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O PELICANO (Flavio Barollo e Denise Weinberg)
O PELICANO (Flavio Barollo e Denise Weinberg)
O
PELICANO
August
Strindberg
2
PRÓLOGO POR OCASIÃO DA ABERTURA DO TEATRO ÍNTIMO
Estamos no final do dia,
Nesta noite de inverno,
Reunidos nesta pequena sala
Quase debaixo da terra, por assim dizer,
Protegidos da rua e de seu tumulto
Nesta câmara, propícia às confidencias
Onde poderemos, na intimidade,
Expandir o excesso dos nossos corações
A palavra íntimo vai ser a palavra de ordem do nosso grupo
Mas deixem‐me primeiro saudar a todos vocês, agradecê‐los,
Pela honra da presença de todos em nossa humilde casa
Com a sua visita, saudemos igualmente o teatro
A casa que nos deu o seu teto
No momento em que meu grupo errante
Atravessava reinos e países procurando por um abrigo...
Sejam bem‐vindos à vossa nova morada.
Mas por favor, não exijam de nós nada de novo
Ou de sensacional
Não irão ver aqui senão a velha lenda da vida
Todas as suas faces, todos os seus horrores
O
bem
e
o
mal,
a
grandeza
e
a
pequenez
3
Intimamente, sem dúvida, mas com confiança e gravidade.
Não se pode sorrir sempre
E a vida nem sempre é muito alegre...
Começamos, esta noite, com uma tragédia
E as tragédias não são muito divertidas!
Dito isto, já podem imaginar o que virá neste espetáculo de “diferente”.
O que quero dizer é que aqui abreviamos os sofrimentos.
Antes das onze da noite já teremos acabado!
Agora que já disse o que tinha a dizer
Gostaria de repetir o que eu acho mais importante
Escutem bem esta minha confidência e não a revelem!
Quando tiver começado o espetáculo, quando o pano subir,
Debaixo de cem luzes, ou mais, nós atores nos mostraremos
Enquanto vocês, na sombra ocultos,
Terão os sentimentos e os olhares protegidos.
Não julguem duramente aqueles que vão se expor
Quer às correntes de ar, quer às luzes da cena
Enquanto vocês ficarão na platéia escondidos,
Após uma bebida
Nós e o nosso poeta vamos travar batalha
E vocês, tranquilamente, nos olharão
Iremos reviver no sofrimento
Um
pouco
a
vida
humana
e
em
breves
instantes!
4
“Piedade e temor”, tal era a exigência dos Antigos
Quanto à tragédia, piedade pelos que são postos à prova
Quando os deuses, em reunião secreta
Agitam os destinos diversos e variados
Dos filhos dos homens!
Nós, os modernos, já evoluímos
E mudamos de tom:
Humildade, resignação
No caminha que leva
Desde a ilha da vida até a ilha da morte.
August Strindberg
5
PRIMEIRO ATO
Uma
sala
de
visitas:
ao
fundo,
uma
porta,
que
dá
para
a
sala
de
jantar;
à
direita,
podemos
perceber
a
porta
de
uma
varanda.
Uma
escrivaninha,
uma
secretária,
uma
poltrona
com
uma
coberta
escarlate;
uma
cadeira
de
balanço.
A
mãe
entra,
vestida
de
luto.
Senta‐se
numa
cadeira
de
braços.
De
vem
em
quando,
escuta
e
parece
preocupada.
Fora
de
cena,
alguém
toca
a
“Fantasia‐Improptu
(Obra
Póstuma)
Op.
66,
de
Chopin.
Margret, a cozinheira, entra do fundo.
A MÃE – Fecha a porta, por favor.
MARGRET – A senhora está sozinha?
A MÃE – Fecha a porta, por favor. (Pausa curta) Quem está tocando?
MARGRET – Que noite horrível! Vento, chuva...
A MÃE – Fecha a porta! Não agüento mais esse cheiro de formol e orquídeas.
MARGREETA
–
Eu
sei,
minha
senhora,
for
por
isso
que
eu
disse
pra
levarem
ele
pro
cemitério
o
mais
rápido
possível.
A MÃE – Foram os meus filhos que insistiram que o velório fosse feito em casa.
MARGRET – Por que se não se mudam logo daqui?
A
MÃE
–
Nós
não
pudemos
mudar;
o
proprietário
não
deixa.
(Pausa)
Por
que
tirou
a
capa
da
poltrona?
MARGRET
–
Precisava
lavar.
(Pausa)
Eu
sei
que
a
senhora
não
agüenta
olhar
e
lembrar
que
foi
ali
que
ele
soltou
o
último
suspiro;
mas
é
só
trocar
a
poltrona
de
lugar...
A
MÃE
–
Não
posso
tocar
em
nada
até
acabarem
o
inventário...
Eu
fico
aqui
feito
prisioneira...
Não
suporto
ficar
nos
outros
quartos...
MARGRET – Por que?
A
MÃE
–
Memórias...
todas
desagradáveis
e
esse
cheiro
horrível...
É
o
meu
filho
que
está
tocando?
MARGRET
–
É!
Ele
não
gosta
de
ficar
aqui;
fica
agitado...
ta
sempre
com
fome,
diz
que
nunca
na
vida
parou
de
sentir
fome...
A
MÃE
–
Sempre
foi
doente,
desde
que
nasceu...
6
MARGRET
–
Os
bebês
que
tomam
mamadeira
precisam
depois
de
comida
forte,
boa,
pra
repor...
A
MÃE
(com
aspereza)
–
O
que
você
quer
dizer?
Que
não
dei
pra
ele
tudo
que
ele
precisava?
MARGRET
–
Na
verdade,
não
deu
não,
a
senhora
sempre
comprou
a
pior
comida
e
a
mais
barata;
mandava
as
crianças
pra
escola,
só
com
um
chá
e
um
pãozinho
na
barriga.
A MÃE – Os meus filhos nunca reclamaram...
MARGRET – É? Não na frente da senhora, mas depois iam falar comigo na cozinha...
A MÃE – Nossa situação financeira não era das melhores...
MARGRET – Não? Li no jornal que o seu marido, só de imposto, ia pagar uns 20.000...
A MÃE (cortando) – Não dava pra tudo!
MARGRET
–
Ah!
Claro!
Mas
olhe
pros
meninos:
a
Gerda...
olha
pra
Gerda...
quer
dizer,
a
senhora
Gerda,
nem
parece
que
tem
20
anos...
A MÃE – Que besteira você está falando?
MARGRET – Deixa pra lá. (Pausa) Quer que acenda a lareira? Está tão frio aqui.
A MÃE – Não, obrigada, não podemos nos dar ao luxo de queimar o nosso dinheiro...
MARGRET
–
Mas
o
Fredrik
ta
sempre
tremendo
de
frio.
Tem
que
sempre
sair
por
aí
ou
ficar
tocando
piano
pra
se
esquentar...
A MÃE – Ele foi sempre muito friorento...
MARGRET – E por que será?
A MÃE – Chega, Margret... (Pausa) Tem alguém andando lá fora?
MARGRET – Não, não tem ninguém...
A MÃE – Você acha que eu tenho medo de fantasma?
MARGRET
–
Eu
não
acho
nada...
Só
acho
que
não
vou
ficar
aqui
muito
mais
tempo...
Vim
pra
cá
com
a
missão
de
cuidar
dessas
crianças...
quando
vi
como
os
empregados
eram
mal
tratados,
quis
ir
embora
mas
não
pude,
ou
melhor,
nem
me
atrevi...
Mas
agora
que
a
Gerda
casou,
sinto
que
a
minha
missão
está
cumprida,
logo
vou
estar
livre
novamente...
falta
pouco...
7
A
MÃE
–
Eu
não
estou
entendendo...
Todo
mundo
sabe
como
eu
me
sacrifiquei
pelos
meus
filhos,
como
eu
cuidei
dessa
casa
e
cumpri
com
os
meus
deveres...
Você
é
a
única
pessoa
que
me
acusa,
mas
você
não
vai
me
assustar.
Pode
ir
embora
a
hora
que
você
quiser,
não
pretendo
continuar
a
ter
empregados,
quando
a
minha
filha
e
o
meu
genro
se
mudarem
pra
cá...
MARGRET
–
Que
a
senhora
tenha
sorte...
Os
filhos
são
ingratos
por
natureza,
e
as
sogras
não
são
muito
queridas,
a
não
ser
que
tenham
dinheiro...
A
MÃE
–
Não
se
preocupe...
Eu
vou
pagar
a
minha
parte
nas
despesas
e
vou
ajudar
no
trabalho
de
casa...
Além
disso,
o
meu
genro
não
é
como
os
outros...
MARGRET – É?
A MÃE – É. Ele não me trata como sogra, me trata como uma irmã, uma amiga...
(Margret franze a cara)
Eu
sei
o
que
você
está
pensando;
gosto
do
meu
genro;
não
vejo
nenhum
mal
nisso.
O
meu
marido
não
gostava
dele.
Tinha
inveja,
ciúmes,
apesar
da
minha
idade...
O
que
você
disse?
MARGRET
–
Não
disse
nada!...
Vem
vindo
alguém...
Pela
tosse
só
pode
ser
o
Frederik.
Não
é
melhor
acender
o
fogo?
A MÃE – Não, não é preciso!
MARGRET
–
Escuta!
Já
passei
muita
fome,
já
passei
muito
frio
nessa
casa,
suportei
tudo.
Mas
agora
eu
peço
pelo
menos
uma
cama,
uma
cama
de
verdade,
por
favor.
Tô
velha,
cansada...
A MÃE – Bela hora pra pedir isso, logo agora que você vai embora.
MARGRET
–
Ah
é!
Tinha
me
esquecido!
Mas,
pela
honra
da
família,
queime
os
lençóis
da
minha
cama,
onde
pessoas
já
deitaram
e
morreram...
não
quero
que
passe
vergonha
com
a
pessoa
que
for
me
substituir...
se
é
que
vem
alguma!
A MÃE – Não vai vir ninguém!
MARGRET
–
E
se
vier,
não
vai
ficar...
vi
cinqüenta
empregadas
entrarem
e
saírem
dessa
casa...
A MÃE – Era tudo gente ruim, como vocês todas...
MARGRET
–
Muito
obrigada!
(Pausa
curta)
Bem!
Mas
agora
é
a
sua
vez!
Chega
sempre
a
nossa
vez.
Mais
cedo
ou
mais
tarde!
8
A MÃE – Será que você não vai me deixar em paz?
MARGRET – Vou, logo! Logo, logo! Mais cedo do que a senhora pensa.
*
O Filho entra tossindo, com um livro. Gagueja ligeiramente.
A MÃE – Fecha a porta, por favor.
O FILHO – Por que?
A MÃE – Isso é maneira de responder à tua mãe? (Pausa) Que você quer?
O FILHO – Posso sentar aqui pra ler, está tão frio no meu quarto.
A MÃE – Você está sempre com frio.
O
FILHO
–
Quando
a
gente
fica
sentado,
sem
se
mexer,
a
gente
sente
mais
frio.
(Pausa.
Finge
que
lê)
O
inventário
já
está
pronto?
A
MÃE
–
Por
que
você
está
perguntando
isso?
Tem
que
passar
o
período
de
luto.
Você
não
sente
a
morte
do
teu
pai?
O
FILHO
–
Claro,
mas...
ele
deve
estar
melhor
agora...
Merecia
um
pouco
de
paz
e
sossego,
e
encontrou
finalmente.
Isso
não
me
impede
de
querer
saber
qual
é
a
minha
situação...
e
se
vou
poder
acabar
os
estudos
sem
ter
que
pedir
dinheiro
emprestado...
A MÃE – Você sabe que o teu pai não deixou nada, talvez dívidas...
O FILHO – E a empresa não vale nada?
A MÃE – Empresa não vale nada quando não se tem mercadorias, estoque, entende?
O
FILHO
(depois
de
um
momento
de
reflexão)
–
Mas
e
o
escritório,
o
nome,
os
clientes...
A MÃE – Cliente não se vende... (Pausa)
O FILHO – Ouvi dizer isso é possível!
A
MÃE
–
Foi
Falar
com
um
advogado,
é?
(Pausa)
É
assim
que
você
respeita
o
luto
do
teu
pai?
O
FILHO
–
Não,
não
é
isso!
Mas
temos
que
separar
as
coisas!
(Pausa)
Onde
estão
a
minha
irmã
e
o
meu
cunhado?
A
MÃE
–
Voltaram
esta
manhã
da
lua
de
mel
e
ficaram
numa
pensão!
9
O FILHO – Pelo menos vão ter alguma coisa pra comer lá!
A MÃE – Sempre falando de comida! O que você tem pra reclamar da minha comida?
O FILHO – Nada, imagina!
A
MÃE
–
Me
diga
uma
coisa!
Nos
últimos
tempos,
depois
que
me
separei
do
teu
pai
e
você
viveu
sozinho
com
ele...
alguma
vez
ele
te
falou
dos
negócios?
O FILHO (finge estar concentrado na leitura) – Não, acho que não.
A MÃE – Por que então ele não deixou nada, se ganhava vinte mil coroas por ano.
O
FILHO
–
Não
sei
nada
dos
negócios
do
papai;
mas
ele
dizia
que
a
casa
custava
muito
caro;
há
pouco
tempo
tinha
trocado
todos
os
móveis
daqui!
A MÃE – Ah, ele disse isso? Sabe se tinha dívidas?
O FILHO – Não sei! Tinha algumas que pagou antes de morrer.
A
MÃE
–
Então
onde
é
que
foi
parar
todo
o
dinheiro?
Ele
fez
testamento?
Se
bem
que
ele
me
odiava
e
muitas
vezes
ameaçou
não
me
deixar
nada.
Será
que
ele
escondeu
o
dinheiro
em
algum
lugar?
(Pausa)
Tem
alguém
lá
fora?
O FILHO (frio) – Não ouvi nada.
A
MÃE
–
Estou
uma
pilha
de
nervos,
o
enterro,
todas
essas
histórias.
(Pausa)
A
propósito,
você
sabe
que
a
tua
irmã
e
o
marido
vêm
viver
aqui,
não
sabe?
É
melhor
você
começar
a
procurar
um
lugar
pra
morar,
não
acha?
O FILHO – É, eu sei.
A MÃE – Você não gosta do teu cunhado?
O FILHO – Não, não gosto.
A MÃE – Mas ele é um bom rapaz e muito inteligente! Devia gostar dele, ele merece.
O FILHO – Ele também não gosta de mim... Além disso, ele foi mau com o meu pai.
A MÃE – E de quem foi a culpa?
O FILHO – Papai não era mau...
A MÃE – Não?
O
FILHO
–
Acho
que
ouvi
passos
agora.
10
A
MÃE
–
Acende
duas
lâmpadas
então.
Mas
só
duas,
ouviu?
(O
Filho
acende
duas
lâmpadas.
Pausa)
Por
que
você
não
leva
o
retrato
do
teu
pai
pro
teu
quarto?
O
que
está
pendurado
naquela
parede.
O FILHO – Por que?
A MÃE – Não gosto dele; aquele olhar gelado.
O FILHO – Não acho.
A MÃE – Então tira dali; se você gosta tanto, fica com ele.
O FILHO (tira o retrato da parede) – Tá bom. (Pausa)
A MÃE – O Axel e a Gerda estão chegando. Você não vai receber eles?
O
FILHO
–
Não!
Não
estou
com
vontade...
Vou
pro
meu
quarto...
se
eu
pudesse
pelo
menos
acender
a
lareira.
A MÃE – Não podemos queimar assim nosso dinheiro...
O
FILHO
–
Faz
vinte
anos
que
você
fala
sempre
a
mesma
coisa,
mas
nunca
faltou
dinheiro
pra
fazer
aquelas
viagens
ridículas
pro
exterior...
Era
capaz
de
gastar
uma
fortuna
só
pra
jantar
num
restaurante
de
luxo;
com
esse
dinheiro
dava
pra
comprar
uma
tonelada
de
lenha.
A MÃE – Que absurdo!
O
FILHO
–
Alguma
coisa
ia
mal
nesta
casa,
mas
agora
tudo
isso
vai
mudar...
Vamos
acertar
as
contas...
A MÃE – O que está querendo dizer?
O FILHO – Estou falando do inventário e de todo o resto...
A MÃE – Que resto?
O FILHO – Das dívidas e os assuntos pendentes...
A MÃE – Ah, sim!
O FILHO (Pausa) – Posso comprar umas roupas?
A
MÃE
–
Como
pode
pensar
nisso
agora?
Devia
começar
a
trabalhar
e
a
ganhar
dinheiro...
O
FILHO
–
Primeiro
quero
acabar
o
meu
curso!
11
A MÃE – Pede dinheiro emprestado então, como todo mundo!
O FILHO – Quem é que vai me emprestar?
A MÃE – Os amigos do teu pai!
O
FILHO
–
Ele
não
tinha
amigos!
Um
homem
maravilhoso
como
ele
não
conseguia
ter
amigos,
porque
não
existe
amizade
sem
admiração
recíproca...
A MÃE – Como você é esperto! Foi seu pai quem te ensinou essas coisas?
O FILHO – Foi, ele era um homem inteligente, apesar de ter feito algumas besteiras.
A MÃE – Olha!... Quando você vai se casar?
O
FILHO
–
Nunca!
Sustentar
uma
mulher
pra
ela
ser
divertimento
dos
outros,
virar
um
cafetão
de
uma
prostitua?
Dar
armas
praqueles
que
se
dizem
seu
melhor
amigo,
mas
que
na
verdade
é
seu
maior
inimigo?...
Não,
vou
ter
o
maior
cuidado!
A
MÃE
–
O
que
é
que
você
está
dizendo?
É
melhor
você
ir
pro
teu
quarto.
Estou
farta
de
te
ouvir!
Você
bebeu?
O FILHO – Claro, preciso beber pra acalmar a tosse e pra não sentir tanta fome.
A MÃE – De novo a comida! Ela é tão ruim assim?
O FILHO – Não, não é ruim, mas é tão leve; tão leve quanto o ar!
A MÃE (com remorso) – Vai embora daqui!
O
FILHO
–
Ou
então
você
põe
tanto
tempero
que,
em
vez
de
matar
a
fome,
abre
mais
o
apetite!
É
como
comer
vento
bem
temperado!
A MÃE – Você está completamente bêbado! Vai embora!
O FILHO – Tudo bem... eu vou! Ia dizer mais umas coisas, mas fica pra próxima! (Sai)
A Mãe caminha nervosa de um lado para o outro. Abre gavetas.
*
O Genro entra bruscamente.
A
MÃE
(cumprimentando
efusivamente)
–
Até
que
enfim,
Axel!
Senti
tanto
a
tua
falta,
onde
está
Gerda?
O
GENRO
–
Está
chegando!
E
você,
como
está,
como
vão
as
coisas?
12
A
MÃE
–
Senta,
que
eu
também
quero
fazer
umas
perguntas,
não
nos
vemos
desde
o
casamento...
Por
que
voltaram
tão
depressa,
tinham
dito
que
iam
ficar
fora
uma
semana
e
só
tem
três
dias
que
vocês
foram
embora.
O
GENRO
–
Ficou
meio
chato,
sabe?
Quando
já
se
disse
tudo
o
que
se
tem
pra
dizer
pro
outro,
a
solidão
fica
pesada
e
também
estávamos
acostumados
com
você,
e
você
fez
falta.
A
MÃE
–
É
mesmo?
É
verdade,
nós
três
sempre
nos
entendemos
tão
bem,
nós
três,
sempre
atravessando
as
tempestades
juntos,
e
acho
que
a
minha
presença
fazia
bem
pra
vocês.
O
GENRO
–
A
Gerda
é
uma
criança,
ela
não
sabe
nada
da
vida,
tem
muito
preconceito,
é
obstinada,
quase
fanática,
às
vezes...
A MÃE – O que você achou do casamento?
O GENRO – Um sucesso! Um grande sucesso! O que você achou do poema?
A
MÃE
–
Do
poema
que
você
me
dedicou?
Adorei!
Não
é
qualquer
sogra
que
recebe
uma
homenagem
como
aquela
no
dia
do
casamento
da
filha...
“É
como
o
pelicano,
que,
com
o
próprio
sangue,
alimenta
os
seus
filhos...!
Sabe
que
eu
chorei!
Eu...
O GENRO – Foi, e depois não parou de dançar, Gerda ficou com ciúmes de você...
A
MÃE
–
Ah!
Não
seria
a
primeira
vez;
ela
queria
que
eu
fosse
vestida
de
preto
por
causa
do
luto,
mas
eu
nem
liguei...
Era
só
o
que
faltava
agora:
ficar
obedecendo
os
filhos...
O
GENRO
–
Claro
que
não!
Gerda
é
louca,
precisa
ver
como
ela
fica
quando
eu
olho
pra
qualquer
outra
mulher.
A MÃE – É mesmo? Mas vocês não estão felizes?
O GENRO – Felizes? Ah, o que quer dizer felizes?
A MÃE – Sei. Já começaram a discutir?
O
GENRO
–
Já?
Não
fazemos
outra
coisa
desde
que
ficamos
noivos...
E
depois
que
eu
fui
obrigado
a
pedir
demissão
e
passei
a
ser
um
simples
tenente
da
reserva...
Sabe,
engraçado,
eu
acho
que
ela
passou
a
gostar
menos
de
mim,
depois
que
eu
voltei
a
ser
civil...
A
MÃE
–
Então,
por
que
você
não
volta
a
usar
uniforme?
Tenho
que
admitir
que
mal
reconheço
você
vestido
com
roupa
normal.
Fica
um
homem
completamente
diferente...
13
O GENRO – Só permitem usar o uniforme em serviço ou em paradas...
A MÃE – Permitem?
O GENRO – É, o regulamento.
A
MÃE
–
Coitada
da
Gerda;
ficou
noiva
de
um
tenente,
e
se
casou
com
um
auxiliar
de
escritório!
O
GENRO
–
O
que
eu
posso
fazer?
É
preciso
viver!
Por
falar
em
viver,
como
estão
os
negócios?
A
MÃE
–
Pra
dizer
a
verdade,
não
consigo
saber
de
nada!
Estou
começando
a
desconfiar
do
Fredrik.
O GENRO – Como assim?
A MÃE – Hoje à noite ele falou umas coisas tão estranhas...
O GENRO – Esse idiota...
A
MÃE
–
Esses
idiotas
são
bem
espertos,
eu
não
duvido
nada
que
ele
tenha
escondido
o
dinheiro
ou
o
testamento
em
algum
lugar...
O GENRO – Já procurou?
A MÃE – Virei todas as gavetas...
O GENRO – E no quarto do seu filho?
A MÃE – Claro, até na cesta de lixo, porque ele sempre escreve cartas e depois rasga...
O GENRO – Isso não interessa, procurou bem na escrivaninha do velho?
A MÃE – Claro...
O GENRO – Minuciosamente? Em todas as gavetas?
A MÃE – Todas!
O GENRO – As escrivaninhas costumam ter gavetas secretas.
A MÃE – Não me lembrei disso!
O GENRO – Vamos lá ver juntos.
A
MÃE
–
Não,
não
podemos
mexer
em
nada.
Tem
que
ficar
selada
até
o
fim
do
inventário.
14
O GENRO – Não podemos fazer tudo sem tirar o selo?
A MÃE – Não! Não dá!
O
GENRO
–
Dá
sim,
e
se
despregarmos
as
tábuas
da
parte
de
trás,
as
gavetas
secretas
são
sempre
atrás...
A MÃE – Mas vamos precisar de ferramentas...
O GENRO – Não! Dá pra fazer...
A MÃE – Mas a Gerda não pode saber.
O GENRO – Claro... Ela iria contar logo pro irmão...
A MÃE (fechando a porta) – É melhor trancar a porta pra gente ficar mais seguro...
O
GENRO
(examinando
a
parte
de
trás
da
escrivaninha)
–
Olha,
alguém
já
mexeu
aqui...
A
parte
de
trás
está
solta...
Consigo
meter
a
mão
lá
dentro...
A MÃE – Deve ter sido o Fredrik... Bem que eu desconfiava... Depressa, vem gente aí!
O GENRO – Tem uns papéis aqui...
A MÃE – Rápido, vem vindo alguém...
O GENRO – É um envelope...
GERDA – Axel?
A MÃE – Gerda está chegando! Me dá os papéis... Depressa!
O GENRO (mostra um envelope grande, que a Mãe esconde) – Toma! Esconde.
*
(Alguém tenta abrir a porta. Depois bate com força)
O GENRO – Por que você trancou a porta? Estamos perdidos!
A MÃE – Cala a boca!
O
GENRO
–
Idiota!...
Abre!...
Abre
ou
eu
mesmo
abro!...
Sai
daqui.
(Abre
a
porta
empurrando
a
mãe)
GERDA (entra, confusa) ‐ Por que trancaram a porta?
A
MÃE
–
Não
vai
me
dar
um
beijo
primeiro,
meu
amor,
não
te
vejo
desde
o
casamento;
como
foi
a
viagem?
Conta
tudo
pra
sua
mãe
e
não
fique
com
esse
ar
tão
triste!
15
GERDA (senta‐se numa cadeira, desanimada) – Por que trancaram a porta?
A
MÃE
–
Porque
ela
não
parava
de
bater
com
o
vento,
e
eu
já
estou
cansada
de
falar
pra
todo
mundo
fechar
a
porta
antes
de
entrar
e
sair.
Não
é
melhor
conversarmos
sobre
a
decoração
do
quarto
de
vocês,
vocês
não
vão
viver
aqui?
GERDA – Não tem outro jeito... pra mim tanto faz... e pra você, Axel?
O GENRO – Acho que podemos muito bem viver os três aqui... a gente se dá tão bem...
GERDA – Mas onde a mamãe vai ficar?
A MÃE – Aqui, meu amor, eu vou por uma cama aqui!
O
GENRO
–
Você
não
está
pensando
em
colocar
uma
cama
no
meio
da
sala,
está,
minha
querida?
GERDA (por causa do “querida”) – Está falando comigo?
O
GENRO
–
Não,
com
sua
mãe...
Enfim,
tudo
vai
dar
certo...
Se
cada
um
ajudar
o
outro,
vamos
conseguir
viver
muito
bem
com
o
dinheiro
da
sua
mãe...
GERDA (mais animada) – Ela pode me ajudar nos serviços da casa, também...
A MÃE – É claro, minha filha... desde que eu não tenha que lavar a louça!
GERDA
–
Tenho
certeza
que
vai
dar
certo!
A
única
coisa
que
eu
quero
é
ter
o
meu
marido
só
pra
mim!
Não
quero
que
ninguém
olhe
pra
ele
daquele
jeito...
que
olharam
no
hotel...
foi
por
isso
que
encurtamos
a
nossa
lua
de
mel.
Se
alguém
tentar
roubar
meu
marido,
eu
mato!
Estou
falando
sério!
A MÃE – Então vamos começar a mudar os móveis...
O GENRO (olha fixamente para a Mãe) – Isso! Gerda pode começar por aqui...
GERDA
–
Por
que?
Não
quero
ficar
sozinha...
Não
me
sinto
à
vontade
nesta
casa,
enquanto
a
gente
não
se
mudar
pra
cá
definitivamente.
O GENRO – Se vocês têm medo de escuro, vamos nós três juntos então...
Saem todos.
*
16
O
palco
está
vazio;
o
vento
sopra
fora,
uivando
através
das
janelas
e
da
lareira,
a
porta
do
fundo
começa
a
bater;
voam
papéis
na
sala;
uma
palmeira,
colocada
sobre
uma
pequena
estante,
começa
a
abanar
furiosamente;
um
retrato
cai
da
parede.
Ouve‐se
a
voz
do
Filho
“Mãe”,
e,
pouco
depois,
“Fecha
a
janela!”.
Pausa.
A
cadeira
de
balanço
se
move.
A
MÃE
(entra
enlouquecida
de
raiva,
com
uma
folha
de
papel
na
mão)
–
Que
é
isto?
A
cadeira
de
balanço
está
se
mexendo
sozinha!
O
GENRO
(entrando
atrás
dela)
–
Que
papel
é
esse?
O
que
é
que
está
escrito
aí?
Deixa
eu
ler!
É
um
testamento?
A
MÃE
–
Fecha
a
porta,
senão
vamos
voar
pelos
ares!
Tive
que
abrir
a
janela
por
causa
desse
cheio
horrível.
Não
é
um
testamento...
É
uma
carta
que
o
meu
marido
deixou
pro
filho...
Acusações
pra
cima
de
mim...
e
pra
cima
de
você
também!
O GENRO – Deixa eu ler!
A
MÃE
–
Não,
só
vai
te
envenenar,
vou
rasgar
isso,
foi
uma
sorte
que
não
caiu
nas
mãos
do
Fredrik...
(rasga
e
joga
na
lareira)
Imagina!
Ele
se
levanta
do
túmulo
e
ergue
sua
voz
acusadora...
É
como
se
não
tivesse
morrido!
Não
consigo
mais
viver
aqui...
Diz
que
eu
matei
ele...
Não
é
verdade!
Ele
morreu
de
ataque
cardíaco,
foi
o
que
o
medico
constatou,
e
disse
outras
coisas
também,
mentiras,
tudo
mentira!
Disse
que
eu
o
arruinei!...
Escuta
Axel,
você
tem
que
arranjar
um
jeito
de
sairmos
daqui,
eu
não
agüento
mais!
Promete...
Olha
a
cadeira
de
balanço!
O GENRO – É a corrente de ar.
A MÃE – Vamos embora daqui! Promete!
O
GENRO
–
Não
posso...
Estava
contando
com
o
dinheiro
da
herança,
você
disse
que
eu
podia
contar,
se
não
fosse
isso,
eu
nunca
teria
casado
com
a
tua
filha
e,
agora,
temos
que
encarar
a
realidade...
Eu
me
sinto
traído,
arruinado!
Se
quiser
sobreviver,
é
melhor
você
continuar
a
se
dar
bem
comigo,
fazer
economias;
você
vai
ter
que
nos
ajudar
aqui
em
casa,
no
serviço
pesado
da
casa.
A
MÃE
–
Você
está
dizendo
que
eu
vou
ter
que
trabalhar
como
uma
empregada
na
minha
própria
casa?
Você
não
pode
me
obrigar!
O GENRO – A necessidade não conhece... (as leis)
A MÃE – Você é um canalha!
O GENRO – Cala a boca!
A
MÃE
–
Ser
empregada
de
vocês!
17
O
GENRO
–
Você
vai
sentir
na
pele
o
que
as
tuas
empregadas
sentiam,
quando
passavam
fome
e
frio.
Você
acha
que
vai
escapar
dessa?
A MÃE – Eu tenho a minha pensão...
O
GENRO
–
Isso
não
dá
nem
pra
pagar
um
quarto
no
sótão,
mas
dá
pra
pagar
a
tua
parte
aqui,
se
continuarmos
juntos...
E
se
vocês
duas
não
concordarem,
eu
vou
embora.
A MÃE – Abandonar a Gerda? Você nunca amou a Gerda...
O
GENRO
–
Você
sabe
melhor
do
que
ninguém
que
não...
Fez
de
tudo
pra
afastá‐la
de
mim,
do
meu
afeto,
a
nossa
relação
ficou
reduzida
só
à
cama...
e
se
tivéssemos
um
filho,
você
também
o
afastaria
dela
também...
Ela
não
sabe
nada
ainda,
não
compreende
nada,
vive
como
uma
sonâmbula,
mas
já
começou
a
despertar.
Toma
cuidado
quando
ela
abrir
os
olhos!
A
MÃE
–
Temos
que
nos
manter
unidos,
Axel!
Não
podemos
nos
separar...
Eu
não
consigo
viver
sozinha;
aceito
tudo,
tudo...
menos
dormir
na
poltrona...
O
GENRO
–
Não!
Não
vou
estragar
a
decoração
pondo
uma
cama
aqui
na
sala...
É
a
minha
última
palavra!
A MÃE – Mas deixa, pelo menos, eu comprar outra poltrona...
O GENRO – Não, não temos dinheiro pra isso, e essa é uma poltrona tão bonita!
A MÃE – Bonita? Mais parece um monte de carne ensangüentada!
O
GENRO
–
Que
absurdo!
Mas
se
não
gosta
dela,
te
resta
o
sótão,
a
solidão
e
depois
o
asilo.
A MÃE – Desisto !
O GENRO – Faz bem.
Pausa
A MÃE – Não consigo entender, ele disse pro filho que eu matei ele.
O
GENRO
–
Há
muitas
maneiras
de
matar...
e
a
tua
tem
a
vantagem
de
não
estar
no
código
penal!
A
MÃE
–
A
minha?
A
nossa,
porque
você
contribuiu,
você
sim,
você
ajudou
a
irritar
o
meu
marido
até
deixar
ele
desesperado...
18
O
GENRO
–
Ele
era
um
obstáculo
no
meu
caminho
e
não
queria
sair!
Por
isso,
tive
que
dar
um
empurrãozinho...
A
MÃE
–
A
única
coisa
que
eu
te
critico
foi
ter
feito
eu
sair
da
minha
casa...
Nunca
vou
esquecer
aquela
noite,
a
primeira
que
passei
na
tua
casa,
quando
estávamos
sentados
na
mesa,
festejando
a
minha
chegada,
e
ouvimos
aqueles
gritos
horríveis
que
vinham
lá
de
fora,
do
jardim,
parecia
que
vinham
de
uma
prisão
ou
de
um
manicômio...
lembra?
Era
ele,
caminhando
pelos
jardins,
de
um
lado
para
o
outro,
debaixo
da
chuva,
no
meio
da
escuridão,
clamando
pela
mulher
e
pelos
filhos...
O
GENRO
–
Por
que
é
que
está
falando
nisso
agora?
E
como
é
que
você
sabe
que
era
ele?
A MÃE – Ele fala na carta!
O GENRO – E daí? Ele também não era nenhum anjo...
A MÃE – Não, não era, mas ele tinha sentimentos, às vezes, mais do que você...
O GENRO – Você está mudando de lado agora...
A MÃE – Não briga comigo! Precisamos ficar juntos!
O GENRO – É, precisamos. Estamos condenados...
Ouvem‐se gritos roucos fora de cena.
A MÃE – O que é isso? Ouviu? É ele...
O GENRO (áspero) – Ele quem?
A Mãe escuta.
O GENRO – Quem é?... É o cara! Deve estar bêbado outra vez!
A
MÃE
–
É
o
Fredrik?
A
voz
parecia...
Pensei...
Não
agüento
mais
isso!
Que
é
que
ele
tem?
O GENRO – Vai lá ver. Esse animal ta bêbado outra vez!
A MÃE – Não fale assim! Apesar de tudo, ele é meu filho!
O GENRO – Teu filho, claro... (tira o relógio do bolso)
A MÃE – Por que é que está olhando pro relógio? Não vai ficar pra jantar?
O
GENRO
–
Não,
obrigado,
não
gosto
de
chá
aguado
e
não
costumo
comer
anchovas
vencidas...
nem
papa
de
aveia...
Além
disso,
tenho
uma
reunião...
19
A MÃE – Reunião?
O
GENRO
–
Negócios
que
não
têm
nada
a
ver
com
você!
Tá
fazendo
o
papel
de
sogra,
agora?
A MÃE – Vai deixar tua mulher sozinha logo na primeira noite em casa?
O GENRO – Você não tem nada com isso!
A
MÃE
–
Agora
eu
estou
começando
a
ver
o
que
me
espera...
a
mim
e
aos
meus
filhos!
Chegou
o
momento
de
tirar
as
máscaras.
O GENRO – Chegou o momento!
*
SEGUNDO ATO
O
mesmo
cenário.
Alguém
toca
piano
fora
de
cena:
“Berceuse”
da
ópera
Jocelyn,
de
Benjamin
Godard.
Gerda
está
sentada
na
escrivaninha.
Pausa
longa.
O FILHO (entrando) – Tá sozinha?
GERDA – Estou! Mamãe está na cozinha.
O FILHO – E o Axel?
GERDA – Foi à uma reunião... Senta e fala comigo, Fredrik, faz companhia pra mim.
O
FILHO
(senta‐se)
–
Acho
que
nós
nunca
conversamos,
sempre
nos
evitamos,
nenhuma
afinidade...
GERDA – Você sempre ficou do lado do papai e eu da mamãe.
O FILHO – Talvez isso vá mudar agora!... Você conhecia bem o papai?
GERDA – Que pergunta! Na verdade... Eu conhecia ele através dos olhos da mamãe...
O FILHO – Mas você sabe que ele gostava de você!
GERDA – Então, por que é que tentou impedir meu casamento?
O
FILHO
–
Porque
ele
achava
que
o
teu
marido
não
ia
te
dar
o
apoio
que
você
precisava!
GERDA – Levou um belo castigo quando mamãe deixou ele.
O
FILHO
–
Foi
o
teu
marido
que
fez
ela
abandonar
o
papai?
20
GERDA
–
Ele
e
eu.
Precisávamos
mostrar
pra
ele
o
que
é
uma
separação,
já
que
ele
sempre
quis
me
separar
do
meu
noivo.
O FILHO – E isso fez ele morrer mais rápido... E acredite que ele só queria o teu bem!
GERDA – Você ficou com ele, o que é que ele dizia, como é que reagiu?
O FILHO – Não vou conseguir te descrever o sofrimento dele...
GERDA – O que ele falava da mamãe?
O
FILHO
–
Nada!
Vou
te
dizer
uma
coisa,
depois
de
tudo
que
eu
vi,
tomei
a
decisão
de
não
me
casar
nunca!
Pausa
O FILHO – Você é feliz, Gerda?
GERDA Claro! Quando se consegue ter o homem que você sempre quis, a gente é feliz!
O
FILHO
–
Então
por
que
é
que
teu
marido
te
deixou
sozinha,
na
primeira
noite
em
casa?
GERDA – Negócios, ele foi à uma reunião!
O FILHO – Num restaurante?
GERDA – Que isso? Como é que você sabe?
O FILHO – Pensei que você soubesse.
GERDA (chora escondendo o rosto nas mãos) – Meu Deus, meu Deus!
O FILHO – Desculpa, não quis te deixar mal!
GERDA – Mas deixou! Me deixou muito mal! Eu quero morrer!
O FILHO – Por que não viajaram mais tempo?
GERDA
–
Ele
estava
preocupado
com
os
negócios
e,
além
disso,
sentia
falta
da
mamãe,
não
consegue
ficar
longe
dela...
Olham‐se fixamente.
O FILHO – É mesmo?
Pausa
O
FILHO
–
E
a
viagem,
foi
agradável?
21
GERDA – Claro!
O FILHO – Ai, Gerda!
GERDA – O que foi?
O
FILHO
–
Você
sabe
como
a
mamãe
é
curiosa,
sabe
usar
o
telefone
melhor
do
que
ninguém!
GERDA – Como assim? Ela andou espionando?
GERDA – Você sempre pensa mal da mamãe.
O FILHO – E você sempre bem! Por que? Você sabe muito bem como ela é...
GERDA – Não! Nem quero saber...
O FILHO – Se você não quer, então é outra coisa; talvez você tenha as suas razões...
GERDA
–
Cala
a
boca!
Vivo
como
uma
sonâmbula,
eu
sei,
mas
eu
não
quero
que
me
acordem!
Senão
não
vou
conseguir
viver!
O
FILHO
–
Você
não
acha
que
todos
nós
vivemos
como
sonâmbulos?...
Nos
meus
livros
de
Direito,
li
histórias
de
criminosos
que
não
eram
capazes
de
explicar
como
as
coisas
tinham
acontecido...
Eles
achavam
que
estavam
fazendo
a
coisa
certa
até
o
momento
em
que,
surpresos,
eram
acordados!
Não
era
um
sonho,
claro,
mas
era
como
se,
de
algum
modo,
estivessem
dormindo!
GERDA
–
Me
deixa
dormir!
Sei
que
vou
ter
que
acordar
um
dia,
mas
que
seja
o
mais
tarde
possível!
Ah!
Todas
essas
coisas
que
eu
não
conheço,
que
eu
só
sinto!
Lembra
quando
éramos
pequenos...
As
pessoas
achavam
que
a
gente
era
mau
quando
a
gente
falava
a
verdade...
Você
é
tão
má,
sempre
me
diziam
quando
eu
falava
que
uma
coisa
feia
era
feia...
então
eu
aprendi
a
ficar
calada...
e
aí
eu
era
elogiada
pelo
meu
belo
comportamento;
depois
eu
aprendi
a
falar
aquilo
que
eu
não
achava,
então,
eu
estava
pronta
pra
entrar
no
mundo.
O
FILHO
–
Você
tem
que
lançar
um
véu
sobre
os
erros
e
as
fraquezas
dos
outros;
um
passo
a
mais,
isso
chama
hipocrisia,
bajulação...
É
difícil
saber
como
se
comportar...
temos
obrigação
de
falar
o
que
a
gente
pensa.
GERDA – Chega!
O
FILHO
–
Não
digo
mais
nada.
22
Pausa
GERDA
–
Não,
fale,
mas
não
disso!
Consigo
ouvir
os
teus
pensamentos
no
silêncio!...
Quando
as
pessoas
se
juntam,
falam
sem
parar,
pra
esconderem
os
seus
pensamentos...
Pra
esquecerem,
pra
ficarem
entorpecidas...
Querem
saber
tudo
dos
outros,
mas
preferem
ficar
quietas
na
hora
de
falar
delas.
O FILHO – Ai, Gerda!
GERDA – Sabe o que dói mais?
Pausa
GERDA – Compreender a inutilidade da grande felicidade!
O FILHO – É isso mesmo.
GERDA – Estou com frio, acende a lareira.
O FILHO – Você também sente frio?
GERDA – Sempre senti frio e fome!
O
FILHO
–
Você
também?
É
estranho
o
que
acontece
nessa
casa!...
Mas
se
eu
for
lá
fora
buscar
lenha,
vai
virar
um
escândalo...
Mamãe
vai
falar
durante
uma
semana.
GERDA
–
Talvez
tenha
sobrado
alguma
lenha
na
lareira;
às
vezes,
a
mamãe
fazia
isso
pra
gente
acreditar
que...
O Filho se aproxima da lareira e abre as portas.
O FILHO – Sobrou alguma lenha sim!...
Pausa
O
FILHO
–
Mas
o
que
é
isto?...
Uma
carta!
Rasgada,
podíamos
usar
pra
ajudar
a
acender...
GERDA
–
Não
acende,
Fredrik
senão
ela
vai
falar
até
não
poder
mais.
Senta
de
novo,
vamos
conversar...
O Filho se senta ao lado dela e põe a carta na sua frente, em cima da mesa. Pausa.
GERDA – Sabe por que é que o papai odiava tanto o meu marido?
O
FILHO
–
Claro,
porque
o
Axel
veio
pra
tirar
a
filha
e
a
mulher
dele,
e
ele
ficou
sozinho;
depois
ele
notou
que
o
Axel
era
mais
bem
tratado
do
que
ele;
vocês
se
fechavam
na
sala
pra
ouvir
música,
ler
livros,
coisas
que
ele
não
tinha
o
menor
23
interesse,
ele
sentia
rejeitado,
um
estranho
na
sua
própria
casa,
foi
por
isso
que
ele
começou
a
freqüentar
os
bares...
GERDA
–
Nós
não
sabíamos
o
que
fazíamos...
Coitado
do
papai!
É
uma
sorte
ter
pais
que
tenham
um
nome
e
uma
reputação
inatacáveis,
dos
quais
podemos
ter
orgulho.
Lembra
das
bodas
de
prata,
os
discursos
que
fizeram
pra
eles,
os
poemas!
O
FILHO
–
Lembro,
mas
achei
que
aquilo
tudo
era
uma
farsa,
todo
mundo
festejando
o
casal
feliz
que
vivia
brigando
feito
cão
e
gato...
GERDA – Fredrik!
O
FILHO
–
É
isso
mesmo,
você
sabe
muito
bem
como
eles
viviam...
Não
se
lembra
quando
a
mamãe
quis
se
atirar
pela
janela
e
tivemos
que
segurar?
GERDA – Cala a boca!
O
FILHO
–
Claro
que
tem
coisas
que
não
sabemos...
Depois
do
divórcio,
quando
eu
passeava
com
o
velho,
várias
vezes
vi
que
ele
queria
falar,
mas
as
palavras
se
recusavam
a
sair
da
boca...
Sonho
com
ele,
às
vezes...
GERDA
–
Eu
também!...
Mas,
quando
ele
aparece,
parece
que
tem
uns
trinta
anos...
ele
me
olha
com
carinho,
seu
olhar
tem
algum
significado,
mas
não
sei
qual
é...
Às
vezes
a
mamãe
está
com
ele;
mas
ele
não
está
zangado
com
ela,
porque
ele
sempre
gostou
muito
dela,
até
o
fim.
Lembra
da
maneira
tão
bonita
como
ele
falou
da
mamãe
na
festa
das
bodas
de
prata,
como
ele
lhe
agradeceu,
apesar
de
tudo...
O FILHO – Apesar de tudo! Isso não quer dizer muita coisa.
GERDA – É, mas foi um discurso tão bonito! E ela merecia, foi uma boa dona de casa.
O FILHO – Ah, isso eu não concordo!
GERDA – Por que?
O
FILHO
–
Olha
como
vocês
se
defendem,
vocês
todas!
Só
falar
que
é
uma
boa
dona
de
casa,
e
vocês
todas
se
unem
num
time...
uma
verdadeira
Maçonaria...
Eu
até
perguntei
pra
Margret,
cm
quem
eu
me
dou
muito
bem,
sobre
a
nossa
situação
financeira,
por
que
estávamos
sempre
com
fome
nessa
casa...
mas
aquela
faladeira
calou
a
boca.
Ela
ficou
calada
e
chateada...
pode
me
explicar
isso?
GERDA – Não!
O FILHO – Tô vendo que você também pertence à essa máfia.
GERDA
–
Como
assim?
24
O
FILHO
–
Às
vezes
eu
me
pergunto
se
o
papai
não
foi
vítima
dessa
sociedade
secreta,
que
com
certeza
ele
descobriu.
GERDA – Às vezes você fala feito louco.
O
FILHO
–
Lembro
que
o
papai
às
vezes
brincava
com
a
palavra
máfia.
Mas
de
um
tempo
pra
cá,
ele
nunca
mais
brincou...
GERDA – Que frio terrível que está aqui, parece uma tumba...
O FILHO – Vou acender a lareira. Não quero nem saber!
Apanha
distraidamente
a
carta
rasgada,
pouco
a
pouco,
seu
olhar
se
fixa
na
carta
e
então
começa
a
ler
O
FILHO
–
O
que
é
isso?
(Pausa)
Para
o
meu
filho!...
A
letra
do
meu
pai!
(Pausa)
Uma
carta
pra
mim!
Lê. Cai numa cadeira, mas continua a ler.
GERDA – O que é que está escrito, o que é?
O FILHO – Terrível! (Pausa) Isso é horrível!
GERDA – Diz o que é!
Pausa
O
FILHO
–
É
demais!
(Pra
Gerda)
É
uma
carta
que
papai
escreveu,
pra
mim.
(Continua
a
ler)
Agora
é
que
eu
estou
começando
a
despertar
do
meu
sono!
Ele se joga na chaise longue e uiva de dor, metendo a carta no bolso.
GERDA
(Ajoelhando‐se
ao
seu
lado)
–
O
que
é
Fredrik?
Me
diz
o
que
é!...
Meu
irmão,
você
está
se
sentindo
mal,
fala,
fala!
O FILHO (se levantando) – Como é que eu vou viver agora?
GERDA – Mas fala!
O FILHO (se dominando) – É inacreditável!...
GERDA – Talvez não seja verdade!...
O FILHO – Não, não se consegue mentir do fundo da tumba...
GERDA – Talvez sua imaginação estivesse doente.
O
FILHO
–
Máfia!
Ela
de
novo;
eu
vou
te
contar!...
Escuta!
25
GERDA – Acho que eu já sei de tudo; mas não consigo acreditar!
O
FILHO
–
É
porque
você
não
quer
acreditar!
Mas
é
a
verdade!
Essa
mulher
que
te
deu
a
luz
é
uma
farsa.
GERDA – Não!
O
FILHO
–
Roubava
o
dinheiro
da
casa,
falsificava
as
contas,
comprava
comida
barata,
mas
cobrava
como
sendo
a
mais
cara
pra
ficar
com
o
troco,
de
manhã,
ela
comia
sozinha
na
cozinha
e
pra
gente,
esquentava
os
restos
e
aguava
o
leite;
por
isso,
que
não
somos
muito
bem
desenvolvidos,
vivemos
doentes
e
com
fome.
E
o
dinheiro
da
lenha
também,
ela
roubava,
por
isso
que
a
gente
vivia
com
frio.
Papai
descobriu
tudo;
chamou
a
atenção
dela,
ela
prometeu
mudar,
mas
ela
continuou,
até
se
aperfeiçoou.
Suas
últimas
descobertas
foram
o
molho
de
soja
e
a
pimenta!
GERDA – Não acredito em nenhuma palavra que você está dizendo!
O
FILHO
–
Máfia!...
Mas
ainda
não
contei
o
pior!
Esse
miserável,
que
é
agora
o
teu
marido,
Gerda,
nunca
te
amou,
ele
amava
a
tua
mãe!
GERDA – Não!
GERDA
(chora,
pondo
um
lenço
nos
olhos)
–
Eu
já
sabia
de
tudo
isso,
mas
não
queria
acreditar...
Era
demais
pra
mim!
O FILHO – O que nós podemos fazer agora pra te salvar de mais humilhações?
GERDA – Ir embora!
O FILHO – Pra onde?
GERDA – Não sei!
O FILHO – Espera, pra ver como a situação vai ficar!
GERDA – Uma filha não pode fazer nada contra a própria mãe, as mães são sagradas...
O FILHO – A nossa é o demônio!
GERDA – Não fala assim!
O FILHO – Ela é uma raposa, e o egoísmo deixa ela cega...
GERDA
–
Vamos
fugir
daqui!
26
O
FILHO
–
Pra
onde?
Não,
vamos
esperar
até
que
esse
vigarista
ponha
ela
na
rua!...
Shhh!
Lá
vem
ele!...
Shhh!...
Agora
Gerda,
somos
nós
dois
que
vamos
formar
a
nossa
sociedade
secreta!
E
a
senha
é
que
ele
te
bateu
na
noite
de
núpcias!
GERDA
–
Você
precisa
me
lembrar
disso
sempre!
Senão
me
esqueço!
Queria
tanto
esquecer!
O
FILHO
–
A
nossa
vida
está
arruinada...
não
temos
mais
ninguém
pra
respeitar,
ninguém
pra
olhar
com
admiração...
nossa
única
razão
de
viver
é
pra
honrar
a
memória
de
nosso
pai.
GERDA – E pra fazer justiça!
O FILHO – Não é justiça, é vingança!
*
O Genro entra.
GERDA (disfarçando) – Boa noite!... Como foi a reunião? Deu tudo certo?
O GENRO – A reunião foi cancelada!
GERDA – O restaurante estava fechado?
O GENRO – Eu disse que a reunião foi cancelada!
GERDA – Será que agora você vai conseguir ficar aqui em casa?
O
GENRO
–
Você
está
bem
alegre
essa
noite,
Fredrik
deve
ter
sido
uma
boa
companhia.
GERDA – Brincamos de Maçonaria!
O GENRO – Isso não é coisa que se brinque!
O FILHO – Então podemos brincar de Mafia! Ou então de vendetta!
O
GENRO
(pouco
à
vontade)
–
Que
conversa
estranha,
posso
saber
o
que
está
acontecendo,
estão
escondendo
alguma
coisa?
GERDA
–
Por
que
não?
Você
também
tem
os
seus
segredos
e
não
me
conta,
não
é
verdade?
Ou
será
que
não
tem
nenhum?
O GENRO – O que está acontecendo? Alguém veio aqui?
O
FILHO
–
Gerda
e
eu
viramos
espíritas
e
recebemos
a
visita
de
uma
alma
do
outro
mundo.
27
O
GENRO
–
Chega
de
brincadeira!
Não
é
bom
brincar
com
essas
coisas!
Mas
pra
falar
a
verdade,
você
fica
bem
alegre,
Gerda...
Você
está
sempre
tão
triste...
(tenta
fazer
um
carinho
no
seu
rosto,
mas
ela
foge)
Está
com
medo
de
mim?
GERDA
(parando
de
disfarçar)
–
Claro
que
não.
Há
sentimentos
que
podem
parecer
medo,
mas
são
outra
coisa.
Tem
atitudes
também
que
dizem
mais
que
um
simples
gesto,
e
tem
palavras
que
escondem
o
que
nem
os
gestos
e
nem
um
olhar
conseguem
revelar...
O
Genro,
surpreendido,
tamborila
numa
estante.
O
Filho
levanta‐se
da
cadeira
de
balanço,
que
continua
a
balançar
até
a
entrada
da
Mãe.
O FILHO – Lá vem a mamãe com a papa de aveia!
O GENRO – O que é que...?
*
A
MÃE
(entra)
–
O
que
...
(Vê
a
cadeira
balançando,
fica
assustada,
mas
depois
se
acalma)
Vocês
não
querem
vir
comer?
O
GENRO
–
Não,
obrigado!
Se
for
aveia,
pode
dar
pros
cachorros,
se
for
centeio,
faz
um
cataplasma
e
põe
nos
teus
furúnculos...
A MÃE – Somos pobres, temos que fazer economia...
O GENRO – Ninguém é pobre com vinte mil por mês!
O FILHO – É, a não ser quando se empresta dinheiro pra quem não paga depois!
O GENRO – O que você está falando? Está maluco?
O FILHO – Estava, mas agora não estou mais.
A MÃE – Vocês vêm ou não?
GERDA – Vamos! Coragem, senhores, pois vou fazer um belo bife...
A MÃE – Você?
GERDA – É, eu, na minha casa...
A MÃE – Imagina!
GERDA (fazendo um gesto para a porta) – Senhores, façam o favor!
O
GENRO
(para
a
Mãe)
–
O
que
está
acontecendo?
28
A MÃE – Vem coisa aí!
O GENRO – Também acho.
GERDA – Por favor, senhores!
Eles vão em direção à porta.
A
MÃE
(para
o
Genro)
–
Você
reparou
que
cadeira
de
balanço
estava
balançando?
A
cadeira
de
balanço
dele?
O GENRO – Não, nisso eu não reparei. Mas reparei outras coisas!
TERCEIRO ATO
O
mesmo
cenário.
Ouve‐se
alguém
tocar
a
valsa
“Il
me
disait”
de
Pierre
Ferraris.
Gerda
está
sentada
lendo
um
livro.
A MÃE (entra) – Reconhece?
GERDA – A valsa? Reconheço.
A MÃE – A valsa do teu casamento, que eu dancei a noite inteira.
GERDA – Dançou?... Onde está o Axel?
A MÃE – Como é que você quer que eu saiba?
GERDA – O que? Já discutiram?
Pausa. Olham‐se sem dizer nada.
A MÃE – O que você está lendo?
GERDA
–
Um
livro
de
receitas.
Mas
não
diz
aqui
quanto
tempo
as
coisas
devem
ficar
no
fogo.
A
MÃE
(meio
sem
graça)
–
Sabe,
isso
varia
tanto,
depende
do
gosto
de
cada
um,
uns
fazem
de
um
jeito,
outros
de
outro...
GERDA
–
Não
entendo,
um
prato
tem
que
ser
servido
logo
que
fica
pronto;
senão
tem
que
requentar,
e
aí
não
fica
gostoso.
Por
exemplo,
outro
dia,
você
ficou
três
horas
cozinhando
uma
galinha;
na
primeira
hora,
a
gente
sentia
um
cheiro
delicioso
na
casa
toda;
depois
fez‐se
um
silêncio
na
cozinha,
e
quando
o
almoço
foi
servido,
o
cheiro
e
o
gosto
tinham
se
evaporado!
Como
pode!
29
A MÃE (sem graça) – Eu não estou entendendo!
GERDA
–
Então
me
explica
por
que
é
que
não
tinha
molho
nenhum
na
comida,
onde
ele
foi
parar,
quem
comeu?
A MÃE – Não estou entendendo nada!
GERDA
–
Pode
ser,
mas
é
que
eu
tenho
me
informado
sobre
o
assunto,
e
já
aprendi
muita
coisa...
A
MÃE
(interrompe)
–
Eu
sei
todas
essas
coisas,
você
não
precisa
me
ensinar
nada...
Eu
é
que
posso
te
ensinar
tudo
sobre
a
administração
de
uma
casa...
GERDA
–
Você
vai
me
ensinar
sim;
a
disfarçar
o
gosto
ruim
da
comida
com
molho
e
pimenta?
Isso
eu
já
sei...
E
a
servir
nas
festas,
pratos
que
ninguém
quer
comer,
pra
depois
sobrar
no
dia
seguinte;
convidar
pessoas
pra
jantar
quando
só
tiver
restos
pra
servir?
Isso
tudo
eu
já
sei,
e
é
por
isso
que,
a
partir
de
hoje,
quem
vai
governar
essa
casa
sou
eu!
A MÃE (furiosa) – Quer dizer que eu vou ser tua empregada?
GERDA
–
Vamos
ser
empregadas
uma
da
outra,
uma
ajudando
a
outra!...
O
Axel
está
chegando.
*
Axel entra com uma bengala grossa na mão.
O GENRO – Então? Que tal a poltrona? É boa pra dormir?
A MÃE – É, na verdade...
O GENRO (ameaçando) – Não é boa? Está faltando alguma coisa?
A MÃE – Agora começo a entender!
O
GENRO
–
Verdade?...
Então,
como
não
é
possível
comer
decentemente
nesta
casa,
a
Gerda
e
eu
decidimos
comer
fora.
A MÃE – E eu?
O
GENRO
–
Você?
Você
está
gorda
feito
um
porco,
não
precisa
comer
muito.
Pelo
contrário,
seria
melhor
você
emagrecer
um
pouco,
como
todos
nós
emagrecemos
aqui...
Você
pode
nos
deixar
um
instante,
Gerda;
e
enquanto
isso,
você
podia
acender
a
lareira!
(Gerda
sai)
A
MÃE
(tremendo
de
raiva)
–
Já
tem
lenha
na
lareira...
30
O
GENRO
–
Não!
Só
uns
tocos,
mas
muito
pouco.
Vai
buscar
as
toras
mais
grossas
pra
colocar
na
lareira!
A MÃE (hesita) – Quer queimar o nosso dinheiro?
O
GENRO
–
Não,
quero
queimar
lenha
e
esquentar
essa
casa.
Anda,
rápido!
(A
Mãe
não
se
move)
Vamos!
Um...
dois...
três!
Bate com a bengala na mesa.
A MÃE – Acho que não tem mais lenha...
O
GENRO
–
Das
duas
uma:
ou
você
está
mentindo,
ou
roubou
o
dinheiro
da
lenha...
Pelo
que
sei
há
poucos
dias
compraram
um
monte
de
lenha!
A MÃE – Agora é que eu vejo quem você é de verdade...
O
GENRO
(senta‐se
na
cadeira
de
balanço)
–
Já
teria
visto
há
muito
tempo,
se
a
tua
idade
e
a
tua
experiência
não
tivessem
conseguido
me
enganar...
Depressa,
vai!
Vai
buscar
a
lenha,
senão...
(levanta
a
bengala)
A Mãe sai e volta imediatamente com algumas toras.
O
GENRO
–
Agora
acende
um
bom
fogo
pra
mim,
não
quero
um
foguinho!
Entendeu?
Vamos!
Um,
dois,
três!
A MÃE – Você parece um velho, aí sentado na cadeira de balanço dele!
O GENRO – Acende!
A MÃE (obedece com raiva) – Eu acendo, eu acendo!
O GENRO – E agora fica aí tomando conta, enquanto nós vamos comer alguma coisa...
A MÃE – E eu? Vou comer o que?
O GENRO – A papa de aveia que a Gerda deixou pra você na cozinha.
A MÃE – Com aquele leite aguado...
O GENRO – Claro, até agora você não ficou sempre com a melhor parte?
A MÃE (em tom sombrio) ‐ Vou embora.
O GENRO – Não pode. Vou te trancar aqui!
A
MÃE
(sussurrando)
–
Então
eu
vou
pular
pela
janela!
31
O
GENRO
–
Como
quiser!
Já
devia
ter
feito
isso
há
muito
tempo,
teria
salvo
a
vida
de
quatro
pessoas!
Vamos!...
Acende
esse
fogo
logo...
Sopra!
Isso!
Fica
aí
sentada
até
a
gente
voltar.
(Sai)
Pausa.
A
Mãe
pára
a
cadeira
de
balanço
primeiro;
vai
escuta
à
porta,
retira
da
lareira
algumas
toras
e
as
esconde
embaixo
da
poltrona.
*
O Filho entra, um pouco bêbado.
A MÃE (reage sobressaltada) – É você?
O FILHO (senta‐se na cadeira de balanço) – Sou.
A MÃE – Como você está?
O FILHO – Mal. Eu estou perdido.
A
MÃE
–
Você
fala
cada
coisa...
Não
balance
assim
a
cadeira!...
Olha
pra
mim,
já
tenho...
uma
certa
idade...
e
sempre
cumpri
com
meus
deveres
de
esposa
e
mãe...
Não
é
verdade?
O
FILHO
–
Ah!
Claro!
“O
Pelicano”,
se
bem
que
o
pelicano
nunca
deu
o
sangue
pelos
filhos,
todo
mundo
sabe
que
isso
é
uma
lenda,
um
mito.
A MÃE – Se você tem alguma queixa de mim, então fale!
O
FILHO
–
Escuta
mãe,
se
eu
não
estivesse
bêbado,
não
teria
coragem
pra
te
dizer
a
verdade,
li
a
carta
do
papai,
que
você
roubou
e
jogou
na
lareira.
A MÃE – O que, que carta, do que você está falando?
O
FILHO
–
Sempre
mentindo!
Eu
lembro
a
primeira
vez
que
você
me
ensinou
a
mentir,
eu
mal
sabia
falar
ainda,
você
se
lembra?
A MÃE – Não, não me lembro! Pára de balançar essa cadeira!
O
FILHO
–
E
da
primeira
vez
que
você
colocou
a
culpa
em
mim,
pra
se
defender?...
Também
me
lembro
uma
outra
vez,
quando
eu
era
pequeno,
tinha
me
escondido
atrás
do
piano
e
uma
tia
veio
te
visitar;
você
mentiu
pra
ela
durante
três
horas
e
eu
ali
obrigado
a
ouvir
tudo!
A MÃE – Isso é mentira!
O
FILHO
–
Sabe
por
que
é
que
eu
vivo
doente?
Eu
não
tive
leite
materno,
eu
só
tomava
mamadeira
que
a
babá
me
dava;
quando
eu
cresci
um
pouco
mais,
essa
babá
me
32
levava
pra
casa
da
irmã,
uma
prostituta;
assisti
a
tudo
que
se
pode
imaginar
que
aconteça
num
lugar
como
esse,
eu
tinha
quatro
anos,
e
quando
te
contei
o
que
tinha
visto
naquele
lugar,
você
me
chamou
de
mentiroso
e
me
bateu,
mas
eu
estava
dizendo
a
verdade!
Essa
mulher,
graças
a
você,
me
iniciou,
quando
eu
tinha
só
cinco
anos,
só
cinco...
(soluça,
contendo
o
choro)
Depois
disso,
sempre
vivi
com
fome
e
frio,
eu
papai,
e
Gerda...
E
só
agora,
depois
de
tantos
anos,
é
que
fiquei
sabendo
que
você
roubava
grande
parte
do
dinheiro
da
comida
e
da
lenha...
Olha
pra
mim,
pelicano,
e
olha
pra
Gerda,
pra
aquele
corpo
pequeno,
mal
desenvolvido!...
Você
sabe
muito
bem
que
você
assassinou
o
meu
pai,
levando
ele
ao
desespero,
claro,
esse
não
é
um
crime
que
esteja
previsto
na
lei;
acho
que
você
sabe
também
que
destruiu
a
vida
da
minha
irmã,
mas
ela
já
sabe
de
tudo
que
você
fez
pra
ela.
A MÃE – Pára com essa cadeira! ... O que ela sabe?
O
FILHO
–
O
mesmo
que
você,
eu
nem
me
atrevo
a
dizer!
(Soluça)
É
terrível
falar
isso
tudo,
mas
eu
precisava.
Se
eu
não
ficar
bêbado,
eu
me
mato.
Por
isso
é
que
eu
continuo
a
beber;
tenho
medo
de
ficar
sóbrio...
A MÃE – Continua mentindo.
O
FILHO
–
O
papai
me
disse
uma
vez,
quando
estava
furioso,
que
você
era
uma
das
maiores
fraudes
da
natureza...
que
você
não
aprendeu
a
falar
como
as
outras
crianças,
só
aprendeu
a
mentir...
que
fugiu
sempre
das
responsabilidades
porque
só
pensava
em
se
divertir!
E
eu
me
lembro,
um
dia
que
a
Gerda
estava
muito
doente
e
todos
pensavam
que
ela
ia
morrer...
nessa
mesma
noite,
você
foi
assistir
um
ópera...
Lembro
bem
das
tuas
palavras:
“A
vida
já
é
bastante
dura,
pra
que
deixá‐la
mais
difícil
ainda!”
E
no
verão
desse
mesmo
ano,
você
passou
três
meses
em
Paris
com
o
papai,
sempre
em
festas,
diversão,
loucuras...
Gastaram
tanto
que
ficamos
cheios
de
dívidas.
A
Gerda
e
eu
ficamos
aqui,
enfiados
neste
apartamento
com
duas
empregadas,
e
no
teu
quarto
dormia
um
bombeiro
com
a
cozinheira;
a
sua
cama
foi
usada
por
esse
casal
charmoso...
A MÃE – Por que é que você não me contou isso antes?
O
FILHO
–
Eu
contei,
mas
você
esqueceu,
claro;
e
você
também
esqueceu
que
eu
apanhei
por
ter
mentido
ou
inventado,
você
usava
tanto
uma
palavra
como
a
outra,
porque,
logo
que
ouvia
uma
verdade,
você
dizia
que
era
mentira.
A
MÃE
(anda
pela
sala,
de
um
lado
pro
outro,
como
um
animal
selvagem
dentro
de
uma
jaula)
–
Nunca
vi
nenhum
filho
falar
com
a
mãe
do
jeito
que
você
fala!
O
FILHO
–
Realmente,
não
é
muito
comum,
é
completamente
contrário
às
leis
da
natureza,
eu
sei.
Mas
as
coisas
precisam
ser
ditas.
Você
era
uma
sonâmbula,
33
impossível
de
ser
acordada;
você
não
conseguia
mudar.
O
papai
dizia
que,
“mesmo
sob
tortura,
você
jamais
admitira
os
teus
erros
ou
confessaria
as
tuas
mentiras...”
A MÃE – Seu pai! Sempre seu pai, acha que ele não tinha defeitos?
O
FILHO
–
Tinha
defeitos
graves;
mas
não
com
a
mulher
e
com
os
filhos!
Você
tem
outros
segredos,
segredos
que
eu
pressinto,
adivinho,
mas
que
nunca
quis
aprofundar...
O
papai
levou
a
maior
parte
desses
segredos
pro
túmulo!
A MÃE – Já acabou?
O
FILHO
–
Já.
Agora
vou
sair
pra
beber...
Nunca
vou
passar
nas
provas
da
faculdade,
nunca
vou
ser
advogado,
não
acredito
na
justiça;
as
leis
foram
feitas
por
ladrões
e
assassinos
pra
garantirem
a
liberdade
dos
criminosos;
uma
testemunha
verdadeira
não
é
suficiente,
mas
duas
testemunhas
falsas
bastam
pra
provar
que
alguém
é
culpado.
Posso
ganhar
uma
causa
às
onze
e
meia
e
já
ter
perdido
ao
meio
dia;
um
erro
de
escrita,
a
falta
de
uma
margem
num
documento,
pode
me
atirar
na
prisão,
mesmo
que
eu
seja
inocente.
Se
eu
tiver
piedade
por
um
vigarista,
me
processam
por
difamação.
O
meu
desprezo
pela
vida,
pela
humanidade,
pela
sociedade
e
por
mim
mesmo,
é
tão
grande
que
me
faltam
forças
pra
continuar
vivendo...
(caminha
em
direção
à
porta)
A MÃE – Não vá!
O FILHO – Tem medo de ficar sozinha?
A MÃE – Estou nervosa!
O FILHO – Não me diga que tem nervos!
A
MAE
–
E
essa
cadeira
está
me
deixando
louca!
Sempre
que
ele
se
balançava
nessa
cadeira,
eu
sempre
imaginava
duas
lâminas
gigantes...
e
essas
lâminas
cortavam
o
meu
coração
em
pedaços.
O FILHO – Como se você tivesse um coração.
A MÃE – Não vá embora! Não posso ficar sozinha aqui, o Axel é um crápula!
O
FILHO
–
Eu
também
pensava
isso
até
pouco
tempo!
Mas
agora,
acho
que
ele
é
só
uma
vítima
da
tua
natureza
criminosa...
Ele
foi
só
um
coitado
que
você
seduziu!
A MÃE – Que jeito de falar! Você deve andar com más companhias!
O FILHO – E eu já andei com boas companhias alguma vez?
A MÃE – Não vá!
O
FILHO
–
Você
está
acordando,
por
acaso?
34
A
MÃE
–
Estou,
estou
acordando
de
um
sono
longo,
muito
longo!
É
horrível!
Por
que
é
que
não
me
acordaram
antes?
O
FILHO
–
Por
que?
Porque
era
impossível,
e
se
era
impossível,
você
também
não
podia
ter
feito
nada!
A MÃE – Repete o que você disse.
O FILHO – Você não tinha como ser de outro jeito!
A MÃE (beija‐lhe a mão, servilmente) – Continue falando!
O
FILHO
–
Não
agüento
mais!
Vou
só
te
pedir
uma
coisa:
vai
embora
daqui,
senão
tudo
vai
ficar
ainda
pior!
A MÃE – Tem razão! Vou embora!
O FILHO – Ai, mãe!
A MÃE – Você tem pena de mim?
O
FILHO
(soluça)
‐
Claro
que
tenho!
Quantas
vezes
pensei:
ela
é
tão
má,
que
dá
até
pena.
A MÃE – Obrigada pelas palavras!... Agora vá, Fredrik!
O FILHO – Não tem solução?
A MÃE – Não, é irremediável!
O FILHO ‐ Tem razão! É irremediável. (Sai. Pausa)
*
Sozinha,
fica
muito
tempo
com
os
braços
cruzados
sobre
o
peito.
Depois
dirige‐se
pra
janela,
abre
e
olha
pro
vazio.
Recua
até
o
meio
da
sala
e
prepara
um
movimento
pra
se
jogar
pela
janela,
mas
muda
de
idéia;
nesse
momento,
ouve
três
pancadas
fortes
na
porta.
A
MÃE
–
Quem
é?
O
que
foi
isto?
(fecha
a
janela)
Entre!
(a
porta
abre
no
fundo)
Tem
alguém
aí?
(ouve‐se
o
filho
gritar
fora
de
cena)
É
ele,
no
jardim.
Não
morreu?
O
que
eu
vou
fazer?
Pra
onde
eu
vou?
(esconde‐se
atrás
da
escrivaninha.
O
vento
começa
a
soprar
novamente,
voam
papéis
por
toda
a
sala)
Fecha
a
janela,
Fredrik!
(Um
vaso
com
um
planta,
cai)
Fecha
a
janela!
Estou
morrendo
de
frio.
A
lareira
apagou.
(Acende
todas
as
lâmpadas,
fecha
a
porta,
que
se
abre
novamente
por
si
própria;
a
cadeira
de
balanço
move‐se
com
o
vento;
ela
caminha
em
círculos,
e
por
fim,
se
atira
35
na
poltrona
de
bruços,
escondendo
o
rosto
nas
almofadas.
Gerda
entra,
com
a
papa
de
aveia
numa
bandeja,
que
coloca
em
algum
lugar;
depois,
apaga
todas
as
lâmpadas,
exceto
uma.
A
Mãe,
como
que
despertando,
levanta‐se)
*
Alguém toca “Il me disait”.
A MÃE – Não apague as luzes.
GERDA – Temos que fazer economia.
A MÃE – Por que voltaram tão cedo?
GERDA – Ele não se sentiu bem sem você.
A MÃE – Ah, é?
GERDA – Aqui está o teu jantar!
A MÃE – Não estou com fome.
GERDA – Está sim, mas é que você não come essa papa de aveia!
A MÃE – Como, às vezes!
GERDA
–
Não,
nunca
comeu!
Hoje
você
vai
comer,
o
pior
era
o
teu
sorriso
cruel,
cada
vez
que
torturava
a
gente
com
essas
tigelas
de
papa
rala,
gostava
de
ver
a
gente
sofrer...
Fazia
a
mesma
papa
que
dava
pro
cachorro!
A MÃE – Não consigo tocar nessa coisa aguada, me dá até arrepios!
GERDA
–
Foi
isto
que
sobrou
do
café
que
você
fez
de
manhã!...
Aqui
tem
mais
um
pouco
(Serve
a
papa
de
aveia
numa
mesa
pequena)
Agora
come,
na
minha
frente!
A MÃE – Não posso!
Gerda inclina‐se e tira algumas toras que estavam escondidas debaixo da poltrona.
GERDA – Se não comer, vou contar pro Axel que você roubou estas toras.
A
MÃE
–
Pro
Axel?
Você
não
disse
que
ele
sentia
a
minha
falta?...
Ele
não
vai
fazer
nada
comigo!
Lembra
a
noite
do
teu
casamento,
quando
ele
dançou
comigo
aquela
valsa...
como
é
que
era?
(cantarola
a
segunda
repetição
da
melodia
“Il
me
disait”,
que
está
sendo
tocada
fora
de
cena)
“Il
me
disait!”
GERDA
–
Seria
melhor
você
não
se
lembrar
dessas
coisas...
36
A MÃE – E me dedicou um poema, e me ofereceu flores lindíssimas!
GERDA – Cala a boca!
A
MÃE
–
Quer
que
eu
recite
o
poema?
Sei
de
cor...
“Em
Ginnistan...”
Ginnistan
é
uma
palavra
persa
que
quer
dizer
o
Jardim
do
Paraíso
onde
as
graciosas
Peris
viviam
entre
perfumes
raros...
Peris
são
gênios,
fadas,
e
a
natureza
delas
é
tal,
que
quanto
mais
vivem,
mais
jovens
se
tornam...
GERDA – Ai meu Deus, você acha que é uma Peri?
A
MÃE
–
Claro,
está
no
poema,
o
tio
Victor
até
pediu
a
minha
mão;
o
que
vocês
achariam
de
me
casar
outra
vez?
GERDA
–
Coitada
da
mamãe!
Continua
sonâmbula,
igual
a
todos
nós.
Será
que
você
nunca
vai
acordar?
Não
vê
que
as
pessoas
riem
de
você?
Não
percebe
quando
o
Axel
te
insula?
A MÃE – Me insulta? Acho ele mais delicado comigo do que com você...
GERDA – Mesmo quando ele ameaçou te bater com a bengala?
A MÃE – Me ameaçou? É com você que ele usa a bengala, minha querida!
GERDA – Ai mãe, você perdeu o juízo mesmo?
A
MÃE
–
Ele
sentiu
a
minha
falta
esta
noite,
sempre
tivemos
tanta
coisa
pra
falar,
ele
é
a
única
pessoa
que
me
compreende,
você
não
passa
de
uma
criança...
GERDA (segura a Mãe pelos ombros e sacode‐a) – Acorda, pelo amor de Deus!
A
MÃE
–
Você
ainda
nem
amadureceu,
e
eu
sou
tua
mãe
e
te
alimentei
com
o
meu
sangue...
GERDA
–
Não,
você
me
deu
uma
mamadeira
e
meteu
uma
chupeta
na
minha
boca,
mais
tarde,
tive
que
roubar
comida
na
despensa,
mas
só
tinha
pão
de
centeio
duro,
que
eu
comia
com
mostarda
pra
poder
engolir;
e
quando
me
queimava
a
garganta,
matava
a
sede
com
vinagre;
a
cesta
de
temperos
e
o
cesto
de
pão
eram
a
minha
despensa!
A
MÃE
–
Olha
só,
já
roubava
desde
criança!
Que
bonito!
Não
tem
vergonha
de
me
dizer
isso?
E
pensar
que
eu
me
sacrifiquei
por
estes
filhos!
GERDA
(Chora)
–
Posso
te
perdoar
tudo;
mas
você
roubou
a
minha
vida...
é
sim,
ele
era
a
minha
vida,
foi
com
ele
que
eu
comecei
a
viver!
37
A
MÃE
–
Não
tenho
culpa
dele
me
preferir!
Talvez
ele
me
achasse...
como
vou
dizer...
mais
charmosa?
É,
ele
é
um
homem
de
bom
gosto,
ao
contrário
do
teu
pai,
que
nunca
soube
me
apreciar
enquanto
não
teve
rivais...
(ouve‐se
três
pancadas
na
porta)
Quem
é
que
está
batendo?
GERDA
–
Não
fale
assim
do
papai!
Por
mais
que
eu
viva,
nunca
vou
conseguir
reparar
todo
o
mal
que
eu
fiz
pra
ele!
Você
vai
pagar
por
isso!
Foi
você
que
me
colocou
contra
ele!
Lembra,
quando
eu
era
pequena,
você
me
ensinou
a
dizer
coisas
horríveis
pra
ele,
coisas
que
eu
nem
entendia...
Mas
papai
tinha
discernimento
e
não
me
castigava,
ele
sabia
muito
bem
de
onde
vinham
esses
ataques!
Lembra
quando
você
me
ensinou
a
mentir
pra
ele,
dizendo
que
eu
precisava
de
livros
novos
pra
escola,
e
uma
vez
extorquimos
o
dinheiro
e
dividimos
entre
nós
duas...Como
é
que
eu
posso
esquecer
o
passado?
Não
vai
ter
nada
que
apague
a
memória
sem
matar
também
a
vida?
Queria
ter
força
pra
esquecer
o
meu
passado,
mas,
eu
sou
como
o
Fredrik...
somos
fracos,
impotentes;
vítimas,
tuas
vítimas...
e
você
é
uma
pessoa
dura,
que
nem
sofre
com
os
teus
próprios
crimes!
A
MÃE
–
E
você,
você
sabe
como
foi
a
minha
infância!
Tem
alguma
idéia
do
lugar
onde
eu
fui
criada,
das
coisas
horrorosas
que
aprendi
por
lá?
É
como
se
fosse
uma
herança.
Mas
onde
é
que
tudo
isso
começou?
Com
os
nossos
primeiros
antepassados,
como
se
fala
nos
livros,
talvez
seja
verdade...Não
me
acuse
então
e
eu
não
acusarei
os
meus
pais,
que
poderiam
acusar
os
pais
deles,
e
assim
por
diante.
De
qualquer
modo,
é
isso
o
que
acontece
com
todas
as
famílias:
simplesmente,
elas
não
se
expõem
em
público.
GERDA
–
Se
isso
for
verdade,
é
melhor
morrer.
Mas
se
for
obrigada
a
viver,
prefiro
passar
a
vida
toda
surda
e
muda,
no
meio
dessa
miséria,
na
esperança
de
que
haja
uma
vida
melhor
depois...
A
MÃE
–
Você
está
exagerando,
Gerda.
Quando
você
tiver
um
filho,
você
vai
ter
outras
preocupações...
GERDA – Eu não vou ter filhos...
A MÃE – Como é que você sabe?
GERDA – O médico já me disse.
A MÃE – Ele se enganou...
GERDA
–
Você
está
mentindo
outra
vez...
Sou
estéril,
pouco
desenvolvida,
como
o
Fredrik,
é
por
isso
que
não
quero
mais
viver...
A
MÃE
–
Que
besteira...
38
GERDA
–
Se
eu
tivesse
o
poder
de
fazer
o
mal
do
jeito
que
eu
quero,
você
não
existiria
mias!
Por
que
é
tão
difícil
fazer
o
mal?
Quando
levanto
a
minha
mão
pra
você,
eu
é
que
sou
atingida...
A música pára abruptamente. Ouve‐se o Filho gritar fora de cena.
A MÃE – Está bêbado outra vez!
GERDA – Coitado do Fredrik!
*
O FILHO (entra meio bêbado) – Parece que tem... fumaça... na cozinha!
A MÃE – O que?
O FILHO – Acho que... eu... acho que ta pegando fogo lá dentro!
MÃE – Fogo? O que é que você está dizendo?
O FILHO – É, eu... acho... que tem fogo!
A
Mãe
corre
para
o
fundo,
abre
as
portas;
é
atingida
por
uma
fumaça
e
um
clarão
vermelho.
A
MÃE
–
Fogo!...
Socorro,
como
é
que
vamos
sair
daqui?...
Não
quero
queimar
viva.
Não
quero!
(Anda
em
círculos)
GERDA (abraça o irmão) – Fredrik! Temos que fugir, o fogo vai nos queimar.
O FILHO (em voz baixa) – Não posso.
GERDA – Vamos fugir! Não podemos ficar aqui!
O FILHO – Pra onde?... Não, não posso...
A MÃE – Vou pular pela janela... (abre a porta da varanda e salta no vazio)
GERDA – Oh meu Deus, nos ajude!
O FILHO – Era a única maneira!
GERDA – Foi você que fez isso?
O FILHO – Foi, o que mais eu podia fazer?... Não tinha mais nada!... Ou tinha?
GERDA
–
Não!
Tem
que
arder
tudo
mesmo,
pra
nos
libertar!
Me
abraça
com
força,
meu
irmão
querido,
eu
estou
feliz,
feliz
como
nunca;
tudo
se
ilumina,
coitada
da
mamãe,
que
era
tão
má,
tão
má...
39
O
FILHO
–
Ah,
minha
querida
irmã,
coitada
da
mamãe,
sente
o
calor,
é
maravilhoso,
já
não
sinto
mais
frio,
ouve
a
madeira
estalar
lá
fora,
todo
o
passado
é
que
está
queimando,
todas
as
coisas
velhas,
tudo
o
que
era
mau,
velho
e
feio...
GERDA
–
Me
aperta
com
força,
meu
irmão,
nós
não
vamos
queimar,
vamos
morrer
sufocados
com
a
fumaça,
é
um
cheiro
tão
bom,
são
as
palmeiras
e
coroa
de
louros
do
papai
que
estão
queimando,
agora
é
o
armário
dos
lençóis
de
linho,
cheira
a
lavanda,
e
agora
as
rosas!
Meu
irmão,
não
tenha
medo,
vai
ser
muito
rápido,
meu
querido,
meu
querido,
não
caia,
pobre
mamãe!
Que
foi
tão
má!
Me
aperta
com
mais
força,
me
abraça,
como
o
papai
falava!
Lembra
da
noite
de
Natal,
quando
comíamos
na
cozinha
e
íamos
molhar
o
pão
na
panela,
era
o
único
dia
do
ano
em
que
comíamos
bem,
como
o
papai
dizia,
sente
o
cheiro
bom,
é
a
despensa
que
está
queimando
agora,
o
chá,
o
café,
as
especiarias,
a
canela
e
o
cravo...
O
FILHO
(em
êxtase)
–
Estamos
nos
verão?
O
trevo
está
florido,
as
férias
vão
começar,
lembra
quando
íamos
tocar
naqueles
navios
brancos
que
tinham
acabado
de
ser
pintados?
O
papai
ficava
feliz,
se
sentia
cheio
de
vida,
como
ele
dizia,
e
não
tinha
trabalhos
de
escola!
A
vida
devia
ser
sempre
assim,
ele
dizia;
ele,
sim,
é
que
era
o
pelicano,
ele
que
deu
o
sangue
pelos
filhos,
andava
sempre
com
as
calças
remendadas
nos
joelhos
e
com
a
gola
de
veludo
esgarçada,
enquanto
que
nós
nos
vestíamos
como
príncipes...
Depressa,
Gerda,
a
sirene
do
navio
está
tocando,
a
mamãe
está
sentada
na
cabine,
não,
ela
não
está
conosco,
pobre
mamãe!
Desapareceu,
ela
ainda
está
no
cais,
onde
é
que
ela
está?
Não
consigo
vê‐la,
não
podemos
partir
sem
a
mamãe...
Ah!
Lá
está
ela!...
As
férias
vão
começar...
Pausa.
As
portas
do
fundo
se
abrem,
um
forte
clarão
vermelho
torna‐se
visível.
O
Filho
e
Gerda
caem
no
chão,
sem
sentidos.