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Questão de Fé

I

Os corpos dos animais sacrificados ficavam em um canto do


templo, vertendo sangue aos montes e exalando um cheiro nauseante de
morte prematura. Cordeiros, cabras, galinhas e até mesmo uma cabeça de
boi perdiam-se na confusão de sangue e moscas.
Hoje, todos os animais sacrificados pertenciam a apenas um
homem: Nadomide. Iluminado dos deuses significava o seu nome.
Latifundiário, dono de riquezas incontáveis, Nadomide observava os
animais sendo sacrificados sucessivamente, enquanto rezava por sua
Amélie. Sua filhinha, acamada e frágil. Ah, se ele pudesse!, trocaria todas
as riquezas pela saúde de sua pequena.
O homem já se havia utilizado de inúmeros artifícios: patrocinara
rezadeiras para que a curassem com a força das palavras; recrutara amigos
e conhecidos para um círculo de orações; apelara até mesmo para os
velhos mendigos que se diziam curandeiros e receptáculos de entidades
divinas, trocando seus poderes por um punhado de fumo ou uma
moringa de aguardente. Nada adiantava. Como último recurso,
Nadomide resolvera apelar para os pedidos divinos em sua forma mais
radical: o sacrifício das criaturas terrenas. Conversara com o sacerdote do
templo. Como primeira orientação, o homem santo lhe dissera que vinte
e seis animais das sagradas escrituras deveriam ser dados em sacrifício
para Salyr, deus da vida humana, além de uma contribuição financeira
que deveria ser feita em benefício do templo.
Lá estava Nadomide, ao lado do sacerdote, ouvindo o balido das
cabras e o mugido das vacas guiadas por seus empregados, todas
enfileiradas, esperando por seu desafortunado fim, enquanto dois
oráculos, com suas vendas a cobrir os olhos queimados, cortavam a carne
e o fio da vida que ligava os animais a terra.
- Isso deverá ser suficiente para aplacar a fúria dos deuses. –
sussurrou o sacerdote Alassael ao ouvido de Nadomide, que se mantinha
quieto, com os braços cruzados e o rosto enrugado. – Os deuses não
gostam de ostentação, Nadomide. Ostentação e acúmulo de riquezas. – o

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sacerdote fingiu um calafrio de repúdio. – Eles odeiam com todas as
forças.
Nadomide já estava anestesiado; mal ouvia o que o sacerdote lhe
dizia. Todas as suas forças, físicas e mentais, estavam canalizadas em suas
orações: ‘clamo a vós, senhores do céu, da terra, do mar e de toda a vida que aqui
habita, não permitais que minha querida Amélie morra. Ela é nova demais para
compreender os mistérios da morte. Tudo o que peço é que a existência da menina seja
a mais prolongada possível. Que me levem no lugar dela. Vós já levastes a mãe da
menina, não leveis também ela própria. Não suportarei. Clamo a ti em particular,
Salyr, senhor da vida humana, não permitas que nada de mal aconteça com minha
pequena’.
Estava tão absorto em suas próprias orações que sequer percebeu
quando o último par de galinhas foi sacrificado; não percebeu os estalidos
dos ossos sendo despedaçados pelas mãos já manchadas de carmesim
dos dois oráculos, que tinham suas túnicas e vendas completamente
tingidas; não percebeu quando o sangue se perdeu entre os litros já
coagulados por todo o altar e os corpos dos animais foram jogados a um
canto, em uma pilha crescente que já começava a feder. O sol entrava
pelas grandes janelas circulares, incidindo diretamente sobre os animais.
O cheiro insuportável chamava a atenção das moscas, que não tardavam
a depositar seus ovos nas carnes, fazendo crescer os primeiros magotes.
O sacrifício, que se iniciara na madrugada do dia anterior, estava enfim
terminado.
- Agora terás que lidar com a paciência, meu caro. – disse Asselael,
aproximando-se lentamente do altar. Abraçou os dois oráculos sujos de
sangue, sussurrando algo em seus ouvidos. Os dois assentiram em
silêncio, retirando-se logo em seguida.
O sacerdote esperou que os dois desaparecessem para que pudesse
falar.
- Agora que estamos sozinhos, há algumas coisas de que precisas
saber: a fúria dos deuses é infinita. Sua ira pode se manifestar com a
mesma intensidade de sua bondade. Os esforços de todos, durante a
noite de ontem e o dia de hoje, foram tremendos, mas isso não é garantia
de que seu pedido seja atendido. Não sou eu ou você quem decide. São
os deuses, e apenas eles. Tudo o que podemos fazer é agradá-los e
esperar por sua decisão.

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Nadomide já sabia de tudo aquilo. Estava tão calejado de falsas
esperanças que não se admiraria se sua Amélie continuasse doente.
Estava cansado de tantas promessas e nenhum resultado concreto.
- E quanto ao pagamento? – perguntou latifundiário.
- Entregue o dinheiro aos oráculos, do lado de fora do nosso
templo. – disse o sacerdote. – Não tratamos de negócios num local
sagrado.
Pagou aos oráculos e voltou para casa, mãos nos bolsos e cabeça
baixa, os ouvidos cheios das palavras dos pedintes, que apinhavam as
ruas a essa hora da manhã. De seus olhos já não caíam mais lágrimas:
suas forças estavam voltadas para a cura da pequena Amélie.

II
Ciência

- Quando o papai volta, Dayena? – perguntou Amélie, puxando as


grosas colchas até o pescoço. O sol já estava quente, mas a febre
implacável da menina fazia-a sentir calafrios cada vez mais acentuados.
Dayena, dama de companhia da menina, preparava mais uma leva
de panos frios para tentar controlar a alta temperatura da menina, que já
perdurava por cinco dias.
- Por que ele não veio me ver ontem à noite?
- O senhor Nadomide está muito ocupado, Amélie. – disse Dayena
com sua voz doce e paciente, aproximando-se da cabeceira e colocando
delicadamente o pano na testa suada da criança. – Não se preocupe, ele
volta logo.
- Quero-o aqui agora! – ela reclamou, chorosa. – Estou nessa cama
há quase uma semana e ele ainda assim parece não se importar comigo!
- Não fale bobagens, criança. – respondeu a dama. – Teu pai está
preocupadíssimo contigo. E por falar nele... – estacou por um segundo,
fazendo silêncio – ouço passos. Ele deve estar chegando.
Os passos aproximaram-se, mas não eram de Nadomide. Eram do
criado Daniel.
- Senhora Dayena. – dissera o empregado. Suas roupas,
impecavelmente limpas, transpareciam todo o cuidado que o homem
tinha com os protocolos exigidos pelo patrão. Sussurrava para que
Amélie não o ouvisse. – Há um homem na porta querendo falar

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urgentemente ao senhor Nadomide. Eu lhe disse que o senhor está fora,
mas ele insiste em entrar e esperar. Diz que se trata da menina. – apontou
com o queixo para Amélie. – Ele diz que pode ter a cura para a doença
dela. O que devo fazer?
- Fique aqui, vou ver do que se trata. – ela sussurrou em resposta.
Depois, em voz alta, disse a Amélie. – Senhorita, fique com Daniel, volto
já.
Amélie aquiesceu, fechando os olhos e virando-se para tentar
dormir um minuto a mais.
A primeira vista, o homem que esperava no vestíbulo não tinha
uma aparência que se prezasse: não tinha a altivez dos curandeiros nem a
sabedoria estampada em forma de rugas dos sacerdotes. Era, ao
contrário, um tipo que se vê por aí às ruas todos os dias: um homem
baixo e novo, já com grandes entradas nos lados da cabeça. Não devia ter
mais de vinte e cinco anos de idade. Vestia uma casaca negra que ia dos
ombros até os tornozelos, e tinha, em uma das mãos, uma maleta.
- Pois não...? – disse Dayena, enquanto descia as escadas.
- O senhor Nadomide, eu... eu tenho que falar com ele.
Tinha uma voz esganiçada que ainda se perdia em tons graves e
agudos. Aquele garoto não devia ter sequer vinte anos!
- Como Daniel já lhe disse, o senhor Nadomide não se encontra no
momento. Ele está em vigília no templo desde a noite de ontem.
- Por causa da menina? – ele perguntou, sem preâmbulos.
Dayena não sabia se deveria ou não falar, mas o garoto parecia tão
inofensivo que ela não viu mal algum em dizê-lo.
- Sim. Por que pergunta?
- Porque é exatamente sobre isso que vim falar. – ele disse. – Acho
que posso ter a cura para a doença dela.
- Como pode ter a cura, se nem sequer examinou-a? – perguntou
Dayena num tom irônico.
- Pelo que pude ouvir do povo, senhora, sei muito bem do que a
menina sofre e como pode ser tratada. O senhor Nadomide falou sobre
os sintomas da criança a quase todos os curandeiros da cidade.
- Ora, pelo amor de Salyr! Não me leve a mal, senhor, mas você
não tem o aspecto de um especialista. Ainda cheira a leite e o bigode mal
lhe nasce no rosto! Como pode ter tanta certeza sobre a doença da
menina?

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- Minha irmã... ela morreu há quinze dias atrás. Pelo que ouvi, as
condições da menina Amélie são parecidas com as de minha irmã...
Dayena ergueu a sobrancelha, duvidosa. Quem não lhe garantia que
aquele homem era um falsário?
- Passou duas semanas acamada... – ele continuou, olhando para o
chão, sem encarar os olhos de Dayena. – Uma febre implacável, olhos
injetados e vermelhos... e isso foi só o começo. Depois, começou a ter
feridas nas costas e nas pernas, e murmurava enquanto dormia. Em seus
últimos dias de vida, dizia ver fantasmas e pedia para que nós
acabássemos com a dor dela. Sei que o senhor Nadomide é um homem
de posses, mas não estou aqui em busca de dinheiro. Quero apenas que a
menina não sofra tanto quanto minha irmã. É um mal que não desejo a
ninguém, muito menos a uma criança inocente.
A voz era comedida e o homem falava em meio-tom. Amélie, assim
como ele descrevera, estava com febre há quase uma semana. Além disso,
Dayena já havia percebido que os olhos da menina estavam mais
avermelhados do que o normal.
- Não sei o que causa a doença, mas tenho minhas suspeitas... –
disse o homem. – Estava em busca da cura, mas só fui capaz de achá-la
depois da morte de minha irmã.
A mandíbula estava apertada num esforço para não chorar. O
silêncio instalou-se no vestíbulo por alguns segundos, sendo
interrompido pelo barulho da porta se abrindo e os passos pesados de
Nadomide ecoando pelo mausoléu.
- O que está acontecendo aqui?
Dayena estava tão concentrada no semblante do jovem que mal
percebeu a chegada do patrão.
- S-senhor Nadomide... – ela disse, confusa, olhando do visitante
para o patrão. – Esse... esse senhor veio para dizer que tem a cura da
doença da senhorita Amélie.
- Não brinque com isso, rapaz... – disse Nadomide, olhando-o de
cima a baixo. – Não preciso de mais falsários para arrancar meu dinheiro.
- Não, senhor, eu... – o jovem pôs-se a dizer, mas foi interrompido
pelo barulho no andar superior.
Os três – Dayena, Nadomide e o jovem visitante – olharam para
cima, alarmados. A cabeça de Daniel apareceu por cima do corrimão,
gritando:

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- Ela está piorando, Dayena! Senhor Nadomide, venha depressa!
Os três subiram as escadas rapidamente, irrompendo pelo quarto
quase ao mesmo tempo. Nadomide foi o primeiro a chegar até a filha. A
menina tinha os olhos fechados, contorcendo-se de dor na cama. Gritava
estridentemente, fazendo os pelos de todos se eriçarem.
Nadomide tentou segurar a filha, amedrontado. O que diabos
estava acontecendo a ela, por todos os deuses? As mãos dele tremiam
enquanto a seguravam, sentindo a pele fria da filha, ensopada de suor.
- O que aconteceu, Daniel? – perguntou Nadomide, enquanto
tentava segurar o corpo enrijecido da menina.
- Ela... ela c-começou a reclamar da dor de cabeça e da febre,
senhor, e eu... eu troquei os panos frios, mas ela... oh, por Salyr, é
horrível!
- Saia de cima dela. – a voz vinha do visitante, que, com autoridade,
avançou. Tirou a casaca e jogou-a em um canto qualquer, abrindo a
maleta rapidamente logo em seguida.
Nadomide o obedeceu, apreensivo.
O homem tirou uma seringa e uma ampola da mala. Com destreza,
encheu a agulha.
- O que está fazendo? – perguntou Nadomide, assim que viu o
homem avançar sobre Amélie.
- Salvando a vida de sua filha. – ele disse, decidido. – Você,
mordomo, segure-a e tente imobilizar o pescoço.
Daniel obedeceu, trêmulo. A menina gritava, contorcendo as
pernas e sacudindo a cabeça. O visitante avançou, seringa em mãos.
Espetou-a com precisão no pescoço, aplicando o conteúdo da injeção.
Aos poucos, os espasmos diminuíram. Os músculos relaxaram-se, e
por fim ela voltou a dormir.
- O que você fez? – perguntou Nadomide, espantado. – Ela não
está... – tinha medo de dizer a palavra “morta”.
- Está dormindo. – disse o homem. – Ficará bem por enquanto,
mas o tratamento deve ser iniciado o quanto antes.
- Obrigado, meu filho... – disse Nadomide, correndo para abraçar o
homem. – Como você se chama?
- Aurélio, senhor. – disse o jovem.
- Salyr o abençoe, Aurélio.

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Se os deuses não puderam salvar a jovem Amélie, ao menos
colocaram no caminho da menina alguém que pudesse. Nadomide se
confortou, agradecendo aos deuses pela intervenção daquele jovem
abençoado.

III
Embate

A notícia espalhou-se com velocidade pela pequena cidade: um


jovem de longa casaca transitava na casa do rico senhor Nadomide.
Vinha três vezes ao dia, sempre com uma maleta em mãos, fazendo seu
caminho sem olhar para os lados ou falar com alguém. As velhas beatas
diziam que seu nome era Aurélio, morava com a mãe em uma casa longe
do centro comercial. Tinha também uma irmã, mas dessa ninguém tinha
mais notícias. Ao que se soube por alto, havia morrido de alguma doença
desconhecida.
Aos poucos, o mistério acerca da vida do rapaz começava a ser
desvendado pelas beatas. Não o conheciam porque ele não vivia na
cidade; voltara de uma longa viagem ao exterior, onde havia estudado a
arte herege da profanação de corpos – arte essa que não era permitida
nos países onde a influência dos deuses ainda prevalecia sobre as
depravações humanas.
Sobre a irmã de Aurélio, as informações eram ainda mais nebulosas.
As velhacas mais abelhudas e radicais diziam que o próprio homem havia
feito experiências desastrosas no corpo da menina, levando-a a morte;
outras, mais especulativas, diziam que ela tivera uma séria doença –
consequência direta da ira dos deuses – e que não houve sacerdote ou
curandeiro que pudesse ajudá-la.
Os pontos começaram a ser ligados rapidamente: ora, se o homem
havia retalhado corpos humanos em suas viagens e acabou matando a
irmã – seja por vontade própria ou não – e a filha do senhor Nadomide
estava doente, era certo que o rapaz, de alguma maneira, conseguiu se
infiltrar na mansão do latifundiário, ao mesmo tempo em que o
convencia a tratar de Amélie.
A menina estava em perigo!

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Os boatos não tardaram a chegar aos ouvidos do sacerdote do
templo. Asselael, insatisfeito com o que ouvia, resolveu ir ele mesmo a
casa de Nadomide, em companhia de um de seus oráculos.
As pessoas da rua reverenciavam-no assim que passava, sua manta
cor de sol arrastando-se pelo chão, as mãos postas nas costas, enquanto o
oráculo, em sua roupa impecavelmente branca, segurava-lhe no ombro,
sendo guiado entre as ruas cheias de gente.
Foi Daniel quem abriu a porta. Ao ver o sacerdote ali, imponente e
altivo, arregalou os olhos em espanto. Não era um homem religioso, mas
ia ao templo duas vezes por semana, fazia suas orações e pagava seus
impostos em dia. Via o sacerdote no altar longínquo; nunca pensou que o
veria assim, tão de perto.
- O senhor Nadomide, por favor? – disse o sacerdote em sua voz
monótona e cansada.
Daniel fez uma profunda mesura – por pouco não se prostrou ante
o homem santo – e disse que iria chamá-lo, que ficasse a vontade, podia
se sentar e esperar alguns segundos, afinal, um homem cheio de
compromissos não poderia dar-se ao luxo de perder o tempo com
esperas.
Nadomide estava no quarto de Amélie, observando-a enquanto
Aurélio administrava mais uma série de injeções no pescoço da menina.
Desde que o tratamento teve início, a febre da menina havia praticamente
sumido, bem como o inchaço dos olhos e as primeiras feridas na pele.
Amélie ainda estava fraca demais para sair da cama e murmurava no
sono, mas Aurélio havia dito que com o tempo e uma boa alimentação
ela convalesceria, sem sombra de dúvidas.
- S-senhor Nadomide... – disse Daniel, entrando sem sequer bater
na porta. – O... o sacerdote do templo, ele... ele está lá embaixo, senhor, e
quer falar-lhe.
- Alassael? – perguntou Nadomide, levantando-se, duvidoso. – O
que ele quer aqui?
- Oh, por Salyr... – disse Daniel. – O senhor fica tanto tempo nesse
quarto que nem sequer toma conhecimento dos boatos. – o mordomo
falava fracamente, com medo de ser o interlocutor de tudo aquilo que o
povo falava sobre Aurélio e sua profissão. – Andam dizendo que...
dizendo que Aurélio...

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- Ora, homem, desembuche logo! – Nadomide já estava perdendo a
paciência.
- Dizem que o senhor Aurélio é um profanador de corpos e que a
irmã dele morreu por ira divina. – Daniel falou tudo de uma vez, de
olhos fechados para não encarar a expressão perplexa de Nadomide. –
Há também quem diga que ele mesmo matou a menina com experiências
profanas.
- Pelos deuses... – murmurou Aurélio, aplicando o conteúdo da
última injeção em Amélie, que se mexeu, levemente incomodada. – Eu
ouvi os comentários por alto, mas não achava que deveria me preocupar.
- Daniel, fique tomando conta de Amélie para mim. – disse
Nadomide, ainda perplexo com o que acabava de ouvir. – Aurélio, venha
comigo e vamos tirar essa história a limpo.
- Sim, senhor. – disse Aurélio, guardando suas ferramentas na
maleta preta.
Assim que os dois saíram do quarto, Nadomide parou Aurélio.
Falou baixo o bastante para que quem estivesse na sala ou no quarto não
pudessem ouvi-los.
- Eu confio em você, Aurélio... está fazendo por Amélie o que
nenhum outro foi capaz de fazer. Mas eu preciso saber se algum desses
boatos é verdadeiro.
- Não! – ele exclamou, mais alto do que deveria. – Como podem
dizer que matei minha irmã?! Voltei de minha viagem em função da
doença dela. Mamãe acreditava que eu poderia fazer alguma coisa para
salvá-la, mas quando cheguei a doença já estava em estágio avançado.
Tudo o que pude fazer foi olhar enquanto ela definhava! Já não basta
tudo o que vi, agora ainda sou acusado de assassinato?! Senhor
Nadomide, eu não me importo com boatos, por isso achei que não valia
a pena falar sobre eles.
- Também não me preocupo com boatos. – disse Nadomide. – Mas
parece que Alassael se preocupa. Vamos conversar com ele e resolver
isso.
Os dois desceram as escadas. O sacerdote, sentado na sala de estar,
franziu o rosto quando viu Aurélio ao lado de Nadomide.
- Ora, então os boatos têm fundamento. – ele disse, levantando-se.
– Desculpe-me, senhor Nadomide, mas vim falar exclusivamente ao

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senhor. Não irei dirigir minhas palavras a um estudante das artes
profanas, tampouco ouvirei o que ele tem a dizer.
- “Escuta os pobres, mendigos, prostitutas e pagãos. Ouve as palavras de todas
as bocas, descobre o teu valor e usa-as em prol de tua evangelização. Todas as opiniões
são valorosas, todas as vozes têm poder.” – disse Aurélio. – Livro de
Iluminação, capítulo doze. Não pense que não conheço as palavras dos
deuses, senhor Alassael.
O sacerdote ergueu a sobrancelha, admirado.
- E o senhor, como homem santo... – continuou Aurélio, num tom
de voz calmo. – deveria saber, melhor do que qualquer um, que as
pessoas não medem as palavras quando falam sobre a vida dos outros.
- Ora, não me digas como agir! – Alassael mostrava em sua voz,
geralmente serena e monótona, uma ponta de irritação. – O senhor volta
a minha cidade depois de estudar em locais escusos, abrindo cadáveres e
estudando o que existe dentro deles, e ainda quer me dar lições? Pois eu
lhe digo, rapazinho: tu acabaste com a esperança de reencarnação de
dezenas de pessoas por conta dessa tua curiosidade! Conseguirás
sobreviver com esse peso na consciência?
Aurélio estava pronto para retrucar, mas Alassael foi mais rápido,
dirigindo-se para Nadomide.
- E o senhor, senhor Nadomide, eu pensava que fosses um homem
de fé! Não faz sequer cinco dias que estavas de joelhos ao meu lado,
rezando por Amélie enquanto ofertávamos vida terrena aos deuses! Eu
havia lhe dito que era só ter fé, mas o senhor não me ouviu. Ao
contrário, preferiste acreditar nas palavras pérfidas desse garoto que mal
saiu das fraldas!
- Ter fé e ficar de braços cruzados não é tudo, Alassael. – disse
Nadomide, num tom de profunda decepção. – Se não fosse por esse
homem, minha Amélie já estaria a muito morta, não importa quantos
bois ou quantas cabras eu imolasse.
- Pois estaria melhor morta ao lado dos deuses do que viva com a
culpa de ter sido curada através de magia negra!
- Magia negra? – perguntou Aurélio, em tom ofendido. – Pois saiba,
senhor sacerdote, que tudo aquilo que uso para a cura de Amélie provém
da própria terra criada pelos deuses. Ao dizer isso, o senhor ofende não
só a mim como ao próprio Salyr.

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- Maldade! – Alassael levantou-se. Apontou o dedo para Aurélio,
num tom teatral. – Esta boca é a interlocutora da maldade pura! Como
ousas, fedelho, deturpar as palavras de um sacerdote?! Sou um ser
abençoado, mais próximo dos deuses do que você nunca será! Pois eu
profetizo-te, insolente: no dia de tua morte, pagarás por toda a
maledicência que escorre de sua língua com o fogo da justiça!
Aurélio tinha as narinas expandidas, o punho cerrado e os olhos
estreitos no mais profundo repúdio.
- Eu lhe sugiro que fale baixo, a menina está doente. – disse o
rapaz, sibilante. – Desde sempre aprendi que apenas os deuses podem
decidir sobre a vida dos homens. As coisas da terra pertencem a terra, as
coisas divinas pertencem aos deuses. Você é tão terreno quanto eu, não
me importa se é um mendigo ou um sacerdote. Suas palavras têm tanto
poder sobre mim quanto as de qualquer outro.
- Ora, seu... – o sacerdote estava descontrolado. Tentou desferir um
soco em Aurélio, mas Nadomide foi mais rápido, segurando-o
firmemente.
- Para fora daqui você, seu oráculo e suas confusões! – gritou o
latifundiário, apertando os braços magros de Alassael. – Não permitirei
que você ou qualquer outro me recrimine por tentar salvar a vida de
minha filha!
- Ao me enxotar desta casa você enxota toda a bondade dos deuses,
Nadomide. – disse o sacerdote, puxando o braço para si e aprumando-se.
– Sua decisão foi feita. Aguarde a dos deuses.
Com isso, saiu da casa, batendo os pés no capacho sem olhar para
trás.
- Ele não vai deixar as coisas assim. – disse Nadomide, respirando
fundo. – Ele vai arranjar alguma forma de acabar contigo e comigo,
Aurélio.
- Os deuses estão olhando, senhor Nadomide. – respondeu o
jovem. – Qualquer que seja a próxima ação dele, os deuses o julgarão no
fim.
Nadomide apenas concordou silenciosamente. As palavras de
Aurélio só o preocupavam ainda mais. Alassael não deixaria aquele
insulto passar em branco.

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IV
Discurso

- As forças malignas estão próximas de vós, meus caros. – a


população assistia ao discurso inflamado de Alassael, hipnotizados. Ele
gesticulava teatralmente, movendo os braços e mudando constantemente
a expressão facial. – Eu sou capaz de vê-las e senti-las, e oh!, como doem!
Como me deixam triste, como me ferem! A morte e a dor espreitam
vossos lares, esperando a oportunidade exata para agir. E quando
conseguem, meus caros, a fé não se torna suficiente. É necessária a ação!
“Os braços dos homens de fé mudam o mundo.” é o que nos diz o Livro das
Revelações, capítulo oito. Mas será que realmente agis? O que fazeis
senão esperar confortavelmente no calor de vossos lençóis? Pois eu lhes
digo, meus caros: Salyr não olha para os homens acomodados; Salyr não
se importa com quem não se importa em agir perante a vontade d’Ele! Se
tu – e apontou o dedo aos fiéis, sem se fixar em nenhum em particular –
não ages, Salyr não age para tua salvação! “E o que devo fazer para
agir?”, tu me perguntas. Sejas santo! Pague teus impostos! Lutes contra a
maldade que assola vosso mundo! Lutes contra os depravados, contra os
assassinos, contra os ladrões, contra os corrompidos, contra os
profanadores de cadáveres! Lutes contra todos aqueles que fazem nossa
sociedade se distanciar dos deuses! Porque eu lhes digo, meus caros,
quando Salyr se enraivece dos homens, Ele não faz distinção entre bons e
maus. A raiva O cega, fazendo-O despejar pragas contra todos vós. É
vossa missão não permitir que isso aconteça! Não deixeis que as más
ações de uma minoria afetem a todos vós! Não! Sejais firmes e dignos da
vida santa ao lado dos deuses! Tomem tochas e ancinhos, se necessário.
Tolham a maldade em seu cerne, acabem com os indignos com a mesma
ojeriza com que se esmaga um inseto peçonhento! Pois é isso que esses
homens maus são: insetos malditos que devem ser exterminados sem
piedade ou misericórdia! Mostre que vós sois homens santos, acabando
com as ações da maldade!
- Sim! – gritou uma voz da plateia, que até então permanecia em
silêncio.
- Isso! – gritou o sacerdote. – Precisamos de ação! Gritemos todos
juntos, “Sim!”
- SIM! – gritou o coro em resposta.

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- Vão a vossas casas, peguem vossas armas e acabem com a
maldade! Salyr está do lado dos bons e dos justos! Vós ireis acabar com a
maldade, sim ou não?
- SIM! – gritou o coro mais uma vez.
- Para a morte com os profanadores de corpos!
- PARA A MORTE!
- Para a morte aos que cheiram a maldade e que vêm a nossa
cidade! Para a morte os homens que não acreditam que a fé é poderosa o
bastante para acabar com as doenças!
- PARA A MORTE!
- Vão, meus caros, vão! Vão em busca de justiça! Não deixeis que
os ímpios ditem as regras, pois a fé, meus caros, a fé é a arma mais
poderosa contra a maldade! Exterminem os infiéis! Exterminem!
- Para a morte com o profanador de corpos que ronda nossa
cidade! – bradou um dos fiéis, inflamado pelo discurso do sacerdote.
Alassael sorriu quando ouviu a menção ao jovem.
- Para a morte! – o sacerdote gritou. – Gritemos todos: para a
morte!
- PARA A MORTE!
- Agora vão, meus caros, acabeis com a maldade por suas próprias
mãos. Salyr estará prestando atenção a vossos atos. Acabeis o quanto
antes! Morte aos infiéis!
- MORTE AOS INFIÉIS!
Com esse último grito de fúria, as portas do templo foram abertas
pelos oráculos. A população pôs-se para fora, berrando:
- MORTE AOS INFIÉIS! MORTE AOS INFIÉIS! MORTE AOS
INFIÉIS!
Alassael sorriu. Esperou todos saírem, mandou que os oráculos
fechassem as portas do templo e recolheu-se em seus aposentos.
Esperaria as notícias no dia seguinte.

V
Vingança

Daniel corria entre a população enfurecida, o coração batendo


rápido. Fez um caminho pelas vielas menos movimentadas da cidade,
chegando à mansão antes do povo. Uma horda de homens e mulheres

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estava com sede de sangue. Iam até suas casas, pegavam suas armas –
ancinhos, pás, enxadas, pedaços de pau –, acendiam archotes e partiam
em marcha pela rua, em um coro amedrontador.
- MORTE AOS INFIÉIS!
- Senhor Nadomide! – gritou Daniel, correndo até o andar superior.
– Senhor Nadomide, senhor Aurélio, senhorita Dayena!
- O que está acontecendo, homem? – perguntou Nadomide.
- É horrível, senhor! Os homens estão enfurecidos!
- Acalme-se, Daniel! – exigiu Nadomide, sacudindo-o pelos braços.
– O que está dizendo?
Daniel respirou fundo, fechando os olhos e tentando organizar os
pensamentos. Do lado de fora, o coro pode ser ouvido com cada vez
mais clareza.
- MORTE AOS INFIÉIS! MORTE AOS INFIÉIS!
- O sacerdote, senhor... – disse o criado. – Eu estava no templo
quando ele começou a discursar. Falou sobre a maldade e sobre os
profanadores de corpos; inflamou o povo contra o senhor Aurélio. As
pessoas estão vindo, senhor Nadomide, e acreditam que a morte dele e
de qualquer um que apoie suas ideias será benéfica ao mundo.
O barulho do primeiro pedregulho quebrando uma vidraça no
andar de baixo foi ouvido.
- Senhor! – disse Dayena, saindo de seu quarto com roupas de
dormir. – Há uma multidão em volta da casa! O que está acontecendo?
- MORTE AOS INFIÉIS! MORTE AOS INFIÉIS!
- Chame Aurélio e mande-o trazer Amélie. – disse Nadomide. –
Alassael está se vingando de nós.
Dayena obedeceu. Tinha a expressão de puro pânico estampada na
face.
- O que vamos fazer, senhor? – perguntou Daniel.
- Temos que tirar Amélie daqui, antes de tudo. Depois vamos
tentar acalmar o povo.
- O senhor não entende, senhor Nadomide... as palavras quase me
convenceram também. O povo não vai pensar duas vezes se tiver que
escolher entre o senhor e o sacerdote! Eles não vão se acalmar!
Ouviram mais vidros sendo quebrados no andar de baixo. A porta
havia sido arrombada. O barulho da multidão entrando na casa era ainda
maior e mais animalesco.

14
- Eles estão lá em cima! – gritou um dos homens. – Toquem fogo
na casa, não os deixem sair!
Obedeceram à voz, jogando archotes sobre as cortinas e tapetes.
Correram para fora da casa, saqueando aquilo que podiam levar –
cinzeiros, candelabros, talheres de prata – deixando os cinco moradores
encerrados a própria sorte.
- Papai! – gritou Amélie, andando a frente de Aurélio, de pé pela
primeira vez em quase quinze dias. Ainda estava fraca, andando
lentamente, segurando-se nas paredes. – O que está acontecendo, papai?
- Fique comigo, Amélie. – ele disse, abraçando a filha e segurando-a
pelo colo. – Como se sente?
- Com sono... – ela disse, alheia a situação. – O que é essa
barulheira toda?
- MORTE AOS INFIÉIS! MORTE AOS INFIÉIS! MORTE AOS
INFIÉIS!
- Coisas de adulto, minha filha. – disse Nadomide, abraçando a
filha e tapando-lhe os ouvidos. – Coisas que você não precisa ouvir.
- O que está acontecendo, Nadomide? – perguntou Aurélio. –
Alassael?
- O desgraçado inflamou o povo contra nós. – Nadomide
respondeu. – Estão enfurecidos, achando que devemos morrer.
- Senhor? – perguntou Dayena, exasperada. – Para onde vamos?
- Vamos tentar sair pela porta da cozinha.
Assim fizeram. Ao descerem as escadas, viram que o andar térreo
estava sendo rapidamente consumido pelo fogo, com labaredas cada vez
mais altas. O calor pestilento vinha em ondas constantes. As cortinas em
chamas faziam subir uma grossa fumaça negra, cegando a todos e
fazendo-os tossir.
- Socorro! – gritou Daniel, desesperado. – Socorro! Alguém ajude!
- Ninguém irá nos ouvir, Daniel! – berrou Aurélio, logo antes de
uma viga cair no chão com estrépito. – Temos que sair daqui!
- Oh, deuses, por favor, não quero morrer! – ele choramingava, os
olhos cheios de lágrimas. Tossiu exageradamente, tentando expelir a
fumaça de seus pulmões.
- Venha logo, Daniel! – gritou Dayena, puxando-o pelo braço até a
cozinha.

15
As janelas ali também haviam sido quebradas. O povo, do lado de
fora, estava de tocaia, em volta da casa, observando a movimentação lá
dentro.
- Eles estão aqui! – gritou um deles, do lado de fora.
Aurélio correu até a única saída, mas era inútil. Os homens haviam
colocado toras de madeira na porta, impedindo-a de se abrir.
- Há uma criança aqui! – gritou o jovem. – Como podem ser tão
desalmados?!
Um pedaço do teto caiu na entrada da cozinha, bloqueando a única
passagem para qualquer outro aposento da casa. Se não conseguissem
sair por aquela porta, na certa morreriam pelo fogo.
- Criaturas do mal! – gritou um dos homens do lado de fora. –
Infiéis são infiéis, não importa a idade que tenham!
- Papai, quero ir para o meu quarto. – reclamou Amélie, vendo o
homem gritando do lado de fora. – Por favor... estou com medo!
- Fique calma, querida, fique calma... – ele disse, tentando
tranquilizá-la. Mas como poderia, se ele mesmo tremia de medo?
O fogo começou a se propagar na cozinha, atacando o estoque de
lenha do fogão. Partiu rapidamente para a despensa, queimando os
mantimentos numa velocidade incrível.
Do lado de fora, o coro tornava-se ensurdecedor.
- MORTE AOS INFIÉIS! MORTE AOS INFIÉIS!
- Vocês estão sendo usados! – gritou Aurélio, tentando inutilmente
se sobrepor ao coro. – Alassael está usando vocês para a vingança
particular dele!
- A maldade escorre de sua língua! – gritou um dos homens. – Os
deuses o olham e choram! Como uma criatura maligna como essa pode
transitar entre nós?! Pois não o ouviremos, nem ao teu choro, aos teus
apelos ou aos teus gritos de agonia, criatura maligna! MORTE AOS
INFIÉIS! MORTE AOS INFIÉIS!
Estavam enfeitiçados pelas palavras de Alassael. Seus instintos
animalescos haviam sido liberados. Homens, mulheres e crianças sujas de
fuligem gritavam em uníssono, cuspindo no chão e lançando pedras na
casa. Tentavam expiar seus pecados matando aqueles que julgavam
culpados, como se isso pudesse aplacar a fúria de Salyr ante os próprios
erros de cada um.

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O fogo consumiu a cozinha. Não demorou a atingir Nadomide,
Amélie, Dayena, Daniel e Aurélio.
Os gritos de agonia dos cinco pecadores reverberaram pela cidade,
silenciando o coro incansável.
Morriam na dor e no sofrimento, como os maus pecadores
mereciam. Gritavam, tossiam, pediam clemência, choravam. E os
homens do lado de fora continuavam impassíveis, observando-os
queimar, os olhos brilhando o reflexo das chamas.
Por fim, os gritos silenciaram. O único barulho que pode ser
ouvido foi o do fogo estalando e se tornando cada vez mais voraz.
Os homens foram embora, satisfeitos com a morte dos infiéis. Não
tardaram a correr até o templo. Contariam as novidades ao sacerdote o
quanto antes. Ele ficaria feliz com a fé de seu rebanho.

VI
Consequências

Alassael envelhecera: a cabeça começava a pesar-lhe no pescoço, as


pernas afinaram e não puderam mais andar e os olhos cansados passavam
a maior parte do tempo fechados.
Seu sucessor não tardou a pregar em seu lugar no templo. Alassael
foi esquecido pelas beatas e pela população, em um quartinho escuro
com uma única janela, alta demais para que ele pudesse sequer ver o
mundo. Vez ou outra um oráculo entrava, silencioso, para limpar-lhe a
urina e as fezes, trocar os lençóis da cama e tirar o pó do chão.
Como um animal adestrado, o velho sacerdote tinha hora exata
para comer. Quando o relógio batia, o estômago roncava. Às vezes
esqueciam-se de alimentá-lo – ora, quem se lembraria de um velhaco em
um quarto tão longe dos aposentos do sacerdote vigente? Fraco, Alassael
apenas gemia em reclamação, não alto o bastante para ser ouvido.
Numa das poucas vezes em que o sacerdote atual fora visitá-lo,
encontrou Alassael com o rosto enfiado no travesseiro, imóvel.
Levantou-o como se faz a uma criança magra, virando-o. O velho tinha
lágrimas nos olhos, num misto de choro e raiva. Não era forte o
suficiente sequer para dar cabo da própria vida.
Durante uma noite de sono, Salyr apareceu para Alassael. Era um
homem altivo, de longas vestes e barbas, com olhos verdes profundos

17
que falavam por si só. Falava entre labaredas alaranjadas, incandescendo
ainda mais seus olhos. Alassael estremeceu ante a aparição.
- Tua estadia entre os homens será como a agonia dos corpos
consumidos pelo fogo. – a aparição dissera. – Teus pesadelos serão
permeados de agonia e sofrimento. Tens um preço alto a pagar por teus
atos, velho sacerdote.
- Mas fiz o correto, Salyr. – ele ainda dissera. – Minhas mãos não
estão manchadas de sangue! Puna aos homens que colocaram fogo
naquela casa, não a mim! Eu nada tenho a ver com isso!
- Podes enganar a um homem, mas não a um deus, velho tolo. Suas
mãos estão manchadas com a morte e o pecado de todos aqueles que
foram incitados por tuas palavras. Tomarás o pecado de todos como teu,
pagarás sozinho pela maldade de todos os inocentes que acreditaram em
tuas palavras. Tua dívida comigo é imensa.
Com isso Alassael acordou, sentindo mais uma vez a pastosidade e
o cheiro insuportável das fezes aquosas escorrendo-lhe perna abaixo.
Derramou lágrimas de dor, frustração e agonia. De que adiantaram
todos os seus esforços, se nem mesmo o próprio Salyr os reconhecia?
Viveu por muito mais tempo, na rotina de pesadelos, excreções e
lágrimas; viveu para ouvir notícias de que a ciência florescia e que os
templos se esvaziavam cada vez mais.
Viveu para querer morrer.

Lucas L Rocha
Julho/2009

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