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Toda a Poesia

Augusto dos Anjos

Augusto dos Anjos


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Toda a Poesia

1
Índice
MONÓLOGO DE UMA SOMBRA ........................ 5 VOZES DE UM TÚMULO ................................... 20
AGONIA DE UM FILÓSOFO ................................ 6 CONTRASTES ....................................................... 20
O MORCEGO........................................................... 6 GEMIDOS DE ARTE ............................................. 20
PSICOLOGIA DE UM VENCIDO ......................... 7 VERSOS DE AMOR .............................................. 22
A IDÉIA ..................................................................... 7 SONETOS ............................................................... 22
O LÁZARO DA PÁTRIA ........................................ 7 NOITE DE UM VISIONÁRIO .............................. 23
IDEALIZAÇÃO DA HUMANIDADE FUTURA .. 7 ALUCINAÇÃO À BEIRA-MAR .......................... 24
SONETO.................................................................... 7 VANDALISMO ....................................................... 24
VERSOS A UM CÃO ............................................... 7 VERSOS ÍNTIMOS ............................................... 24
O DEUS-VERME ..................................................... 8 VENCEDOR ........................................................... 25
DEBAIXO DO TAMARINDO ................................ 8 A ILHA DE CIPANGO .......................................... 25
AS CISMAS DO DESTINO ..................................... 8 MATER.................................................................... 25
BUDISMO MODERNO ......................................... 12 POEMA NEGRO .................................................... 26
SONHO DE UM MONISTA .................................. 12 ETERNA MÁGOA ................................................. 27
SOLITÁRIO ............................................................ 12 QUEIXAS NOTURNAS ......................................... 27
MATER ORIGINALIS .......................................... 13 INSÔNIA ................................................................. 28
O LUPANAR ........................................................... 13 BARCAROLA ........................................................ 28
IDEALISMO ........................................................... 13 TRISTEZAS DE UM QUARTO MINGUANTE . 29
ÚLTIMO CREDO ................................................. 13 MISTÉRIOS DE UM FÓSFORO ......................... 30
O CAIXÃO FANTÁSTICO ................................... 13 O LAMENTO DAS COISAS ................................. 31
SOLILÓQUIO DE UM VISIONÁRIO ................. 13 O MEU NIRVANA.................................................. 31
A UM CARNEIRO MORTO ................................. 14 CAPUT IMMORTALE ......................................... 31
VOZES DA MORTE .............................................. 14 APÓSTROFE À CARNE ...................................... 32
INSÂNIA DE UM SIMPLES ................................. 14 LOUVOR À UNIDADE ......................................... 32
OS DOENTES ......................................................... 14 O PÂNTANO .......................................................... 32
ASA DE CORVO .................................................... 19 SUPRÊME CONVULSION .................................. 32
O MARTÍRIO DO ARTISTA ................................ 19 A UM GÉRMEN ..................................................... 32
DUAS ESTROFES ................................................. 19 NATUREZA ÍNTIMA ............................................ 32
O MAR, A ESCADA E O HOMEM ..................... 19 A FLORESTA ......................................................... 33
DECADÊNCIA ....................................................... 19 A MERETRIZ ......................................................... 33
RICORDANZA DELLA MIA GIOVENTÚ ......... 19 GUERRA ................................................................. 34
A UM MASCARADO ............................................ 20 O SARCÓFAGO ..................................................... 34
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HINO À DOR .......................................................... 34 O CONDENADO .................................................... 42
ULTIMA VISIO ...................................................... 34 SONETO.................................................................. 42
AOS MEUS FILHOS ............................................. 35 INFELIZ .................................................................. 42
A DANÇA DA PSIQUE .......................................... 35 SONETO.................................................................. 42
O POETA DO HEDIONDO .................................. 35 NOIVADO ............................................................... 42
A FOME E O AMOR ............................................. 35 SONETO.................................................................. 42
HOMO INFIMUS ................................................... 35 TRISTE REGRESSO ............................................. 43
MINHA FINALIDADE .......................................... 35 AMOR E RELIGIÃO ............................................. 43
NUMA FORJA ....................................................... 36 SONETO.................................................................. 43
NOLI ME TANGERE ........................................... 36 SAUDADE ............................................................... 43
O CANTO DOS PRESOS ...................................... 36 A ESMOLA DE DULCE ........................................ 43
ABERRAÇÃO ........................................................ 37 SONETO.................................................................. 43
VÍTIMA DO DUALISMO ..................................... 37 O MAR .................................................................... 44
Augusto dos Anjos

AO LUAR ................................................................ 37 SONETO.................................................................. 44


CANTO DE ONIPOTÊNCIA ................................ 37 SONETO.................................................................. 44
MINHA ÁRVORE ................................................. 37 CRAVO DE NOIVA ................................................ 44
ANSEIO ................................................................... 37 PLENILÚNIO ......................................................... 44
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À MESA .................................................................. 38 CÍTARA MÍSTICA ................................................ 44


Toda a Poesia

MÃOS ...................................................................... 38 SÚPLICA NUM TÚMULO ................................... 45


REVELAÇÃO ......................................................... 38 AFETOS .................................................................. 45
VERSOS A UM COVEIRO ................................... 38 MARTÍRIO SUPREMO ........................................ 45
TREVAS .................................................................. 38 RÉGIO ..................................................................... 45
AS MONTANHAS ................................................. 39 MÁRTIR DA FOME ............................................ 45
APOCALIPSE ........................................................ 39 FESTIVAL ............................................................... 45
A NAU ...................................................................... 39 NOTURNO .............................................................. 46
VOLÚPIA IMORTAL ........................................... 39 SONETO.................................................................. 46
O FIM DAS COISAS ............................................. 39 O NEGRO ............................................................... 46
VIAGEM DE UM VENCIDO ............................... 40 SENECTUDE PRECOCE .................................... 46
A NOITE ................................................................. 41 ANDRÉ CHÉNIER ............................................... 46
A OBSESSÃO DO SANGUE ................................. 41 MYSTICA VISIO .................................................. 46
VOX VICTIMAE ................................................... 41 ILUSÃO ................................................................... 47
O ÚLTIMO NÚMERO ........................................... 41 GOZO INSATISFEITO ......................................... 47
MÁGOAS ................................................................ 41 DOLÊNCIAS .......................................................... 47
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IDEALIZAÇÕES .................................................... 47 TREVA E LUZ ...................................................... 55
A VITÓRIA DO ESPÍRITO .................................. 48 SONETO.................................................................. 55
CANTO ÍNTIMO .................................................. 49 A PESTE ................................................................. 55
A LUVA ................................................................... 49 IDEAL ...................................................................... 55
A CARIDADE ........................................................ 50 SOMBRA IMORTAL ............................................ 55
ABANDONADA ..................................................... 50 ORAÇÃO FRIO .................................................... 56
A MÁSCARA ......................................................... 50 NOTURNO .............................................................. 56
O COVEIRO .......................................................... 50 SEDUTORA ............................................................ 56
PECADORA ........................................................... 50 PELO MUNDO...................................................... 56
NO CLAUSTRO ..................................................... 51 SONETO.................................................................. 56
IL TROVATORE ................................................... 51 O RISO ................................................................... 56
A LOUCA ............................................................... 51 SONETO.................................................................. 57
PRIMAVERA .......................................................... 51 A UMA MÁRTIR .................................................. 57
A ESPERANÇA ..................................................... 51 PELO MAR ............................................................ 57
SONETO.................................................................. 51 PALLIDA LUNA ................................................... 57
SOFREDORA ......................................................... 52 A MORTE DE VÊNUS ....................................... 57
ECOS D’ALMA ..................................................... 52 SONHO DE AMOR .............................................. 57
AMOR E CRENÇA ................................................ 52 SONETO.................................................................. 58
ARIANA .................................................................. 52 SONETO.................................................................. 58
TEMPOS IDOS ..................................................... 52 VAE VICTIS ........................................................... 58
SONETO.................................................................. 52 A DOR..................................................................... 58
SONETO.................................................................. 53 TERRA FÚNEBRE ............................................... 58
A AERONAVE ....................................................... 53 SONETO.................................................................. 58
LIRIAL .................................................................... 53 MEDITANDO ......................................................... 59
A MINHA ESTRELA ............................................. 53 SONETO.................................................................. 59
SONETO.................................................................. 53 O ÉBRIO ................................................................ 59
VERSOS D’UM EXILADO ................................. 53 O CANTO DA CORUJA .................................... 59
AVE DOLOROSA ................................................. 54 NOME MALDITO ................................................ 59
NIMBUS .................................................................. 54 DOLÊNCIAS .......................................................... 59
NO CAMPO ........................................................... 54 AVE LIBERTAS .................................................... 60
INSÂNIA ................................................................. 54 QUADRAS .............................................................. 60
O BANDOLIM ........................................................ 54 VÊNUS MORTA .................................................... 60
ARA MALDITA ..................................................... 54 ODE AO AMOR ................................................... 61
SONETO.................................................................. 55 CANTO DE AGONIA .......................................... 61
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MONÓLOGO DE UMA SOMBRA
Ao clarão tropical da luza danada,
"Sou uma Sombra! Venho de outras eras, O espólio dos seus dedos peçonhentos.
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias, Tal a finalidade dos estames!
Larva de caos telúrico, procedo Mas ele viverá, rotos os liames
Da escuridão do cósmico segredo, Dessa estranguladora lei que aperta
Da substância de todas as substâncias! Todos os agregados perecíveis,
Nas esterizações indefiníveis
A Simbiose das coisas me equilibra. Da energia intra-atômica liberta!
Em minha ignota mônada, ampla, vibra
A alma dos movimentos rotatórios... Será calor, causa ubíqua de gozo,
E é de mim que decorrem, simultâneas, Raio X, magnetismo misterioso,
A saúde das forças subterrâneas, Quimiotaxia, ondulação aérea,
E a morbidez dos seres ilusórios! Fonte de repulsões e de prazeres,
Sonoridade potencial dos seres,
Pairando acima dos mundanos tetos, Estrangulada dentro da matéria!
Não conheço o acidente da Senectus
- Esta universitária sanguessuga E o que ele foi: Clavículas, abdômen,
Que produz, sem dispêndio algum de vírus, O coração, a boca, em síntese, o Homem,
O amarelecimento do papírus - Engrenagem de vísceras vulgares -
E a miséria anatômica da ruga! Os dedos carregados de peçonha,
Tudo coube na lógica medonha
Na existência social, possuo uma arma Dos apodrecimentos musculares!
- O metafisicismo de Abidarma -
Augusto dos Anjos

E trago, sem bramânicas tesouras, A desarrumação dos intestinos


Como um dorso de azêmola passiva, Assombra! Vede-a! Os vermes assassinos
A solidariedade subjetiva Dentro daquela massa que o húmus come,
De todas as espécies sofredoras. Numa glutoneria hedionda, brincam,
Como as cadelas que as dentuças trincam
Com um pouco de saliva quotidiana No espasmo fisiológico da fome.
Mostro meu nojo à Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho... É uma trágica festa emocionante!
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques A bacteriologia inventariante
-

Toma conta do corpo que apodrece...


Toda a Poesia

E o animal inferior que urra nos bosques


É com certeza meu irmão mais velho! E até os membros da família engulham,
Vendo as larvas malignas que se embrulham
Tal qual quem para o próprio túmulo olha, No cadáver malsão, fazendo um ‘s’.
Amarguradamente se me antolha,
À luz do americano plenilúnio, E foi então para isto que esse doudo
Na alma crepuscular de minha raça Estragou o vibrátil plasma todo,
Como uma vocação para a Desgraça À herança miserável de micróbios!
E um tropismo ancestral para o Infortúnio. Estoutro agora é o sátiro peralta
Aí vem sujo, a coçar chagas plebéias, Que o sensualismo sodomista exalta,
Trazendo no deserto das idéias Nutrindo sua infâmia a leite e a trigo...
O desespero endêmico do inferno, Como que, em suas células vilíssimas,
Com a cara hirta, tatuada de fuligens Há estratificações requintadíssimas,
Esse mineiro doido das origens, De uma animalidade sem castigo.
Que se chama o Filósofo Moderno! Brancas bacantes bêbedas o beijam.
Quis compreender, quebrando estéreis Suas artérias hírcicas latejam,
normas, Sentindo o odor das carnações abstêmias,
A vida fenomênica das Formas, E à noite, vai gozar, ébrio de vício,
Que, iguais a fogos passageiros, luzem... No sombrio bazar do meretrício,
E apenas encontrou na idéia gasta, O cuspo afrodisíaco das fêmeas.
O horror dessa mecânica nefasta, No horror de sua anômala nevrose,
A que todas as coisas se reduzem! Toda a sensualidade da simbiose,
E hão de achá-lo, amanhã, bestas agrestes, Uivando, à noite, em lúbricos arroubos,
Sobre a esteira sarcófaga das pestes Como no babilônico sansara,
A mostrar, já nos últimos momentos, Lembra a fome incoercível que escancara
Como quem se submete a uma charqueada, A mucosa carnívora dos lobos.
5
Sôfrego, o monstro as vítimas aguarda. Continua o martírio das criaturas:
Negra paixão congênita, bastarda, - O homicídio nas vielas mais escuras,
Do seu zooplasma ofídico resulta... - O ferido que a hostil gleba atra escarva,
E explode, igual à luz que o ar acomete, - O último solilóquio dos suicidas -
Com a veemência mavórtica do aríete E eu sinto a dor de todas essas vidas
E os arremessos de uma catapulta. Em minha vida anônima de larval!"
Mas muitas vezes, quando a noite avança, Disse isto a Sombra. E, ouvindo estes vocábulos,
Hirto, observa através a tênue trança Da luz da lua aos pálidos venábulos,
Dos filamentos fluídicos de um halo Na ânsia de um nervosíssimo entusiasmo,
A destra descarnada de um duende, Julgava ouvir monótonas corujas,
Que, tateando nas tênebras, se estende Executando, entre caveiras sujas,
Dentro da noite má, para agarrá-lo! A orquestra arrepiadora do sarcasmo!
Cresce-lhe a intracefálica tortura, Era a elegia panteísta do Universo,
E de su’alma na caverna escura, Na podridão do sangue humano imerso,
Fazendo ultra-epiléticos esforços, Prostituído talvez, em suas bases...
Acorda, com os candeeiros apagados, Era a canção da Natureza exausta,
Numa coreografia de danados, Chorando e rindo na ironia infausta
A família alarmada dos remorsos. Da incoerência infernal daquelas frases.
É o despertar de um povo subterrâneo! E o turbilhão de tais fonemas acres
É a fauna cavernícola do crânio Trovejando grandíloquos massacres,
- Macbeths da patológica vigília, Há de ferir-me as auditivas portas,
Mostrando, em rembrandtescas telas várias, Até que minha efêmera cabeça
As incestuosidades sanguinárias Reverta à quietação da treva espessa
Que ele tem praticado na família. E à palidez das fotosferas mortas!
As alucinações tácteis pululam.
Sente que megatérios o estrangulam... AGONIA DE UM FILÓSOFO
A asa negra das moscas o horroriza;
Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
E autopsiando a amaríssima existência
Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...
Encontra um cancro assíduo na consciência
O Inconsciente me assombra e eu nele rolo
E três manchas de sangue na camisa!
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!
Míngua-se o combustível da lanterna
Assisto agora à morte de um inseto!...
E a consciência do sátiro se inferna,
Ah! todos os fenômenos do solo
Reconhecendo, bêbedo de sono,
Parecem realizar de pólo a pólo
Na própria ânsia dionísica do gozo,
O ideal de Anaximandro de Mileto!
Essa necessidade de horroroso,
Que é talvez propriedade do carbono! No hierático areópago heterogêneo
Das idéias, percorro como um gênio
Ah! Dentro de toda a alma existe a prova
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...
De que a dor como um dartro se renova,
Quando o prazer barbaramente a ataca... Rasgo dos mundos o velário espesso;
Assim também, observa a ciência crua, E em tudo, igual a Goethe, reconheço
Dentro da elipse ignívoma da lua O império da substância universal!
A realidade de uma esfera opaca.
Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa, O MORCEGO
Abranda as rochas rígidas, torna água
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Todo o fogo telúrico profundo
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
E reduz, sem que, entanto, a desintegre,
Na bruta ardência orgânica da sede,
À condição de uma planície alegre,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
A aspereza orográfica do mundo!
"Vou mandar levantar outra parede..."
Provo desta maneira ao mundo odiento
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
Pelas grandes razões do sentimento,
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Sem os métodos da abstrusa ciência fria
Circularmente sobre a minha rede!
E os trovões gritadores da dialética,
Que a mais alta expressão da dor estética Pego de um pau. Esforços faço. Chego
Consiste essencialmente na alegria. A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
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A Consciência Humana é este morcego! IDEALIZAÇÃO DA HUMANIDADE
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto! FUTURA
Rugia nos meus centros cerebrais
PSICOLOGIA DE UM VENCIDO A multidão dos séculos futuros
- Homens que a herança de ímpetos impuros
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Tornara etnicamente irracionais!
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância, Não sei que livro, em letras garrafais,
A influência má dos signos do zodíaco. Meus olhos liam! No húmus do monturos,
Realizavam-se os partos mais obscuros,
Profundissimamente hipocondríaco,
Dentre as genealogias animais!
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia Como quem esmigalha protozoários
Que se escapa da boca de um cardíaco. Meti todos os dedos mercenários
Na consciência daquela multidão...
Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas E, em vez de achar a luz que os Céus inflama,
Come, e à vida em geral declara guerra, Somente achei moléculas de lama
E a mosca alegre da putrefação!
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra! SONETO
Ao meu primeiro filho nascido
A IDÉIA morto com 7 meses incompletos
Augusto dos Anjos

De onde ela vem?! De que matéria bruto (2/2/1911)


Vem essa luz que sobre as nebulosas Agregado infeliz de sangue e cal,
Cai de incógnitas criptas misteriosas Fruto rubro de carne agonizante,
Como as estalactites duma gruta?! Filho da grande força fecundante
Vem da psicogenética e alta luta De minha brônzea trama neuronial,
Do feixe de moléculas nervosas, Que poder embriológico fatal
Que, em desintegrações maravilhosas,
-

Destruiu, com a sinergia de um gigante,


Toda a Poesia

Delibera, e depois, quer e executa! Em tua morfogênese de infante


Vem do encéfalo absconso que a constringe, A minha morfogênese ancestral?!
Chega em seguida às cordas do laringe, Porção de minha plásmica substância,
Tísica, tênue, mínima, raquítica... Em que lugar irás passar a infância,
Quebra a força centrípeta que a amarra, Tragicamente anônimo, a feder?!
Mas, de repente, e quase morta, esbarra Ah! Possas tu dormir, feto esquecido,
No molambo da língua paralítica! Panteisticamente dissolvido
Na noumenalidade do NÃO SER!
O LÁZARO DA PÁTRIA
Filho podre de antigos Goitacases,
VERSOS A UM CÃO
Em qualquer parte onde a cabeça ponha, Que força pôde adstrita a embriões informes,
Deixa circunferências de peçonha, Tua garganta estúpida arrancar
Marcas oriundas de úlceras e antrazes. Do segredo da célula ovular
Todos os cinocéfalos vorazes Para latir nas solidões enormes?!
Cheiram seu corpo. À noite, quando sonha, Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,
Sente no tórax a pressão medonha Suficientíssima é, para provar
Do bruto embate férreo das tenazes. A incógnita alma, avoenga e elementar
Mostra aos montes e aos rígidos rochedos Dos teus antepassados vermiformes.
A hedionda elefantíase dos dedos... Cão! - Alma de inferior rapsodo errante!
Há um cansaço no Cosmo... Anoitece. Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a
Riem as meretrizes no Cassino, A escala dos latidos ancestrais...
E o Lázaro caminha em seu destino E irá assim, pelos séculos, adiante,
Para um fim que ele mesmo desconhece! Latindo a esquisitíssima prosódia
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O DEUS-VERME Tal uma horda feroz de cães famintos,
Fator universal do transformismo. Atravessando uma estação deserta,
Filho da teleológica matéria, Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
Na superabundância ou na miséria, A matilha espantada dos instintos!
Verme - é o seu nome obscuro de batismo. Era como se, na alma da cidade,
Jamais emprega o acérrimo exorcismo Profundamente lúbrica e revolta,
Em sua diária ocupação funérea, Mostrando as carnes, uma besta solta
E vive em contubérnio com a bactéria, Soltasse o berro da animalidade.
Livre das roupas do antropomorfismo. E aprofundando o raciocínio obscuro,
Almoça a podridão das drupas agras, Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,
Janta hidrópicos, rói vísceras magras O trabalho genésico dos sexos,
E dos defuntos novos incha a mão... Fazendo à noite os homens do Futuro.

Ah! Para ele é que a carne podre fica, Livres de microscópios e escalpelos,
E no inventário da matéria rica Dançavam, parodiando saraus cínicos,
Cabe aos seus filhos a maior porção! Bilhões de centrossomas apolínicos
Na câmara promíscua do vitellus.
DEBAIXO DO TAMARINDO Mas, a irritar-me os globos oculares,
Apregoando e alardeando a cor nojenta,
No tempo de meu Pai, sob estes galhos, Fetos magros, ainda na placenta,
Como uma vela fúnebre de cera, Estendiam-se as mãos rudimentares!
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos! Mostravam-se o apriorismo incognoscível
Dessa fatalidade igualitária,
Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos, Que fez minha família originária
Guarda, como uma caixa derradeira, Do antro daquela fábrica terrível!
O passado da Flora Brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos! A corrente atmosférica mais forte
Zunia. E, na ígnea crosta do Cruzeiro,
Quando pararem todos os relógios Julgava eu ver o fúnebre candieiro
De minha vida, e a voz dos necrológios Que há de me alumiar na hora da morte.
Gritar nos noticiários que eu morri,
Ninguém compreendia o meu soluço,
Voltando à pátria da homogeneidade, Nem mesmo Deus! Da roupa pelas brechas,
Abraçada com a própria Eternidade O vento bravo me atirava flechas
A minha sombra há de ficar aqui! E aplicações hiemais de gelo russo.
A vingança dos mundos astronômicos
AS CISMAS DO DESTINO Enviava à terra extraordinária faca,
I Posta em rija adesão de goma laca
Sobre os meus elementos anatômicos.
Recife. Ponte Buarque de Macedo. Ah! Com certeza, Deus me castigava!
Eu, indo em direção à casa do Agra, Por toda a parte, como um réu confesso,
Assombrado com a minha sombra magra, Havia um juiz que lia o meu processo
Pensava no Destino, e tinha medo! E uma forca especial que me esperava!
Na austera abóbada alta o fósforo alvo Mas o vento cessara por instantes
Das estrelas luzia... O calçamento Ou, pelo menos, o ignis sapiens do Orco
Sáxeo, de asfalto rijo, antro e vidrento, Abafava-me o peito arqueado e porco
Copiava a polidez de um crânio calvo. Num núcleo de substâncias abrasantes.
Lembro-me bem. A ponte era comprida, É bem possível que eu um dia cegue.
E a minha sombra enorme enchia a ponte, No ardor desta letal tórrida zona,
Como uma pele de rinoceronte A cor do sangue é a cor que me impressiona
Estendida por toda a minha vida! E a que mais neste mundo me persegue!
A noite fecundava o ovo dos vícios Essa obsessão cromática me abate.
Animais. Do carvão da treva imensa Não sei por que me vêm sempre à lembrança
Caía um ar danado de doença O estômago esfaqueado de uma criança
Sobre a cara geral dos edifícios! E um pedaço de víscera escarlate.
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Os esqueletos desarticulados,
Quisera qualquer coisa provisória Livres do acre fedor das carnes mortas,
Que a minha cerebral caverna entrasse, Rodopiavam, com as brancas tíbias tortas,
E até ao fim, cortasse e recortasse Numa dança de números quebrados!
A faculdade aziaga da memória. Todas as divindades malfazejas,
Na ascensão barométrica da calma, Siva e Arimã, os duendes, o In e os trasgos,
Eu bem sabia, ansiado e contrafeito, Imitando o barulho dos engasgos,
Que uma população doente do peito Davam pancadas no adro das igrejas.
Tossia sem remédio na minh’alma! Nessa hora de monólogos sublimes,
E o cuspo que essa hereditária tosse A companhia dos ladrões da noite,
Golfava, à guisa de ácido resíduo, Buscando uma tavernas que os açoite,
Não era o cuspo só de um indivíduo Vai pela escuridão pensando crimes.
Minado pela tísica precoce. Perpetravam-se os atos mais funestos,
Não! Não era o meu cuspo, com certeza E o luar, da cor de um doente de icterícia,
Era a expectoração pútrida e crassa Iluminava, a rir, sem pudicícia,
Dos brônquios pulmonares de uma raça A camisa vermelha dos incestos.
Que violou as leis da Natureza! Ninguém, de certo, estava ali, a espiar-me,
Era antes uma tosse ubíqua, estranha, Mas um lampião, lembrava ante a meu rosto,
Igual ao ruído de um calhau redondo Um sugestionador olho, ali posto
Arremessado no apogeu do estrondo, De propósito, para hipnotizar-me!
Pelos fundibulários da montanha! Em tudo, então, meus olhos distinguiram
Augusto dos Anjos

E a saliva daqueles infelizes Da miniatura singular de uma aspa,


Inchava, em minha boca, de tal arte, À anatomia mínima da caspa,
Que eu, para não cuspir por toda a parte, Embriões de mundos que não progrediram!
Ia engolindo, aos poucos, a hemoptísis! Pois quem não vê aí, em qualquer rua,
Na alta alucinação de minhas cismas Com a fina nitidez de um claro jorro,
O microcosmos líquido da gota Na paciência budista do cachorro
Tinha a abundância de uma artéria rota, A alma embrionária que não continua?!
-

Arrebentada pelos aneurismas. Ser cachorro! Ganir incompreendidos


Toda a Poesia

Chegou-me o estado máximo da mágoa! Verbos! Querer dizer-nos que não finge,
Duas, três, quatro, cinco, seis e sete E a palavra embrulhar-se no laringe,
Vezes que eu me furei com um canivete, Escapando-se apenas em latidos!
A hemoglobina vinha cheia de água! Despir a putrescível forma tosca,
Cuspo, cujas caudais meus beiços regam, Na atra dissolução que tudo inverte,
Sob a forma de mínimas camândulas, Deixar cair sobre a barriga inerte
Benditas seja todas essas glândulas, O apetite necrófago da mosca!
Que, quotidianamente, te segregam! A alma dos animais! Pego-a, distingo-a,
Escarrar de um abismo noutro abismo, Acho-a nesse interior duelo secreto
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro, Entre a ânsia de um vocábulo completo
Há mais filosofia neste escarro E uma expressão que não chegou à língua!
Do que em toda a moral do cristianismo! Surpreendo-a em quatrilhões de corpos vivos,
Porque, se no orbe oval que os meus pés Nos antiperistálticos abalos
tocam Que produzem nos bois e nos cavalos
Eu não deixasse o meu cuspo carrasco, A contração dos gritos instintivos!
Jamais exprimiria o acérrimo asco Tempo viria, em que, daquele horrendo
Que os canalhas do mundo me provocam! Caos de corpos orgânicos disformes
II Rebentariam cérebros enormes,
Como bolhas febris de água, fervendo!
Foi no horror dessa noite tão funérea
Que eu descobri, maior talvez que Vinci, Nessa época que os sábios não ensinam,
Com a força visualística do lince, A pedra dura, os montes argilosos
A falta de unidade na matéria! Criariam feixes de cordões nervosos
E o neuroplasma dos que raciocinam!

9
Almas pigméias! Deus subjuga-as, cinge-as
À imperfeição! Mas vem o Tempo, e vence-O,
E o meu sonho crescia no silêncio, Por que há de haver aqui tantos enterros?
Maior que as epopéias carolíngias! Lá no "Engenho" também, a morte é ingrata...
Era a revolta trágica dos tipos Há o malvado carbúnculo que mata
Ontogênicos mais elementares, A sociedade infante dos bezerros!
Desde os foraminíferos dos mares Quantas moças que o túmulo reclama!
À grei liliputiana dos pólipos. E após a podridão de tantas moças,
Todos os personagens da tragédia, Os porcos espojando-se nas poça
Cansados de viver na paz de Buda, Da virgindade reduzida à lama!
Pareciam pedir com a boca muda Morte, ponto final da última cena,
A ganglionária célula intermédia. Forma difusa da matéria imbele,
A planta que a canícula ígnea torra, Minha filosofia te repele,
E as coisas inorgânicas mais nulas Meu raciocínio enorme te condena!
Apregoavam encéfalos, medulas Diante de ti, nas catedrais mais ricas,
Na alegria guerreira da desforra! Rolam sem eficácia os amuletos,
Os protistas e o obscuro acervo rijo Oh! Senhora dos nossos esqueletos
Dos espongiários e dos infusórios E da caveiras diárias que fabricas!
Recebiam com os seus órgãos sensórios E eu desejava ter, numa ânsia rara,
O triunfo emocional do regozijo! Ao pensar nas pessoas que perdera,
E apesar de já ser assim tão tarde, A inconsciência das máscaras de cera
Aquela humanidade parasita, Que a gente prega, com um cordão, na cara!
Como um bicho inferior, berrava, aflita, Era um sonho ladrão de submergir-me
No meu temperamento de covarde! Na vida universal, e, em tudo imerso,
Mas, refletindo, a sós, sobre o meu caso, Fazer da parte abstrata do Universo,
Vi que, igual a um amniota subterrâneo, Minha morada equilibrada e firme!
Jazia atravessada no meu crânio Nisto, pior que o remorso do assassino,
A intercessão fatídica do atraso! Reboou, tal qual, num fundo de caverna,
A hipótese genial do microzima Numa impressionadora voz interna,
Me estrangulava o pensamento guapo, O eco particular do meu Destino:
E eu me encolhia todo como um sapo III
Que tem um peso incômodo por cima!
"Homem! por mais que a Idéia desintegres,
Nas agonias do delirium-tremens, Nessas perquisições que não têm pausa,
Os bêbados alvares que me olhavam, Jamais, magro homem, saberás a causa
Com os copos cheios esterilizavam De todos os fenômenos alegres!
A substância prolífica dos semens!
Em vão, com a bronca enxada árdega, sondas
Enterravam as mãos dentro das goelas, A estéril terra, e a hialina lâmpada oca,
E sacudidos de um tremor indômito Trazes, por perscrutar (oh! ciência louca!)
Expeliam, na dor forte do vômito, O conteúdo das lágrima hediondas.
Um conjunto de gosmas amarelas.
Negro e sem fim é esse em que te mergulhas
Iam depois dormir nos lupanares Lugar do Cosmos, onde a dor infrene
Onde, na glória da concupiscência, É feita como é feito o querosene
Depositavam quase sem consciência Nos recôncavos úmidos das hulhas!
As derradeiras forças musculares.
Porque, para que a Dor perscrutes, fora
Fabricavam destarte os blastodermas, Mister que, não como és, em síntese, antes
Em cujo repugnante receptáculo Fosses, a refletir teus semelhantes,
Minha perscrutação via o espetáculo A própria humanidade sofredora!
De uma progênie idiota de palermas.
A universal complexidade é que Ela
Prostituição ou outro qualquer nome, Compreende. E se, por vezes, se divide,
Por tua causa, embora o homem te aceite, Mesmo ainda assim, seu todo não reside
É que as mulheres ruins ficam sem leite No quociente isolado da parcela!
E os meninos sem pai morrem de fome!

10
Ah! Como o ar imortal a Dor não finda! O instinto de procriar, a ânsia legítima
Das papilas nervosas que há nos tatos Da alma, afrontando ovante aziagos riscos,
Veio e vai desde os tempos mais transatos O juramento dos guerreiros priscos
Para outros tempos que hão de vir ainda! Metendo as mãos nas glândulas da vítima;
Como o machucamento das insônias As diferenciações que o psicoplasma
Te estraga, quando toda a estuada Idéia Humano sofre na mania mística,
Dás ao sôfrego estudo da ninféia A pesada opressão característica
E de outras plantas dicotiledôneas! Dos 10 minutos de um acesso de asma;
A diáfana água alvíssima e a hórrida áscua E, (conquanto contra isto ódios regougues)
Que da ígnea flama bruta, estriada, espirra; A utilidade fúnebre da corda
A formação molecular da mirra, Que arrasta a rês, depois que a rês engorda,
O cordeiro simbólico da Páscoa; À morte desgraçada dos açougues...
As rebeladas cóleras que rugem Tudo isto que o terráqueo abismo encerra
No homem civilizado, e a ele se prendem Forma a complicação desse barulho
Como às pulseiras que os mascates vendem Travado entre o dragão do humano orgulho
A aderência teimosa da ferrugem; E as forças inorgânica da terra!
O orbe feraz que bastos tojos acres Por descobrir tudo isso, embalde cansas!
Produz; a rebelião que, na batalha, Ignoto é o gérmen dessa força ativa
Deixa os homens deitados, sem mortalha, Que engendra, em cada célula passiva,
Na sangueira concreta dos massacres; A heterogeneidade das mudanças!
Os sanguinolentíssimos chicotes Poeta, feto malsão, criado com os sucos
Augusto dos Anjos

Da hemorragia; as nódoas mais espessas, De um leite mau, carnívoro asqueroso,


O achatamento ignóbil das cabeças, Gerado no atavismo monstruoso
Que ainda degrada os povos hotentotes; Da alma desordenada dos malucos;
O Amor e a Fome, a fera ultriz que o fojo Última das criaturas inferiores
Entra, à espera que a mansa vítima o entre, Governada por átomos mesquinhos,
- Tudo que gera no materno ventre Teu pé mata uberdade dos caminhos
A causa fisiológica do nojo; E esteriliza os ventres geradores!
-

As pálpebras inchadas na vigília, O áspero mal que a tudo, em torno, trazes,


Toda a Poesia

As aves moças que perderam a asa, Análogo é ao que, negro e a seu turno,
O fogão apagado de uma casa, Traz o ávido filóstomo noturno
Onde morreu o chefe da família; Ao sangue dos mamíferos vorazes!
O trem particular que um corpo arrasta Ah! Por mais que, com o espírito, trabalhes
Sinistramente pela via férrea, A perfeição dos seres existentes,
A cristalização da massa térrea, Hás de mostras a cárie dos teus dentes
O tecido da roupa que se gasta; Na anatomia horrenda dos detalhes!
A água arbitrária que hiulcos caules grossos O Espaço - esta abstração spencereana
Carrega e come; as negras formas feias Que abrange as relações de coexistência
Dos aracnídeos e das centopéias, É só! Não tem nenhuma dependência
O fogo-fátuo que ilumina os ossos; Com as vértebras mortais da espécie humana!
As projeções flamívomas que ofusca, As radiantes elipses que as estrelas
Como uma pincelada rembrandtesca, Traçam, e ao espectador falsas se antolham
A sensação que uma coalhada fresca São verdades de luz que os homens olham
Transmite às mãos nervosas dos que a buscam; Sem poder, no entretanto, compreendê-las.
O antagonismo de Tifon e Osíris, Em vão, com a mão corrupta, outro éter pedes
O homem grande oprimido o homem pequeno, Que essa mão, de esqueléticas falanges,
A lua falsa de um parasseleno, Dentro dessa água que com a vista abranges,
A mentira meteórica do arco-íris; Também prova o princípio de Arquimedes!
Os terremotos que, abalando os solos, A fadiga feroz que te esbordoa
Lembram paióis de pólvora explodindo, Há de deixar-te essa medonha marca,
A rotação dos fluidos produzindo Que, nos corpos inchados de anasarca,
A depressão geológica dos pólos; Deixam os dedos de qualquer pessoa!

11
Nem terás no trabalho que tiveste
A misericordiosa toalha amiga,
Que afaga os homens doentes de bexiga
E enxuga, à noite, as pústulas da peste! BUDISMO MODERNO
Quando chegar depois a hora tranqüila, Tome, Dr., esta tesoura e... corte
Tu serás arrastado, na carreira, Minha singularíssima pessoa.
Como um cepo inconsciente de madeira Que importa a mim que a bicharia roa
Na evolução orgânica da argila! Todo o meu coração depois da morte?!
Um dia comparado com um milênio Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Seja, pois, o teu último Evangelho... Também, das diatomáceas da lagoa
É a evolução do novo para o velho A criptógama cápsula se esbroa
E do homogêneo para o heterogêneo! Ao contrato de bronca destra forte!
Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo Dissolva-se, portanto, minha vida
A apodrecer!... És poeira, e embalde vibras! Igualmente a uma célula caída
O corvo que comer as tuas fibras Na aberração de um óvulo infecundo;
Há de achar nelas um sabor amargo!"
Mas o agregado abstrato das saudades
IV Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!
Calou-se a voz. A noite era funesta.
E os queixos, a exibir trismos danados,
Eu puxava os cabelos desgrenhados SONHO DE UM MONISTA
Como o rei Lear, no meio da floresta!
Eu e o esqueleto esquálido de Esquilo
Maldizia, com apóstrofes veementes,
Viajávamos, com uma ânsia sibarita,
No estentor de mi línguas insurretas,
Por toda a pró-dinâmica infinita,
O convencionalismo das Pandetas
Na inconsciência de um zoófito tranqüilo.
E os textos maus dos códigos recentes!
A verdade espantosa do Protilo
Minha imaginação atormentada
Me aterrava, mas dentro da alma aflita
Paria absurdos... Como diabos juntos,
Via Deus - essa mônada esquisita -
Perseguiam-me os olhos dos defuntos
Coordenando e animando tudo aquilo!
Com a carne da esclerótica esverdeada.
E eu bendizia, com o esqueleto ao lado,
Secara a clorofila das lavouras.
Na guturalidade do meu brado,
Igual aos sustenidos de uma endecha
Alheio ao velho cálculo dos dias,
Vinha-me às cordas glóticas a queixa
Das coletividades sofredoras. Como um pagão no altar de Proserpina,
A energia intracósmica divina
O mundo resignava-se invertido
Que é o pai e é a mãe das outras energias!
Nas forças principais do seu trabalho...
A gravidade era um princípio falho,
A análise espectral tinha mentido! SOLITÁRIO
O Estado, a Associação, os Municípios Como um fantasma que se refugia
Eram mortos. De todo aquele mundo Na solidão da natureza morta,
Restava um mecanismo moribundo Por trás dos ermos túmulos, um dia,
E uma teleologia sem princípios. Eu fui refugiar-me à tua porta!
Eu queria correr, ir para o inferno, Fazia frio e o frio que fazia
Para que, da psique no oculto jogo, Não era esse que a carne nos conforta...
Morressem sufocadas pelo fogo Cortava assim como em carniçaria
Todas as impressões do mundo externo! O aço das facas incisivas corta!
Mas a Terra negava-me o equilíbrio... Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
Na Natureza, uma mulher de luto E eu saí, como quem tudo repele,
Cantava, espiando as árvores sem fruto, - Velho caixão a carregar destroços -
A canção prostituta do ludíbrio!
Levando apenas na tumbal carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!

12
MATER ORIGINALIS
Forma vermicular desconhecida ÚLTIMO CREDO
Que estacionaste, mísera e mofina,
Como quase impalpável gelatina, Como ama o homem adúltero o adultério
Nos estados prodrômicos da vida; E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro - este ladrão comum
O hierofante que leu a minha sina Que arrasta a gente para o cemitério!
Ignorante é de que és, talvez, nascida
Dessa homogeneidade indefinida É o transcendentalíssimo mistério!
Que o insigne Herbert Spencer nos ensina. É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um
Nenhuma ignota união ou nenhum nexo Que matou Cristo e que matou Tibério!
À contingência orgânica do sexo
A tua estacionária alma prendeu... Creio, como o filósofo mais crente,
Na generalidade decrescente
Ah! De ti foi que, autônoma e sem normas, Com que a substância cósmica evolui...
Oh! Mãe original das outras formas,
A minha forma lúgubre nasceu! Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular que eu ontem fui!
O LUPANAR
Ah! Por que monstruosíssimo motivo O CAIXÃO FANTÁSTICO
Augusto dos Anjos

Prenderam para sempre, nesta rede,


Dentro do ângulo diedro da parede, Célebre ia o caixão, e, nele, inclusas,
A alma do homem polígamo e lascivo?! Cinzas, caixas cranianas, cartilagens
Oriundas, como os sonhos dos selvagens,
Este lugar, moços do mundo, vede: De aberratórias abstrações abstrusas!
É o grande bebedouro coletivo,
Onde os bandalhos, como um gado vivo, Nesse caixão iam talvez as Musas,
Todas as noites, vêm matar a sede! Talvez meu Pai! Hoffmânnicas visagens
Enchiam meu encéfalo de imagens
-

É o afrodístico leito do hetairismo, As mais contraditórias e confusas!


Toda a Poesia

A antecâmara lúbrica do abismo,


Em que é mister que o gênero humano entre, A energia monística do Mundo,
À meia-noite, penetrava fundo
Quando a promiscuidade aterradora No meu fenomenal cérebro cheio...
Matar a última força geradora
E comer o último óvulo do ventre! Era tarde! Fazia muito frio.
Na rua apenas o caixão sombrio
Ia continuando o seu passeio!
IDEALISMO
Falas de amor, e eu ouço tudo e calo! SOLILÓQUIO DE UM VISIONÁRIO
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira Para desvirginar o labirinto
De amores fúteis poucas vezes falo. Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
O amor! Quando virei por fim a amá-lo?! Numa antropofagia de faminto!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra, A digestão desse manjar funéreo
De Messalina e de Sardanapalo?! Tornado sangue transformou-me o instinto
De humanas impressões visuais que eu sinto,
Pois é mister que, para o amor sagrado, Nas divinas visões do íncole etéreo!
O mundo fique imaterializado
- Alavanca desviada do seu fulero - Vestido de hidrogênio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
E haja só amizade verdadeira Pelas monotonias siderais...
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?! Subi talvez às máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que inda eu suba mais!

13
OS DOENTES
A UM CARNEIRO MORTO
I
Misericordiosíssimo carneiro
Esquartejado, a maldição de Pio Como uma cascavel que se enroscava,
Décimo caia em teu algoz sombrio A cidade dos lázaros dormia...
E em todo aquele que for seu herdeiro! Somente, na metrópole vazia,
Minha cabeça autônoma pensava!
Maldito seja o mercador vadio
Que te vender as carnes por dinheiro, Mordia-me a obsessão má de que havia,
Pois, tua lã aquece o mundo inteiro Sob os meus pés, na terra onde eu pisava,
E guarda as carnes dos que estão com frio! Um fígado doente que sangrava
E uma garganta de órfã que gemia!
Quando a faca rangeu no teu pescoço,
Ao monstro que espremeu teu sangue grosso Tentava compreender com as conceptivas
Teus olhos - fontes de perdão - perdoaram! Funções do encéfalo as substâncias vivas
Que nem Spencer, nem Haeckel compreenderam...
Oh! tu que no Perdão eu simbolizo,
Se fosses Deus, no Dia de Juízo, E via em mim, coberto de desgraças,
Talvez perdoasses os que te mataram! O resultado de bilhões de raças
Que há muitos anos desapareceram!
VOZES DA MORTE II
Agora, sim! Vamos morrer, reunidos, Minha angústia feroz não tinha nome.
Tamarindo de minha desventura, Ali, na urbe natal do Desconsolo,
Tu, com o envelhecimento da nervura, Eu tinha de comer o último bolo
Eu, com o envelhecimento dos tecidos! Que Deus fazia para a minha fome!
Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos! Convulso, o vento entoava um pseudosalmo.
E a podridão, meu velho! E essa futura Contrastando, entretanto, com o ar convulso
Ultrafatalidade de ossatura, A noite funcionava como um pulso
A que nos acharemos reduzidos! Fisiologicamente muito calmo.
Não morrerão, porém, tuas sementes! Caíam sobre os meus centros nervosos,
E assim, para o Futuro, em diferentes Como os pingos ardentes de cem velas,
Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos, O uivo desenganado das cadelas
Na multiplicidade dos teus ramos, E o gemido dos homens bexigosos.
Pelo muito que em vida nos amamos, Pensava! E em que eu pensava, não perguntes!
Depois da morte, inda teremos filhos! Mas, em cima de um túmulo, um cachorro
Pedia para mim água e socorro
INSÂNIA DE UM SIMPLES À comiseração dos transeuntes!

Em cismas patológicas insanas, Bruto, de errante rio, alto e hórrido, o urro


É-me grato adstringir-me, na hierarquia Reboava. Além jazia aos pés da serra,
Das formas vivas, à categoria Criando as superstições de minha terra,
Das organizações liliputianas; A queixada específica de um burro!

Ser semelhante aos zoófitos e às lianas, Gordo adubo da agreste urtiga brava,
Ter o destino de uma larva fria, Benigna água, magnânima e magnífica,
Deixar enfim na cloaca mais sombria Em cuja álgida unção, branda e beatífica,
Este feixe de células humanas! A Paraíba indígena se lava!

E enquanto arremedando Éolo iracundo, A manga, a ameixa, a amêndoa, a abóbora, o álamo


Na orgia heliogabálica do mundo, E a câmara odorífera dos sumos
Ganem todos os vícios de uma vez, Absorvem diariamente o ubérrimo húmus
Que Deus espalha à beira do teu tálamo!
Apraz-me, adstrito ao triângulo mesquinho
De um delta humilde, apodrecer sozinho Nos de teu curso desobstruídos trilhos,
No silêncio de minha pequenez! Apenas eu compreendo, em quaisquer horas,
O hidrogênio e o oxigênio que tu choras
Pelo falecimento dos teus filhos!

14
Querer dizer a angústia de que é pábulo,
E com a respiração já muito fraca
Ah! Somente eu compreendo, satisfeito, Sentir como que a ponta de uma faca,
A incógnita psique das massas mortas Cortando as raízes do último vocábulo!
Que dormem, como as ervas, sobre as hortas,
Na esteira igualitária do teu leito! Não haver terapêutica que arranque
Tanta opressão como se, com efeito,
O vento continuava sem cansaço Lhe houvesse sacudido sobre o peito
E enchia com a fluidez do eólico hissope A máquina pneumática de Bianchi!
Em seu fantasmagórico galope
A abundância geométrica do espaço. E o ar fugindo e a Morte a arca da tumba
A erguer, como um cronômetro gigante,
Meu ser estacionava, olhando os campos Marcando a transição emocionante
Circunjacentes. No Alto, os astros miúdos Do lar materno para a catacumba!
Reduziam os Céus sérios e rudos
A uma epiderme cheia de sarampos! Mas vos não lamenteis, magra mulheres,
Nos ardores danados da febre hética,
III Consagrando vossa última fonética
A uma recitação de misereres.
Dormia embaixo, com a promíscua véstia
No embotamento crasso dos sentidos, Antes levardes ainda uma quimera
A comunhão dos homens reunidos Para a garganta omnívora das lajes
Pela camaradagem da moléstia. Do que morrerdes, hoje, urrando ultrajes
Contra a dissolução que vos espera!
Feriam-me o nervo óptico e a retina
Aponevroses e tendões de Aquiles, Porque a morte, resfriando-vos o rosto,
Augusto dos Anjos

Restos repugnantíssimos de bílis, Consoante a minha concepção vesânica


Vômitos impregnados de ptialina. Há de pagar um dia o último imposto!
Da degenerescência étnica do Ária Começara a chover. Pelas algentes
Se escapava, entre estrépitos e estouros, Ruas, a água, em cachoeiras desobstruídas,
Reboando pelos séculos vindouros, Encharcava os buracos das feridas,
O ruído de uma tosse hereditária. Alagava a medula dos Doentes!
Oh! desespero das pessoas tísicas, Do fundo do meu trágico destino,
-

Adivinhando o frio que há nas lousas, Onde a Resignação os braços cruza,


Toda a Poesia

Maior felicidade é a destas cousas Saía, com o vexame de uma fusa,


Submetidas apenas às leis físicas! A mágoa gaguejada de um cretino.
Estas, por mais que os cardos grandes rocem Aquele ruído obscuro de gagueira
Seus corpos brutos, dores não recebem; Que à noite, em sonhos mórbidos, me
Estas dos bacalhaus o óleo não bebem, acorda,
Estas não cospem sangue, estas não tossem! Vinha da vibração bruta da corda
Mais recôndita da alma brasileira!
Descender dos macacos catarríneos
Cair doente e passar a vida inteira Aturdia-me a tétrica miragem
Com a boca junto de uma escarradeira, De que, naquele instante, no Amazonas,
Pintando o chão de coágulos sanguíneos! Fedia, entregue a vísceras glutonas,
A carcaça esquecida de um selvagem.
Sentir, adstritos ao quimiotropismo
Erótico, os micróbios assanhados A civilização entrou na taba
Passearem, como inúmeros soldados, Em que ele estava. O gênio de Colombo
Nas cancerosidades do organismo! Manchou de opróbrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cova do morubixaba!
Falar somente uma linguagem rouca,
Um português cansado e incompreensível, E o índio, por fim, adstrito à étnica escória,
Vomitar o pulmão na noite horrível Recebeu, tendo o horror no rosto impresso,
Em que se deita sangue pela boca! Esse achincalhamento do progresso
Que o anulava na crítica da História!
Expulsar, aos bocados, a existência
Numa bacia autômata de barro, Como quem analisa uma apostema,
Alucinado, vendo em cada escarro De repente, acordando na desgraça,
O retrato da própria consciência! Viu toda a podridão de sua raça...
Na tumba de Iracema!...

15
Ah! Tudo, como um lúgubre ciclone,
Exercia sobre ele ação funesta Naquela angústia absurda e tragicômica
Desde o desbravamento da floresta Eu chorava, rolando sobre o lixo,
À ultrajante invenção do telefone. Com a contorção neurótica de um bicho
Que ingeriu 30 gramas de noz-vômica.
E sentia-se pior que um vagabundo
Microcéfalo vil que a espécie encerra, E, como um homem doido que se enforca,
Desterrado na sua própria terra, Tentava, na terráquea superfície,
Diminuído na crônica do mundo! Consubstanciar-me todo com a imundície,
Confundir-me com aquela coisa porca!
A hereditariedade dessa pecha
Seguira seus filhos. Dora em diante Vinha, às vezes, porém, o anelo instável
Seu povo tombaria agonizante De, com o auxílio especial do osso masséter
Na luta da espingarda com a flecha! Mastigando homeomérias neutras de éter
Nutrir-me da matéria imponderável.
Veio-lhe então como à fêmea vêm antojos,
Uma desesperada ânsia improfícua Anelava ficar um dia, em suma,
De estrangular aquela gente iníqua Menor que o anfióxus e inferior à tênia,
Que progredia sobre os seus despojos! Reduzido à plastídula homogênea,
Sem diferenciação de espécie alguma.
Mas, diante a xantocróide raça loura,
Jazem, caladas, todas as inúbias, Era (nem sei em síntese o que diga)
E agora, sem difíceis nuanças dúbias, Um velhíssimo instinto atávico, era
Com uma clarividência aterradora, A saudade inconsciente da monera
Que havia sido minha mãe antiga!
Em vez de prisca tribo e indiana tropa
A gente deste século, espantada, Com o horror tradicional da raiva corsa
Vê somente a caveira abandonada Minha vontade era, perante a cova,
De uma raça esmagada pela Europa! Arrancar do meu próprio corpo a prova
Da persistência trágica da força.
Era a hora em que arrastados pelos ventos,
Os fantasmas hamléticos dispersos A pragmática má de humanos usos
Atiram na consciência dos perversos Não compreende que a Morte que não dorme
A sombra dos remorsos famulentos. É a absorção do movimento enorme
Na dispersão dos átomos difusos.
As mães sem coração rogavam pragas
Aos filhos bons. E eu, roído pelos medos, Não me incomoda esse último abandono.
Batia com o pentágono dos dedos Se a carne individual hoje apodrece,
Sobre um fundo hipotético de chagas! Amanhã, como Cristo, reaparece
Na universalidade do carbono!
Diabólica dinâmica daninha
Oprimia meu cérebro indefeso A vida vem do éter que se condensa,
Com a força onerosíssima de um peso Mas o que mais no Cosmo me entusiasma
Que eu não sabia mesmo de onde vinha. É a esfera microscópica do plasma
Fazer a luz do cérebro que pensa.
Perfurava-me o peito a áspera pua
Do desânimo negro que me prostra, Eu voltarei, cansado da árdua liça,
E quase a todos os momentos mostra À substância inorgânica primeva,
Minha caveira aos bêbedos da rua. De onde, por epigênese, veio Eva
E a stirpe radiolar chamada Actissa!
Hereditariedades politípicas
Punham na minha boca putrescível Quando eu for misturar-me com as violetas,
Interjeições de abracadabra horrível Minha lira, maior que a Bíblia e a Fedra,
E os verbos indignados das Filípicas. Reviverá, dando emoção à pedra,
Na acústica de todos os planetas!
Todos os vocativos dos blasfemos,
No horror daquela noite monstruosa, VI
Maldiziam, com voz estentorosa,
A peçonha inicial de onde nascemos. À álgida agulha, agora, alva, a saraiva
Caindo, análoga era... Um cão agora
Como que havia na ânsia de conforto Punha a atra língua hidrófoba de fora
De cada ser, ex.: o homem e ofídio, Em contrações miológicas de raiva.
Uma necessidade de suicídio
Em um desejo incoercível de ser morto!
16
Mas, para além, entre oscilantes chamas, Cismava no propósito funéreo
Acordavam os bairros da luxúria... Da mosca debochada que fareja
As prostitutas, doentes de hematúria, O defunto, no chão frio da igreja,
Se extenuavam nas camas. E vai depois levá-lo ao cemitério!
Uma, ignóbil, derreada de cansaço, E esfregando as mãos magras, eu, inquieta,
Quase que escangalhada pelo vício, Sentia, na craniana caixa tosca,
Cheirava com prazer no sacrifício A racionalidade dessa mosca,
A lepra má que lhe roía o braço! A consciência terrível desse inseto!
E ensangüentava os dedos da mão nívea Regougando, porém, argots e aljâmias,
Com o sentimento gasto e a emoção podre, Como quem nada encontra que o perturbe,
Nessa alegria bárbara que cobre A energúmena grei dos ébrios da urbe
Os saracoteamentos da lascívia... Festejava seu sábado de infâmias.
De certo, a perversão de que era presa A estática fatal das paixões cegas,
O sensorium daquela prostituta Rugindo fundamente nos neurônios,
Vinha da adaptação quase absoluta Puxava aquele povo de demônios,
À ambiência microbiana da baixeza! Para a promiscuidade das adegas.
Entanto, virgens fostes, e, quando o éreis, E a ébria turba que escaras sujas masca,
Não tínheis ainda essa erupção cutânea, Á falta idiossincrásica de escrúpulo,
Nem tínheis, vítima última da insânia, Absorvia com gáudio absinto, lúpulo
Duas mamárias glândulas estéreis! E outras substâncias tóxicas da tasca.
Augusto dos Anjos

Ah! Certamente, não havia ainda O ar ambiente cheirava a ácido acético,


Rompido, com violência, no horizonte, Mas, de repente, com o ar de quem empesta,
O sol malvado que secou a fonte Apareceu, escorraçando a festa,
De vossa castidade agora finda! A mandíbula inchada de um morfético!
Talvez tivésseis fome, e as mãos, embalde, Saliências polimórficas vermelhas,
Estendeste ao mundo, até que, à toa, Em cujo aspecto o olhar perspícuo prendo,
Fostes vender a virginal coroa Punham-lhe num destaque horrendo o
-

Ao primeiro bandido do arrabalde. horrendo


Toda a Poesia

Tamanho aberratório das orelhas.


E estais velha! - De vós o mundo é farto,
E hoje, que a sociedade vos enxota, O fácies do morfético assombrava!
Somente as bruxas negras da derrota - Aquilo era uma negra eucaristia,
Freqüentam diariamente vosso quarto! Onde minh’alma inteira surpreendia
A Humanidade que se lamentava!
Prometem-vos (quem sabe?!) entre os
ciprestes Era todo o meu sonho, assim, inchado,
Longe da mancebia dos alcouces, Já podre, que a morféia miserável
Nas quietudes nirvânicas mais doces, Tornava às impressões táteis, palpável,
O noivado que em vida não tivestes! Como se fosse um corpo organizado!
VII VIII

Quase todos os lutos conjugados, Em torno a mim, nesta hora, estriges voam,
Como uma associação de monopólio, E o cemitério, em que eu entrei adrede,
Lançavam pinceladas pretas de óleo Dá-me a impressão de um boulevard que fede,
Na arquitetura arcaica dos sobrados. Pela degradação dos que o povoam.
Dentro da noite funda um braço humano Quanta gente, roubada à humana coorte,
Parecia cavar ao longe um poço Morre de fome, sobre a palha espessa,
Para enterrar minha ilusão de moço, Sem ter, como Ugolino, uma cabeça
Como a boca de um poço artesiano! Que possa mastigar na hora da morte;
Atabalhoadamente pelos becos, E nua, após baixar ao caos budista,
Eu pensava nas coisas que perecem, Vem para aqui, nos braços de um canalha,
Desde as musculaturas que apodrecem Porque o madapolão para a mortalha
À ruína vegetal dos lírios secos. Custa 1$200 ao lojista!

17
Que resta das cabeças que pensaram?!
E afundado nos sonhos mais nefastos,
Ao pegar num milhão de miolos gastos, IX
Todos os meus cabelos se arrepiaram.
O inventário do que eu já tinha sido
Os evolucionismos benfeitores Espantava. Restavam só de Augusto
Que por entre os cadáveres caminham, A forma de um mamífero vetusto
Iguais a irmãs de caridade, vinham E a cerebralidade de um vencido!
Com a podridão dar de comer às flores!
O gênio procriador da espécie eterna
Os defuntos então me ofereciam Que me fizera, em vez de hiena ou lagarta,
Com as articulações das mãos inermes, Uma sobrevivência de Sidarta,
Num prato de hospital, cheio de vermes, Dentro da filogênese moderna;
Todos os animais que apodreciam!
E arranca milhares de existências
É possível que o estômago se afoite Do ovário ignóbil de uma fauna imunda,
(Muito embora contra isto a alma se irrite) Ia arrastando agora a alma infecunda
A cevar o antropófago apetite, Na mais triste de todas as falências.
Comendo carne humana, à meia-noite!
Um céu calamitoso de vingança
Com uma ilimitadíssima tristeza, Desagregava, désposta e sem normas,
Na impaciência do estômago vazio, O adesionismo biôntico das formas
Eu devorava aquele bolo frio Multiplicadas pela lei da herança!
Feito das podridões da Natureza!
A ruína vinha horrenda e deletéria
E hirto, a camisa suada, a alma aos arrancos, Do subsolo infeliz, vinha de dentro
Vendo passar com as túnicas obscuras, Da matéria em fusão que ainda há no centro,
As escaveiradíssimas figuras Para alcançar depois a periferia!
Das negras desonradas pelos brancos;
Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio
Pisando, como quem salta, entre fardos, exerces!
Nos corpos nus das moças hotentores Mas, a meu ver, os sáxeos prédios tortos
Entregues, ao clarão de alguns archotes, Tinham aspectos de edifícios mortos
À sodomia indigna dos moscardos; Decompondo-se desde os alicerces!
Eu maldizia o deus de mãos nefandas A doença era geral, tudo a extenuar-se
Que, transgredindo a igualitária regra Estava. O Espaço abstrato que não morre
Da Natureza, atira a raça negra Cansara... O ar que, em colônias fluidas, corre,
Ao contubérnio diário das quitandas! Parecia também desagregar-se!
Na evolução de minha dor grotesca, O pródromos de um tétano medonho
Eu mendigava aos vermes insubmissos Repuxavam-me o rosto... Hirto de espanto,
Como indenização dos meus serviços, Eu sentia nascer-me n’alma, entanto,
O benefício de uma cova fresca. O começo magnífico de um sonho!
Manhã. E eis-me a absorver a luz de fora, Entre as formas decrépitas do povo,
Como o íncola do pólo ártico, às vezes, Já batiam por cima dos estragos
Absorve, após a noite de seis meses, A sensação e os movimentos vagos
Os raios caloríficos da aurora. Da célula inicial de um Cosmo novo!
Nunca mais as goteiras cairiam O letargo larvário da cidade
Como propositais setas malvadas, Crescia. Igual a um parto, numa furna,
No frio matador das madrugadas, Vinha da original treva noturna,
Por sobre o coração dos que sofriam! O vagido de uma outra Humanidade!
Do meu cérebro à absconsa tábua rasa E eu, com os pés atolados no Nirvana,
Vinha a luz restituir o antigo crédito, Acompanhava, com um prazer secreto,
Proporcionando-me o prazer inédito, A gestação daquele grande feto,
De quem possui um sol dentro de casa. Que vinha substituir a Espécie Humana!
Era a volúpia fúnebre que os ossos
Me inspiravam, trazendo-me ao sol claro,
À apreensão fisiológica do faro
O odor cadaveroso dos destroços!

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ASA DE CORVO
Asa de corvos carniceiros, asa
De mau agouro que, nos doze meses, O MAR, A ESCADA E O HOMEM
Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes "Olha agora, mamífero inferior,
O telhado de nossa própria casa... "À luz da epicurista ataraxia,
Perseguido por todos os reveses, "O fracasso de tua geografia
É meu destino viver junto a essa asa, "E do teu escafandro esmiuçador!
Como a cinza que vive junto à brasa, "Ah! Jamais saberás ser superior,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses! "Homem, a mim, conquanto ainda hoje em dia,
É com essa asa que eu faço este soneto "Com a ampla hélice auxiliar com que outrora ia
E a indústria humana faz o pano preto "Voando ao vento o vastíssimo vapor,
Que as famílias de luto martiriza... "Rasgue a água hórrida a nau árdega e singre-me!"
É ainda com essa asa extraordinária E a verticalidade da Escada íngreme:
Que a Morte - a costureira funerária - "Homem, já transpuseste os meus degraus?!"
Cose para o homem a última camisa! E Augusto, o Hércules, o Homem, aos soluços,
Ouvindo a escada e o mar, caiu de bruços
O MARTÍRIO DO ARTISTA No pandemônio aterrador do Caos!
Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda, DECADÊNCIA
Busca exteriorizar o pensamento Iguais às linhas perpendiculares
Augusto dos Anjos

Que em suas fronetas células guarda! Caíram, como cruéis e hórridas hastas,
Tarda-lhe a Idéia! A inspiração lhe tarda! Nas suas 33 vértebras gastas
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento, Quase todas as pedras tumulares!
Como o soldado que rasgou a farda A frialdade dos círculos polares,
No desespero do último momento! Em sucessivas atuações nefastas.
Tenta chorar e os olhos sente enxutos!... Penetrara-lhe os próprios neuroplastas,
É como o paralítico que, à míngua Estragara-lhe os centros medulares!
-

Da própria voz e na que ardente o lavra Como quem quebra o objeto mais querido
Toda a Poesia

Febre de em vão falar, com os dedos brutos E começa a apanhar piedosamente


Para falar, puxa e repuxa a língua, Todas as microscópicas partículas,
E não lhe vem à boca uma palavra! Ele hoje vê que, após tudo perdido,
Só lhe restam agora o último dente
DUAS ESTROFES E a armação funerária das clavículas!
(À memória de João de Deus)
RICORDANZA DELLA MIA GIOVENTÚ
Ahi! ciechi! il tanto affaticar che giova?
Tutti torniamo alla gran madre antica A minha ama-de-leite Guilhermina
E il nostro nome appena si ritrova. Furtava as moedas que o Doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha Mãe, ralhava...
Petrarca
Via naquilo a minha própria ruína!
A queda do teu lírico arrabil Minha ama, então, hipócrita, afetava
De um sentimento português ignoto Susceptibilidades de menina:
Lembra Lisboa, bela como um brinco, "- Não, não fora ela! - " E maldizia a sina,
Que um dia no ano trágico de mil Que ela absolutamente não furtava.
E setecentos e cinqüenta e cinco,
Foi abalada por um terremoto! Vejo, entretanto, agora, em minha cama,
Que a mim somente cabe o furto feito...
A água quieta do Tejo te abençoa. Tu só furtaste a moeda, o ouro que brilha...
Tu representas toda essa Lisboa
De glórias quase sobrenaturais, Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Apenas com uma diferença triste, Eu furtei mais, porque furtei o peito
Com a diferença que Lisboa existe Que dava leite para a tua filha!
E tu, amigo, não existes mais!

19
GEMIDOS DE ARTE
A UM MASCARADO I
Rasga essa máscara ótima de seda Esta desilusão que me acabrunha
E atira-a à arca ancestral dos palimpsestos... É mais traidora do que o foi Pilatos!...
É noite, e, à noite, a escândalos e incestos Por causa disto, eu vivo pelos matos,
É natural que o instinto humano aceda! Magro, roendo a substância córnea da unha.
Sem que te arranquem da garganta queda Tenho estremecimentos indecisos
A interjeição danada dos protestos, E sinto, haurindo o tépido ar sereno,
Hás de engolir, igual a um porco, os restos O mesmo assombro que sentiu Parfeno
Duma comida horrivelmente azeda! Quando arrancou os olhos de Dionisos!
A sucessão de hebdômadas medonhas Em giro e em redemoinho em mim caminham
Reduzirá os mundos que tu sonhas Ríspidas mágoas estranguladoras,
Ao microcosmos do ovo primitivo... Tais quais, nos fortes fulcros, as tesouras
E tu mesmo, após a árdua e atra refrega, Brônzeas, também giram e redemoinham.
Terás somente uma vontade cega Os pães - filhos legítimos dos trigos -
E uma tendência obscura de ser vivo! Nutrem a geração do Ódio e da Guerra...
Os cachorros anônimos da terra
VOZES DE UM TÚMULO São talvez os meus únicos amigos!
Morri! E a Terra - a mãe comum - o brilho Ah! Por que desgraçada contingência
Destes meus olhos apagou!... Assim À híspida aresta sáxea áspera e abrupta
Tântalo, aos reais convivas, num festim, Da rocha brava, numa ininterrupta
Serviu as carnes do seu próprio filho! Adesão, não prendi minha existência?!
Por que para este cemitério vim?! Por que Jeová, maior do que Laplace,
Por quê?! Antes da vida o angusto trilho Não fez cair o túmulo de Plínio
Palmilhasse, do que este que palmilho Por sobre todo o meu raciocínio
E que me assombra, porque não tem fim! Para que eu nunca mais raciocinasse?!
No ardor do sonho que o fronema exalta Pois minha Mãe tão cheia assim daqueles
Construí de orgulho ênea pirâmide alta... Carrinhos, com que guarda meus sapatos,
Hoje, porém, que se desmoronou Por que me deu consciência dos meus atos
Para eu me arrepender de todos eles?!
A pirâmide real do meu orgulho,
Hoje que apenas sou matéria e entulho Quisera antes, mordendo glabros talos,
Tenho consciência de que nada sou! Nabucodonosor ser no Pau d’Arco,
Beber a acre e estagnada água do charco,
Dormir na manjedoura com os cavalos!
CONTRASTES
Mas a carne é que é humana! A alma é divina.
A antítese do novo e do obsoleto, Dorme num leito de feridas, goza
O Amor e a Paz, o Ódio e a Carnificina, O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,
O que o homem ama e o que o homem abomina, Beija a peçonha, e não se contamina!
Tudo convém para o homem ser completo!
Ser homem! escapar de ser aborto!
O ângulo obtuso, pois, e o ângulo reto, Sair de um ventre inchado que se anoja,
Uma feição humana e outra divina Comprar vestidos pretos numa loja
São como a eximenina e a endimenina E andar de luto pelo pai que é morto!
Que servem ambas para o mesmo feto!
E por trezentos e sessenta dias
Eu sei tudo isto mais do que o Eclesiastes! Trabalhar e comer! Martírios juntos!
Por justaposição destes contrastes, Alimentar-se dos irmãos defuntos,
Junta-se um hemisfério a outro hemisfério, Chupar os ossos das alimarias!
Às alegrias juntam-se as tristezas, Barulho de mandíbulas e abdômens!
E o carpinteiro que fabrica as mesas E vem-me com um desprezo por tudo isto
Faz também os caixões do cemitério!... Uma vontade absurda de ser Cristo
Para sacrificar-me pelos homens!

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Soberano desejo! Soberana Eu, depois de morrer, depois de tanta
Ambição de construir para o homem uma Tristeza, quero, em vez do nome - Augusto,
Região, onde não cuspa língua alguma Possuir aí o nome dum arbusto
O óleo rançoso da saliva humana! Qualquer ou de qualquer obscura planta!
Uma região sem nódoas e sem lixos, III
Subtraída à hediondez de ínfimo casco,
Onde a forca feroz coma o carrasco Pelo acidentadíssimo caminho
E o olho do estuprador se encha de bichos! Faísca o sol. Nédios, batendo a cauda,
Urram os bois. O céu lembra uma lauda
Outras constelações e outros espaços Do mais incorruptível pergaminho.
Em que, no agudo grau da última crise,
O braço do ladrão se paralise Uma atmosfera má de incômoda hulha
E a mão da meretriz caia aos pedaços! Abafa o ambiente. O aziago ar morto a morte
Fede. O ardente calor da areia forte
II Racha-me os pés como se fosse agulha.
O sol agora é de um fulgor compacto, Não sei que subterrânea e atra voz rouca,
E eu vou andando, cheio de chamusco, Por saibros e por cem côncavos vales,
Com a flexibilidade de um molusco, Como pela avenida das Mappales,
Úmido, pegajoso e untuoso ao tacto! Me arrasta à casa do finado Toca!
Reúnam-se em rebelião ardente e acesa Todas as tardes a esta casa venho.
Todas as minhas forças emotivas Aqui, outrora, sem conchego nobre,
Augusto dos Anjos

E armem ciladas como cobras vivas Viveu, sentiu e amou este homem pobre
Para despedaçar minha tristeza! Que carregava canas para o engenho!
O sol de cima espiando a flora moça Nos outros tempos e nas outras eras,
Arada, fustigue, queime, corte, morda!... Quantas flores! Agora, em vez de flores,
Deleito a vista na verdura gorda Os musgos, como exóticos pintores,
Que nas hastes delgadas se balouça! Pintam caretas verdes nas taperas.
Avisto o vulto das sombrias granjas Na bruta dispersão de vítreos cacos,
-

Perdidas no alto... Nos terrenos baixos, À dura luz do sol resplandecente,


Toda a Poesia

Das laranjeiras eu admiro os cachos Trôpega e antiga, uma parede doente


E a ampla circunferência das laranjas. Mostra a cara medonha dos buracos.
Ladra furiosa a tribo dos podengos. O cupim negro broca o âmago fino
Olhando para as pútridas charnecas Do teto. E traça trombas de elefantes
Grita o exército avulso das marrecas Com as circunvoluções extravagantes
Na úmida copa dos bambus verdoengos. Do seu complicadíssimo intestino.
Um pássaro alvo artífice da teia O lodo obscuro trepa-se nas portas.
De um ninho, salta, no árdego trabalho, Amontoadas em grossos feixes rijos,
De árvore em árvore e de galho em galho, As lagartixas dos esconderijos
Com a rapidez duma semicolcheia. Estão olhando aquelas coisas mortas!
Em grandes semicírculos aduncos, Fico a pensar no Espírito disperso
Entrançados, pelo ar, largando pêlos, Que, unindo a pedra ao gneiss e a árvore à criança,
Voam à semelhança de cabelos Como um anel enorme de aliança,
Os chicotes finíssimos dos juncos. Une todas as coisas do Universo!
Os ventos vagabundos batem, bolem E assim pensando, com a cabeça em brasas
Nas árvores. O ar cheira. A terra cheira... Ante a fatalidade que me oprime,
E a alma dos vegetais rebenta inteira Julgo ver este Espírito sublime,
De todos os corpúsculos do pólen. Chamando-me do sol com as suas asas!
A câmara nupcial de cada ovário Gosto do sol ignívomo e iracundo
Se abre. No chão coleia a lagartixa. Como o réptil gosta quando se molha
Por toda a parte a seiva bruta esguicha E na atra escuridão dos ares, olha
Num extravasamento involuntário. Melancolicamente para o mundo!

21
Essa alegria imaterializada, Para reproduzir tal sentimento
Que por vezes me absorve, é o óbolo obscuro, Daqui por diante, atenta a orelha cauta,
É o pedaço já podre de pão duro Como Mársias - o inventor da flauta -
Que o miserável recebeu na estrada! Vou inventar também outro instrumento!
Não são os cinco mil milhões de francos Mas de tal arte e espécie tal fazê-lo
Que a Alemanha pediu a Jules Favre... Ambiciono, que o idioma em que te eu falo
É o dinheiro coberto de azinhavre Possam todas as línguas decliná-lo
Que o escravo ganha, trabalhando aos brancos! Possam todos os homens compreendê-lo!
Seja este sol meu último consolo; Para que, enfim, chegando à última calma
E o espírito infeliz que em mim se encarna Meu podre coração roto não role,
Se alegre ao sol, como quem raspa a sarna, Integralmente desfibrado e mole,
Só, com a misericórdia de um tijolo!... Como um saco vazio dentro d’alma!
Tudo enfim a mesma órbita percorre
E as bocas vão beber o mesmo leite... SONETOS
A lamparina quando falta o azeite I
Morre, da mesma forma que o homem morre.
Súbito, arrebentando horrenda calma, A meu Pai doente
Grito, e se grito é para que meu grito Para onde fores, Pai, para onde fores,
Seja a revelação deste Infinito Irei também, trilhando as mesmas ruas...
Que eu trago encarcerado na minh’alma! Tu, para amenizar as dores tuas,
Sol brasileiro! Queima-me os destroços! Eu, para amenizar as minhas dores!
Quero assistir, aqui, sem pai que me ame, Que coisa triste! O campo tão sem flores,
De pé, à luz da consciência infame, E eu tão sem crença e as árvores tão nuas
À carbonização dos próprios ossos! E tu, gemendo, e o horror de nossas duas
Mágoas crescendo e se fazendo horrores!
VERSOS DE AMOR Magoaram-te, meu Pai?! Que mão sombria,
A um poeta erótico Indiferente aos mil tormentos teus
De assim magoar-te sem pesar havia?!
Parece muito doce aquela cana. - Seria a mão de Deus?! Mas Deus enfim
Descasco-a, provo-a, chupo-a... ilusão treda! É bom, é justo, e sendo justo, Deus,
O amor, poeta, é como a cana azeda, Deus não havia de magoar-te assim!
A toda a boca que o não prova engana.
II
Quis saber que era o amor, por experiência,
E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo, Madrugada de Treze de Janeiro.
Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo, Rezo, sonhando, o ofício da agonia.
Todas as ciências menos esta ciência! Meu Pai nessa hora junto a mim morria
Certo, este o amor não é que, em ânsias, amo Sem um gemido, assim como um cordeiro!
Mas certo, o egoísta amor este é que acinte E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro!
Amas, aposto a mim. Por conseguinte Quando acordei, cuidei que ele dormia,
Chamas amor aquilo que eu não chamo. E disse à minha Mãe que me dizia:
Oposto ideal ao meu ideal conservas. "Acorda-o"! deixa-o, Mãe, dormir primeiro!
Diverso é, pois, o ponto outro de vista E saí para ver a Natureza!
Consoante o qual, observo o amor, do egoísta Em tudo o mesmo abismo de beleza,
Modo de ver, consoante o qual, o observas. Nem uma névoa no estrelado véu...
Porque o amor, tal como eu o estou amando, Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas,
É Espírito, é éter, é substância fluida, Como Elias, num carro azul de glórias,
É assim como o ar que a gente pega e cuida, Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu!
Cuida, entretanto, não o estar pegando!
III
É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima e impalpável, Podre meu Pai! A Morte o olhar lhe vidra.
Que anda acima da carne miserável Em seus lábios que os meus lábios osculam
Como anda a garça acima dos açudes! Microrganismos fúnebres pululam
Numa fermentação gorda de cidra.
22
Desceu depois à gleba mais bastarda,
Duras leis as que os homens e a hórrida hidra Pondo a áurea insígnia heráldica da farda
A uma só lei biológica vinculam, À vontade do vômito plebeu...
E a marcha das moléculas regulam,
Com a invariabilidade da clepsidra!... E ao vir-lhe o cuspo diário à boca fria
O vencido pensava que cuspia
Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos Na célula infeliz de onde nasceu.
Roída toda de bichos, como os queijos
Sobre a mesa de orgíacos festins!... O CORRUPIÃO
Amo meu Pai na atômica desordem Escaveirado corrupião idiota,
Entre as bocas necrófagas que o mordem Olha a atmosfera livre, o amplo éter belo,
E a terra infecta que lhe cobre os rins! E a alga criptógama e a úsnea e o cogumelo,
DEPOIS DA ORGIA Que do fundo do chão todo o ano brota!
Mas a ânsia de alto voar, de à antiga rota
O prazer que na orgia a hetaíra goza Voar, não tens mais! E pois, preto e amarelo,
Produz no meus sensorium de bacante Pões-te a assobiar, bruto, sem cerebelo
O efeito de uma túnica brilhante A gargalhada da última derrota!
Cobrindo ampla apostema escrofulosa!
A gaiola aboliu tua vontade.
Troveja! E anelo ter, sôfrega e ansiosa, Tu nunca mais verás a liberdade!...
O sistema nervoso de um gigante Ah! Tu somente ainda és igual a mim.
Para sofrer na minha carne estuante
A dor da força cósmica furiosa. Continua a comer teu milho alpiste.
Foi este mundo que me fez tão triste,
Apraz-me, enfim, despindo a última alfaia
Augusto dos Anjos

Foi a gaiola que te pôs assim!


Que ao comércio dos homens me traz presa,
Livre deste cadeado de peçonha,
NOITE DE UM VISIONÁRIO
Semelhante a um cachorro de atalaia
Às decomposições da Natureza, Número cento e três. Rua Direita.
Ficar latindo minha dor medonha! Eu tinha a sensação de quem se esfola
E inopinadamente o corpo atola
A ÁRVORE DA SERRA Numa poça de carne liquefeita!
-

- As árvores, meu filho, não têm alma! - "Que esta alucinação tátil não cresça!"
Toda a Poesia

E esta árvore me serve de empecilho... - Dizia; e erguia, oh! céu, alto, por ver-vos,
É preciso cortá-la, pois, meu filho, Com a rebeldia acérrima dos nervos
Para que eu tenha uma velhice calma! Minha atormentadíssima cabeça.
- Meu pai, por que sua ira não se acalma?! É a potencialidade que me eleva
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?! Ao grande Deus, e absorve em cada viagem
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho... Minh’alma - este sombrio personagem
Esta árvore, meu pai, possui minha’alma!... Do drama panteístico da treva!
- Disse - e ajoelhou-se, numa rogativa: Depois de dezesseis anos de estudo
"Não mate a árvore, pai, para que eu viva!" Generalizações grandes e ousadas
E quando a árvore, olhando a pátria serra, Traziam minhas forças concentradas
Caiu aos golpes do machado bronco, Na compreensão monística de tudo.
O moço triste se abraçou com o tronco Mas a aguadilha pútrida o ombro inerme
E nunca mais se levantou da terra! Me aspergia, banhava minhas tíbias,
VENCIDO E a ela se aliava o ardor das sirtes líbias,
Cortando o melanismo da epiderme.
No auge de atordoadora e ávida sanha Arimânico gênio destrutivo
Leu tudo, desde o mais prístino mito, Desconjuntava minha autônoma alma
Por exemplo: o do boi Ápis do Egito Esbandalhando essa unidade calma,
Ao velho Niebelungen da Alemanha. Que forma a coerência do ser vivo.
Acometido de uma febre estranha E eu saí a tremer com a língua grossa
Sem o escândalo fônico de um grito, E a volição no cúmulo do exício,
Mergulhou a cabeça no Infinito, Como quem é levado para o hospício
Arrancou os cabelos na montanha! Aos trambolhões, num canto de carroça!

23
Perante o inexorável céu aceso ALUCINAÇÃO À BEIRA-MAR
Agregações abióticas espúrias
Um medo de morrer meus pés esfriava.
Como uma cara, recebendo injúrias,
Noite alta. Ante o telúrico recorte,
Recebiam os cuspos do desprezo.
Na diuturna discórdia, a equórea coorte
A essa hora, nas telúricas reservas, Atordoadoramente ribombava!
O reino mineral americano
Eu, ególatra céptico, cismava
Dormia, sob os pés do orgulho humano,
Em meu destino!... O vento estava forte
E a cimalha minúscula das ervas.
E aquela matemática da Morte
E não haver quem, íntegra, lhe entregue, Com os seus números negros, me assombrava!
Com os ligamentos glóticos precisos,
Mas a alga usufrutuária dos oceanos
A liberdade de vingar em risos
E os malacopterígios subraquianos
A angústia milenária que o persegue!
Que um castigo de espécie emudeceu,
Bolia nos obscuros labirintos
No eterno horror das convulsões marítimas
Da fértil terra gorda, úmida e fresca,
Pareciam também corpos de vítimas
A ínfima fauna abscôndita e grotesca
Condenadas à Morte, assim como eu!
Da família bastarda dos helmintos.
As vegetalidades subalternas VANDALISMO
Que os serenos noturnos orvalhavam,
Pela alta frieza intrínseca, lembravam Meu coração tem catedrais imensas,
Toalhas molhadas sobre as minhas pernas. Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
E no estrume fresquíssimo da gleba
Canta a aleluia virginal das crenças.
Formigavam, com a símplice sarcode,
O vibrião, o ancilóstomo, o colpode Na ogiva fúlgida e nas colunatas
E outros irmãos legítimos da ameba! Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E todas essas formas que Deus lança
E as ametistas e os florões e as pratas.
No Cosmo, me pediam, com o ar horrível,
Um pedaço de língua disponível Como os velhos Templários medievais
Para a filogenética vingança! Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...
A cidade exalava um podre báfio:
Os anúncios das casas de comércio, E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
Mais tristes que as elegias de Propércio, No desespero dos iconoclastas
Pareciam talvez meu epitáfio. Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!
O motor teleológico da Vida
Parara! Agora, em diástoles de guerra, VERSOS ÍNTIMOS
Vinha do coração quente da terra
Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Um rumor de matéria dissolvida.
Enterro da tua última quimera.
A química feroz do cemitério Somente a Ingratidão - esta pantera -
Transformava porções de átomos juntos Foi tua companheira inseparável!
No óleo malsão que escorre dos defuntos,
Acostuma-te à lama que te espera!
Com a abundância de um geyser deletério.
O Homem, que, nesta terra miserável,
Dedos denunciadores escreviam Mora, entre feras, sente inevitável
Na lúgubre extensão da rua preta Necessidade de também ser fera.
Todo o destino negro do planeta,
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
Onde minhas moléculas sofriam.
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
Um necrófilo mau forçava as lousas A mão que afaga é a mesma que apedreja.
E eu - coetâneo do horrendo cataclismo -
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Era puxado para aquele abismo
Apedreja essa mão vil que te afaga,
No redemoinho universal das cousas!
Escarra nessa boca que te beija!

24
VENCEDOR Foi nessa ilha encantada de Cipango,
Verde, afetando a forma de um losango,
Toma as espadas rútilas, guerreiro, Rica, ostentando amplo floral risonho,
E à rutilância das espadas, toma Que Toscanelli viu seu sonho extinto
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma E como sucedeu a Afonso Quinto
Meu coração - estranho carniceiro! Foi sobre essa ilha que extingui meu sonho!
Não podes?! Chama então presto o primeiro Lembro-me bem. Nesse maldito dia
E o mais possante gladiador de Roma. O gênio singular da Fantasia
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma, Convidou-me a sorrir para um passeio...
Nenhum pôde domar o prisioneiro. Iríamos a um país de eternas pazes
Onde em cada deserto há mil oásis
Meu coração triunfava nas arenas.
E em cada rocha um cristalino veio.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta, Gozei numa hora séculos de afagos,
Banhei-me na água de risonhos lagos,
Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E finalmente me cobri de flores...
E não pôde domá-lo enfim ninguém,
Mas veio o vento que a Desgraça espalha
Que ninguém doma um coração de poeta!
E cobriu-me com o pano da mortalha,
Que estou cosendo para os meus amores!
A ILHA DE CIPANGO
Desde então para cá fiquei sombrio!
Estou sozinho! A estrada se desdobra Um penetrante e corrosivo frio
Como uma imensa e rutilante cobra Anestesiou-me a sensibilidade
De epiderme finíssima de areia... E as grandes golpes arrancou as raízes
Augusto dos Anjos

E por essa finíssima epiderme Que prendiam meus dias infelizes


Eis-me passeando como um grande verme A um sonho antigo de felicidade!
Que, ao sol, em plena podridão, passeia!
Invoco os Deuses salvadores do erro.
A agonia do sol vai ter começo! A tarde morre. Passa o seu enterro!...
Caio de joelhos, trêmulo... Ofereço A luz descreve ziguezagues tortos
Preces a Deus de amor e de respeito Enviando à terra os derradeiros beijos.
E o Ocaso que nas águas se retrata Pela estrada feral dois realejos
Nitidamente reproduz, exata, Estão chorando meus amores mortos!
-
Toda a Poesia

A saudade interior que há no meu peito...


E a treva ocupa toda a estrada longa...
Tenho alucinações de toda a sorte... O Firmamento é uma caverna oblonga
Impressionado sem cessar com a Morte Em cujo fundo a Via-láctea existe.
E sentindo o que um lázaro não sente, E como agora a lua cheia brilha!
Em negras nuanças lúgubres e aziagas Ilha maldita vinte vezes a ilha
Vejo terribilíssimas adagas, Que para todo o sempre me fez triste!
Atravessando os ares bruscamente.
Os olhos volvo para o céu divino MATER
E observo-me pigmeu e pequenino
Como a crisálida emergindo do ovo
Através de minúsculos espelhos.
Para que o campo flórido a concentre,
Assim, quem diante duma cordilheira,
Assim, oh! Mãe, sujo de sangue, um novo
Pára, entre assombros, pela vez primeira,
Ser, entre dores, te emergiu do ventre!
Sente vontade de cair de joelhos!
E puseste-lhe, haurindo amplo deleite,
Soa o rumor fatídico dos ventos,
No lábio róseo a grande teta farta
Anunciando desmoronamentos
- Fecunda fonte desse mesmo leite
De mil lajedos sobre mil lajedos...
Que amamentou os efebos de Esparta. -
E ao longe soam trágicos fracassos
De heróis, partindo e fraturando os braços Com que avidez ele essa fonte suga!
Nas pontas escarpadas dos rochedos! Ninguém mais com a Beleza está de acordo,
Do que essa pequenina sanguessuga,
Mas de repente, num enleio doce,
Bebendo a vida no teu seio gordo!
Qual se num sonho arrebatado fosse,
Na ilha encantada de Cipango tombo, Pois, quanto a mim, sem pretensões, comparo,
Da qual, no meio, em luz perpétua, brilha Essas humanas coisas pequeninas
A árvore da perpétua maravilha, A um biscuit de quilate muito raro
À cuja sombra descansou Colombo! Exposto aí, à amostra, nas vitrinas.
25
E quando vi que aquilo vinha vindo
Mas o ramo fragílimo e venusto Eu fui caindo como um sol caindo
Que hoje nas débeis gêmulas se esboça, De declínio em declínio; e de declínio
Há de crescer, há de tornar-se arbusto Em declínio, com a gula de uma fera,
E álamo altivo de ramagem grossa. Quis ver o que era, e quando vi o que era,
Clara, a atmosfera se encherá de aromas, Vi que era pó, vi que era esterquilínio!
O Sol virá das épocas sadias... Chegou a tua vez, oh! Natureza!
E o antigo leão, que te esgotou as pomas, Eu desafio agora essa grandeza,
Há de beijar-te as mãos todos os dias! Perante a qual meus olhos se extasiam...
Quando chegar depois tua velhice Eu desafio, desta cova escura,
Batida pelos bárbaros invernos, No histerismo danado da tortura
Relembrarás chorando o que eu te disse, Todos os monstros que os teus peitos criam.
À sombra dos sicômoros eternos! Tu não és minha mãe, velha nefasta!
Com o teu chicote frio de madrasta
POEMA NEGRO Tu me açoitaste vinte e duas vezes...
Por tua causa apodreci nas cruzes,
A Santos Neto Em que pregas os filhos que produzes
Durante os desgraçados nove meses!
Para iludir minha desgraça, estudo.
Intimamente sei que não me iludo. Semeadora terrível de defuntos,
Para onde vou (o mundo inteiro o nota) Contra a agressão dos teus contrastes juntos
Nos meus olhares fúnebres, carrego A besta, que em mim dorme, acorda em berros;
A indiferença estúpida de um cego Acorda, e após gritar a última injúria,
E o ar indolente de um chinês idiota! Chocalha os dentes com medonha fúria
Como se fosse o atrito de dois ferros!
A passagem dos séculos me assombra.
Para onde irá correndo minha sombra Pois bem! Chegou minha hora de vingança.
Nesse cavalo de eletricidade?! Tu mataste o meu tempo de criança
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem: E de segunda-feira até domingo,
- Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem? Amarrado no horror de tua rede,
E parece-me um sonho a realidade. Deste-me fogo quando eu tinha sede...
Deixa-te estar, canalha, que eu me vingo!
Em vão com o grito do meu peito impreco!
Dos brados meus ouvindo apenas o eco, Súbito outra visão negra me espanta!
Eu torço os braços numa angústia douda Estou em Roma. É Sexta-feira Santa.
E muita vez, à meia-noite, rio A treva invade o obscuro orbe terrestre.
Sinistramente, vendo o verme frio No Vaticano, em grupos prosternados,
Que dá de comer a minha carne toda! Com as longas fardas rubras, os soldados
Guardam o corpo do Divino Mestre.
É a Morte - esta carnívora assanhada -
Serpente má de língua envenenada Como as estalactites da caverna,
Que tudo que acha no caminho, come... Cai no silêncio da Cidade Eterna
- Faminta e atra mulher que, a 1 de Janeiro, A água da chuva em largos fios grossos...
Sai para assassinar o mundo inteiro, De Jesus Cristo resta unicamente
E o mundo inteiro não lhe mata a fome! Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente
Sente vontade de abraçar-lhe os ossos!
Nesta sombria análise das cousas,
Corro. Arranco os cadáveres das lousas Não há ninguém na estrada da Ripetta.
E as suas partes podres examino... Dentro da Igreja de São Pedro, quieta,
Mas de repente, ouvindo um grande estrondo, As luzes funerais arquejam fracas...
Na podridão daquele embrulho hediondo O vento entoa cânticos de morte.
Reconheço assombrado o meu Destino! Roma estremece! Além, num rumor forte,
Recomeça o barulho das matracas.
Surpreendo-me, sozinho, numa cova.
Então meu desvario se renova... A desagregação da minha Idéia
Como que, abrindo todos os jazigos, Aumenta. Como as chagas da morféia
A Morte, em trajes pretos e amarelos, O medo, o desalento e o desconforto
Levanta contra mim grandes cutelos Paralisam-me os círculos motores.
E as baionetas dos dragões antigos! Na Eternidade, os ventos gemedores
Estão dizendo que Jesus é morto!
26
Não! Jesus não morreu! Vive na serra Não trago sobre a túnica fingida
Da Borborema, no ar de minha terra, As insígnias medonhas do infeliz
Na molécula e no átomo... Resume Como os falsos mendigos de Paris
A espiritualidade da matéria Na atra rua de Santa Margarida.
E ele é que embala o corpo da miséria O quadro de aflições que me consomem
E faz da cloaca uma urna de perfume. O próprio Pedro Américo não pinta...
Na agonia de tantos pesadelos Para pintá-lo, era preciso a tinta
Uma dor bruta puxa-me os cabelos. Feita de todos os tormentos do homem!
Desperto. É tão vazia a minha vida! Como um ladrão sentado numa ponte
No pensamento desconexo e falho Espera alguém, armado de arcabuz,
Trago as cartas confusas de um baralho Na ânsia incoercível de roubar a luz,
E um pedaço de cera derretida! Estou à espera de que o Sol desponte!
Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme. Bati nas pedras dum tormento rude
Eu, somente eu, com a minha dor enorme E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Os olhos ensangüento na vigília! Que eu penso que a Alegria é uma doença
E observo, enquanto o horror me corta a fala, E a Tristeza é minha única saúde.
O aspecto sepulcral da austera sala
E a impassibilidade da mobília. As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais,
Meu coração, como um cristal, se quebre; Viver na luz dos astros imortais,
O termômetro negue minha febre, Abraçado com todas as estrelas!
Torne-se gelo o sangue que me abrasa,
A Noite vai crescendo apavorante
Augusto dos Anjos

E eu me converta na cegonha triste


Que das ruínas duma casa assiste E dentro do meu peito, no combate,
Ao desmoronamento de outra casa! A Eternidade esmagadora bate
Numa dilatação exorbitante!
Ao terminar este sentido poema
Onde vazei a minha dor suprema E eu luto contra a universal grandeza
Tenho os olhos em lágrimas imersos... Na mais terrível desesperação
Rola-me na cabeça o cérebro oco. É a luta, é o prélio enorme, é a rebelião
Por ventura, meu Deus, estarei louco?! Da criatura contra a natureza!
-

Daqui por diante não farei mais versos.


Toda a Poesia

Para essas lutas uma vida é pouca


Inda mesmo que os músculos se esforcem;
ETERNA MÁGOA Os pobres braços do mortal se torcem
E o sangue jorra, em coalhos, pela boca.
O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste E muitas vezes a agonia é tanta
Para todos os séculos existe Que, rolando dos últimos degraus,
E nunca mais o seu pesar se apaga! O Hércules treme e vai tombar no caos
De onde seu corpo nunca mais levanta!
Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste. É natural que esse Hércules se estorça,
Quer resistir, e quanto mais resiste E tombe para sempre nessas lutas,
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga. Estrangulado pelas rodas brutas
Do mecanismo que tiver mais força.
Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim, não cabe Ah! Por todos os séculos vindouros
Na sua vida, é que essa mágoa infinda Há de travar-se essa batalha vã
Do dia de hoje contra o de amanhã,
Transpõe a vida do seu corpo inerme; Igual à luta dos cristãos e mouros!
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda! Sobre histórias de amor o interrogar-me
É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
QUEIXAS NOTURNAS Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem há mulher talvez capaz de amar-me.
Quem foi que viu a minha Dor chorando?! O amor tem favos e tem caldos quentes
Saio. Minh’alma sai agoniada. E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;
Andam monstros sombrios pela estrada O coração do Poeta é um hospital
E pela estrada, entre estes monstros, ando! Onde morreram todos os doentes.
27
Hoje é amargo tudo quanto eu gosto; Até que dia o intoxicado aroma
A bênção matutina que recebo... Das paixões torpes sorverei contente?
E é tudo: o pão que como, a água que bebo, E os dias correrão eternamente?!
O velho tamarindo a que me encosto! E eu nunca sairei desta Sodoma?!
Vou enterrar agora a harpa boêmia À proporção que a minha insônia aumenta
Na atra e assombrosa solidão feroz Hieróglifos e esfinges interrogo...
Onde não cheguem o eco duma voz Mas, triunfalmente, nos céus altos, logo
E o grito desvairado da blasfêmia! Toda a alvorada esplêndida se ostenta.
Que dentro de minh’alma americana Vagueio pela Noite decaída...
Não mais palpite o coração - esta arca, No espaço a luz de Aldebarã e de Árgus
Este relógio trágico que marca Vai projetando sobre os campos largos
Todos os atos da tragédia humana! O derradeiro fósforo da Vida.
Seja esta minha queixa derradeira O Sol, equilibrando-se na esfera,
Cantada sobre o túmulo de Orfeu; Restitui-me a pureza da hematose
Seja este, enfim, o último canto meu E então uma interior metamorfose
Por esta grande noite brasileira! Nas minhas arcas cerebrais se opera.
Melancolia! Estende-me a tu’asa! O odor da margarida e da begônia
És a árvore em que devo reclinar-me... Subitamente me penetra o olfato...
Se algum dia o Prazer vier procurar-me Aqui, neste silêncio e neste mato,
Dize a este monstro que eu fugi de casa! Respira com vontade a alma campônia!
Grita a satisfação na alma dos bichos.
INSÔNIA Incensa o ambiente o fumo dos cachimbos.
As árvores, as flores, os corimbos,
Noite. Da Mágoa o espírito noctâmbulo Recordam santos nos seus próprios nichos.
Passou de certo por aqui chorando!
Assim, em mágoa, eu também vou passando Com o olhar a verde periferia abarco.
Sonâmbulo... sonâmbulo... sonâmbulo... Estou alegre. Agora, por exemplo,
Cercado destas árvores, contemplo
Que voz é esta que a gemer concentro As maravilhas reais do meu Pau d’Arco!
No Meu ouvido e que do meu ouvido
Como um bemol e como um sustenido Cedo virá, porém, o funerário,
Rola impetuosa por meu peito adentro?! Atro dragão da escura noite, hedionda,
Em que o Tédio, batendo na alma, estronda
- Por que é que este gemido me acompanha?! Como um grande trovão extraordinário.
Mas dos meus olhos no sombrio palco
Súbito surge como um catafalco Outra vez serei pábulo do susto
Uma cidade ao mapa-múndi estranha. E terei outra vez de, em mágoa imerso,
Sacrificar-me por amor do Verso
A dispersão dos sonhos vagos reúno. No meu eterno leito de Procusto!
Desta cidade pelas ruas erra
A procissão dos Mártires da Terra
Desde os Cristãos até Giordano Bruno! BARCAROLA
Vejo diante de mim Santa Francisca Cantam nautas, choram flautas
Que com o cilício as tentações suplanta, Pelo mar e pelo mar
E invejo o sofrimento desta Santa, Uma sereia a cantar
Em cujo olhar o Vício não faísca! Vela o Destino dos nautas.
Se eu pudesse ser puro! Se eu pudesse, Espelham-se os esplendores
Depois de embebedado deste vinho, Do céu, em reflexos, nas
Sair da vida puro como o arminho Águas, fingindo cristais
Que os cabelos dos velhos embranquece! Das mais deslumbrantes cores.
Por que cumpri o universal ditame?! Em fulvos filões dourados
Pois se eu sabia onde morava o Vício, Cai a luz dos astros por
Por que não evitei o precipício Sobre o marítimo horror
Estrangulando minha carne infame?! Como globos estrelados.

28
Lá onde as rochas se assentam
Vista de luto o Universo
Fulguram como outros sóis
E Deus se enlute no Céu!
Os flamívomos faróis
Mais um poeta que morreu,
Que os navegantes orientam.
Mais um coveiro do Verso!
Vai uma onda, vem outra onda
Cantam nautas, choram flautas
E nesse eterno vaivém
Pelo mar e pelo mar
Coitadas! não acham quem,
Uma sereia a cantar
Quem as esconda, as esconda...
Vela o Destino dos nautas!
Alegoria tristonha
Do que pelo Mundo vai! TRISTEZAS DE UM QUARTO
Se um sonha e se ergue, outro cai;
Se um cai, outro se ergue e sonha. MINGUANTE
Mas desgraçado do pobre Quarto Minguante! E, embora a lua o aclare,
Que em meio da Vida cai! Este Engenho Pau d’Arco é muito triste...
Esse não volta, esse vai Nos engenhos da várzea não existe
Para o túmulo que o cobre. Talvez um outro que se lhe equipare!
Vagueia um poeta num barco. Do observatório em que eu estou situado
O Céu, de cima, a luzir A lua magra, quando a noite cresce,
Como um diamante de Ofir Vista, através do vidro azul, parece
Imita a curva de um arco. Um paralelepípedo quebrado!
A Lua - globo de louça - O sono esmaga o encéfalo do povo.
Augusto dos Anjos

Surgiu, em lúcido véu. Tenho 300 quilos no epigastro...


Cantam! Os astros do Céu Dói-me a cabeça. Agora a cara do astro
Ouçam e a Lua Cheia ouça! Lembra a metade de uma casca de ovo.
Ouça do alto a Lua Cheia Diabo! não ser mais tempo de milagre!
Que a sereia vai falar... Para que esta opressão desapareça
Haja silêncio no mar Vou amarrar um pano na cabeça,
Para se ouvir a sereia. Molhar a minha fronte com vinagre.
-
Toda a Poesia

Que é que ela diz?! Será uma Aumentam-se-me então os grandes medos.
História de amor feliz? O hemisfério lunar se ergue e se abaixa
Não! O que a sereia diz Num desenvolvimento de borracha,
Não é história nenhuma. Variando à ação mecânica dos dedos!
É como um requiem profundo Vai-me crescendo a aberração do sonho.
De tristíssimos bemóis... Morde-me os nervos o desejo doudo
Sua voz é igual à voz De dissolver-me, de enterrar-me todo
Das dores todas do mundo. Naquele semicírculo medonho!
"Fecha-te nesse medonho Mas tudo isto é ilusão de minha parte!
"Reduto de Maldição, Quem sabe se não é porque não saio
"Viajeiro da Extrema-Unção, Desde que, 6ª feira, 3 de maio,
"Sonhador do último sonho! Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!
"Numa redoma ilusória A lâmpada a estirar línguas vermelhas
"Cercou-te a glória falaz, Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,
"Mas nunca mais, nunca mais Como um degenerado psicopata
"Há de cercar-te essa glória! Eis-me a contar o número das telhas!
"Nunca mais! Sê, porém, forte. - Uma, duas, três, quatro... E aos tombos, tonta
"O poeta é como Jesus! Sinto a cabeça e a conta perco; e, em suma,
"Abraça-te à tua Cruz A conta recomeço, em ânsias: - Uma...
"E morre, poeta da Morte!" Mas novamente eis-me a perder a conta!
- E disse e porque isto disse Sucede a uma tontura outra tontura.
O luar no Céu se apagou... - Estarei morto?! E a esta pergunta estranha
Súbito o barco tombou Reponde a Vida - aquela grande aranha
Sem que o poeta o pressentisse! Que anda tecendo a minha desventura! -
29
A luz do quarto diminuindo o brilho
Segue todas as fases de um eclipse... Entretanto, passei o dia inquieto,
Começo a ver coisas de Apocalipse A ouvir, nestes bucólicos retiros,
No triângulo escaleno do ladrilho! Toda a salva fatal de 21 tiros
Deito-me enfim. Ponho o chapéu num gancho. Que festejou os funerais de Hamleto!
Cinco lençóis balançam numa corda, Ah! Minha ruína é pior do que a de Tebas!
Mas aquilo mortalhas me recorda, Quisera ser, numa última cobiça,
E o amontoamento dos lençóis desmancho. A fatia esponjosa de carniça
Vêm-me à imaginação sonhos dementes. Que os corvos comem sobre as jurubebas!
Acho-me, por exemplo, numa festa... Porque, longe do pão com que me nutres
Tomba uma torre sobre a minha testa, Nesta hora, oh! Vida em que a sofrer me exortas
Caem-me de uma só vez todos os dentes! Eu estaria como as bestas mortas
Então dois ossos roídos me assombraram... Pendurado no bico dos abutres!
- "Por ventura haverá quem queira roer-nos?!
Os vermes já não querem mais comer-nos MISTÉRIOS DE UM FÓSFORO
E os formigueiros já nos desprezaram".
Pego de um fósforo. Olho-o. Olho-o ainda. Risco-o
Figuras espectrais de bocas tronchas Depois. E o que depois fica e depois
Tornam-me o pesadelo duradouro... Resta é um ou, por outra, é mais de um, são dois
Choro e quero beber a água do choro Túmulos dentro de um carvão promíscuo.
Com as mãos dispostas à feição de conchas.
Dois são, porque um, certo, é do sonho assíduo
Tal uma planta aquática submersa, Que a individual psique humana tece e
Antegozando as últimas delícias O outro é o do sonho altruístico da espécie
Mergulho as mãos - vis raízes adventícias - Que é o substractum dos sonhos do indivíduo!
No algodão quente de um tapete persa.
E exclamo, ébrio, a esvaziar báquicos odres:
Por muito tempo rolo no tapete, - "Cinza, síntese má da podridão,
Súbito me ergo. A lua é morta. Um frio "Miniatura alegórica do chão,
Cai sobre o meu estômago vazio "Onde os ventres maternos ficam podres;
Como se fosse um copo de sorvete!
"Na tua clandestina e erma alma vasta,
A alta frialdade me insensibiliza; "Onde nenhuma lâmpada se acende,
O suor me ensopa. Meu tormento é infindo... "Meu raciocínio sôfrego surpreende
Minha família ainda está dormindo "Todas as formas da matéria gasta!"
E eu não posso pedir outra camisa!
Raciocinar! Aziaga contingência!
Abro a janela. Elevam-se fumaças Ser quadrúpede! Andar de quatro pés
Do engenho enorme. A luz fulge abundante É mais do que ser Cristo e ser Moisés
E em vez do sepulcral Quarto Minguante Porque é ser animal sem ter consciência!
Vi que era o sol batendo nas vidraças.
Bêbedo, os beiços na ânfora ínfima, harto,
Pelos respiratórios tênues tubos Mergulho, e na ínfima ânfora, harto, sinto
Dos poros vegetais, no ato da entrega O amargor específico do absinto
Do mato verde, a terra resfolega E o cheiro animalíssimo do parto!
Estrumada, feliz, cheia de adubos.
E afogo mentalmente os olhos fundos
Côncavo, o céu, radiante e estriado, observa Na amorfia da cítula inicial,
A universal criação. Broncos e feios, De onde, por epigênese geral,
Vários reptis cortam os campos, cheios Todos os organismos são oriundos.
Dos tenros tinhorões e da úmida erva.
Presto, irrupto, através ovóide e hialino
Babujada por baixos beiços brutos, Vidro, aparece, amorfo e lúrido, ante
No húmus feraz, hierática, se ostenta Minha massa encefálica minguante
A monarquia da árvore opulenta Todo o gênero humano intra-uterino!
Que dá aos homens o óbolo dos frutos.
É o caos da avita víscera avarenta
De mim diverso, rígido e de rastos - Mucosa nojentíssima de pus,
Com a solidez do tegumento sujo A nutrir diariamente os fetos nus
Sulca, em diâmetro, o solo um caramujo Pelas vilosidades da placenta! -
Naturalmente pelos mata-pastos.
30
Certo, o arquitetural e íntegro aspecto
Do mundo o mesmo inda é, que, ora, o que nele
Morre, sou eu, sois vós, é todo aquele O LAMENTO DAS COISAS
Que vem de um ventre inchado, ínfimo e infecto! Triste, a escutar, pancada por pancada,
É a flor dos genealógicos abismos A sucessividade dos segundos,
- Zooplasma pequeníssimo e plebeu, Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos,
De onde o desprotegido homem nasceu O choro da Energia abandonada!
Para a fatalidade dos tropismos. - É a dor da Força desaproveitada
Depois, é o céu abscôndito do Nada, - O cantochão dos dínamos profundos,
É este ato extraordinário de morrer Que, podendo mover milhões de mundos,
Que há de, na última hebdômada, atender Jazem ainda na estática do Nada!
Ao pedido da célula cansada! É o soluço da forma ainda imprecisa...
Um dia restará, na terra instável, Da transcendência que se não realiza...
De minha antropocêntrica matéria Da luz que não chegou a ser lampejo...
Numa côncava xícara funérea E é em suma, o subconsciente aí formidando
Uma colher de cinza miserável! Da Natureza que parou, chorando,
Abro na treva os olhos quase cegos. No rudimentarismo do Desejo!
Que mão sinistra e desgraçada encheu
Os olhos tristes que meu Pai me deu O MEU NIRVANA
De alfinetes, de agulhas e de pregos?!
No alheamento da obscura forma humana,
Pesam sobre o meu corpo oitenta arráteis! De que, pensando, me desencarcero,
Augusto dos Anjos

Dentro um dínamo déspota, sozinho, Foi que eu, num grito de emoção, sincero
Sob a morfologia de um moinho, Encontrei, afinal, o meu Nirvana!
Move todos os meus nervos vibráteis.
Nessa manumissão schopenhauereana,
Então, do meu espírito, em segredo, Onde a Vida do humano aspecto fero
Se escapa, dentre as tênebras, muito alto, Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na síntese acrobática de um salto, Na imanência da Idéia Soberana!
O espectro angulosíssimo do Medo!
Destruída a sensação que oriunda fora
-

Em cismas filosóficas me perco Do tato - ínfima antena aferidora


Toda a Poesia

E vejo, como nunca outro homem viu, Destas tegumentárias mãos plebéias -
Na anfigonia que me produziu
Nonilhões de moléculas de esterco. Gozo o prazer, que os anos não carcomem,
De haver trocando a minha forma de homem
Vida, mônada vil, cósmico zero, Pela imortalidade das Idéias!
Migalha de albumina semifluida,
Que fez a boca mística do druida
E a língua revoltada de Lutero; CAPUT IMMORTALE
Teus gineceus prolíficos envolvem Ad poetam
Cinza fetal!... Basta um fósforo só Na dinâmica aziaga das descidas,
Para mostrar a incógnita de pó, Aglomeradamente e em turbilhão
Em que todos os seres se resolvem! Solucem dentro do Universo ancião,
Ah! Maldito o conúbio incestuoso Todas as urbes siderais vencidas!
Dessas afinidades eletivas, Morra o éter. Cesse a luz. Parem as vidas.
De onde quimicamente tu derivas, Sobre a pancosmológica exaustão
Na aclamação simbiótica do gozo! Reste apenas o acervo árido e vão
O enterro de minha última neurona Das muscularidades consumidas!
Desfila... E eis-me outro fósforo a riscar. Ainda assim, a animar o cosmos ermo,
E esse acidente químico vulgar Morto o comércio físico nefando,
Extraordinariamente me impressiona! Oh! Nauta aflito do Subliminal,
Mas minha crise artrítica não tarda. Como a última expressão da Dor sem termo,
Adeus! Que eu vejo enfim, com a alma vencida, Tua cabeça há de ficar vibrando
Na abjeção embriológica da vida Na negatividade universal!
O futuro de cinza que me aguarda!

31
APÓSTROFE À CARNE SUPRÊME CONVULSION
Quando eu pego nas carnes do meu rosto, O equilíbrio do humano pensamento
Pressinto o fim da orgânica batalha: Sofre também a súbita ruptura,
- Olhos que o húmus necrófago estraçalha, Que produz muita vez, na noite escura,
Diafragmas, decompondo-se, ao sol posto... A convulsão meteórica do vento.

E o Homem - negro e heteróclito composto, E a alma o obnóxio quietismo sonolento


Onde a alva flama psíquica trabalha, Rasga; e, opondo-se à Inércia, é a essência pura,
Desagrega-se e deixa na mortalha É a síntese, é o transunto, é a abreviatura
O tato, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto! De todo o ubiqüitário Movimento!

Carne, feixe de mônadas bastardas, Sonho, - libertação do homem cativo -


Conquanto em flâmeo fogo efêmero ardas, Ruptura do equilíbrio subjetivo,
A dardejar relampejantes brilhos, Ah! foi teu beijo convulsionador

Dói-me ver, muito embora a alma te acenda, Que produziu este contraste fundo
Em tua podridão a herança horrenda, Entre a abundância do que eu sou, no Mundo,
Que eu tenho de deixar para os meus filhos! E a nada do meu homem interior!

LOUVOR À UNIDADE A UM GÉRMEN


"Escafandros, arpões, sondas e agulhas Começaste a existir, geléia crua,
"Debalde aplicas aos heterogêneos E hás de crescer, no teu silêncio, tanto
"Fenômenos, e, há inúmeros milênios, Que, é natural, ainda algum dia, o pranto
"Num pluralismo hediondo o olhar mergulhas! Das tuas concreções plásmicas flua!

"Une, pois, a irmanar diamantes e hulhas, A água, em conjugação com a terra nua,
"Com essa intuição monística dos gênios, Vence o granito, deprimindo-o... O espanto
"À hirta forma falaz do aere perennius Convulsiona os espíritos, e entanto,
"A transitoriedade das fagulhas!" Teu desenvolvimento continua!

- Era a estrangulação, sem retumbância, Antes, geléia humana, não progridas


Da multimilenária dissonância E em retrogradações indefinidas,
Que as harmonias siderais invade... Volvas à antiga inexistência calma!...

Era, numa alta aclamação, sem gritos, Antes o Nada, oh! gérmen, que ainda haveres
O regresso dos átomos aflitos De atingir, como o gérmen de outros seres,
Ao descanso perpétuo da Unidade! Ao supremo infortúnio de ser alma!

O PÂNTANO NATUREZA ÍNTIMA


Podem vê-lo, sem dor, meus semelhantes!... Ao filósofo Farias Brito
Mas, para mim que a Natureza escuto, Cansada de observar-se na corrente
Este pântano é o túmulo absoluto, Que os acontecimentos refletia,
De todas as grandezas começantes! Reconcentrando-se em si mesma, um dia,
Larvas desconhecidas de gigantes A Natureza olhou-se interiormente!
Sobre o seu leito de peçonha e luto Baldada introspecção! Noumenalmente
Dormem tranqüilamente o sono bruto O que Ela, em realidade, ainda sentia
Dos superorganismos ainda infantes! Era a mesma imortal monotonia
Em sua estagnação arde uma raça, De sua face externa indiferente!
Tragicamente, à espera de quem passa E a Natureza disse com desgosto:
Para abrir-lhe, às escâncaras, a porta... "Terei somente, porventura, rosto?!
E eu sinto a angústia dessa raça ardente "Serei apenas mera crusta espessa?!
Condenada a esperar perpetuamente "Pois é possível que Eu, causa do Mundo,
No universo esmagado da água morta! "Quanto mais em mim mesma me aprofundo,
"Menos interiormente me conheça?!

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A FLORESTA Navio para o qual todos os portos
Estão fechados, urna de ovos mortos,
Em vão com o mundo da floresta privas!... Chão de onde uma só planta não rebenta,
- Todas as hermenêuticas sondagens, Ei-la, de bruços, bêbeda de gozo
Ante o hieroglifo e o enigma das folhagens, Saciando o geotropismo pavoroso
São absolutamente negativas! De unir o corpo à terra famulenta!
Araucárias, traçando arcos de ogivas, Nesse espolinhamento repugnante
Bracejamentos de álamos selvagens, O esqueleto irritado da bacante
Como um convite para estranhas viagens, Estrala... Lembra o ruído harto azorrague
Tornam todas as almas pensativas! A vergastar ásperos dorsos grossos.
Há uma força vencida nesse mundo! E é aterradora essa alegria de ossos
Todos o organismo florestal profundo Pedindo ao sensualismo que os esmague!
É dor viva, trancada num disfarce... É o pseudo-regozijo dos eunucos
Vivem só, nele, os elementos broncos, Por natureza, dos que são caducos
- As ambições que se fizeram troncos, Desde que a Mãe-Comum lhes deu início...
Porque nunca puderam realizar-se! É a dor profunda da incapacidade
Que, pela própria hereditariedade
A lei da seleção disfarça em Vício!
A MERETRIZ
É o júbilo aparente da alma quase
A rua dos destinos desgraçados A eclipsar-se, no horror da ocídua fase
Faz medo. O Vício estruge. Ouvem-se os brados Esterilizadora de órgãos... É o hino
Da danação carnal... Lúbrica, à lua, Da matéria incapaz, filha do inferno,
Augusto dos Anjos

Na sodomia das mais negras bodas Pagando com volúpia o crime eterno
Desarticula-se, em coréas doudas, De não ter sido fiel ao seu destino!
Uma mulher completamente nua!
É o Desespero que se faz bramido
É a meretriz que, de cabelos ruivos, De anelo animalíssimo incontido,
Bramando, ébria e lasciva, hórridos uivos Mais que a vaga incoercível n água oceânea...
Na mesma esteira pública, recebe, É a Carne que, já morta essencialmente,
Entre farraparias e esplendores Para a Finalidade Transcendente
O eretismo das classes superiores
-

Gera o prodígio anímico da Insânia!


Toda a Poesia

E o orgasmo bastardíssimo da plebe!


Nas frias antecâmaras do Nada
É ela que, aliando, à luz do olhar protervo, O fantasma da fêmea castigada,
O indumento vilíssimo do servo Passa agora ao clarão da lua acesa
Ao brilho da augustal toga pretexta, E é seu corpo expiatório, alvo e desnudo
Sente, alta noite, em contorções sombrias, A síntese eucarística de tudo
Na vacuidade das entranhas frias Que não se realizou na Natureza!
O esgotamento intrínseco da besta!
Antigamente, aos tácitos apelos
É ela que, hirta, a arquivar credos desfeitos, Das suas carnes e dos seus cabelos,
Com as mãos chagadas, espremendo os peitos, Na óptica abreviatura de um reflexo,
Reduzidos, por fim, a âmbulas moles, Fulgia, em cada humana nebulosa,
Sofre em cada molécula a angústia alta Toda a sensualidade tempestuosa
De haver secado, como o estepe, à falta Dos apetites bárbaros do Sexo!
Da água criadora que alimenta as proles!
O atavismo das raças sibaritas,
É ela que, arremessada sobre o rude Criando concupiscências infinitas
Despenhadeiro da decrepitude, Como eviterno lobo insatisfeito;
Na vizinhança aziaga dos ossuários Na homofagia hedionda que o consome,
Representa, através os meus sentidos, Vinha saciar a milenária fome
A escuridão dos gineceus falidos Dentro das abundâncias do seu leito!
E a desgraça de todos os ovários!
Toda a libidinagem dos mormaços
Irrita-se-lhe a carne à meia-noite. Americanos fluía-lhe dos braços,
Espicaça-a ignomínia, excita-a o açoite Irradiava-se-lhe, hírcica, das veias
Do incêndio que lhe inflama a língua espúria. E em torrencialidades quentes e úmidas,
E a mulher, funcionária dos instintos, Gorda a escorrer-lhe das artérias túmidas
Com a roupa amarfanhada e os beiços tintos, Lembrava um transbordar de ânforas cheias.
Gane instintivamente de luxúria!
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A hora da morte acende-lhe o intelecto É a obsessão de ver sangue, é o instinto horrendo
E à úmida habitação do vício abjecto De subir, na ordem cósmica, descendo
Afluem milhões de sóis, rubros, radiando... À irracionalidade primitiva...
Resíduos memoriais tornam-se luzes E a Natureza que, no seu arcano,
Fazem-se idéias e ela vê as cruzes Precisa de encharcar-se em sangue humano
Do seu martirológio miserando! Para mostrar aos homens que está viva!
Inícios atrofiados de ética, ânsia
De perfeição, sonhos de culminância, O SARCÓFAGO
Libertos da ancestral modorra calma,
Saem da infância embrionária e erguem-se, adultos, Senhor da alta hermenêutica do Fado
Lançando a sombra horrível dos seus vultos Perlustro o atrium da Morte... É frio o ambiente
Sobre a noite fechada daquela alma! E a chuva corta inexoravelmente
O dorso de um sarcófago molhado!
É o sublevantamento coletivo
De um mundo inteiro que aparece vivo, Ah! Ninguém ouve o soluçante brado
Numa cenografia de diorama, De dor profunda, acérrima e latente,
Que, momentaneamente luz fecunda, Que o sarcófago, ereto e imóvel, sente
Brilha na prostituta moribunda Em sua própria sombra sepultado!
Como a fosforescência sobre a lama! Dói-lhe (quem sabe?!) essa grandeza horrível,
É a visita alarmante do que outrora Que em toda a sua máscara se expande,
Na abundância prospérrima da aurora, À humana comoção impondo-a, inteira...
Pudera progredir, talvez, decerto, Dói-lhe, em suma, perante o Incognoscível,
Mas que, adstrito a inferior plasma inconsútil, Essa fatalidade de ser grande
Ficou rolando, como aborto inútil, Para guardar unicamente poeira!
Como o ...... do deserto!
Vede! A prostituição ofídia aziaga HINO À DOR
Cujo tóxico instila a infâmia, e a estraga
Na delinqüência...... impune, Dor, saúde dos seres que se fanam,
Agarrou-se-lhe aos seios impudicos Riqueza de alma, psíquico tesouro,
Como o abraço mortífero do Ficus Alegria das glândulas do choro
Sugando a seiva da árvore a que se une! De onde todas as lágrimas emanam...

Enroscou-se-lhe aos abraços com tal gosto, És suprema! Os meus átomos se ufanam
Mordeu-lhe a boca e o rosto... De pertencer-te, oh! Dor, ancoradouro
Ser meretriz depois do túmulo! A alma Dos desgraçados, sol do cérebro, ouro
Roubada a hirta quietude da urbe calma De que as próprias desgraças se engalanam!

Onde se extinguem todos os escolhos: Sou teu amante! Ardo em teu corpo abstrato.
E, condenada, ao trágico ditame, Com os corpúsculos mágicos do tato
Oferecer-se à bicharia infame Prendo a orquestra de chamas que executas...
Com a terra do sepulcro a encher-lhe os olhos! E, assim, sem convulsão que me alvoroce,
Sentir a língua aluir-se-lhe na boca Minha maior ventura é estar de posse
E com a cabeça sem cabelos, oca... De tuas claridades absolutas!
Na horrorosa avulsão da forma nívea
Dizer ainda palavras de lascívia... ULTIMA VISIO
Quando o homem, resgatado da cegueira
GUERRA Vir Deus num simples grão de argila errante,
Guerra é o esforço, é inquietude, é ânsia, é Terá nascido nesse mesmo instante
transporte... A mineralogia derradeira!
É a dramatização sangrenta e dura A impérvia escuridão obnubilante
Da avidez com que o Espírito procura Há de cessar! Em sua glória inteira
Ser perfeito, ser máximo, ser forte! Deus resplandecerá dentro da poeira
É a Subconsciência que se transfigura Como um gasofiláceo de diamante!
Em volição conflagradora... É a coorte Nessa última visão já subterrânea,
Das raças todas, que se entrega à morte Um movimento universal de insânia
Para a felicidade da Criatura! Arrancará da insciência o homem precito...
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A Verdade virá das pedras mortas
E o homem compreenderá todas as portas
Que ele ainda tem de abrir para o Infinito!
A FOME E O AMOR
AOS MEUS FILHOS Fome! E, na ânsia voraz que, ávida, aumenta,
Receando outras mandíbulas e esbangem,
Na intermitência da vital canseira, Os dentes antropófagos que rangem,
Sois vós que sustentais (Força Alta exige-o...) Antes da refeição sanguinolenta!
Com o vosso catalítico prestígio,
Meu fantasma de carne passageira! Amor! E a satiríase sedenta,
Rugindo, enquanto as almas se confrangem,
Vulcão da bioquímica fogueira Todas as danações sexuais que abrangem
Destruiu-me todo o orgânico fastígio... A apolínica besta famulenta!
Dai-me asas, pois, para o último remígio,
Dai-me alma, pois, para a hora derradeira! Ambos assim, tragando a ambiência vasta,
No desembestamento que os arrasta,
Culminâncias humanas ainda obscuras, Superexcitadíssimos, os dois
Expressões do universo radioativo,
Íons emanados do meu próprio ideal, Representam, no ardor dos seus assomos
A alegoria do que outrora fomos
Benditos vós, que, em épocas futuras, E a imagem bronca do que inda hoje sois!
Haveis de ser no mundo subjetivo,
Minha continuidade emocional!
HOMO INFIMUS
A DANÇA DA PSIQUE Homem, carne sem luz, criatura cega,
Augusto dos Anjos

Realidade geográfica infeliz,


A dança dos encéfalos acesos O Universo calado te renega
Começa. A carne é fogo. A alma arde. A espaços E a tua própria boca te maldiz!
As cabeças, as mãos, os pés e os braços
Tombam, cedendo à ação de ignotos pesos! O nôumeno e o fenômeno, o alfa e o omega
Amarguram-te. Hebdômadas hostis
É então que a vaga dos instintos presos Passam... Teu coração se desagrega,
- Mãe de esterilidades e cansaços - Sangram-te os olhos, e, entretanto, ris!
Atira os pensamentos mais devassos
-

Fruto injustificável dentre os frutos,


Toda a Poesia

Contra os ossos cranianos indefesos.


Montão de estercorária argila preta,
Subitamente a cerebral coréia Excrescência de terra singular.
Pára. O cosmos sintético da Idéia
Surge. Emoções extraordinárias sinto... Deixa a tua alegria aos seres brutos,
Porque, na superfície do planeta,
Arranco do meu crânio as nebulosas. Tu só tens um direito: - o de chorar!
E acho um feixe de forças prodigiosas
Sustentando dois monstros: a alma e o instinto!
MINHA FINALIDADE
O POETA DO HEDIONDO Turbilhão teleológico incoercível,
Que força alguma inibitória acalma,
Sofro aceleradíssimas pancadas Levou-me o crânio e pôs-lhe dentro a palma
No coração. Ataca-me a existência Dos que amam apreender o Inapreensível!
A mortificadora coalescência
Das desgraças humanas congregadas! Predeterminação imprescriptível
Oriunda da infra-astral Substância calma
Em alucinatórias cavalgadas, Plasmou, aparelhou, talhou minha alma
Eu sinto, então, sondando-me a consciência Para cantar de preferência o Horrível!
A ultra-inquisitorial clarividência
De todas as neuronas acordadas! Na canonização emocionante,
Da dor humana, sou maior que Dante,
Quando me dói no cérebro esta sonda! - A águia dos latifúndios florentinos!
Ah! Certamente eu sou a mais hedionda
Generalização do Desconforto... Sistematizo, soluçando, o Inferno...
E trago em mim, num sincronismo eterno
Eu sou aquele que ficou sozinho A fórmula de todos os destinos!
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!
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NUMA FORJA Perpetuamente às mesmas formas presos,
Agarrados à inércia do Inorgânico
De inexplicáveis ânsias prisioneiro
Escravos da Coesão!
Hoje entrei numa forja, ao meio-dia.
Trinta e seis graus à sombra. O éter possuía Repuxavam-me a boca hórridos trismos
A térmica violência de um braseiro. E eu sentia, afinal,
Dentro, a cuspir escórias Essa angústia alarmante
De fúlgida limalha Própria de alienação raciocinante,
Dardejando centelhas transitórias, Cheia de ânsias e medos
No horror da metalúrgica batalha Com crispações nos dedos
O ferro chiava e ria! Piores que os paroxismos
Da árvore que a atmosfera ultriz destronca.
Ria, num sardonismo doloroso
A ouvir todo esse cosmos potencial,
De ingênita amargura,
Preso aos mineralógicos abismos
Da qual, bruta, provinha
Angustiado e arquejante
Como de um negro cáspio de água impura
A debater-se na estreiteza bronca
A multissecular desesperança
De um bloco de metal!
De sua espécie abjeta
Condenada a uma estática mesquinha! Como que a forja tétrica
Num estridor de estrago
Ria com essa metálica tristeza
Executava, em lúgubre crescendo
De ser na Natureza,
A antífona assimétrica
Onde a Matéria avança
E o incompreensível wagnerismo aziago
E a Substância caminha
De seu destino horrendo!
Aceleradamente para o gozo
Da integração completa, Ao clangor de tais carmes de martírio
Uma consciência eternamente obscura! Em cismas negras eu recaio imerso
Buscando no delírio
O ferro continuava a chiar e a rir.
De uma imaginação convulsionada
E eu nervoso, irritado,
Mais revolta talvez de que a onda atlântica,
Quase com febre, a ouvir
Compreender a semântica
Cada átomo de ferro
Dessa aleluia bárbara gritada
Contra a incude esmagado
Às margens glacialíssimas do Nada
Sofrer, berrar, tinir,
Pelas coisas mais brutas do Universo!
Compreendia por fim que aquele berro
À substância inorgânica arrancado
Era a dor do minério castigado NOLI ME TANGERE
Na impossibilidade de reagir!
A exaltação emocional do Gozo,
Era um cosmos inteiro sofredor, O Amor, a Glória, a Ciência, a Arte e a Beleza
Cujo negro profundo Servem de combustível à ira acesa
Astro nenhum exorna Das tempestades do meu ser nervoso!
Gritando na bigorna
Eu sou, por conseqüência, um ser monstruoso!
Asperamente a sua própria dor!
Em minha arca encefálica indefesa
Era, erguido do pó,
Choram as forças más da Natureza
Inopinadamente
Sem possibilidades de repouso!
Para que à vida quente
Da sinergia cósmica desperte, Agregados anômalos malditos
A ansiedade de um mundo Despedaçam-se, mordem-se, dão gritos
Doente de ser inerte, Nas minhas camas cerebrais funéreas...
Cansado de estar só!
Ai! Não toqueis em minhas faces verdes,
Era a revelação
Sob pena, homens felizes, de sofrerdes
De tudo que ainda dorme
A sensação de todas as misérias!
No metal bruto ou na geléia informe
Do parto primitivo da Criação!
Era o ruído-clarão, O CANTO DOS PRESOS
- O ígneo jato vulcânico
Troa, a alardear bárbaros sons abstrusos,
Que, atravessando a absconsa cripta enorme
O epitalâmio da Suprema Falta,
De minha cavernosa subsconsciência,
Entoado asperamente, em voz muito alta,
Punha em clarividência
Pela promiscuidade dos reclusos!
Intramoleculares sóis acesos
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No wagnerismo desses sons confusos, Penetro, agarro, ausculto, apreendo, invado,
Em que o Mal se engrandece e o Ódio se exalta, Nos paroxismos da hiperestesia,
Uiva, à luz de fantástica ribalta, O Infinitésimo e o Indeterminado...
A ignomínia de todos os abusos!
Transponho ousadamente o átomo rude
É a prosódia do cárcere, é a partênea E, transmudado em rutilância fria,
Aterradoramente heterogênea Encho o Espaço com a minha plenitude!
Dos grandes transviamentos subjetivos...
É a saudade dos erros satisfeitos, CANTO DE ONIPOTÊNCIA
Que, não cabendo mais dentro dos peitos,
Cloto, Átropos, Tifon, Laquesis, Siva...
Se escapa pela boca dos cativos!
E acima deles, como um astro, a arder,
Na hiperculminação definitiva
ABERRAÇÃO O meu supremo e extraordinário Ser!
Na velhice automática e na infância, Em minha sobre-humana retentiva
(Hoje, ontem, amanhã e em qualquer era) Brilhavam, como a luz do amanhecer,
Minha hibridez é a súmula sincera A perfeição virtual tornada viva
Das defectividades da Substância. E o embrião do que podia acontecer!
Criando na alma a estesia abstrusa da ânsia, Por antecipação divinatória,
Como Belerofonte com a Quimera Eu, projetado muito além da História,
Mato o ideal; cresto o sonho; achato a esfera Sentia dos fenômenos o fim...
E acho odor de cadáver na fragrância!
A coisa em si movia-se aos meus brados
Chamo-me Aberração. Minha alma é um misto E os acontecimentos subjugados
Augusto dos Anjos

De anomalias lúgubres. Existo Olhavam como escravos para mim!


Como a cancro, a exigir que os sãos enfermem...
Teço a infâmia; urdo o crime; engendro o lodo MINHA ÁRVORE
E nas mudanças do Universo todo
Olha: É um triângulo estéril de ínvia estrada!
Deixo inscrita a memória do meu gérmen!
Como que a erva tem dor... Roem-na amarguras
Talvez humanas, e entre rochas duras
VÍTIMA DO DUALISMO Mostra ao Cosmos a face degradada!
-
Toda a Poesia

Ser miserável dentre os miseráveis Entre os pedrouços maus dessa morada


- Carrego em minhas células sombrias É que, às apalpadelas e às escuras,
Antagonismos irreconciliáveis Hão de encontrar as gerações futuras
e as mais opostas idiossincrasias! Só, minha árvore humana desfolhada!
Muito mais cedo do que imagináveis Mulher nenhuma afagará meu tronco!
Eis-vos, minha alma, enfim, dada às bravias Eu não me abalarei, nem mesmo ao ronco
Cóleras dos dualismos implacáveis Do furacão que, rábido, remoinha...
E à gula negra das antinomias!
Folhas e frutos, sobre a terra ardente
Psique biforme, o Céu e o inferno absorvo... Hão de encher outras árvores! Somente
Criação a um tempo escura e cor-de-rosa, Minha desgraça há de ficar sozinha!
Feita dos mais variáveis elementos,
Ceva-se em minha carne, como um corvo, ANSEIO
A simultaneidade ultramonstruosa
Quem sou eu, neste ergástulo das vidas
De todos os contrastes famulentos!
Danadamente, a soluçar de dor?!
- Trinta trilhões de células vencidas,
AO LUAR Nutrindo uma efeméride interior.
Quando, à noite, o Infinito se levanta Branda, entanto, a afagar tantas feridas,
À luz do luar, pelos caminhos quedos A áurea mão taumatúrgica do Amor
Minha tátil intensidade é tanta Traça, nas minhas formas carcomidas,
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos! A estrutura de um mundo superior!
Quebro a custódia dos sentidos tredos Alta noite, esse mundo incoerente
E a minha mão, dona, por fim, de quanta Essa elementaríssima semente
Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos, Do que hei de ser, tenta transpor o Ideal...
Todas as coisas íntimas suplanta!
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Grita em meu grito, alarga-se em meu hausto, No abstrato abismo equóreo, em que me inundo,
E, ai! como eu sinto no esqueleto exausto Sou eu que, revolvendo o ego profundo
Não poder dar-lhe vida material! E a escuridão dos cérebros medonhos,
Restituo triunfalmente à esfera calma
À MESA Todos os cosmos que circulam na alma
Sob a forma embriológica de sonhos!
Cedo à sofreguidão do estômago. É a hora
De comer. Coisa hedionda! Corro. E agora, II
Antegozando a ensangüentada presa, Treva e fulguração; sânie e perfume;
Rodeado pelas moscas repugnantes, Massa palpável e éter; desconforto
Para comer meus próprios semelhantes E ataraxia; feto vivo e aborto...
Eis-me sentado à mesa! - Tudo a unidade do meu ser resume!
Como porções de carne morta... Ai! Como Sou eu que, ateando da alma o ocíduo lume,
Os que, como eu, têm carne, com este assomo Apreendo, em cisma abismadora absorto,
Que a espécie humana em comer carne tem!... A potencialidade do que é morto
Como! E pois que a Razão me não reprime, E a eficácia prolífica do estrume!
Possa a terra vingar-se do meu crime
Comendo-me também. Ah! Sou eu que, transpondo a escarpa angusta
Dos limites orgânicos estreitos,
MÃOS Dentro dos quais recalco em vão minha ânsia,
Sinto bater na putrescível crusta
Há mãos que fazem medo Do tegumento que me cobre os peitos
Feias agregações pentagonais, Toda a imortalidade da Substância!
Umas, em sangue, a delinqüente natos,
Assinalados pelo mancinismo,
Pertencentes talvez... VERSOS A UM COVEIRO
Outras, negras, a farpas de rochedo Numerar sepulturas e carneiros,
Completamente iguais... Reduzir carnes podres a algarismos,
Mãos de linhas análogas a anfratos Tal é, sem complicados silogismos,
Que a Natureza onicriadora fez A aritmética hedionda dos coveiros!
Em contraposição e antagonismo
Às da estrela, às da neve, às dos cristais. Um, dois, três, quatro, cinco... Esoterismos
Da Morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,
Mãos que adquiriram olhos, pituitárias Na progressão dos números inteiros
Olfativas, tentáculos sutis A gênese de todos os abismos!
E à noite, vão cheirar, quebrando portas
O azul gasofiláceo silencioso Oh! Pitágoras da última aritmética,
Dos tálamos cristãos. Continua a contar na paz ascética
Mãos adúlteras, mãos mais sangüinárias Dos tábidos carneiros sepulcrais
E estupradoras do que os bisturis Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,
Cortando a carne em flor das crianças mortas. Porque, infinita como os próprios números,
Monstruosíssimas mãos, A tua conta não acaba mais!
Que apalpam e olham com lascívia e gozo
A pureza dos corpos infantis.
TREVAS
REVELAÇÃO Haverá, por hipótese, nas geenas
Luz bastante fulmínea que transforme
I Dentro da noite cavernosa e enorme
Escafandrista de insondado oceano Minhas trevas anímicas serenas?!
Sou eu que, aliando Buda ao sibarita, Raio horrendo haverá que as rasgue apenas?!
Penetro a essência plásmica infinita, Não! Porque, na abismal substância informe,
- Mãe promíscua do amor e do ódio insano! Para convulsionar a alma que dorme
Sou eu que, hirto, auscultando o absconso arcano, Todas as tempestades são pequenas!
Por um poder de acústica esquisita, Há de a Terra vibrar na ardência infinda
Ouço o universo ansioso que se agita Do éter em branca luz transubstanciado,
Dentro de cada pensamento humano! Rotos os nimbos maus que a obstruem a esmo...
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A própria Esfinge há de falar-vos ainda
E eu, somente eu, hei de ficar trancado
Na noite aterradora de mim mesmo! A NAU
A Heitor Lima
AS MONTANHAS
Sôfrega, alçando o hirto esporão guerreiro,
I Zarpa. A íngreme cordoalha úmida fica...
Das nebulosas em que te emaranhas Lambe-lhe a quilha a espúmea onda impudica
Levanta-te, alma, e dize-me, afinal, E ébrios tritões, babando, haurem-lhe o cheiro!
Qual é, na natureza espiritual, Na glauca artéria equórea ou no estaleiro
A significação dessas montanhas! Ergue a alta mastreação, que o Éter indica,
Quem não vê nas graníticas entranhas E estende os braços da madeira rica
A subjetividade ascensional Para as populações do mundo inteiro!
Paralisada e estrangulada, mal Aguarda-a ampla reentrância de angra horrenda,
Quis erguer-se a cumíadas tamanhas?! Pára e, a amarra agarrada à âncora, sonha!
Ah! Nesse anelo trágico de altura Mágoas, se as tem, subjugue-as ou disfarce-as...
Não serão as montanhas, porventura, E não haver uma alma que lhe entenda
Estacionadas, íngremes, assim, A angústia transoceânica medonha
Por um abortamento de mecânica, No rangido de todas as enxárcias!
A representação ainda inorgânica
De tudo aquilo que parou em mim?! VOLÚPIA IMORTAL
Augusto dos Anjos

II Cuidas que o genesíaco prazer,


Fome do átomo e eurítmico transporte
Agora, oh! deslumbrada alma, perscruta De todas as moléculas, aborte
O puerpério geológico interior, Na hora em que a nossa carne apodrecer?!
De onde rebenta, em contrações de dor,
Toda a sublevação da crusta hirsuta! Não! Essa luz radial, em que arde o Ser,
Para a perpetuação da Espécie forte,
No curso inquieto da terráquea luta Tragicamente, ainda depois da morte,
Quantos desejos férvidos de amor
-

Dentro dos ossos, continua a arder!


Não dormem, recalcados, sob o horror
Toda a Poesia

Dessas agregações de pedra bruta?! Surdos destarte a apóstrofes e brados,


Os nossos esqueletos descarnados,
Como nesses relevos orográficos, Em convulsivas contorções sensuais,
Inacessíveis aos humanos tráficos
Onde sóis, em semente, amam jazer, Haurindo o gás sulfídrico das covas,
Com essa volúpia das ossadas novas
Quem sabe, alma, se o que ainda não existe Hão de ainda se apertar cada vez mais!
Não vive em gérmen no agregado triste
Da síntese sombria do meu Ser?!
O FIM DAS COISAS
APOCALIPSE Pode o homem bruto, adstrito à ciência grave,
Arrancar, num triunfo surpreendente,
Minha divinatória Arte ultrapassa Das profundezas do Subconsciente
Os séculos efêmeros e nota O milagre estupendo da aeronave!
Diminuição dinâmica, derrota
Na atual força, integérrima, da Massa. Rasgue os broncos basaltos negros, cave,
Sôfrego, o solo sáxeo; e, na ânsia ardente
É a subversão universal que ameaça De perscrutar o íntimo do orbe, invente
A Natureza, e, em noite aziaga e ignota, A lâmpada aflogística de Davy!
Destrói a ebulição que a água alvorota
E põe todos os astros na desgraça! Em vão! Contra o poder criador do Sonho
O Fim das Coisas mostra-se medonho
São despedaçamentos, derrubadas, Como o desaguadouro atro de um rio...
Federações sidéricas quebradas...
E eu só, o último a ser, pelo orbe adiante, E quando, ao cabo do último milênio,
A humanidade vai pesar seu gênio
Espião da cataclísmica surpresa, Encontra o mundo, que ela encheu, vazio!
A única luz tragicamente acesa
Na universalidade agonizante!
39
VIAGEM DE UM VENCIDO Já me fazia medo aquela viagem
A carregar pelas ladeiras tétricas,
Noite. Cruzes na estrada. Aves com frio... Na óssea armação das vértebras simétricas
E, enquanto eu tropeçava sobre os paus, A angústia da biológica engrenagem!
A efígie apocalíptica do Caos
Dançava no meu cérebro sombrio! No Céu, de onde se vê o Homem de rastros,
Brilhava, vingadora, a esclarecer
O Céu estava horrivelmente preto As manchas subjetivas do meu ser
E as árvores magríssimas lembravam A espionagem fatídica dos astros!
Pontos de admiração que se admiravam
De ver passar ali meu esqueleto! Sentinelas de espíritos e estradas,
Noite alta, com a sidérica lanterna,
Sozinho, uivando hoffmânnicos dizeres, Eles entravam todos na caverna
Aprazia-me assim, na escuridão, Das consciências humanas mais fechadas!
Mergulhar minha exótica visão
Na intimidade noumenal dos seres. Ao castigo daquela rutilância,
Maior que o olhar que perseguiu Caim,
Eu procurava, com uma vela acesa, Cumpria-se afinal dentro de mim
O feto original, de onde decorrem O próprio sofrimento da Substância!
Todas essas moléculas que morrem
Nas transubstanciações da Natureza. Como quem traz ao dorso muitas cargas
Eu sofria, ao colher simples gardênia,
Mas o que meus sentidos apreendiam A multiplicidade heterogênea
Dentro da treva lúgubre, era só De sensações diversamente amargas.
O ocaso sistemático de pó,
Em que as formas humanas se sumiam! Mas das árvores, frias como lousas,
Fluía, horrenda e monótona, uma voz
Reboava, num ruidoso borborinho Tão grande, tão profunda, tão feroz
Bruto, análogo ao peã da márcios brados, Que parecia vir da alma das cousas:
A rebeldia dos meus pés danados
Nas pedras resignadas do caminho. "Se todos os fenômenos complexos,
Desde a consciência à antítese dos sexos
Sentia estar pisando com a planta ávida Vêm de um dínamo fluídico de gás,
Um povo de radículas e embriões Se hoje, obscuro, amanhã píncaros galgas,
Prestes a rebentar, como vulcões, A humildade botânica das algas
Do ventre equatorial da terra grávida! De que grandeza não será capaz?!
Dentro de mim, como num chão profundo, Quem sabe, enquanto Deus, Jeová ou Siva
Choravam, com soluços quase humanos, Oculta à tua força cognitiva
Convulsionando Céus, almas e oceanos Fenomenalidades que hão de vir,
As formas microscópicas do mundo! Se a contração que hoje produz o choro
Era a larva agarrada a absconsas landes, Não há de ser no século vindouro
Era o abjeto vibrião rudimentar Um simples movimento para rir?!
Na impotência angustiosa de falar, Que espécies outras, do Equador aos pólos,
No desespero de não serem grandes! Na prisão milenária dos subsolos,
Vinha-me à boca, assim, na ânsia dos párias, Rasgando avidamente o húmus malsão,
Como o protesto de uma raça invicta, Não trabalham, com a febre mais bravia,
O brado emocionante de vindicta Para erguer, na ânsia cósmica, a Energia
Das sensibilidades solitárias! À última etapa da objetivação?!
A longanimidade e o vilipêndio, É inútil, pois, que, a espiar enigmas, entres
A abstinência e a luxúria, o bem e o mal Na química genésica dos ventres,
Ardiam no meu orco cerebral, Porque em todas as coisas, afinal,
Numa crepitação própria de incêndio! Crânio, ovário, montanha, árvore, iceberg,
Tragicamente, diante do Homem, se ergue
Em contraposição à paz funérea, A esfinge do Mistério Universal!
Doía profundamente no meu crânio
Esse funcionamento simultâneo A própria força em que teu Ser se expande,
De todos os conflitos da matéria! Para esconder-se nessa esfinge grande,
Deu-te (oh! mistério que se não traduz!)
Eu, perdido no Cosmos, me tornara Neste astro ruim de tênebras e abrolhos
A assembléia belígera malsã, A efeméride orgânica dos olhos
Onde Ormuzd guerreava com Arimã, E o simulacro atordoador da Luz!
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Na discórdia perpétua do sansara!
Por isto, oh! filho dos terráqueos limos, No inferno da visão alucinada,
Nós, arvoredos desterrados, rimos Viu montanhas de sangue enchendo a estrada,
Das vãs diatribes com que aturdes o ar... Viu vísceras vermelhas pelo chão...
Rimos, isto é, choramos, porque, em suma, E amou, com um berro bárbaro de gozo,
Rir da desgraça que de ti ressuma O monocromatismo monstruoso
É quase a mesma coisa que chorar!" Daquela universal vermelhidão!
Às vibrações daquele horrível carme
Meu dispêndio nervoso era tamanho VOX VICTIMAE
Que eu sentia no corpo um vácuo estranho
Como uma boca sôfrega a esvaziar-me! Morto! Consciência quieta haja o assassino
Que me acabou, dando-me ao corpo vão
Na avançada epiléptica dos medos Esta volúpia de ficar no chão
Cria ouvir, a escalar Céus e apogeus, Fruindo na tabidez sabor divino!
A voz cavernosíssima de Deus,
Reproduzida pelos arvoredos! Espiando o meu cadáver ressupino,
No mar da humana proliferação,
Agora, astro decrépito, em destroços, Outras cabeças aparecerão
Eu, desgraçadamente magro, a erguer-me, Para compartilhar do meu destino!
Tinha necessidade de esconder-me
Longe da espécie humana, com os meus ossos! Na festa genetlíaca do Nada,
Abraço-me com a terra atormentada
Restava apenas na minha alma bruta Em contubérnio convulsionador...
Onde frutificara outrora o Amor
Uma volicional fome interior E ai! Como é boa esta volúpia obscura
Que une os ossos cansados da criatura
Augusto dos Anjos

De renúncia budística absoluta!


Ao corpo ubiqüitário do Criador!
Porque, naquela noite de ânsia e inferno,
Eu fora, alheio ao mundanário ruído,
A maior expressão do homem vencido O ÚLTIMO NÚMERO
Diante da sombra do Mistério Eterno! Hora da minha morte. Hirta, ao meu lado,
A Idéia estertorava-se... No fundo
A NOITE Do meu entendimento moribundo
Jazia o Último Número cansado.
-

A nebulosidade ameaçadora
Toda a Poesia

Tolda o éter, mancha a gleba, agride os rios Era de vê-lo, imóvel, resignado,
E urde amplas teias de carvões sombrios Tragicamente de si mesmo oriundo,
No ar que álacre e radiante, há instantes, fora. Fora da sucessão, estranho ao mundo,
Com o reflexo fúnebre do Incriado:
A água transubstancia-se. A onda estoura
Na negridão do oceano e entre os navios Bradei: - Que fazes ainda no meu crânio?
Troa bárbara zoada de ais bravios, E o Último Número, atro e subterrâneo,
Extraordinariamente atordoadora. Parecia dizer-me: "É tarde, amigo!
À custódia do anímico registro Pois que a minha antogênica Grandeza
A planetária escuridão se anexa... Nunca vibrou em tua língua presa,
Somente, iguais a espiões que acordam cedo, Não te abandono mais! Morro contigo!"
Ficam brilhando com fulgor sinistro
Dentro da treva onímoda e complexa MÁGOAS
Os olhos fundos dos que estão com medo! Quando nasci, num mês de tantas flores,
Todas murcharam, tristes, langorosas,
A OBSESSÃO DO SANGUE Tristes fanaram redolentes rosas,
Morreram todas, todas sem olores.
Acordou, vendo sangue... Horrível! O osso
Frontal em fogo... Ia talvez morrer, Mais tarde da existência nos verdores
Disse. Olhou-se no espelho. Era tão moço, Da infância nunca tive as venturosas
Ah! certamente não podia ser! Alegrias que passam bonançosas,
Oh! minha infância nunca tive flores!
Levantou-se. E, eis que viu, antes do almoço,
Na mão dos açougueiros, a escorrer Volvendo à quadra azul da mocidade,
Fita rubra de sangue muito grosso, Minh’alma levo aflita à Eternidade,
A carne que ele havia de comer! Quando a morte matar meus dissabores.
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Cansado de chorar pelas estradas, E fica no teu ermo entristecida,
Exausto de pisar mágoas pisadas, Alma arrancada do prazer do mundo,
Hoje eu carrego a cruz de minhas dores! Alma viúva das paixões da vida.

O CONDENADO SONETO
Folga a Justiça e geme a natureza N’augusta solidão dos cemitérios,
Bocage Resvalando nas sombras dos ciprestes,
Passam meus sonhos sepultados nestes
Alma feita somente de granito, Brancos sepulcros, pálidos, funéreos.
Condenada a sofrer cruel tortura São minhas crenças divinais, ardentes
Pela rua sombria d’amargura - Alvos fantasmas pelos merencórios
- Ei-lo que passa - réprobo maldito. Túmulos tristes, soturnais, silentes,
Olhar ao chão cravado e sempre fito, Hoje rolando nos umbrais marmóreos,
Parece contemplar a sepultura Quando da vida, no eternal soluço,
Das suas ilusões que a desventura Eu choro e gemo e triste me debruço
Desfez em pó no hórrido delito. Na laje fria dos meus sonhos pulcros,
E, à cruz da expiação subindo mudo, Desliza então a lúgubre coorte.
A vida a lhe fugir já sente prestes E rompe a orquestra sepulcral da morte,
Quando ao golpe do algoz, calou-se tudo. Quebrando a paz suprema dos sepulcros.
O mundo é um sepulcro de tristeza.
Ali, por entre matas de ciprestes, NOIVADO
Folga a justiça e geme a natureza.
Os namorados ternos suspiravam,
Quando há de ser o venturoso dia?!
SONETO Quando há de ser?! O noivo então dizia
Ouvi, senhora, o cântico sentido E a noiva e ambos d’amores s’embriagavam.
Do coração que geme e s’estertora E a mesma frase o noivo repetia;
N’ânsia letal que mata e que o devora Fora no campo pássaros trinavam.
E que tornou-o assim, triste e descrido. Quando há de ser?! E os pássaros falavam,
Ouvi, senhora, amei; de amor ferido, Há de chegar, a brisa respondia.
As minhas crenças que alentei outrora Vinha rompendo a aurora majestosa,
Rolam dispersas, pálidas agora, Dos rouxinóis ao sonoroso harpejo
Desfeitas todas num guaiar dorido. E a luz do sol vibrava esplendorosa.
E como a luz do sol vai-se apagando! Chegara enfim o dia desejado,
E eu, triste, triste pela vida afora, Ambos unidos, soluçara um beijo,
Eterno pegureiro caminhando, Era o supremo beijo de noivado!
Revolvo as cinzas de passadas eras,
Sombrio e mudo e glacial, senhora, SONETO
Como um coveiro a sepultar quimeras!
No meu peito arde em chamas abrasada
A pira da vingança reprimida,
INFELIZ E em centelhas de raiva ensurdecida
Alma viúva das paixões da vida, A vingança suprema e concentrada
Tu que, na estrada da existência em fora, E espuma e ruge a cólera entranhada,
Cantaste e riste, e na existência agora Como no mar a vaga embravecida
Triste soluças a ilusão perdida; Vai bater-se na rocha empedernida,
Oh! tu, que na grinalda emurchecida Espumando e rugindo em marulhada
De teu passado de felicidade Mas se das minhas dores ao calvário,
Foste juntar os goivos da Saudade Eu subo na atitude dolorida
Às flores da Esperança enlanguescida; De um Cristo a redimir um mundo vário,
Se nada te aniquila o desalento Em luta co’a natura sempiterna,
Que te invade, e pesar negro e profundo, Já que do mundo não vinguei-me em vida,
Esconde à Natureza o sofrimento, A morte me será vingança eterna.
42
TRISTE REGRESSO
A Dias Paredes SAUDADE
Uma vez um poeta, um tresloucado, Hoje que a mágoa me apunhala o seio,
Apaixonou-se d’uma virgem bela; E o coração me rasga atroz, imensa,
Vivia alegre o vate apaixonado, Eu a bendigo da descrença em meio,
Louco vivia, enamorado dela. Porque eu hoje só vivo da descrença.
Mas a Pátria chamo-o. Era soldado. À noite quando em funda soledade
E tinha que deixar para sempre aquela Minh’alma se recolhe tristemente,
Meiga visão, olímpica e singela?! Pra iluminar-me a alma descontente,
E partiu, coração amargurado. Se acende o círio triste da Saudade.
Dos canhões ao ribombo, e das metralhas, E assim afeito às mágoas e ao tormento,
Altivo lutador, venceu batalhas, E à dor e ao sofrimento eterno afeito,
Juncou-lhe a fronte aurifulgente estrela. Para dar vida à dor e ao sofrimento,
E voltou, mas a fronte aureolada, Da saudade na campa enegrecida
Ao chegar, pendeu triste e desmaiada, Guardo a lembrança que me sangra o peito,
No sepulcro da loura virgem bela. Mas que no entanto me alimenta a vida.

AMOR E RELIGIÃO A ESMOLA DE DULCE


Conheci-o: era um padre, um desses santos Ao Alfredo A.
Sacerdotes da Fé de crença pura,
Augusto dos Anjos

Da sua fala na eternal doçura E todo o dia eu vou como um perdido


Falava o coração. Quantos, oh! Quantos De dor, por entre a dolorosa estrada,
Pedir a Dulce, a minha bem amada
Ouviram dele frases de candura A esmola dum carinho apetecido.
Que d’infelizes enxugavam prantos!
E como alegres não ficaram tantos E ela fita-me, olhar enlanguescido,
Corações sem prazer e sem ventura! E eu balbucio trêmula balada:
- Senhora dai-me u’a esmola - e estertorada
No entanto dizem que este padre amara.
-

A minha voz soluça num gemido.


Toda a Poesia

Morrera um dia desvairado, estulto,


Su’alma livre para o céu se alara. Morre-me a voz, e eu gemo o último harpejo,
Estendendo à Dulce a mão, a fé perdida,
E Deus lhe disse: "És duas vezes santo, E dos lábios de Dulce cai um beijo.
Pois se da Religião fizeste culto,
Foste do amor o mártir sacrossanto." Depois, como este beijo me consola!
Bendita seja a Dulce! A minha vida
Estava unicamente nessa esmola.
SONETO
Ao me prezado irmão Alexandre Júnior pelas nove SONETO
primaveras que hoje completou
Gênio das trevas lúgubres, acolhe-me,
Canta no espaço a passarada e canta Leva-me o espírito dessa luz que mata,
Dentro do peito o coração contente, E a alma me ofusca e o peito me maltrata,
Tu’alma ri-se descuidosamente, E o viver calmo e sossegado tolhe-me!
Minh’alma alegre no teu rir s’encanta.
Leva-me, obumbra-me em teu seio, acolhe-me
Irmão querido, bom Papá, consente N’asa da Morte redentora, e à ingrata
Que neste dia de ventura tanta Luz deste mundo em breve me arrebata
Vá, num abraço de ternura santa, E num pallium de tênebras recolhe-me!
Mostrar-te o afeto que meu peito sente.
Aqui há muita luz e muita aurora,
Somente assim festejarei teus anos; Há perfumes d’amor - venenos d’alma -
Enquanto outros podem, dão-te enganos, E eu busco a plaga onde o repouso mora,
Jóias, bonecos de formoso busto,
E as trevas moram, e, onde d’água raso
Eu só encontro no primor da rima O olhar não trago, nem me turba a calma
A justa oferta, a jóia que te exprima A aurora deste amor que é o meu ocaso!
O amor fraterno do teu mano
Augusto
43
O MAR CRAVO DE NOIVA
O mar é triste como um cemitério; Ao Dias Paredes
Cada rocha é uma eterna sepultura
Cravo de noiva. A nívea cor de cera
Banhada pela imácula brancura
Que o seu seio branqueja, é como os prantos
De ondas chorando num alvor etéreo.
Níveos, que a virgem chora, entre os encantos
Ah! dessas vagas no bramir funéreo Dum noivado risonho em primavera.
Jamais vibrou a sinfonia pura
Flor de mistérios d’alma, sacrossantos,
Do Amor; lá, só descanta, dentre a escura
Guarda segredos divinais que eu dera
Treva do oceano, a voz do meu saltério!
Duas vidas, se duas eu tivera
Quando a cândida espuma dessas vagas, Pra desvendar os seus segredos santos.
Banhado a fria solidão das fragas,
E tudo quer que nessa flor se enleve
Onde a quebrar-se tão fugaz se esfuma,
O poeta. É que dessa concha armínea,
Reflete a luz do sol que já não arde, Da lactescência angélica da neve,
Treme na treva a púrpura da tarde,
Se evolam castos, virginais aromas
Chora a Saudade envolta nesta espuma!
De essência estranha; olências de virgínea
Carne fremindo num langor de pomas.
SONETO
Aurora morta, foge! Eu busco a virgem loura PLENILÚNIO
Que fugiu-me do peito ao teu clarão de morte
Desmaia o plenilúnio. A gaze pálida
E Ela era a minha estrela, o meu único Norte,
Que lhe serve de alvíssimo sudário
O grande Sol de afeto - o Sol que as almas doura!
Respira essências raras, toda a cálida
Fugiu... E em si levou a Luz consoladora Mística essência desse alampadário.
Do amor - esse clarão eterno d’alma forte -
E a lua é como um pálido sacrário,
Astro da minha Paz, Sírius da minha Sorte
Onde as almas das virgens em crisálida
E da Noite da vida a Vênus redentora.
De seios alvos e de fronte pálida,
Agora, oh! minha Mágoa, agita as tuas asas, Derramam a urna dum perfume vário.
Vem! Rasga deste peito as nebulosas gazas
Voga a lua na etérea imensidade!
E, num pálio auroral de Luz deslumbradora,
Ela, eterna noctâmbula do Amor,
Acende à Claridade. Adeus oh! Dia escuro, Eu, noctâmbulo da Dor e da Saudade.
Dia do meu Passado! Irrompe, meu Futuro;
Ah! Como a branca e merencória lua,
Aurora morta, foge - eu busco a virgem loura!
Também envolta num sudário - a Dor,
Minh’alma triste pelos céus flutua!
SONETO
Canta teu riso esplêndido sonata, CÍTARA MÍSTICA
E há, no teu riso de anjos encantados,
Cantas... E eu ouço etérea cavatina!
Como que um doce tilintar de prata
Há nos teus lábios - dois sangrentos círios -
E a vibração de mil cristais quebrados.
A gêmea florescência de dois lírios
Bendito o riso assim que se desata Entrelaçados numa unção divina.
- Cítara suave dos apaixonados,
Como o santo levita dos Martírios,
Sonorizando os sonhos já passados,
Rendo piedosa dúlia peregrina
Cantando sempre em trínula volata!
À tua doce voz que me fascina,
Aurora ideal dos dias meus risonhos, - Harpa virgem brandindo mil delírios!
Quando, úmido de beijos em ressábios
Quedo-me aos poucos, penseroso e pasmo,
Teu riso esponta, despertando...
E a Noite afeia como num sarcasmo
Ah! Num delíquio de ventura louca, E agora a sombra vesperal morreu...
Vai-se minh’alma toda nos teus beijos,
Chegou a Noite... E para mim, meu anjo,
Ri-se o meu coração na tua boca!
Teu canto agora é um salmodiar de arcanjo,
É a música de Deus que vem do Céu!

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SÚPLICA NUM TÚMULO RÉGIO
Maria, eis-me a teus pés. Eu venho arrependido, Festa no paço! Noite... E no entretanto
Implorar-te o perdão do imenso crime meu! Luzes, flores, clarões por toda a festa
Eis-me, pois, a teus pés, perdoa o teu vencido, E há nos régios salões, em cada aresta,
Açucena de Deus, lírio morto do Céu! Credências d’ouro de supremo encanto.

Perdão! E a minha voz estertora um gemido, No baldaquino a orquestra real se apresta


E o lábio meu pra sempre apartado do teu E o áureo dossel finge um relevo santo...
Não há de beijar mais o teu lábio querido! - Bissos egípcios d’alto gosto, a um canto,
Ah! Quando tu morreste, o meu Sonho morreu! Flordilisados de nelumbo e giesta.

Perdão, pátria da Aurora exilada do Sonho! Morreu a noite e veio o Sol Eterno
- Irei agora, assim, pelo mundo, para onde - Âmbar de sangue que desceu do Inferno
Me levar o Destino abatido e tristonho... No turbilhão dos alvos raios diurnos...

Perdão! E este silêncio e esta tumba que cala! Brilham no paço refulgências de elmo
Insânia, insânia, insânia, ah! ninguém me responde... E a princesa assomou como um santelmo
Perdão! E este sepulcro imenso que não fala! Na realeza branca dos coturnos.

AFETOS MÁRTIR DA FOME


Bendito o amor que infiltra n’alma o enleio Nesta da vida lúgubre caverna
E santifica da existência o cardo, De ossos e frios funerais que eu sinto
Augusto dos Anjos

- Amor que é mirra e que é sagrado nardo, Como um chacal saciando o eterno instinto
Turificando a lenguidez dum seio! Vou saciando a minha Fome Eterna.

O amor, porém, que da Desgraça veio - Fome de sangue de um Passado extinto,


Maldito seja, seja como o fardo De extintas crenças - bacanal superna,
Desta descrença funeral em que ardo Horrível assim como a Hidra de Lerna
E com que o fogo da paixão ateio! E muda como o bronze de Corinto!

Funebulescamente a alma se atira Ânsias de sonhos, desespero fundo!


-

À luta das paixões, e, como a Aurora E a alma que sonha no marnel do Mundo,
Toda a Poesia

Que ao beijo vesperal anseia e expira, Morre de Fome pelas noites belas...

Desce para a alma o ocaso da Carícia E como o Cristo - o Mártir do Calvário


Ora em sonhos de Dor, supremos, e ora Morre. E no entanto vai para o estelário
Em contorções supremas de Delícia! Matar a Fome num festim de estrelas!

MARTÍRIO SUPREMO FESTIVAL


Duma Quimera ao fascinante abraço, Para Jônatas Costa
Por um Cocito ardente e luxurioso, Címbalos soam no salão. O dia
Onde nunca gemeu o humano passo, Foge, e ao compasso de arrabis serenos
Transpus um dia o Inferno Azul do Gozo! A valsa rompe, em compassados trenos
O amor em lavas de candência d’aço, Sobre os veludos da tapeçaria.
Banhou-me o peito... Em ânsia de repouso, Estatuetas de mármore de Lemnos
Da Messalina fria no regaço, Estão dispostas numa simetria
Chora saudades do terreno pouso! Inconfundível, recordando a estria
Como um mártir de estranho sacrifício, Dos corpos níveos de Afrodite e Vênus.
Tinha os lábios crestados pela ardência Fulgem por entre mil cristais vermelhos
Da luz letal do grande Sol do Vício! O alvo cristal dos nítidos espelhos
E mergulhei mais fundo no estuário... E a seda verde dos arbustos glabros.
Mas, no Inferno do Gozo, sem Calvário, E em meio às refrações verdes e hialinas,
Cristo d’amor morri pela inocência! Vibra, batendo em todas as retinas,
A incandescência irial dos candelabros.

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NOTURNO
Chove. Lá fora os lampiões escuros SENECTUDE PRECOCE
Semelham monjas a morrer... Os ventos,
Desencadeados, vão bater, violentos, Envelheci. A cal da sepultura
De encontro às torres e de encontro aos muros. Caiu por sobre a minha mocidade...
E eu que julgava em minha idealidade
Saio de casa. Os passos mal seguros Ver inda toda a geração futura!
Trêmulo movo, mas meus movimentos
Susto, diante do vulto dos conventos, Eu que julgava! Pois não é verdade?!
Negro, ameaçando os séculos futuros! Hoje estou velho. Olha essa neve pura!
- Foi saudade? Foi dor? - Foi tanta agrura
De São Francisco no plangente bronze Que eu nem sei se foi dor ou foi saudade!
em badaladas compassadas onze
Horas soaram... Surgem agora a Lua. Sei que durante toda a travessia
Da minha infância trágica, vivia,
E eu sonho erguer-me aos páramos etéreos Assim como uma casa abandonada.
Enquanto a chuva cai nos cemitérios
E o vento apaga os lampiões da rua! Vinte e quatro anos em vinte e quatro horas...
Sei que na infância nunca tive auroras,
E afora disto, eu já nem sei mais nada!
SONETO
(Feito no decurso de dois minutos, em homenagem ao ANDRÉ CHÉNIER
aniversário natalício de Alexandre Rodrigues dos
Anjos - 28 de abril de 1905). Na real magnificência dos gigantes
Grave como um lacedemônio harmoste
Para quem tem na vida compreendido André Chénier ia subir ao poste
Toda a grandeza da Fraternidade A que Luís XVI subira dantes!
O aniversário dum irmão querido
A alma de alegres emoções invade. Que a sua morte a homem nenhum desgoste
E incite o heroísmo das nações distantes!...
Depois quando no irmão estremecido Por isso, ele, a morrer, canta vibrantes
Fazem aliança o gênio e a probidade, Versos divinos que arrebatam a hoste.
Atinge o amor um grau nunca atingido
No termômetro santo da Amizade. Não há quem nele um só tremor denote!
- Continua a cantar, a alma serena...
O Alexandre dos Anjos merecia Mas, de repente, pressentindo a lousa,
Grandes coroas nesse grande dia,
Tesouros reais, auríferos tesouros... Batendo com a cabeça no barrote
Da guilhotina, diz ao povo: - "É pena!
Terá no entanto indubitavelmente - Aqui ainda havia alguma cousa..."
A admiração do século presente
E a sagração dos séculos vindouros!
MYSTICA VISIO
O NEGRO Vinha passando pelo meu caminho
Um vulto estranhamento iluminado...
Oh! Negro, oh! Filho da Hotentóia ufana Para onde eu ia, o vulto ia a meu lado
Teus braços brônzeos como dois escudos, E desde então, não andei mais sozinho!
São dois colossos, dois gigantes mudos,
Representando a integridade humana! Abraçou-me, beijou-me com um carinho
Que a um ser divino não seria dado...
Nesses braços de força soberana E eu me elevava, sendo assim beijado
Gloriosamente à luz do sol desnudos Muito acima do humano borborinho!
Ao bruto encontro dos ferrões agudos
Gemeu por muito tempo a alma africana! Falou-me de ilusões e de luares,
Da tribo alegre que povoa os ares...
No colorido dos teus brônzeos braços, - Assombrava-me aquela claridade!
Fulge o fogo mordente dos mormaços
E a chama fulge do solar brasido... Mas através daquelas falsas luzes
Pude rever enfim todas as cruzes
E eu cuido ver os múltiplos produtos Que têm pesado sobre a Humanidade!
Da Terra - as flores e os metais e os frutos
Simbolizados nesse colorido!
46
ILUSÃO Ninguém me chora! Ah! Se eu tombar
Dizes que sou feliz. Não mentes. Dizes Cedo na lida...
Tudo que sentes. A infelicidade Oh! Lua fria vem me chorar
Parece às vezes com a felicidade Oh! Lua morta da minha vida!
E os infelizes mostram ser felizes!
Assim, em Tebas - a tumbal cidade, IDEALIZAÇÕES
A múmia de um herói do tempo de Ísis, A Santos Neto
Ostenta ainda as mesmas cicatrizes
Que eternizaram sua heroicidade! I
Quem vê o herói, inda com o braço altivo, Em vão flameja, rubro, ígneo, sangrento
Diz que ele não morreu, diz que ele é vivo, O sol, e, fulvos, aos astrais desígnios,
E, persuadido fica do que diz... Raios flamejam e fuzilam, ígneos,
Bem como tu, que nessa crença infinda Nas chispas fulvas de um vulcão violento!
Feliz me viste no Passado, e ainda É tudo em vão! Atrás da luz dourada,
Te persuades de que sou feliz! Negras, pompeiam (triste maldição!)
- Asas de corvo pelo coração...
GOZO INSATISFEITO - Crepúsculo fatal vindo do Nada!

Entre o gozo que aspiro, e o sofrimento Que importa o Sol! A Treva, a Sombra - eis tudo!
De minha mocidade, experimento E no meu peito - condensada treva -
O mais profundo e abalador atrito... A sombra desce, e o meu pesar se eleva
Augusto dos Anjos

Queimam-me o peito cáusticos de fogo E chora e sangra, mudo, mudo, mudo...


Esta ânsia de absoluto desafogo E há no meu peito - ocaso nunca visto,
Abrange todo o círculo infinito. Martirizado porque nunca dorme
Na insaciedade desse gozo falho As Sete Chagas dum martírio enorme,
Busco no desespero do trabalho, Dos Sete Passos que magoaram Cristo!
Sem um domingo ao menos de repouso, II
Fazer parar a máquina do instinto,
-

Mas, quanto mais me desespero, sinto Agora dorme o astro de sangue e de ouro
Toda a Poesia

A insaciabilidade desse gozo! Como um sultão cansado! As nuvens como


Odaliscas, da Noite ao negro assomo
DOLÊNCIAS Beijam-lhe o corpo ensangüentado d’ouro.
Legiões de névoas mortas e finadas
Oh! Lua morta de minha vida, Como fragmentações d’ouro e basalto
Os sonhos meus Lembram guirlandas pompeando no Alto
Em vão te buscam, andas perdida Eterizadas, volaterizadas.
E eu ando em busca dos rastos teus...
E a Noite emerge, santa e vitoriosa
Vago sem crenças, vagas sem norte, Dentre um velarium de veludos. Astros,
Cheia de brumas e enegrecida, Descem os nimbos... No ar há malabatros
Ah! Se morreste pra minha vida! Turiferando a negridão tediosa.
Vive, consolo de minha morte!
Além, dourado as névoas dos espaços,
Baixa, portanto, coração ermo Na majestade dum condor bendito,
De lua fria Subindo à majestade do Infinito,
À plaga triste, plaga sombria A Via-Láctea vai abrindo os braços!
Dessa dor lenta que não tem termo.
Áureas estrelas, alvas, luminosas,
Tu que tombaste no caos extremo Trazem no peito o branco das manhãs
Da Noite imensa do meu Passado, E dormem brancas como leviatãs
Sabes da angústia do torturado... Sobre o oceano astral das nebulosas.
Ah! Tu bem sabes por que é que eu gemo!
Eu amo a noite que este Sol arranca!
Instilo mágoas saudoso, e enquanto Namoro estrelas... Sírius me deslumbra,
Planto saudades num campo morto, Vésper me encanta, e eu beijo na penumbra
Ninguém ao menos dá-me um conforto, A imagem lirial da Noite Branca.
Um só ao menos! E no entretanto
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III Então, a Lua que no céu se espalha,
Iluminando as serranias, banha
De novo, a Aurora, entre esplendores, há-de As serranias duma luz estranha,
Alva, se erguer, como tombou outrora, Alva como um pedaço de mortalha!
E como a Aurora - o Sol - hóstia da Aurora,
Abençoada pela Eternidade! Nessa música que a alma me ilumina
Tento esquecer as minhas próprias dores,
E ei-lo de novo, ontem moribundo, Canto, e minh’alma cobre-se de flores
Hoje de novo, curvo ao seu destino, - Fera rendida à música divina.
Fantástico, ciclópico, assassino
Ébrio de fogo, dominando o mundo! Harpas concertam! Brandas melodias
Plangem... Silêncio! Mas de novo as harpas
Mas de que serve o Sol, se triste em cada Reboam pelo mar, pelas escarpas,
Raio que tomba no marnel da terra, Pelos rochedos, pelas penedias...
Mais em meu peito uma ilusão se enterra,
Mais em minh’alma um desespero brada?! Eu amo a Noite que este Sol arranca!
Namoro estrelas... Sírius me deslumbra,
De que serve, se, à luz áurea que dele Vésper me encanta, e eu beijo na penumbra
Emana e estua e se refrange e ferve, A imagem lirial da Noite Branca!
A Mágoa ferve e estua, de que serve
Se é desespero e maldição todo ele?!
A VITÓRIA DO ESPÍRITO
Pois, de que serve, se, aclarando os cerros
E engalanando os arvoredos gaios, Era uma preta, funeral mesquita,
A alma se abate, como se esses raios Abandonada aos lobos e aso leopardos
N’alma caindo, se tornassem ferros?! Numa floresta lúgubre e esquisita.
IV Engalanava-lhe as paredes frias
Uma coroa de urzes e de cardos
Poeta, em vão na luz do sol te inflamas, Coberta em pálio pelas laçarias.
E nessa luz queimas-te em vão! És todo
Uma vez, aos lampejos derradeiros
Pó, e hás de ser após as chamas, lodo,
Das irisadas vespertinas velas,
Como Herculanum foi após as chamas.
feras rompiam tojos e balseiros.
Ah! Como tu, em lodo tudo acaba,
E pelas catacumbas desprezadas,
O leão, o tigre, o mastodonte, a lesma,
Mochos vagavam como sentinelas,
Tudo por fim há de acabar na mesma
Em atalaia às gerações passadas!
Tênebra que hoje sobre ti desaba.
Um crepúsculo imenso, nuca visto
Ninguém se exime dessa lei imensa
Tauxiava o Céu de grandes vidros roxos
Que, em plena e fulva reverberação,
Da mesma cor da túnica de Cristo.
Arrasta as almas pela Escuridão,
E arrasta os corações pela Descrença. Fulgia em tudo uma estriação violeta
E um violáceo clarão banhava os mochos
Ergue, pois, poeta, um pedestal de tanta
Que em torno estavam da mesquita preta.
Treva e dor tanta, e num suprema e insano
E extraordinário e grande e sobre-humano Já na eminência da amplidão sidérea
Esforço, sobe ao pedestal, e... canta! Como uma umbela, se desenrolava
A esteira astral da retração etérea.
Canta a Descrença que passou cortando
As tuas ilusões pelas raízes, Os astros mortos refulgiam vivos
E em vez de chagas e de cicatrizes E a noite, ampla e brilhante, rutilava
Deixar, foi valas funerais deixando. Lantejoulada de opalinos crivos.
E foi deixando essas funéreas, frias, Súbito alguém, o passo constrangendo,
Medonhas valas, onde, como abutres Parou em frente da mesquita morta...
Medonhos, de ossos, de ilusões te nutres, - Um vento frio começou gemendo.
Vives de cinzas e de ruinarias!
Era uma viúva, e o olhar errante, a viúva,
V Em passo lento, foi transpondo a porta,
Eternamente aberta ao sol e à chuva.
Agora é noite! E na estelar coorte,
Como recordação da festa diurna, A Lua encheu o espaço sem limites
Geme a pungente orquestração noturna E, dentro, nos altares esboroados,
E chora a fanfarra triunfal da Morte. Foram caindo como estalactites
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Sobre o ouro e a prata das alfaias priscas
Um dilúvio de fósforos prateados
E uma chuva dourada de faíscas. Que mal o amor me tem feito!
Fora, entretanto, por um chão de onagras Duvidas?! Pois, se duvidas,
Vinha passeando como numa viagem Vem cá, olha estas feridas,
Um grupo feio de panteras magras. Que o amor abriu no meu peito.
E havia no atro olhar dessas panteras Passo longos dias, a esmo...
Essa alegria doida da carnagem Não me queixo mais da sorte
Que é a alegria única das feras. Nem tenho medo da Morte
Que eu tenho a Morte em mim mesmo!
E ardendo na impulsão das ânsias doudas
E em sevas fúrias, infernais ardendo "Meu amor, em sonhos, erra,
Todas as feras, as panteras todas Muito longe, altivo e ufano
Do barulho do oceano
Avançam para a viúva desvalida. E do gemido da terra!"
E raivosas, contra ela, arremetendo,
Tiram-lhe todas ali mesmo a vida.
A LUVA
Morria a noite. As flâmulas altivas
Do sol nascente erguiam-se vermelhas, Para o Augusto Belmont
Como uma exposição de carnes vivas. Pensa na glória! Arfa-lhe o peito, opresso.
E iam cair em pérolas de sangue - O pensamento é uma locomotiva -
Sobre as asas doiradas das abelhas, Tem a grandeza duma força viva
E sobre o corpo da viúva exangue. Correndo sem cessar para o Progresso.
Augusto dos Anjos

A Natureza celebrava a festa Que importa que, contra ele, horrendo e preto
Do astro glorioso em cantos e baladas O áspide abjeto do Pesar se mova!...
- O próprio Deus cantava na floresta! E só, no quadrilátero da alcova,
Vem-lhe à imaginação este soneto:
Nos arvoredos rejuvenescidos,
Estrugiam canções desesperadas "A princípio escrevia simplesmente
De misereres e de sustenidos. Para entreter o espírito... Escrevia
Mais por impulso de idiossincrasia
-

Além, entanto, na redoma clara Do que por uma propulsão consciente.


Toda a Poesia

Que envolve a porta da região etérea,


O espírito da viúva se quedara Entendi, depois disso, que devia,
Como Vulcano, sobre a forja ardente,
Ao contemplar dessa fulgente porta Durante as vinte e quatro horas o dia!
E dessa clara e alva redoma aérea,
No desfilar de sua carne morta Riam de mim, os monstros zombeteiros.
A transitoriedade da matéria! Trabalharei assim dias inteiros,
Sem ter uma alma só que me idolatre...
CANTO ÍNTIMO Tenha a sorte de Cícero proscrito
Ou morra embora, trágico e maldito,
Meu amor, em sonhos erra, Como Camões morrendo sobre um catre!"
Muito longe, altivo e ufano
Do barulho do oceano Nisto, abre, em ânsias, a tumbal janela
E do gemido da terra! E diz, olhando o céu que além se expande:
"- A maldade do mundo é muito grande,
O Sol está moribundo. Mas meu orgulho ainda é maior do que ela!
Um grande recolhimento
Preside neste momento Quebro montanhas e aos tufões resisto
Todas as forças do Mundo. Numa absoluta impassibilidade",
E como um desafio à eternidade
De lá, dos grandes espaços, Atira a luva para o próprio Cristo!
Onde há sonhos inefáveis
Vejo os vermes miseráveis Chove. Sobre a cidade geme a chuva,
Que hão de comer os meus braços. Batem-lhe os nervos, sacudindo-o todo,
E na suprema convulsão o doudo
Ah! Se me ouvisses falando! Parece aos astros atirar a luva!
(E eu sei que às dores resistes)
Dir-te-ia coisas tão tristes
Que acabarias chorando.
49
A MÁSCARA
A CARIDADE Eu se que há muito pranto na existência,
Dores que ferem corações de pedra,
No universo a caridade
E onde a vida borbulha e o sangue medra,
Em contraste ao vício infando
Aí existe a mágoa em sua essência.
É como um astro brilhando
Sobre a dor da humanidade! No delírio, porém, da febre ardente
Da ventura fugaz e transitória
Nos mais sombrios horrores
O peito rompe a capa tormentória
Por entre a mágoa nefasta
Para sorrindo palpitar contente.
A caridade se arrasta
Toda coberta de flores! Assim a turba inconsciente passa,
Muitos que esgotam do prazer a taça
Semeadora de carinhos
Sentem no peito a dor indefinida.
Ela abre todas as portas
E no horror das horas mortas E entre a mágoa que a másc’ra eterna apouca
Vem beijar os pobrezinhos. A Humanidade ri-se e ri-se louca
No carnaval intérmino da vida.
Torna as tormentas mais calmas
Ouve o soluço do mundo
E dentro do amor profundo O COVEIRO
Abrange todas as almas.
Uma tarde de abril suave e pura
O céu de estrelas se veste Visitava eu somente ao derradeiro
Em fluidos de misticismo Lar; tinha ido ver a sepultura
Vibra no nosso organismo De um ente caro, amigo verdadeiro.
Um sentimento celeste.
Lá encontrei um pálido coveiro
A alegria mais acesa Com a cabeça para o chão pendida;
Nossas cabeças invade... Eu senti a minh’alma entristecida
Glória, pois, à Caridade E interroguei-o: "Eterno companheiro
No seio da Natureza!
Da morte, quem matou-te o coração?"
Estribilho Ele apontou para uma cruz no chão,
Ali jazia o seu amor primeiro!
Cantemos todos os anos
Na festa da Caridade Depois, tomando a enxada, gravemente,
A solidariedade Balbuciou, sorrindo tristemente:
Dos sentimento humanos. - "Ai, foi por isso que me fiz coveiro!"

ABANDONADA PECADORA
Bem depressa sumiu-se a vaporosa Tinha no olhar cetíneo, aveludado,
Nuvem de amores, de ilusões tão bela; A chama cruel que arrasta os corações,
O brilho se apagou daquela estrela O seios rijos eram dois brasões
Que a vida lhe tornava venturosa! Onde fulgia o símb’lo do pecado.
Sombras que passam, sombras cor-de-rosa Bela, divina, o porte emoldurado
- Todas se foram num festivo bando, No mármore sublime dos contornos,
Fugazes sonhos, gárrulos voando Os seios brancos, palpitantes, mornos,
- Resta somente um’alma tristurosa! Dançavam-lhe no colo perfumado.
Coitada! o gozo lhe fugiu correndo, No entanto, esta mulher de grã beleza,
Hoje ela habita a erma soledade, Moldada pela mão da Natureza,
Em que vive e em que aos poucos vai morrendo! Tornou-se a pecadora vil. Do fado
Seu rosto triste, seu olhar magoado, Do destino fatal, presa, morria,
Fazem lembrar em noite de saudade Uma noite entre as vascas da agonia,
A luz mortiça d’um olhar nublado. Tendo no corpo o verme do pecado!

50
NO CLAUSTRO
Pelas do claustro salas silenciosas, PRIMAVERA
De lutulentas, úmidas arcadas, Primavera gentil dos meus amores,
Na vastidão silente das caladas - Arca cerúlea de ilusões etéreas,
Abóbadas sombrias tenebrosas, Chova-te o Céu cintilações sidéreas
Vagueiam tristemente desfiladas E a terra chova no teu seio flores!
De freiras e de monjas tristurosas, Esplende, Primavera, os teus fulgores,
Que guardam cinzas de ilusões passadas, Na auréola azul, dos dias teus risonhos,
Que guardam pét’las d funéreas rosas. Tu que sorveste o fel das minhas dores
E à noite quando rezam na clausura, E me trouxeste o néctar dos teus sonhos!
No sigilo das rezas misteriosas, Cedo virá, porém, o triste outono,
Nem a sombra mais leve de ventura! Os dias voltarão a ser tristonhos
Só as arcadas ogivais desnudas, E tu hás de dormir o eterno sono,
E as mesmas monjas sempre tristurosas, Num sepulcro de rosas e de flores,
E as mesmas portas impassíveis, mudas! Arca sagrada de cerúleos sonhos,
Primavera gentil dos meus amores!
IL TROVATORE
Canta da torre o trovador saudoso A ESPERANÇA
Augusto dos Anjos

- Addio, Eleonora! oh! sonhos meus! A Esperança não murcha, ela não cansa,
E o canto se desprende harmonioso, Também como ela não sucumbe a Crença.
Na vibração final do extremo adeus. Vão-se sonhos nas asas da Descrença,
Repercute dolente, mavioso, Voltam sonhos nas asas da Esperança.
Subindo pelo Azul da Inspiração; Muita gente infeliz assim não pensa;
Assim canta também meu coração, No entanto o mundo é uma ilusão completa,
Trovador torturado e angustioso, E não é a Esperança por sentença
-

Ai! não, não acordeis, lembranças minhas! Este laço que ao mundo nos manieta?
Toda a Poesia

Saudade d’umas noites em que vinhas Mocidade, portanto, ergue o teu grito,
Cantar comigo um doce desafio! Sirva-te a Crença de fanal bendito,
Mas, pouco a pouco, os sons esmorecendo, Salve-te a glória no futuro - avança!
Perdem-se as notas pelo Azul morrendo, E eu, que vivo atrelado ao desalento,
- Addio Eleonora, addio, addio! Também espero o fim do meu tormento,
Na voz da Morte a me bradar; descansa!
A LOUCA
Quando ela passa: - a veste desgrenhada, SONETO
O cabelo revolto em desalinho, Senhora, eu trajo o luto do Passado,
No seu olhar feroz eu adivinho Este luto sem fim que é o meu Calvário
O mistério da dor que a traz penada. E ansio e choro, delirante e vário,
Moça, tão moça e já desventurada; Sonâmbulo da dor angustiado.
Da desdita ferida pelo espinho, Quantas venturas que me acalentaram!
Vai morta em vida assim pelo caminho, Meu peito túm’lo do prazer finado
No sudário da mágoa sepultada. Foi outrora do riso abençoado,
Eu sei a sua história. - Em seu passado O berço onde as venturas se embalaram.
Houve um drama d’amor misterioso Mas não queiras saber nunca risonha
- O segredo d’um peito torturado - O mistério d’um peito que estertora
E hoje, para guardar a mágoa oculta, E o segredo d’um’alma que não sonha!
Canta, soluça - o coração saudoso, Não, não busques saber porque, Senhora,
Chora, gargalha, a desgraçada estulta. É minha sina perenal, tristonha
- Cantar o Ocaso quando surge a Aurora.

51
SOFREDORA ARIANA
Cobre-lhe a fria palidez do rosto Ela é o tipo perfeito da ariana.
O sendal da tristeza que a desola; Branca, nevada, púbere, mimosa,
Chora - o orvalho do pranto lhe perola A carne exuberante e capitosa
As faces maceradas de desgosto. Trescala a essência que de si dimana.
Quando o rosário de seu pranto rola, As níveas pomas do candor da rosa,
Das brancas rosas do seu triste rosto Rendilhando-lhe o colo de sultana,
Que rolam murchas como um sol já posto Emergem da camisa cetinosa
Um perfume de lágrimas se evola. Entre as rendas sutis de filigrana.
Tenta à vezes, porém, nervosa e louca Dorme talvez. Em flácido abandono
Esquecer por momento a mágoa intensa Lembra formosa no seu casto sono
Arrancando um sorriso à flor da boca. A languidez dormente da indiana.
Mas volta logo um negro desconforto, Enquanto o amante pálido, a seu lado,
Bela na Dor, sublime na Descrença, Medita, a fronte triste, o olhar velado,
Como Jesus a soluçar no Horto. No Mistério da Carne Soberana.

ECOS D’ALMA TEMPOS IDOS


Oh! madrugada de ilusões, santíssima, Não enterres, coveiro, o meu Passado,
Sombra perdida lá do meu Passado, Tem pena dessas cinzas que ficaram;
Vinde entornar a clâmide puríssima Eu vivo d’essas crenças que passaram,
Da luz que fulge no ideal sagrado! E quero sempre tê-las ao meu lado!
Longe das tristes noites tumulares Não, não quero o meu sonho sepultado
Quem me dera viver entre quimeras, No cemitério da Desilusão,
Por entre o resplandor das Primaveras Que não se enterra assim sem compaixão
Oh! madrugada azul dos meus sonhares. Os escombros benditos do Passado!
Mas quando vibrar a última balada Ai! não me arranques d’alma este conforto!
Da tarde e se calar a passarada - Quero abraçar o meu Passado morto
Na bruma sepulcral que o céu embaça - Dizer adeus aos sonhos meus perdidos!
Quem me dera morrer então risonho Deixa ao menos que eu suba à Eternidade
Fitando a nebulosa do meu sonho Velado pelo círio da Saudade,
E a Via-Láctea da Ilusão que passa! Ao dobre funeral dos tempos idos!

AMOR E CRENÇA SONETO


Sabes que é Deus? Esse infinito e santo Na rua em funeral ei-la que passa
Ser que preside e rege os outros seres, A romaria eterna dos aflitos,
Que os encantos e a força dos poderes A procissão dos tristes, dos proscritos,
Reúne tudo em si, num só encanto? Dos romeiros saudosos da desgraça.
Esse mistério eterno e sacrossanto, E na choça a lamúria que traspassa
Essa sublime adoração do crente, O coração, além, ânsias e gritos
Esse manto de amor doce e clemente De mães que arquejam sobre os pobrezitos
Que lava as dores e que enxuga o pranto? Filhos que a fome derrubou na praça.
Ah! Se queres saber a sua grandeza Entre todos, porém, lânguida e bela,
Estende o teu olhar à Natureza, Da juventude a virginal capela
Fita a cúp’la do Céu santa e infinita! A lhe cingir de luz a fronte baça,
Deus é o Templo do Bem. Na altura imensa, Vai Corina mendiga e esfarrapada,
O amor é a hóstia que bendiz a crença, A alma saudosa pelo amor vibrada
Ama, pois, crê em Deus e... sê bendita! - A Stella Matutina da Desgraça!

52
SONETO A MINHA ESTRELA
Adeus, adeus, adeus! E suspirando Eu disse - Vai-te, estrela do Passado!
Saí deixando morta a minha amada, Esconde-te no Azul da Imensidade,
Vinha o luar iluminando a estrada Lá onde nunca chegue esta saudade,
E eu vinha pela estrada soluçando. - A sombra deste afeto estiolado.
Perto um ribeiro claro murmurando Disse, e a estrela foi p’ra o Céu subindo,
Muito baixinho como quem chorava, Minh’alma que de longe a acompanhava,
Parecia o ribeiro estar chorando Viu o adeus que ela do Céu enviava,
As lágrimas que eu triste gotejava. E quando ela no Azul foi se sumindo
Súbito ecoou o sino o som profundo! Surgia a Aurora - a mágica princesa!
Adeus! - eu disse. Para mim no mundo E eu vi o Sol do Céu iluminando
Tudo acabou-se, apenas restam mágoas. A Catedral da Grande Natureza.
Mas no mistério astral da noite bela Mas a noite chegou, triste, com ela
Pareceu-me inda ouvir o nome dela Negras sombras também foram chegando,
No marulhar monótono das águas! E eu nunca mais vi a minha estrela!

A AERONAVE SONETO
Cindindo a vastidão do Azul profundo, A praça estava cheia. O condenado
Augusto dos Anjos

Sulcando o espaço, devassando a terra, Transpunha nobremente o cadafalso,


A Aeronave que um mistério encerra Puro do crime, isento de pecado,
Vai pelo espaço acompanhando o mundo. Vítima augusta de indelével falso.
E na esteira sem fim da azúlea esfera E na atitude do Crucificado,
Ei-la embalada n’amplidão dos ares, O olhar azul pregado n’amplidão,
Fitando o abismo sepulcral dos mares Pude rever naquele desgraçado
Vencendo o azul que ante si s’erguera. O drama lutuoso da Paixão.
-

Voa, se eleva em busca do Infinito, Quando do algoz cruento o braço alçado


Toda a Poesia

É como um despertar de estranho mito, Se dispunha a vibrar sem compaixão


Auroreando a humana consciência. O golpe na cabeça do culpado
Cheia da luz do cintilar de um astro, Ele, o algoz - o criminoso - então,
Deixa ver na fulgência do seu rastro Caiu na praça como fulminado
A trajetória augusta da Ciência. A soluçar: perdão, perdão, perdão!

LIRIAL VERSOS D’UM EXILADO


Por que choras assim, tristonho lírio, Eu vou partir. Na límpida corrente
Se eu sou o orvalho eterno que te chora, Rasga o batel o leito d’água fina
P’ra que pendes o cálice que enflora - Albatroz deslizando mansamente
Teu seio branco do palor do círio?! Como se fosse vaporosa Ondina.
Baixa a mim, irmã pálida da Aurora, Exilado de ti, oh! Pátria! ausente
Estrela esmaecida do Martírio; Irei cantar a mágoa peregtina
Envolto da tristeza no delírio, Como canta o pastor a matutina
Deixa beijar-te a face que descora! Trova d’amor, à luz do sol nascente!
Fosses antes a rosa purpurina Não mais virei talvez e, lá sozinho,
E eu beijaria a pétala divina Hei de lembrar-me do meu pátrio ninho
Da rosa onde não pousa a desventura. D’onde levo comigo a nostalgia
Ai! que ao menos talvez na vida escassa E esta lembrança que hoje me quebranta
Não chorasses à sombra da desgraça, E que eu levo hoje como a imagem santa
Para eu sorrir à sombra da ventura! Dos sonhos todos que já tive um dia!

53
AVE DOLOROSA
Ave perdida para sempre - crença
INSÂNIA
Perdida - segue a trilha que te traça No mundo vago das idealidades
O Destino, ave negra da Desgraça, Afundei minha louca fantasia;
Gêmea da Mágoa e núncia da Descrença! Cedo atraiu-me a auréola fulgidia
Dos sonhos meus na Catedral imensa Da refulgência antiga das idades.
Que nunca pouses. Lá, na névoa baça, Mas ao esplendor das velhas majestades
Onde o teu vulto lúrido esvoaça, Vacila a mente e o seu ardor esfria;
Seja-te a vida uma agonia intensa! Busquei então na nebulosa fria
Vives de crenças mortas e te nutres, Das Ilusões, sonhar novas idades.
Empenhada na sanha dos abutres, Que desespero insano me apavora!
Num desespero rábido, assassino... Aqui, chora um ocaso sepultado;
E hás de tombar um dia em mágoas lentas, Ali, pompeia a luz da branca aurora
Negrejada das asas lutulentas E eu tremo e hesito entre um mistério escuro
Que te emprestar o corvo do Destino! - Quero partir em busca do Passado
- Quero correr em busca do Futuro.
NIMBUS
Nimbos de bronze que empanais escuros
O BANDOLIM
O santuário azul da Natureza, Cantas, soluças, bandolim do Fado
Quando vos vejo negros palinuros E de Saudade o peito meu transbordas;
Da tempestade negra e da tristeza, Choras, e eu julgo que nas tuas cordas
Abismados na bruma enegrecida, Choram todas as cordas do Passado!
Julgo ver nos reflexos da minh’alma Guardas a alma talvez d’um desgraçado,
As mesmas nuvens deslizando em calma, Um dia morto da Ilusão às bordas,
Os nimbos das procelas desta vida; Tanto que cantas, e ilusões acordas,
Mas quando céu é límpido, sem bruma Tanto que gemes, bandolim do Fado.
Que a transparência tolda, sem nenhuma Quando alta noite, a lua é triste e calma,
Nuvem sequer, então, num mar de esp’rança, Teu canto, vindo de profundas fráguas,
Que o céu reflete, a vida é qual risonho É como as nênias do Coveiro d’alma!
Batel, e a alma é a flâmula do sonho, Tudo eterizas num coral de endechas...
Que o guia e leva ao porto da bonança. E vais aos poucos soluçando mágoas,
E vais aos poucos soluçando queixas!
NO CAMPO
Tarde. Um arroio canta pela umbrosa
ARA MALDITA
Estrada; as águas límpidas alvejam Como um’ave, cindindo os céus risonhos,
Como cristais. Aragem suspirosa Meiga, tu vinhas a cindir os ares,
Agita os roseirais que ali vicejam. E, qual hóstia, caindo dos altares,
No Alto, entretanto, os astros rumorejam Foste caindo n’ara dos meus sonhos.
Um presságio de noite luminosa E eu vi os seios teus virem inconhos
E ei-la que assoma - a Louca Tenebrosa, - Esses teus seios que os cerúleos lares
Branca, emergindo às trevas que a negrejam. Branquejaram de eternos nenufares,
Chora a corrente múrmura, e, à dolente Para nunca tocarem negros sonhos!
Unção da noite, as flores também choram Caíste enfim no meu sacrário ardente,
Num chuveiro de pétalas, nitente, Quiseste-me beijar a ara do peito,
Pendem e caem - os roseirais descoram E eu quis beijar-te o lábio redolente.
E elas bóiam no pranto da corrente E beijei-te, mas eis que neste enleio,
Que as rosas, ao luar, chorando enfloram. Tocando n’ara negra o níveo seio,
Caíste morta ao celestial preceito.

54
SONETO A PESTE
Na etérea limpidez de um sonho branco, Filha da raiva de Jeová - a Peste
Lúcia sorriu-se à bruma nevoenta, N’um insano ceifar que aterra e espanta,
E a procela chorou n’um fundo arranco De espaço a espaço sepulturas planta
De mágoa triste e de paixão violenta. E em cada coração planta um cipreste!
E Lúcia disse à bruma lutulenta: Exulta o Eterno e... tudo chora, tudo!
- Foge, senão co’o o meu olhar te espanco! Quando Ela passa, semeando a Morte,
E eu vi que, à voz de Lúcia, grave e lenta, Todos dizem co’os olhos para a Sorte
O céu tremia em seu trevoso flanco. - É o castigo de Deus que passa mudo!
Fulgia a bruma para sempre. A vida - Fúlgido foco de escaldantes brasas
Despontava na aurora amortecida - O sol a segue, e a Peste ri-se, enquanto
À rutilância mágica do dia. Vai devastando o coração das casas...
Aquele riso despertava a aurora! E como o sol que a segue e deixa um rastro
E tudo riu-se, e como Lúcia, agora, De luz em tudo, ela, como o sol - o astro -
O sol, alegre e rubro, também ria! Deixa um rastro de luto em cada canto!

TREVA E LUZ IDEAL


Augusto dos Anjos

Neste pélago escuro em que te afundas, Quero-te assim, formosa entre as formosas,
Longe das sombras autorais e amadas, No olhar d’amor a mística fulgência
Sentes o peito em ânsias revoltadas, E o misticismo cândido das rosas,
Diluis teu peito em sensações profundas. Plena de graça, santa de inocência!
Mas, eis que emerges, luminosa, às fundas Anjo de luz de astral aurifulgência,
Águas do mar das glórias obumbradas, Etéreo como as Wilis vaporosas,
E, ante o branco estendal das madrugadas, Embaladas no albor da adolescência,
-

Nua, em banho ideal de amor te inundas. - Virgens filhas das virgens nebulosas!
Toda a Poesia

Agora, à luz das alvoradas santas Quero-te assim, formosa, entre esplendores,
Ungem-te o corpo redolências tantas, Colmado o seio de virentes flores,
Que, ao ver-te nua, o Mundo se concentre, A alma diluída em eterais cismares...
E a lua, a Virgem Mãe dos céus escampos, Quero-te assim - e que bendita sejas
Que beija a terra e que abençoa os campos, Como as aras sagradas das igrejas,
Beije-te o seio e te abençoe o ventre! Como o Cristo sagrado dos altares.

SONETO SOMBRA IMORTAL


O Templo da Descrença - ei-lo que avisto. A imensa - E tu velas, a sós, no pó da fulgurância
Cruz da Dor está serena como um lírio! Como uma velha cruz vela na sombra morta!
E vejo o pedestal que sustenta o Martírio; Fora, a note é tumbal... e a saudade da infância,
E vejo o pedestal que sustenta a Descrença! Como um’alma de mãe, me acalenta e conforta!
- A colunata êxul do Sonho Morto - o círio Noite! E somente tu velas a rutilância...
Da Quimera Falaz, o túmulo da Crença, Lua que já passou e que hoje ainda corta
Tudo! até o altar onde a Angústia vibra intensa O penetral que guia à derradeira estância,
N’uma fúria assombral de feras em delírio! O penetral que leva à derradeira porta!
Penetro louco enfim o abismo funerário, Revejo em ti, mulher, num lânguido smorzando
E a rasgar, a rasgar o lúrido sacrário, A sombra virginal qu’eu adoro chorando
Em mim como no Templo a Angústia se condensa, E há de um dia amparar-me na luta correndo...
E em mim como no Templo, urnas de Sonho; e, em bando, Ah! que um dia da Vida, estes dardos acúleos
Flores mortes da Aurora, e, eu sombrio chorando Caíam, também da Dor, lá dos braços hercúleos,
Ante a imagem fatal do Sepulcro da Crença! Domados pela meiga Ônfale a que me rendo!

55
PELO MUNDO
ORAÇÃO FRIO Ânsias que pungem, mórbidos encantos,
Frio o sagrado coração da lua, Crepitações de flamas incendidas
Teu coração rolou da luz serena! N’alma explodindo como fogos santos,
E eu tinha ido ver a aurora tua Vão pelo mundo ensangüentando as Vidas.
Nos raios d’ouro da celeste arena... Eflúvios quentes e fatais quebrantos
E vi-te triste, desvalida e nua! Crestam a alma das virgens adormidas...
E o olhar perdi, ansiando a luz amena E as brumas velam nos sinistros mantos
No silêncio notívago da rua... E as virgens dormem nas tumbais jazidas!
- Sonâmbulo glacial da estranha pena! Súbitos fremem ‘spasmos derradeiros...
Estavas fria! A neve que a alma corta E a paixão morre e os corações coveiros
Não gele talvez mais, nem mais alquebre Vão como duendes pelos céus risonhos,
Um coração como a alma que está morta... Chorando auroras músicas perdidas
E estavas morta, eu vi, eu que te almejo, Na estrada santa ensangüentando as Vidas,
Sombra de gelo que me apaga a febre, Nos campos-santos enterrando os Sonhos!
- Lua que esfria o sol do meu desejo!
SONETO
NOTURNO E o mar gemeu a funda melopéia
Para o vale noital da eterna gaza À luz feral que a tarde morta instila,
Rolou o Sol - imenso moribundo - Triste como um soluço de Dalila,
E a noite veio na negrura d’asa, Fria como um crepúsculo da Judéia.
Santificada pela Dor do Mundo! Já Vésper, no Alto, e lânguida, cintila!
U’a luz, entanto, no negror me abrasa, Naquela hora morria para a Idéia
E um canto vai morrer no vale fundo... A minha branca e desgraçada Dea,
Que luz é esta que das brumas vaza, Qual rosa branca que ao tufão vacila.
Que canto é este, virginal, profundo?! E o mar chamou-a para o fundo abismo!
Rumores santos... e no santo harpejo, E o céu chamou-a para o Misticismo.
Somente tristes os teus olhos vejo, Nesse momento a Lua vinha calma
Para o Infinito e para o Céu voltados! E céu e mar num desespero mudo
Cantas, e é noite de fatais abrolhos... Não viram que num halo de veludo
Choras, e no meu peito estes teus olhos À alma de Dea se evolava est’alma.
Como que cravam dois punhais gelados!
O RISO
SEDUTORA "Ri, coração, tristíssimo palhaço"
Alva d’aurora, e em lânguida sonata Cruz e Sousa
Vinhas transpondo a margem do caminho,
Branca bem como empalecido arminho, O Riso - o voltairesco clown - quem mede-o?!
Alvorejando em arrebol de prata. - Ele, que ao frio alvor da Mágoa Humana,
Na Via-Láctea fria do Nirvana,
Bendita a Santa do Carinho, inata! Alenta a Vida que tombou no Tédio!
E, ajoelhando à imagem do Carinho,
O roble altivo entreteceu-te um ninho, Que à Dor se prende, e a todo o seu assédio,
Alva d’aurora, te acolheu a mata. E ergue à sombra da dor a que se irmana
Lauréis de sangue de volúpia insana,
Pérolas e ouro pela serrania... Clarões de sonho em nimbos de epicédio!
No lago branco e rútilo do dia
O azul pompeava para sempre vasto. Bendito sejas, Riso, clown da Sorte
- Fogo sagrado nos festins da Morte
Chegaste, o seio branco, e, tu, chegando, - Eterno fogo, saturnal do Inferno!
Uma pantera foi se ajoelhando,
Rendida ao eflúvio do teu seio casto! Eu te bendigo! No mundano cúmulo
És a Ironia que tombou no túmulo
Nas sombras mortas de um desgosto eterno!

56
SONETO PALLIDA LUNA
Vamos, querida! Já é Ave-Maria És do Passado! Vieste d’alvorada
- A hora dos tristes e dos descontentes N’asa dos elfos pela Morte espalma...
E o Fado geme sob a névoa fria! Cantas... e eu ouço esta berceuse calma
Da harpa dos mundos ideais do Nada!
Que eu sinta n’alma o que tu n’alma sentes!
Nesta Missa de Atroz Melancolia Ergue o Missal brilhante de tu’alma,
Bebes chorando o Vinho da Agonia Mas nessa elevação mistificada,
- Consagração das almas padecentes! Vem, que eu te espero, Deusa constelada
Desce, anêmona êxul que o Céu ensalma!
Foi numa tarde assim que nos amamos.
Silfos morriam... No ar, os gaturamos Venhas e desças, Lua dos Martírios,
Num recesso de névoa, adormecida... Desças, mas venha pela unção dos lírios.
Visão de Ocaso de enluaradas comas,
Punge-me o peito da Saudade o cardo
Enquanto um mocho, sonolento e tardo, Vaso de Unção descido dos espaços,
Canta no espaço a maldição da Vida! Para ungirmos nós dois, os nossos paços,
Na tule idealizada dos aromas.
A UMA MÁRTIR
A MORTE DE VÊNUS
Alma em cilício, vem, enrista a clava,
Brande no seio o espículo e o acínace Velhos berilos, pálidas cortinas,
Augusto dos Anjos

E unjam-te o seio que d’auroras nasce Morno frouxel de nardos recendendo


Sangrentas bênçãos eclodindo em lava! Velam-lhe o sono... e Vênus vai morrendo
No berço azul das névoas matutinas!
Nossa Senhora te unge a face escrava,
Cristo saudoso te abençoa a face Halos de luz de brancas musselinas
De monja - violeta que do Céu baixasse Vão-lhe do corpo virginal descendo
À Virgem Santa Natureza brava! - Abelha irial que foi adormecendo
Sobre um coxim de pérolas divinas.
-

Vais caminhando para a terra extrema,


Toda a Poesia

Rosa dos Sonhos! e o teu galho trema E quando o Sol lhe beija a espádua nua,
E a tua crença, o desespero mate-a... Cai-lhe da carne o resplendor da Lua
No reverbero dos deslumbramentos...
E em nuvens d’ouro ascende enfim ao plaustro
Da Neve Eterna, estrela azul do claustro, Enquanto no ar há sândalos, há flores
Levada para o Azul da Via-Látea! E haustos de morte - os últimos clangores
Da música chorosa dos mementos!
PELO MAR
SONHO DE AMOR
Manhã em flor. O mar é um policromo
E imenso lago d’íris e alabastros... Sobre o aromal e amplo coxim de Flora,
À aurora é branco e ao sol, o mar é como Que os vapores da tarde inda incensavam
Um pálio imenso que caiu dos astros. E que um incenso tênue e bom vapora,
Os namorados lânguidos sonhavam.
Longe, bem longe, no alvoral assomo
Ergue um navio os altanados mastros A alma do Ocaso entrava o céu agora
E o Oceano dorme - alourecido pomo E havia pelas tênebras que entravam
Num leito irial de pérolas e nastros. Ora estrangulamentos surdos, ora
Ruídos de carne que se estrangulavam.
A alma da Mágoa vai pelo seu dorso,
Em sonhos geme... Um coração de corso E sonharam assim durante toda
Geme no mar, vibra no mar, entanto, A noite, e toda a alva manhã durante!
- O Sol jorrava largos raios longos
Colma-lhe o seio a opala das esponjas...
E à noite morta choram vagas - monjas E em roda víride e nevado, em roda,
Purificadas no cristal do pranto! Lembrava o campo um colorido ondeante
De vidros verdes e cristais oblongos!

57
SONETO A DOR
Chama-se a Dor, e quando passa, enluta
A orgia mata a mocidade, quando
E todo mundo que por ela passa
Rugem na carne do delírio as feras,
Há de beber a taça da cicuta
E o moço morre como está sonhando
E há de beber até o fim da taça!
Nas suas vinte e cinco primaveras.
Há de beber, enxuto o olhar, enxuta
Em cima - o ouro sem mancha das esferas,
A face, e o travo há de sentir, e a ameaça
Em baixo ouro manchado de execrando
Amarga dessa desgraçada fruta
Festim de sibaritas, das heteras
Que é a fruta amargosa da Desgraça!
Lubricamente se despedaçando!
E quando o mundo todo paralisa
Em cima, a rede do estelário imáculo
E quando a multidão toda agoniza,
Suspensa no alto como um tabernáculo
Ela, inda altiva, ela, inda o olhar sereno
- A orgia, em baixo, e no delírio doudo
De agonizante multidão rodeada,
Como arvoredos juvenis tombados
Derrama em cada boca envenenada
Os moços mortos, os brasões manchados,
Mais uma gota do fatal veneno!
E um turbilhão de púrpuras no lodo!

SONETO TERRA FÚNEBRE


Aqui morreram tantos poetas! Tanta
E ele morreu. Ele que foi um forte
Guitarra morta este lugar encerra!...
Que nunca se quebrou pelo Desgosto
Aqui é o Campo-Santo, aqui é a Terra!
Morreu... mas não deixou na ara do rosto
Em que a alma chora e em que a Saudade canta!
Um só vestígio que acusasse a Morte!
O caminheiro que o Pesar desterra,
O anatomista que investiga a sorte
Pare chorando nesta Terra Santa,
Das vidas que se abismam no Sol-posto
E se cantar como a Saudade canta,
Ficaria admirado do seu rosto
O caminheiro fique nesta Terra!
Vendo-o tão belo, tão sereno e forte!
À noite aqui um trovador eterno
Quando meu Pai deixou o lar amigo
Chora, abraçado às campas dos poetas,
Um sabiá da casa muito antigo,
- Esse sombrio trovador é o Inverno!
Que há muito tempo não cantava lá,
Aqui é a Terra, onde, ao noturno açoute,
Diluiu o silêncio em litanias...
Carpem na sombra pássaros ascetas,
E hoje, poetas, já faz sete dias
Gemem poetas - pássaros da Noute!
Que eu ouço o canto desse sabiá!

VAE VICTIS SONETO


O sonho, a crença e o amor, sendo a risonha
A Dor meu coração torça e retorça
Santíssima Trindade da Ventura
E me retalhe como se retalha
Pode ser venturosa a criatura
Para escárnio e alegria da canalha
Que não crê, que não ama e que não sonha?!
Um leão vencido que perdeu a força!
Pois a alma acostumada a ser tristonha
Sobre mim caia essa vingança corsa,
Pode achar por acaso ou porventura
Já que perdi a última batalha!
Felicidade numa sepultura,
E, no enquanto o Tédio a carne me trabalha,
Contentamento numa dor medonha?!
A Dor meu coração torça e retorça!
Há muito tempo, o sonho, do meu seio
Cubra-me o corpo a podridão dos trapos!
Partiu num célere arrebatamento
Os vibriões, os vermes vis, os sapos
De minha crença arrebentando a grade
Encontrem nele pábulo eviterno...
Pois se eu não amo e se também não creio
- Repositório de milhões de miasmas
De onde me vem este contentamento,
Onde se fartem todos os fantasmas,
De onde me vem esta felicidade?!
Primavera, verão, outono, inverno!

58
MEDITANDO O CANTO DA CORUJA
Penso em venturas! A alma do homem pensa A coruja cantara-lhe na porta
Sempre em venturas! Sorte do homem! O homem Sinistramente a noite inteira! Indício
Há de embalar eternamente a crença Mais certo não havia! - Era o suplício!...
Sem ter grilhões e sem ter leis que o domem! Daí a pouco, ela seria morta.
Punjam-no os vermes da Desgraça, assomem Saiu. O Sol ardia. A estrada torta
Descrenças, surjam tédios na Descrença, Lembrava a antiga ponte de Sublício...
Luta, e morrem os vermes que o consomem, Havia pelo chão um desperdício
Vence, e por fim, nada há que o abata e o vença! De folhas que a áurea xantofila corta.
Por isso, poeta, eu penso na Ventura! Nisto, ouve o canto aziago da coruja!
E o pensamento, na Suprema Altura - Quer fugir, e não vê por onde fuja.
Sinto, no imenso Azul do Firmamento Implora a Deus como a um fetiche vago...
Ir rolando pelo ouro das estrelas, - Se ao menos voasse! - E horror começa! Rasga
E esse ouro santo vir rolando pelas As vestes; uma convulsão a engasga
Trevas profundas do meu pensamento! E morre ouvindo o mesmo canto aziago!

SONETO NOME MALDITO


Para que nesta vida o espírito esfalfaste Das trombetas proféticas o alarde
Falou-lhe, por seus onze augúrios certos:
Augusto dos Anjos

Em vãs meditações, homem meditabundo?!


Escalpelaste todo o cadáver do mundo "É maldito o teu nome! E aos céus abertos,
E, por fim, nada achaste... e, por fim, nada achaste! Não há divina proteção que o guarde!"
A loucura destruiu tudo que arquitetaste Dúvidas cruéis! Momentos cruéis! Incertos
E a Alemanha tremeu ao teu gemido fundo!... E cruéis momentos! Ânsias cruéis! E, à tarde,
De que te serviu, pois, estudares, profundo, Saiu aos tombos, como um cão covarde,
O homem e a lesma e a rocha e a pedra e o A percorrer desertos e desertos...
carvalho e a haste?! E, assombrado, com medo do Infinito,
-

Por toda a parte, onde, aos tropeços, ia,


Toda a Poesia

Pois, para penetrar o mistério das lousas,


Foi-te mister sondar a substância das cousas Por toda a parte viu seu nome escrito!
Construíste de ilusões um mundo diferente, Vieram-lhe as ânsias. Teve sede e fome...
Desconheceste Deus no vidro do astrolábio E foi assim que ele morreu um dia
E quando a ciência vã te proclamava sábio Amaldiçoado pelo próprio nome!
A tua construção quebrou-se de repente!
DOLÊNCIAS
O ÉBRIO Eu fui cadáver, antes de viver!
Bebi! Mas sei por que bebi!... Buscava Meu corpo, assim como o de Jesus Cristo,
Em verdes nuanças de miragens, ver Sofreu o que olhos de homem não têm visto
Se nesta ânsia suprema de beber, E olhos de fera não puderam ver!
Achava a Glória que ninguém achava! Acostumei-me, assim, pois, a sofrer
E todo o dia então eu me embriagava E acostumado a assim sofrer existo...
- Novo Sileno, - em busca de ascender Existo! - E apesar disto, apesar disto
A essa Babel fictícia do Prazer Inda cadáver hei também de ser!
Que procuravam e que eu procurava. Quando eu morrer de novo, amigos, quando
Trás de mim, na atra estrada que trilhei, Eu, de saudades me despedaçando
Quantos também, quantos também deixei, De novo, triste e sem cantar, morrer,
Mas eu não contarei nunca a ninguém. Nada se altere em sua marcha infinda
A ninguém nunca eu contarei a história - O tamarindo reverdeça ainda
Dos que, como eu, foram buscar a Glória A lua continue sempre a nascer!
E que, como eu, irão morrer também.

59
AVE LIBERTAS
Ao clarão irial da madrugada,
Da liberdade ao toque alvissareiro,
Banhou-se o coração do Brasileiro Por que não me confortas?!
Num eflúvio de luz auroreada. Bem sei, perdeste a ciência,
Morreu-te a redolência,
É que baqueia a vida escravizada! Alma das virgens mortas -
Já se ouvem os clangores do pregoeiro,
Como um Tritão, levando ao mundo inteiro, Mas não! Apaga os traços
Da República a nova sublimada. De tão funesto aspeito...
Aperta-me em teu peito,
E ali do despotismo entre os escombros, Embala-me em teus braços!
Rola um drama que a Pátria exalça e doura
Numa auréola de paz imorredoura,
A República rola-lhe nos ombros;
VÊNUS MORTA
Enquanto fora na trevosa agrura A Via-Sacra Azul do amor primeiro
Sucumbe o servilismo, e, esplendorosa, Veste hoje o luto que a desgraça veste
A Liberdade assoma majestosa, No miserere do meu desespero...
- Estrela d’Alva imaculada e pura! - Lótus diluído n’alma dum cipreste!
É livre a Pátria outrora opressa e exangue! Como um lilás eternizando abrolhos
Esse labéu que mancha a glória pública, Tinge de roxo o arminho da grinalda,
Que apouca o triunfo e que se chama sangue, Rola a violeta santa dos teus olhos
Manchar não pode as aras da República. - Tufos de goivo em conchas de esmeralda.
Não! que esse ideal puro, risonho, No vácuo imenso das desesperanças
Há de transpor sereno os penetrais E dos passados viços,
Da Pátria, e há de elevar-se neste sonho Recordo o beijo que te dei nas tranças
Ao topo azul das Glórias Imortais! Emolduradas num florão de riços.
Esplende, pois, oh! Redentora d’alma, E como um nume de pesar, plangente,
Oh! Liberdade, essa bendita e branca Guarda a saudade que levou do Marne,
Luz que os negrores da opressão espanca, Eu guardo o travo deste beijo ardente
Essa luz etereal bendita e calma. E a Nostalgia desta Pátria - a Carne.
Vós, oh Pátria, fazei que destes brilhos, Sonho abraçar-te, pálida camélia,
Caia do santuário lá da História, Mas neste sonho, langue e seminua,
Fulgente do valor da vossa glória, Pareces reviver a antiga Ofélia,
A bênção do valor dos vossos filhos! Opalescência trágica da lua!
Tu, oh Quimera, de reverberantes
QUADRAS E rubras asas de beliantos pulcros,
Crava-lhe n’alma o tirso das bacantes,
Embala-me em teus braços, Brande-lhe n’alma o frio dos sepulcros.
De amores bons à sombra -
Quero em cheirosa alfombra Reza-lhe todo o cantochão memento
Pousar os sonhos lassos! Dessa Missa de amor da Extrema Agrura,
Abençoada pelo meu tormento
Teus seios, oh! morena E consagrada pela sepultura.
- Relíquias de Carrara -
Têm a ambrosia rara E que ela suba na serena gaza
Da mais rara verbena. Dos mistérios dourados e serenos
À terra Ideal das púrpuras em brasa
Aperta-me em teu peito, E ao Céu dourado e auroreal de Vênus!
E dá-me assim, divina,
De lírios e boninas
Um veludíneo leito.
Assim como Jesus,
Eu quero o meu Calvário
- Anelo morrer vário
Dos braços teus na Cruz!
60
ODE AO AMOR
Enches o peito de cada homem, medras
N’alma de cada virgem, e toda a alma
Enches de beijos de infinita calma...
E o aroma dos teus beijos infinitos Esta de amor onde queixosa, Irene,
Entra na terra, bate nos granitos Quedo, sonhei-a, aos astros, ontem quando
E quebra as rochas e arrebenta as pedras! Entre estrias de estrelas, fosforeando,
Egrégia estavas no teu plaustro egrégio
És soberano! Sangras e torturas! Mais bela do que a Virgem de Corrégio
Ora, tangendo tiorbas em volatas, E os quadros divinais de Guido Reni!
Cantas a Vida que sangrando matas,
Ora, clavas brandindo em seva a insana Qual um crente em asiático pagode,
Fúria, lembras, Amor, a soberana Entre timbales e anafis estrídulos,
Imagem pétrea das montanhas duras. Cativo, beija os áureos pés dos ídolos,
Assim, Irene, eis-me de ti cativo!
Beijam-te o passo multidões escravas Cativaste-me, Irene, e eis o motivo,
Dos Desgraçados! - Estas multidões Eis o motivo por que fiz esta ode.
Sonham pátrias douradas de ilusões
Entre os tórculos negros da Desgraça CANTO DE AGONIA
- Flores que tombam quando a neve passa
No turbilhão das avalanches bravas! Agonia de amor, agonia bendita!
Augusto dos Anjos

Tudo dominas! - Dos vergéis tranqüilos - Misto de infinita mágoa e de crença infinita.
Aos Capitólios, e dos Capitólios Nos desertos da Vida uma estrela fulgura
Aos claros pulcros e brilhantes sólios E o Viajeiro do Amor, vendo-a, triste, murmura:
De esplendor pulcro e de fulgências claras, - Que eu nunca chore assim! Que eu nunca chore como
Rendilhados de fulvas gemas raras Chorei, ontem, a sós, num volutuoso assomo,
E pontilhados de crisoberilos. Numa prece de amor, numa felícia infinda,
Sobes ao monte onde o edelweiss pompeia Delícia que ainda gozo, oração, prece que ainda
-

N’alma do que subiu àquele monte! Entre saudades rezo, e entre sorrisos e entre
Toda a Poesia

Mas, vezes, desces ao segredo insonte Mágoas soluço, até que esta dor se concentre
Do mar profundo onde a sereia canta No âmago de meu peito e de minha saudade.
E onde a Alcíone trêmula se espanta Amor, escuridão e eterna claridade...
Ouvindo a gusla crebra da sereia!
- Calor que hoje me alenta e há de matar-me em breve,
Rompe a manhã. Sinos além bimbalham. Frio que me assassina, amor e frio, neve,
Troa o conúbio dos amores velhos Neve que me embala como um berço divino,
- As borboletas e os escaravelhos Neve da minha dor, neve do meu destino!
Beijam-se no ar... Retroa o sino. E, quietos
Beijam-se além os silfos e os insetos E eu aqui a chorar nesta noite tão fria!
Sob a esteira dos campos que se orvalham. Agonia, agonia, agonia, agonia!
- Diz e morre-lhe a voz, e cansado e morrendo
E em tudo estruge a tua dúlia - dúlia O Viajeiro vai, e vê a luz e vendo
Que na fibra mais forte e até na fibra
Mais tênue, chora e se lamenta e vibra... Uma sombra que passa, uma nuvem que corre,
E em cada peito onde um Ocaso chora Caminha e vai, o louco, abraça a sombra e... morre!
Levanta a cruz da redenção da Aurora E a alma se lhe dilui na amplidão infinita...
Como a Judite a redimir Betúlia! Agonia de amar, agonia bendita!

Bem haja, pois, esse poder terrível,


- Essa dominação aterradora
- Enorme força regeneradora
Que faz dos homens um leão que dorme Compilado por
E do Amor faz uma potência enorme
Que vela sobre os homens, impassível! Roberto B. Cappelletti
Setembro, 2005
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