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Podemos mudar o que está mal

Comunicação da ACA-M (www.aca-m.org), Associação de Cidadãos Auto-

Mobilizados no âmbito da Semana de Segurança e Prevenção Rodoviária, iniciativa

da Câmara Municipal de Montijo, em 17-10.2007

Agradeço, em nome da ACA-M, Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados, o convite

para participar neste encontro e dar a nossa colaboração para o debate sobre Cidadania

Rodoviária, um assunto que, lamentavelmente, não tem sido discutido como merece,

reconhecida que é a sua actualidade e importância.

Por isso, congratulamo-nos com esta iniciativa da Câmara Municipal do Montijo em

organizar uma Semana de Segurança e Prevenção Rodoviária, à qual aderimos com

todo o gosto, dando o nosso contributo para a discussão do tema cidadania e

participação dos cidadãos.

O nível civilizacional de uma sociedade mede-se, na perspectiva da ACA-M, pela

capacidade interventiva dos seus membros e pela mobilização colectiva em actos de

cidadania que conduzam ao bem-estar e à melhoria da qualidade de vida dos seus

concidadãos.

Bem sei que pode parecer um pouco pedante falar da Suíça como país civilizado.

Afinal, para além de terem uma obsessão com a limpeza das ruas, os suíços são

sobretudo conhecidos por terem dado ao mundo o relógio de cuco e o queijo

esburacado.

Mesmo assim, atrevo-me a dar um exemplo suíço.


A Fussverkehr Schweiz , ou Associação da Mobilidade Pedonal, é uma associação cuja
4

filosofia consiste em dar visibilidade à questão da qualidade de vida do peão, tornando-

a desta forma assunto de discussão pública. Nos seus princípios está consagrada a

liberdade e a segurança do peão, assumidos como direito básico, considerando a rua

como espaço de vivência para todos. Defende que a pedonalidade deverá ser

considerada parte de uma nova cultura e reconhecida pela sociedade e pelos políticos e

apoia políticas e regulamentações neste domínio que salvaguardem e reforcem os

interesses dos peões.

Em Portugal, a defesa dos direitos dos cidadãos enquanto peões não tem merecido a

atenção que merece por parte das várias administrações e das instituições a que esta

responsabilidade está acometida. A discussão desta problemática tem sido levantada

principalmente por associações ambientalistas e de deficientes que episodicamente se

opõem a tomadas de decisão políticas que afectam negativamente a qualidade de vida

dos cidadãos.

Neste âmbito, a ACA-M, em conjunto com APSI – Associação para a Promoção da

Segurança Infantil, preparou a “Carta de Direitos dos Peões”, a qual refere

expressamente que, “ao contrário de um automobilista ou motociclista, um peão não

precisa de passar um exame para ter direito a deslocar-se. (...) Ao contrário de um

condutor, a condição de cego, de deficiente motor ou mental, de criança ou idoso, de

alcoólico, não é impedimento legal ou ético do direito a ser peão. (...) O peão tem

também mais direitos perante o Estado e a sociedade, em função do seu estatuto de:

a) Universalidade – todos os cidadãos o são.

b) Fragilidade – ser fisicamente desprotegido no meio potencialmente hostil, que é

o das relações rodoviárias

4
Na sequência das actividades que a Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados tem

vindo a desenvolver na área da prevenção da sinistralidade rodoviária, com ênfase nas

questões da pedonalidade através da promoção da participação dos cidadãos,

apresentámos a um grupo de professores de Lisboa alguns estudos que temos vindo a

efectuar no domínio das condições de circulação viária e pedonal. (estudo sobre fluxos

pedonais em meio urbano, com referência a dois estudos na Praça do Saldanha e no

Largo do Rato).

Pretendemos com essa apresentação constituir a base metodológica de uma proposta, a

elaborar conjuntamente com os professores para realização de trabalhos deste tipo, nas

áreas circundantes de estabelecimentos de ensino da cidade de Lisboa, a ser adoptada no

âmbito das matérias de Formação Cívica ou Área Projecto, e executada pelos alunos.

Estamos certos de que a adopção das nossas propostas poderão ter resultados muito

positivos, não apenas na promoção de ambientes viários mais seguros em torno dos

estabelecimentos escolares, mas também na formação cívica dos jovens, ao envolvê-los

directamente na identificação de problemas no espaço público viário e na busca de

soluções.

Além destas actividade em colaboração com escolas de Lisboa, estamos a planear, o

que será certamente o mais difícil, (mas nós gostamos de desafios) uma campanha para

os jovens condutores que se acham imortais e os melhores pilotos do mundo.

De referir que foi com muito gosto que vimos finalmente aprovada pela Câmara

Municipal de Lisboa a Carta dos Direitos dos Peões e esperamos que muitos

municípios venham ainda a assumir esse compromisso.

A verdade é que os portugueses gostam imenso de se queixar mas dificilmente passam

da queixa bota-abaixo para uma atitude pró-activa de resolução partilhada dos


problemas que os afligem, pelo que não poderei deixar de referir mais adiante a

Campanha dos Pontos Negros e o diálogo com a administração pública através dos

meios institucionais devidos – que por vezes assustam os burocratas porque imaginam

que um requerimento é uma denúncia criminal – atitude que nos terá sido legada pelo

Estado Novo ou talvez mesmo pelos tempos da inquisição, em que as pessoas de nariz

um pouco mais comprido, ou com sentido da economia, viviam no terror permanente de

serem acusadas de práticas judaízantes.

Parece-me importante mencionar um artigo recente no Jornal de Notícias que faz

referência à temática que aqui me traz. Segundo o autor, “As formas de participação dos

cidadãos na tomada de decisões, a nível autárquico, são "muito rudimentares" e

limitam-se aos contactos pessoais com os presidentes, conclui o livro "Governância

Municipal - cidadania e governação nas câmaras municipais portuguesas", baseado nos

resultados de um inquérito aos 308 municípios do país,

Editada pelo Centro de Estudos Regionais da Câmara de Viana do Castelo 1.

Acrescenta ainda o estudo que “ Poucos municípios dispõem de mecanismos para que a

participação se efective. Ficam-se pelo cumprimento do que a lei determina em matéria

de publicidade dos actos - editais, consulta pública, conselhos consultivos, etc. Nem o

boletim municipal, que poderia propiciar o envolvimento dos governados, corresponde

a esse objectivo. Pelo contrário como aborda sobretudo a obra feita, não os projectos,

elimina a possibilidade de questionamento de medidas.

"A associação dos cidadãos na fase de execução das decisões de ordem estratégica é

uma circunstância muito rara sendo a participação dos cidadãos sobretudo de carácter

individual quando é necessário resolver um problema particular. A forma colectiva de

participação é residual, sendo os partidos e clubes desportivos os mais activos, pelo que
1
“Poder decide sem participação dos cidadãos” – Paulo Martins in Jornal de Notícias de 13.10.07
um cidadão que não se reconheça em nenhum destes grupos correrá sérios riscos de não

dispor de capacidade de reivindicação junto do poder local”.2

Relativamente à democracia representativa, e cito Helena Roseta : “ é à escala local que

tem mais espaço para se desenvolver. Essa é aliás hoje uma tendência que está a ocorrer

em diversas partes do mundo, com instrumentos originais como o orçamento

participativo ou os fóruns de cidadãos. As diversas formas de participação da sociedade

civil no exercício do poder são cada vez mais invocadas como uma necessidade da boa

governação. A própria versão de 2004 do Tratado Constitucional da União Europeia

incluía o conceito de democracia participativa como “um diálogo aberto, transparente e

regular com as associações representativas da sociedade civil”.3

Isto para dizer que é necessário ter a noção de que as palavras podem alterar a

percepção que temos da realidade, e fazer com que as coisas aconteçam. Nós

afirmámos , há já 9 anos, de que havia uma guerra civil nas estradas portuguesas e não

simples ocorrências de acidentes, e isto reenquadrou a maneira de ver o problema.

Depois, fizemos algo que os políticos não esperavam: não desistimos nem nos deixámos

comprar. A partir do momento em que passou a haver um reconhecimento oficial do

problema, acho que valeu a pena todas as horas de sono perdidas e o cansaço de

espadeirar contra um inimigo fugidio. Penso que se pode dizer que há hoje uma

consciência maior do risco rodoviário do que havia há nove anos.

A guerra de todos contra todos nas estradas continua a ser motivada pela fraca presença

da autoridade nas vias e na percepção social de que as leis não têm de ser cumpridas.

Decididamente, só vemos uma possibilidade para melhorar a segurança nas estradas:

aumentar o nível de participação cívica, que acabará por conduzir os políticos a assumir

2
Idem
3
“Democracia e populismos” – Helena Roseta in Jornal Público de 12-10-07
4. Pedestrian Mobility Switzerland ( http://www.fussverkehr.ch/en/portrait.php)
a dimensão nacional do problema e a empenharem-se na sua resolução, inclusivamente

aumentando o investimento financeiro, a articulação entre organismos, etc.

Convém recordar que as alterações introduzidas no IP4 e que contribuíram para uma

acentuada descida da sinistralidade nessa via, só foram possíveis graças à pressão de

cidadãos que se organizaram e reivindicaram uma estrada melhor e mais segura.

Recordo assim o trabalho meritório da Associação de Utilizadores do IP4. O IP5, local

de tantas mortes e desastres, também tem sido alvo de múltiplas alterações no seu

traçado e obras de melhoramento fruto da pressão social e da divulgação nos media,

cujo trabalho tem sido inestimável na denúncia destes problemas.

Também em Évora nasceu em 2005 a Associação para Promoção de uma Cultura

de Segurança Rodoviária (GARE), com o objectivo de efectuar uma intervenção

cívica e social no âmbito da promoção de uma cultura de segurança rodoviária,

promovendo e realizando acções de sensibilização, debate, informação e formação, quer

estabelecendo ligações e assinar protocolos com instituições de que resultem benefícios

para a promoção da cultura de segurança rodoviária.

Quando em 2003 introduzimos a campanha «Vamos acabar com os pontos negros nas

estradas» com o apoio de vários órgãos de comunicação social e de uma empresa de

cafés, tentámos introduzir um novo mecanismo que permitisse envolver os cidadãos nos

problemas dos seus bairros, vias e localidades. Porque não basta reivindicar, é

necessário colaborar.

A campanha de que vos falo, uma das muitas iniciativas que temos desenvolvido,

pretendia funcionar de forma didáctica: mostrar aos cidadãos que queixarmo-nos da

forma conveniente – isto é, através do Código de Procedimento Administrativo -

funciona. Tal como devemos cumprir o Código da Estrada, a administração pública

deve cumprir o CPA. Saber usá-lo é ter a garantia de que defendemos os nossos direitos,
que conseguimos melhorar o sistema. Recebemos as queixas dos cidadãos,

transformamo-las em requerimentos, pedimos medidas provisórias e medidas

definitivas, exigimos acusação de recepção, pedimos para consultar os processos de

obra, a que as nossas queixas deram origem, e reclamamos celeridade, eficiência, e

respeito pelas nossas exigências de cidadãos a quem o estado existe para servir. O IEP e

as grandes câmaras tiveram dificuldades em lidar com tantas queixas devido ao

estrangulamento financeiro. As pequenas câmaras e as juntas de freguesias foram muito

cooperantes. Tivemos inclusivamente casos de juntas de freguesia que se dirigiam a nós

na esperança de que pudéssemos resolver situações junto do IEP, com que elas não

conseguiam contactar e dialogar.

Com esta campanha pretendíamos:

- levar os utentes das vias rodoviárias a participar activamente na identificação e

resolução de "pontos negros", de preferência antes que alguém chegue a morrer neles;

- pressionar a administração pública a tomar, urgentemente, medidas de resolução dos

"pontos negros" das estradas, com base nos direitos concedidos aos cidadãos no Código

do Procedimento Administrativo e legislação complementar;

- Levar os cidadãos a serem mais conscientes dos perigos da condução, e o Estado a ser

mais responsável no que respeita à segurança e à vida dos cidadãos

Quando iniciámos esta campanha, dizíamos que os “pontos negros” são locais que, por

irresponsabilidade pública, atraem a tragédia individual, e que os “pontos negros”

deveriam mais propriamente ser chamados “locais de acumulação de

irresponsabilidades”. Que se dão quando, às falhas colectivas de concepção e de

manutenção da estrada (por incúria do Estado e das concessionárias), se vêm juntar os

erros individuais da condução (geralmente por inconsciência ou imprudência suicida e

assassina dos cidadãos).


O balanço da campanha, apesar de provisório, parece-nos bastante positivo.

Brevemente serão divulgados pela DECO e pela ACA-M os dados mais recentes. A

campanha foi reiniciada em 2005 e está em funcionamento, podendo a mesma ser

consultada em Vamos acabar com os pontos negros na estrada - Automóvel -

DECO PROTESTE e em ACA-M Pontos Negros - Georeferenciação colaborativa

e guia de requerimento. Segundo os últimos resultados, divulgados em Março, dos 926

pontos negros detectados, apenas 276 foram resolvidos.

Também pelo dever de participação, foi criada a Estrada Viva – Liga contra o

Trauma, que integra um conjunto de organizações e personalidades com interesse na

intervenção social na área da prevenção do Trauma, e preocupadas com as

consequências trágicas da sinistralidade rodoviária.

A Estrada Viva - Liga contra o Trauma é uma rede informal de organizações e

personalidades que se reúnem com o objectivo de promover iniciativas conjuntas e

coordenadas de combate ao trauma rodoviário:

- sensibilizando os cidadãos para a necessidade da prevenção do trauma, da sua gestão e

do seu aplacamento;

- alertando as autoridades públicas para a premência de agir de forma articulada e eficaz

aos vários níveis dos processos traumáticos;

- promovendo a investigação e a formação académica de profissionais na área do

tratamento do trauma, numa perspectiva transdisciplinar..

Hoje, a ACA-M continua a apelar aos cidadãos que continuem a participar na resolução

dos problemas das infra-estruturas e que se tornem mais conscientes do perigo inerente

à condução automóvel, pois ninguém defende melhor os nossos interesses que nós

próprios. Se não é assim, pelo menos deveria ser. Muitas vezes, é por preguiça e por
falta de motivação cívica que preferimos delegar em outrem a defesa dos nossos

interesses e direitos.

A monitorização das decisões, por um lado, e a promoção de ideias, por outro, são

aspectos complementares de uma forma de exercer o nosso direito – e o nosso dever –

de participar civicamente na vida política, seja individualmente seja por via associativa.

É isso que a Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados (isto é, de cidadãos que se auto-

mobilizam para a defesa dos seus interesses) tem procurado fazer. Porque o que está

mal, muda-se.

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