educação, as práticas de ensino, os currículos escolares estão orientados
pelos paradigmas da ciência moderna e não pelo saber indígena.
A geografia teria muito a realizar entre as populações indígenas. Essa realização
colaboraria para um crescimento tanto da ciência como do conhecimento indígena. Através
do seu ensino, ela já faz parte da cultura Kadiwéu, embora, ainda, não esteja absorvida
pelo conjunto de tradições dos Kadiwéu. Como um campo do conhecimento científico,
permanentemente a se repensar, a geografia se desenvolveria, nas escolas, através de um
profícuo diálogo com a praticidade dos conhecimentos indígenas. Transformando-se
naquilo que sempre prometeu ser, tal como o conjunto da ciência, a geografia passaria a ser
117

incorporada pelo conhecimento indígena, ao mesmo tempo em que os conhecimentos


indígenas seriam sistematizados, incorporando a criticidade da ciência.
Existe, já, uma solicitação, por parte dos Kadiwéu, de uma educação escolar, na
qual se inclui a inserção das várias disciplinas científicas — sendo a geografia uma delas
— e não apenas o domínio da escrita e da leitura. No entanto, a característica desse
movimento se diferencia de outros já observados. Os Kadiwéu buscam outras formas de
aproximação da cultura do não-índio, deixando de se isolar do contato. Percebe-se, assim,
a necessidade de incorporar e dominar aspectos da cultura dos não-índios como forma de
luta política para manutenção de suas terras e de seus direitos, continuando a se
apresentarem como índios. Há tempos, o conceito de integração foi utilizado para a
designação de índios que perdiam sua cultura a favor da cultura do não-índio. Porém,
esses mesmos índios se transformaram, hoje, em agentes da ação auto-integradora, como
membros da sociedade nacional. Assemelham-se, mesmo, a índios assimilados,
transfigurados etnicamente.
A importância do conhecimento científico se embrenhar nos interstícios dessa
sociedade está no fato de que é possível ampliar os horizontes mentais desse grupo
indígena, sistematizando os conhecimentos já existentes. A Reserva Indígena Kadiwéu
continuará cercada pela serra da Bodoquena. Porém, à sua volta, se desenvolvem
fenômenos e processos interferindo em seu interior, impossibilitando o isolamento dos
Kadiwéu e de sua “cultura singular”. Os fenômenos e processos que atingem a comunidade
Kadiwéu possuem conexões com o mundo. Se, por exemplo, entre os não-índios a palavra
globalização ainda está sendo processada, com os Kadiwéu esse processo apenas se inicia.
Não há mais como negar, nem mesmo, as influências da economia mundial, também, nas
comunidades indígenas. Por enquanto, o rádio substitui o televisor, mas,
independentemente da forma de comunicação utilizada, os Kadiwéu já estão conectados
aos acontecimentos do mundo. Aos poucos a ciência segue ampliando os horizontes
mentais desse grupo indígena.
A inserção da ciência, na comunidade indígena Kadiwéu, altera a cultura, a partir
do momento em que são incluídas, no local, novas tecnologias, tais como celulares,
automóveis, urnas eletrônicas, entre outras. Apesar disso, os Kadiwéu ainda mantêm,
mesmo que perifericamente, algumas características “senhoriais”, a “vontade de beleza”
expressa nas pinturas corporais e cerâmicas, danças e rituais importantes que os fazem se
118

sentir índios, e, principalmente, também, de certa forma, garantem sua identidade indígena.
Índios, agora, feitos, também, de uma cultura estrangeira, índios transfigurados.
A referida transfiguração étnica, tal como Darcy Ribeiro apresentou o conceito, é
parte integrante de um amplo processo. Hoje, a escola, oficializada pela cultura não-índia,
orientada por parâmetros nacionais originários do Ministério da Educação e do Desporto,
está presente na aldeia. Trata-se de uma presença definitiva que resulta em transformações
definitivas. Diante disso, seria imprescindível pensar a natureza da escola e, com isso, o
caráter do ensino que se carrega para as aldeias. Assim, inevitavelmente, pensa-se na
formação dos professores, na indispensável transformação da ética do ensino que, por sua
vez, está relacionada à ética da ciência: um novo saber, um novo homem.
Para que haja mesmo uma transformação dos saberes científicos e dos saberes
indígenas, é preciso que a própria ciência seja transformada a partir de uma ruptura
consigo mesma, à luz de referências mais libertárias, diante da complexidade do mundo.
Entretanto, muitas são as dificuldades encontradas para o desenvolvimento desse processo,
algumas delas de ordem cultural e política. Além disso, a maneira tradicional como se
desenvolve o ensino das disciplinas científicas nas comunidades indígenas, a partir das
sugestões do RCNEI, também contribui para dificultar a consolidação do processo de
trocas entre os saberes. O que se observa é uma escola tradicional, de práticas tradicionais,
feitas de formação tradicional, para índios, inserida em uma cultura em franca
transformação.
Percebe-se, por exemplo, que os índios têm o domínio da natureza que os cerca. À
geografia caberia aprimorar esse domínio, dotando os indígenas de conhecimentos mais
aprofundados e de criticidade. Os índios, despreparados diante do avanço tecnológico que
adentra o seu território, deparam-se com uma rápida degradação ambiental. A geografia os
auxiliaria, também, com informações necessárias para que, através dos próprios saberes,
pudessem elaborar uma leitura mais crítica sobre o quadro ambiental instalado no seu
território. Entretanto, como fazê-lo? A geografia, para isso, inserida nos ambientes
escolares, deveria procurar o diálogo de modo a se fazer compreender e, sobretudo, se
deixar apreender para os índios. Somente assim, através do intercâmbio, seria possível
imaginar uma apropriação da geografia pelos índios que derivasse de uma transformação
da ciência — nos moldes apresentados por Boaventura de Sousa Santos — com base nos
saberes indígenas. Entretanto, tal movimento não edificaria uma nova disciplina. Tal
movimento deverá ser o da disciplina em qualquer ambiente: na cidade, nas metrópoles,
119

nas universidades, nas escolas públicas, nas particulares, nas favelas, nas escolas rurais. A
geografia se transformaria, assim, nas salas de aula, naquilo que sempre deveria ter sido:
uma disciplina científica que se ensina a partir do conhecimento com o qual procura
dialogar.
Apesar de séculos de contato com os não-índios, entre os Kadiwéu ainda há o que
ser preservado: a língua indígena, os rituais, as danças, os mitos, a musicalidade e,
principalmente, as histórias do lugar indígena Kadiwéu. São esses alguns dos sinais que
Manuela Carneiro da Cunha denominou de diacríticos, que identificam os índios, e que,
ainda, permitem que os mesmos se auto-identifiquem como índios. São esses sinais —
traços de identidade —reforçados diariamente, no contexto do contato que lhes restaram.
Aos Kadiwéu também restou o território. No entanto, a área que ocupam
atualmente para reproduzir suas tradições, lhes pertence exatamente por essa característica
mantida: trata-se de uma sociedade indígena. É isso que o Kadiwéu tem de mais
importante e é esse o risco que se corre: a perda do território, carregada da sua cultura.
Afinal, não teria sentido, na contemporaneidade, reservar mais de meio milhão de hectares
para índios sem identidade. Esse tema poderia ser posteriormente estudado a partir da
reflexão sobre o conceito de território entre os Kadiwéu.
120

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ANEXOS
128

Foto 2 - Pratos Kadiwéu –


coleção particular, 2001

Foto 1 - Pote Kadiwéu –


Coleção FFLCH - USP, 1987

Foto 3 - Vaso Kadiwéu feito em


pindó – coleção particular, 2001

Foto 4 – Colares de níquel amassado


– Coleção Darcy Ribeiro, 1947

Foto 6 - Pote Kadiwéu -


Foto 5 - Cachimbos e figuras antropomorfos em madeira – coleção particular, 2001
Coleção Darcy Ribeiro, 1947
129

Foto 7 - Mulher Kadiwéu em 1892, Foto 8 - Mulher Kadiwéu em


Guido Boggiani 1937, Claude Levis-Strauss

Foto 9 – Mulher Kadiwéu em 1983,


Jaime Garcia Siqueira Jr

Foto 10 – Giane, índia Kadiwéu com o


rosto pintado em 2003
Foto 11 – Guilherme, índio Kadiwéu,
com o rosto pintado, em 2004
130

Foto 12 - As pinturas corporais também são


vendidas ou trocadas. Não-índia, em 2004
Foto 13 – Dona Carmem e Calista
incentivando as jovens a dançar, dia do
índio em 2000

Foto 14 – Alunas Kadiwéu dançando no dia


do índio, em 2000 Foto 15 – Jovens Abadio e Hélio dançando no
dia do índio, em 2000
131

Foto 16 – Grupo de alunas prontas para a dança no dia do índio, juntamente com professores José
Luiz de Souza e Giovani José da Silva, em 2000

Foto 17 - Escola Municipal Indígena “Ejiwajegi” – Pólo e detalhes das pinturas na


parede da unidade escolar, em 2004
132

Mapa 01

Fonte: Europa Multimedia – 2001 Autor: José Luiz de Souza/ CEEI/ SEMEEL/ PM/ 2001
133

Mapa 02

PORTO MURTINHO E SUA LOCALIZAÇÃO


EM MATO GROSSO DO SUL

RESERVA
INDÍGENA
KADIWÉU

Base cartográfica Mapinfo, Brasil 1991 Org. José Luiz de Souza, 2005.
OASIS, 2004
134

Mapa 03

SEM ESCALA

Terra Indígena

FONTE: IBGE AUTOR: JOSÉ LUIZ DE SOUZA/ UFMG/ CAPES, 2004.


135

Mapa 04

Fonte: Memorial Descritivo da FUNAI


Autor: José Luiz de Souza/ CEEI/ SEMEEL/ PM/ 2001
136

MAPA 05

ÁREAS DE DOMÍNIO E ÁREA ATUALMENTE OCUPADA PELA


SOCIEDADE KADIWÉU
Segunda metade do séc.
SÉC. XVI E PRIMEIRA XIX e primeira metade do
METADE DO SÉC. XIX séc. XX

Segunda metade do séc. XX

Fonte: PLANO de Conservação da Bacia do Alto Paraguai – PCBAP/ Projeto Pantanal, Programa Nacional do Meio Ambiente. Brasília: PNMA, 1997, p. 898.
Base cartográfica 1991
Autor: José Luiz de Souza/ UFMG/ CAPES, 2004.

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