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Número 1
O ensaio é um gênero sinuoso. Ele parece fácil, mas é um perigo. Um descuido – você rola
abaixo em uma escada sem corrimão.¶ O ensaísta sabe onde começar, mas nunca sabe onde
acabar: o desvio, a vereda e a curva à beira do abismo são sempre um convite. Não se perder
e não escorregar já seriam duas grandes coisas.¶ O ensaio não tem pedigree. É um gênero
que resiste às definições, cioso da sua condição de maverick. O espírito livre é quase tudo em
um ensaio (alguém chamou isto de heresia).¶ No Brasil, ele tomou forma acadêmica, o que
é uma pena, pois fica sem o que tem de bom, a espontaneidade. Por causa dela, Vinicius de
Moraes achava que o essay estava na origem da brasileiríssima crônica. O ensaio ideal poupa
citações e supõe que as notas de rodapé são um terreno minado.¶ Na década de 1990, o
ensaio renasceu nos EUA, no vácuo do crescimento do interesse pela narrativa de não-ficção.
Hoje em dia, no mundo literário americano, ele até se confunde com certo tipo de reporta-
gem mais pessoal.¶ O Instituto Moreira Salles lança esta serrote por acreditar que, em sua
multiplicidade de tons e vozes, o ensaio se fixou como gênero indispensável à reflexão e ao
debate de ideias.¶ serrote complementa as atividades do Instituto. Com espírito público e
dotação privada, o IMS contribui ativamente para a vida cultural brasileira há quase duas
décadas. Ao virar estas páginas, aliás, o leitor encontrará, aqui e ali, vestígios de seu ines-
gotável acervo.¶ Os editores querem fazer desta quadrimestral um espaço para se publicar
ensaios – originais, independentes, bem pensados e bem escritos – no Brasil. Quem edita a
serrote tem como horizonte o espírito daqueles que viram, no ensaio, o jogo e a felicidade, e,
no ensaísta, o homem liberto.
Vida digital steinberg pacote exclusivo
23 O Google e o futuro dos livros, por Robert Darnton 41 Sair da linha, uma introdução a Saul Steinberg, por Rodrigo Naves
49 Desenhos inéditos de Saul Steinberg
65 Steinberg, os Civita e o Brasil
69 Black Friday, por Alberto Dines
Indústria automobilística
151 Adeus ao Ford Bigode, por E.B. White
159 Motores de Detroit, por Edmund Wilson ARTES PLÁSTICAS
133 Pintura em suspensão, por Heloisa Espada
137 Exclusivo Pancetti, por Marcel Gautherot
195 David, Marat, por Carlo Ginzburg
Política internacional
89 Suharto sai de cena, por Benedict Anderson seções
alfabeto serrote
37 P de Passe, por Tostão
87 S de Serrote, por francisco Alvim
191 V de Verso, por Antonio Cícero
Literatura
73 Os Aforismos reunidos de Franz Kafka, por Modesto Carone Carta Aberta
144 O romance e a revista, por Samuel Titan Jr. 215 Exclusivo De Mário de Andrade para Otto Lara Resende
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ALFABETO serrote
seus cartuns
individuais fora dos EUA; por trás desses eventos ligados ao país
“cena americana”
Vejo no novo catálogo da Sears Roebuck que ainda é possível comprar um eixo
para um Ford Bigode 1909, mas não me iludo. Os tempos de glória se foram, o
fim está próximo. Apenas uma página do catálogo é dedicada a peças e acessó-
rios para o Ford Bigode; no entanto, todos se lembram das primaveras em que
a seção de acessórios do Ford era maior do que a de roupas masculinas, e quase
tão grande quanto a de móveis e decoração. O último Ford Bigode foi fabricado
em 1927 e o carro está desaparecendo daquilo que os acadêmicos chamam de
“cena americana” – o que é dizer pouco, já que, para os milhões de pessoas que
cresceram com ele, o velho Ford era praticamente a cena americana.
Ele era um milagre forjado por Deus. E era obviamente o tipo de coisa
que só acontece uma vez na vida. Com sua mecânica misteriosa, não havia
nada no mundo que se assemelhasse a ele. Grandes indústrias ascenderam
e caíram em seu tempo. Como veículo, era esforçado, prosaico, heroico; e
com frequência parecia transmitir essas qualidades a quem o dirigia. Minha
geração o associa à juventude, por seu entusiasmo espalhafatoso e irreme-
diável. Antes que ele desapareça nas brumas, gostaria de prestar um tributo,
que é um suspiro sem lágrimas, e registrar algumas observações ao acaso,
numa forma um pouco menos enfadonha que um catálogo da Sears.
Um reluzente Ford Bigode modelo Tudor, em frente ao prédio onde atualmente se encontra o Museu Nacional O Ford Bigode se distinguia de todos os outros modelos pela sua embreagem,
de História Natural, em Washington, dc, provavelmente em 1926 © Library of Congress, LC-DIG-npcc-33/42 que era do tipo planetária – ou seja, parte metafísica e parte fricção pura. Os
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David, Marat
Arte, política, religião1
CARLO GINZBURG
carta aberta