Todo e qualquer espaço urbano, por menor e mais insignificante que
seja,constrói uma identidade especial, visual e de usos e costumes. Referências são criadas, percursos instaurados, uma imagem se forma. A permanência ou não de características básicas do sítio é que determinará a configuração de uma simbologia mais perene, algo que sinaliza suas virtudes (e eventualmente seus “defeitos”). Entramos, portanto, no caudaloso rio da historia e suas marchas e contramarchas, idas e vindas, construções e desconstruções. A formação de uma identidade maior, quer do ponto de vista interno, ou seja, um enraizamento cultural da cidade na mente de sua população, quer do externo, ou seja, a fixação de determinadas imagens recorrentes, chegando mesmo a uma marca “oficial”, é um processo longo, parcialmente inconsciente e ideologicamente seletivo. A augusta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro tem quase cinco séculos e por volta de 1800 já podia ser considerada um dos maiores sítios urbanos do pais, apta a ratificar dentro em pouco a condição de melhor opção como capital nacional. Embora seu passado viesse se constituindo com alguma racionalidade, baseado no modelo geométrico português, uma vez ultrapassada a faixa litorânea, prosseguiu ao redor das circunstâncias e premido pela sinuosa cadeia de morros da região. O ar levemente bagunçado pela paisagem citadina se esboça aqui. Não havia nesta época um projeto urbanístico propriamente dito para a cidade. Tal coisa a rigor só surgiria intensionalmente com a reforma hausmanniana. Mas curiosamente já havia um certo zelo em determinar determinadas áreas ou construções mais antigas, algumas das quais sobreviveram até o presente, como o Paço, o Passeio Público, a Ladeira da Misericórdia, etc. Isto talvez se explique pelo fato de que as nações emergentes do novo continente procuravam quase sempre transmitir a idéia de um certo lastro civilizatório. Não houve idade média por aqui, mas assim mesmo procurávamos construir uma certa tradição, procurávamos nos envelhecer. O fatode termos permanecido ligados a uma determinada configuração espacial e uma determinada arquitetura durante a segunda metade do século XIX, quando o crescimento populacional assustador e a incompatibilidade da infra-estrutura urbana com diversos avanços tecnológicos e sociais(tipo bonde, carruagem, passeata, etc.) puseram em xeque o velho passado colonial, liga-se a esta difusa construção de uma “idade adulta”e à falta de um projeto concreto para a cidade. O maior intercambio com o exterior durante o império trouxe novidades, comércio, bens, mas troxe também o extrangeiro, que, em geral, saía daqui horrorizado com a péssima qualidade de vida na cidade. A falta de noções mínimas de saneamento público também colaborou para a primeira imagem pública do Rio de Janeiro e, por extensão, do Brasil. A idéia genérica de cidade pestilenta metamorfoseou-se em inferno tropical. Éramos o foco maior das endemias, o espaço da morte por excelência. Não por acaso as agencias de viagem marítima estampavam avisos de advertência quanto aos perigos de rotas que incluíssem o Brasil e mais especificamente o Rio de Janeiro. Pode-se dizer que esta foi nossa primeira imagem, nossa primeira marca. Este estigma foi tão forte, que a passagem à República trouxe não só o lema do progresso como um projeto político e social, mas também uma atitude concreta ´para acabar com a mácula. Governantes, intelligentzia e mesmo a população engajaram-se não a´penas na reversão do pecado, mas sobretudo na construção simbólica de uma nova cidade. É quando o Rio deixa de ser lúgubre, soturno, sombrio, mal iluminado etriste para se tornar alegre, gaiato, arejado, imponente, bonito e moderno. O bota-abaixo, em grandes (cortiços, morros, favelas) e pequena escala (quiosques, carroças, camelôs) é o momento de ruptura com esse passado, é o ponto de inflexão para uma construção simbólica do Riode Janeiro. O símbolo aqui é quase literal, pois o que mudou na prática foi muito pouco, sobressaindo-se apenas a Avenida Central e arredores. Mas não se negligencie a força que a idéia teve. O morador do rio praticamente se reinventou nesses poucos anos, a ponto de deixar de ser fluminense para ser carioca. O rio de janeiro que habita nossas mentes nasce aqui. Contemporâneo dessa nova cidade, o cinema brasileiro teve o privilégio de acompanhar as transformações. Infelizmente a s centenas de foilmes aqui realizados de 1898 a 1930 perderam-se quase todos. O que ficou de material e de informação representa muito pouco e não sustenta afirmações categóricas. Por isso o que vai dito adiante tem caráter meramente hipotético e pode deformar grandemente a compreensão desse objeto fugidio. Como dizia o crítico Paulo Emílio sales Gomes, o cinema desses primeiros temas dedicava-se aos “rituais do poder” e ao “berço esplendido”, ou seja, registrava quase sempre cerimônias oficiais e signos da supostamente prodigiosa beleza natural do país. No primeiro caso, havia um obvio foco nos homens, deixando-se o entorno físico em segundo plano. No outro encontraríamos efetivamente a construção de uma geo-iconografia que atuasse como símbolo das virtudes nacionais. Mas aqui surge um primeiro problema. Se isto é verdadeiro, e aparentemente o é, para a maior parte dos registros feitos no país, não parece válido justamente para o Rio de janeiro. Se encontramos o paranaense Aníbal Requião fazendo um Cataratas do Iguaçu (1907), não conhecemos um Baía de Guanabara ou um Pão de Açúcar realizado por aqui. Nenhum cineasta, ou melhor dizendo, cinegrafista carioca, parece ter se preocupado em destacar ícones da beleza da cidade, pelo menos não como tema exclusivo de um filme. Nas listagens de filmes que chegaram até nós nada parece indicar a presença deste tipo de approach. O possível óbice do também possível primeiro filme brasileiro, a filmagem de Afonso Segreto enfocando a Baía de Guanabara, não se sustenta porque na verdade o que teria sido enfocado eram as fortalezas e os navios e não um delineamento do acidente geográfico. Isto é tão mais certo quanto não se verifica nas suas filmagens posteriores qualquer destaque nesse sentido para este ou aquele local. Afonso filma o Largo do Machado (1898), como filma a Rua Uruguaiana(1898) e na verdade, até onde sabemos, só filma lugares comuns como estes. Pode ser que o tal deslumbramento inicial com o cinema estivesse presente aqui. O êxtase valia para qualquer coisa: muro, bebê comendo, pessoas andando diante da câmara, lá fora, e funerais, meetings e ruelas, por aqui. Isto não significa que lugares importantes não tenham sido filmados. Em 1908, a Empresa Paschoal Segreto vai ao Pão de Açúcar e instala uma câmara no teleférico colhendo planos mais ou menos gerais da cidade. Mas sua intenção com isso é destacar a Exposição Nacional que esta ocorrendo bem embaixo, na urca. Ou seja, a cidade não é ainda, pelo menos cinematograficamente, algo de apreciável, objeto definido e definível através de imagens enquadradas com intenções conscientes. Ao contrario, o primeiro registro a delimitar claramente um lócus urbanus tomando-o como tema enfocará justamente a Avenida central. As imagens colhidas durante a inauguração em 1905, frequentemente atribuídas a Antônio Leal, provavelmente enfatizam o marco urbanístico e social que a obra representava desde a sua proposição alguns anos antes. Reforça esta idéia a profusão de documentários que se seguem, também dedicados exclusivamente ao logradouro. Este interesse intenso pelo jovem boulevard e a ausência completa de exames detidos em outros pontos chics da cidade leva a crê em uma primeira porém difusa simbolização do Rio de Janeiro. A Avenida central é uma metáfora de toda a cidade, a única passível de apresentação frente às classes médias que freqüentavam as salas de exibição de então e ao mundo, neste caso muito provavelmente de acordo com nossas elites pensantes. Aliás, a construção literária do Rio segue o mesmo padrão; João do Rio a frente. A belle époque é propriamente uma construção discursiva, apoiada na coloquialidade da imprensa e dos polígrafos, na leveza do art-nouveau, no chiste de marchinhas, lunduse cia.,na neutralidade do repertório teatral e nas imagens reinterativas de nossos prósperos e iniciantes produtores cinematográficos. Uma peça como A capital federal, de Aluísio de Azevedo, não é propriamente uma ácida critica às contradições da cidade e sim uma celebração do seu progresso, pois o matuto não só não a entende como não consegue domina-la. Nesse sentido compreende-se o alcance e a agudeza da obra de lima barreto, que procura desmascarar a impostura reinante. Para o bem ou para o mal, essa construção imagética avança e vamos encontra-la no registro fílmico mais antigo preservado da cidade. O luto pelo Barão do rio Branco (1911), anônimo, encaixa-se na categoria dos rituais do poder, mas curiosamente enfoca pouco as autoridades, pouquíssimo o velório e muito a Avenida central, logo denominada justamente Rio Branco por conta do falecido. O tom dos planos, porem, não tem nada de solene ou grandioso como seria de se esperar. A estatura política e pública do barão não corresponde este ou aquele plano geral. Ao contrário, há uma indisfarçável dispersão na forma como as imagens são compostas. Os planos são surpeendentemente rápidos, os enquadramentos não reconstituem integralmente nenhum prédio ou local mais conhecido e o ir-e-vir de pessoas não merece destaque maior, exceção feita ao presidente da República. O morto, inclusive, só aparece em recorte de jornal e não “ao vivo”. O que este filme e alguns outros fragmentos parecem traduzir é a familiaridade compartilhada entre quem filma e quem irá assistir. Os realizadores aparentemente se restringem a indicar o signo – avenida Central, por exemplo - , sem conceber a necessidade de emprestar-lhe qualquer outra conotação. A interdição do resto da cidade por falta de qualificação civilizatória e a ausência de preocupações estéticas maiores para com as imagens revelam a integração do cinema da época ao projeto da belle époque, em que a intimidade surge como o índice mais acabado de tradução de um status quo. Isto talvez seja corroborado pelo fato de que só encontraremos uma visualização mais refinada da cidade na década de 20. O Pão de Açúcar será enfocado como cartão-postal em Esposa do Solteiro (1926) (cat.1059), de Carlo campogalliani, merecendo a honra de ser palco do desenlace da fita, com direito a luta em cima do bondinho em pleno movimento (moonraker [1979], de Lewis Gilbert, não é uma novidade). E a ainda importante avenida central, agora Rio Branco, apresenta-se em diagonal perfeita, vista do alto, com os imponentes prédios construindo uma imagem de pujança, no olhar de adhemar gonzaga e seu Barro Humano (1929). Essas novas imagens que, podemos aproximar de uma certa visão turística em formação, e que servem ao projeto estético do cinema brasileiro da década de 20, preocupado em afirmar uma qualidade e uma estatura similares ao cinema americano e europeu (vide filmes não cariocas como A filha do advogado [1926], de Jota Soares, Fragmentos da vida [1929], de José Medina, São Paulo, a sinfonia da metrópole [1929], de Adalberto Kemeny e Rodolfo Lustig, entre outros), são contemporâneas também da percepção de que efetivamente, para além de o Rio de janeiro ser “seguro”, em termos sanitários, e “avançado”, em termos culturais, ele é isso e mais alguma coisa. É uma grande cidade e como tal comporta diferenciações internas e possui consolidados outros exemplos de intervenção urbanística que sustentam e difundem a sua magnificência. O campo de signos se alarga e ganha agilidade narrativa. A maioria dos filmes “sérios” da década de 20, cariocas ou não, inclui uma seqüência de montagem relativa a movimentação urbana (trânsito, corre-corre, símbolos locais, etc.), querendo com isso sinalizar o tal avanço civilizatório. Esta nova postura significa propriamente um mapeamento, um inventário daquilo que a cidade pode oferecer de melhor. Houve exemplos isolados dessa atitude nos primeiros tempos; as tais exceções que confirmam a regra. Mais especificamente em dois filmes muito famosos, Nhô Anastácio chegou de viagem (1908), anônimo, tido como o primeiro filme de ficção brasileiro e paz e amor (1910), de Alberto Moreira, o de maior sucesso da bela época. O primeiro contava a história do matuto que vem à capital pela primeira vez e percorre entre assombrado e assustado, decidindo ao final voltar para o campo. Seu itinerário pode ser entendido como uma indicação do que considerávamos naquele momento como nossas glórias citadinas: Estrada de Ferro Central do Brasil, Caixa de Amortização, Palácio Monroe, Arcos da Lapa, Passeio Público, Avenida Central, etc. se o enquadramento praticado tinha o mesmo ar de familiaridade aqui enunciado, o foco era muito mais o matuto do que este ou aquele prédio ou lugar. O segundo tem o mesmo parti-pris. Acompanha o cronista Tibúrcio da Anunciação em sua peregrinação pela cidade, revelando o que ela tem de ímpar – cinematógrafo, ópera, mundanismo social, meetings – e de criticável – a política, certas figuras públicas. Não se sabe exatamente o que era mostrado, mas claramente a intenção é a cultura da cidade. O mapeamento pode ter começado na série sobre os estados brasileiros realizada em 1910 e que dedicava um número à então capital federal, Brasil pitoresco nº 1 (1910), anônimo. É mais provável que isso tenha acontecido no malogrado filme de episódios Os mistérios do Rio de janeiro (1917), de Coelho Neto, primeira vez em que a cidade é alçada ao título de um filme em tom pomposo e indicativo de sua condição de personagem principal. O impulso pode ter recebido uma ajuda externa por ocasião da exibição do filme inglês A trip from Gibraltar to Rio de Janeiro (1919), anônimo. Registro de uma daquelas costumeiras epopéias de aviação, a obra aparentemente apresentou a primeira visão aérea marcante da cidade, colhendo a Baía de Guanabara e a urbis interior adentro. A façanha logo seria repetida, tomande-se o cuidado de elaborar a “grande” imagem do local. JUAN Etchebarne sobe num avião no ano seguinte e procura dar uma idéia do skyline carioca, à semelhança da já comum imagem de Manhattan, em Rio de Janeiro visto de aeroplano (1920). É talvez a primeira elaboração consciente, mas a não-recorrência desta forma talvez indique a inadequação do Rio de Janeiro para esse tipo de construção. Ele destacou também o Pão de Açúcar, o Corcovado (o morro, pois a estátua não existe ainda) e o Campo dos Afonsos. O marco definitivo desse processo de embelezamento cinematográfico da cidade ficou por conta da Terra Encantada (1922), de Silvino Santos, filmado por ocasião das comemorações do centenário da independência, quando a cidade foi preparada para sustentar o ufanismo pátrio. Algo talvez dispensável, como o demonstra Cidade do Rio de Janeiro, realizado por Alberto Botelho, em 1924, como uma ilustração preparatória e um presente à família real italiana, que visitaria o país dentro em breve. O que transparece neste filme é a construção altamente racional do urbanismo carioca. Em que pese a evidente influência francesa em prédios, jardins, parques e traçado urbano, é notável a diversidade apresentada e o sentido de composição dos locais, com o filme realçando-lhes, harmonia, linhas de força, enfim beleza. Botelho é cuidadoso mas não exatamente plástico, talento inato em Silvino. É na obra deste que a cidade é alçada visualmente à condição de maravilhosa. Utilizando recursos como tilting, panorâmica, plongée e contre-plongée, filmado do alto de prédios, de carros em movimento, de dia e de noite, nas ruas e no interior dos prédios e fazendo uma extraordinária comparação via montagem entre a graça feminina (com direito a primeiros planos) e o esplendor da cidade, o português sediado em Manaus recria o espaço urbano carioca emprestando-lhe um sentido de magia. Esta terra possuiria tantos detalhes, tantas facetas, tanta riqueza, que um olhar virgem se deslumbra com sua profusão, sua inesgotável capacidade de desdobrar-se em vias de desaparecer, encoberto pelo concreto e desfigurado pela ocupação humana. Este período – que, grosso modo, vai até meados dos anos 40 – apresenta uma espécie de sagração da cidade. É quando se desenvolvem grandes obras como o Jockey Club, a urbanização da Lagoa, a construção do Cristo redentor, a abertura da Avenida Presidente Vargas, entre outras, e se compõe justamente Cidade Maravilhosa (1936), a marchinha de André filho, transformada quase que imediatamente em hino. Além do Centro a Zona Sul também se afirma, desenhando um perfil art-déco na paisagem e elegendo a praia como ponto de encontro entre a natureza e a ação humana, aspecto esse imortalizado no famoso calçadão. Estamos em um momento em que a imagem é tudo, tendo pouco peso aspectos salientes da cultura da população, entre lês o carnaval. Por isso, não há contradição entre a visão “turística” que se instaura e da qual Lábios em beijos (1930), de Humberto Mauro, talvez seja o representante maior, ou entre a forte estlização implementada pelo cinema de estúdio advindo com o sonoro e da qual Favela dos meus amores (1935), Humberto Mauro, certamente é um dos maiores exemplos, e a dura realidade do cotidiano, onde claros urbanos, obras inacabadas, desmonte de morros e favelização crescente construíram uma imagem um tanto menos risonha. Lábios em Beijos reflete a ascensão da Zona Sul e a flagra ainda distante e levemente deserta. Os locais retratados transmitem garbo, tranqüilidade, placidez em contraste com o já tradicional vaivém do Centro, incluído nas seqüências iniciais. Vemos o Jardim Botânico, a Vista Chinesa, a Visconde de Albuquerque, a praia do Leblon, a avenida Niemeyer, ou seja, justamente locais onde a natureza foi domada e organizada para fazer ressaltar sua beleza “única” no mundo. Não por acaso, pouco depois, o mesmo Humberto Mauro realizaria uma série de sete curtas documentais infelizmente perdida intitulada “As sete maravilhas do Rio de Janeiro” (1934). Este sentido distintivo levará os realizadores a se aproximarem cada vez n=mais desses marcos e a repeti-los com freqüência. Temos assim o Hotel Copacabana Palace em 24 horas de sonho (1941), de chianca Garcia, Carnaval no fogo (1950), de Watson Macedo, e O homem do Sputnik (1959), de Carlos Manga, para citar apenas um marco e alguns filmes expressivos. Inclusive, não há discrepância entre a imagem cenográfica construída pelas obras e o hotel real. O que importa é referenciar o ícone. Além disso, na medida em que as narrativas vão dando campo a filmagens em locação, o efeito se torna mais intenso e direto, como a abertura de 24 horas de sonho, uma curiosa narrativa em torno de uma campeã mundial de tentativas de suicídio. A escolha do Cristo Redentor como palco de mais uma tentativa fracassada aproveita-se da simbologia (e mitologia) nascente da “cidade abençoada”, aquela que acolhe a todos, proporcionando-lhes uma trajetória árdua mas feliz no final. Não houve vozes discordantes internamente com relação a esse “ufanismo carioca”. Não que não existissem intenções nesse sentido. Dentro em pouco moacyr Fenelon começaria a desenvolver seu projeto de um cinema mais engajado socialmente, promovendo um retrato mais nuançado da sociedade carioca e trazendo para o campo cinematográfico o universo das classes médias baixas e do subúrbio. Nada porém com a força e o vigor do documentário realizado por Orson Welles em 1942. It’s all true representa o ponto de ruptura com essa imagem idílica, incursionando com olhar investigativo pelas verdadeiras raízes da cultura popular carioca, o que significou adentrar não só o subúrbio (filmou em Cascadura e Quintino) como principalmente o morro (Providencia, Mangueira e Saúde, entre outros). O filme, porém, não foi concluído na época e sua possível influencia não ocorreu. As obras sérias da Atlântida, portanto, permanecem como o ponto de inflexão na busca de um reconhecimento do homem que habita esse espaço e de uma problematização de sua vivência na cidade. Os objetivos são alcançados apenas parcialmente, na medida em que a presença desses ícones já não vem envolta numa fotografia glamurosa, desaparecendo assim o tom “turístico”. Os filmes falham em externar as contradições existentes entre ricos marcos citadinos e pobres e esmagados cidadãos. Isto pode ser percebido por exemplo na seqüência clímax de Amei um bicheiro (1953), de Jorge Lleli e Paulo Vanderley, passada no recentíssimo e já famoso Aeroporto Santos Dumont. Esta questão implicava não só em um reconhecimento mais pertinente das diferenças entre as classes e do mecanismo de exploração capitalista brasileiro, como na construção estética de uma nova escala imagética. Um trabalho mais propriamente estético em torno da cidade começa a ser esboçado curiosamente em dois filmes institucionais encomendados pela Light, Cidade do Rio de Janeiro (1948), de Humberto Mauro, e O transporte do carioca (1950), de Jean Manzon. O que transparece aqui é que a infra-estrutura urbana já não funciona tão bem. Há problemas - que a Light obviamente irá resolver...- e sua existência é evidenciada por curiosos jogos de montagem, por divertidas e irônicas narrações e por enquadramentos mais descontraídos, integrando ícones à paisagem comum, como se o Rio de janeiro tivesse atingido uma maturidade que lhe permitisse inclusive revelar seus problemas. Logicamente o alcance dessas supostas críticas é limitado. Só ganham verdadeira consistência no divisor de águas que é o Rio 40 graus (1955). A colocação do homem comum no centro das atenções não implica o deslocamento dessa paisagem mais tradicional e conhecida, muito pelo contrário. Será justamente contra ela que se colocarão os dramas humanos, como na utilização do Maracanã, no filme de Nelson Pereira dos Santos. Há inclusive uma certa sutileza em tosos esses novos filmes, pois eles escolhem marcos mais novos, mais modernos,tanto no sentido estético, como no sentido social, já que são obras para as massas, algumas delas para as massas populares. Contudo, Rio 40 graus é mesmo um divisor. O tratamento da paisagem carioca seguirá de agora em diante duas grandes linhas. Uma se dedicará a apresentar a cidade de forma harmoniosa, recorrendo aos ícones como confirmação e não mais como sagração. Um clichê se instaura e será repetido quase a exaustão, privilegiando-se o Corcovado e o Pão de açúcar. Neste sentido basta citar obras bem recentes como Bete Balanço (1984) (cat. 1061), de Lael Rodrigues e Como ser solteiro(1998), de Rosane Svartman e verificar a presença desses mesmos pontos servindo como marcos do que seria o Rio de Janeiro. Esta visão conservadora ganha lastro visual na obra do cineasta argentino Carlos Hugo Christensen, que adota a cidade para viver e a exalta em sucessivas elegias Meus amores no Rio (1958), Esse Rio que eu amo (1961) (cat. 771) Crônica da cidade amada (1965). O que há de distintivo aqui será justamente o emprego pioneiro da cor, como que renovando a já tradicional imagem da cidade. A outra linha procurará justamente o confronto entre esse Rio cartão-postal e sua vivencia cotidiana. São obras como Assalto ao trem pagador (1962), de Roberto faria, Cinco vezes favela (1962), de Carlos Diegues e outros, A grande cidade (1965), de Carlos Diegues, As cariocas (1966), de Roberto Santos e outros e Opinião pública (1967), de Arnaldo Jabour, por exemplo, em que contradições oposições, situações inconciliáveis são encenadas justamente em locais “tradicionais” da cidade. Isso não significa uma desglamurização da paisagem, ainda que ela realmente não seja mais tratada como símbolo de beleza em si. A escolha tem a intenção de integra o homem a esta paisagem e mostrar que ela também lhe pertence pelo menos idealmente. A violência que se vê nesses locais não é culpa da paisagem e sim das relações sociais que se expressam através dela. É notável começar a ver um filme como Garrincha, alegria do povo (1962), de Joaquim Pedro de Andrade, justamente por uma grande homenagem a esse palco popular chamado Maracanã. A imagem o trata como um templo e a banda sonora se abstém de qualquer comentário, deixando o coro das torcidas evidenciar o êxtase que percorre o concreto e o gramado. É mais notável ainda ver o filme tomar uma posição bastante critica em relação ao futebol (seria o ópio do povo) sem no entanto desfazer a mística criada no inicio em relação ao local. O cinema novo promove ao seu modo também uma sagração desse novo Rio de Janeiro, às vezes emprestando-lhe conotações insuspeitas, como no caso do Parque Lage, reinventado em Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, e Macunaíma (1970), de Joaquim Pedro de Andrade. Essa apropriação prossegue de forma mais significativa, embora efêmera, em um conjunto de filmes de menos quilate, como Todas as mulheres do mundo (1966), de Domingos de Oliveira, Fome de amor (1968), de Nelson Pereira dos Santos, e Os Paqueras (1969), de Reginaldo Faria, entre outros, nos quais o que desponta é a construção desse ser único chamado carioca. A paisagem empresta signos que definem o morador autentico da cidade. Beleza, alegria, descontração, bom humor, musicalidade, misticismo, miscigenação, enfim, integração, fazem um resumo do descompromissado bando que se engaja no desbunde e cria novos sítios urbanos como as famosas Dunas da Gal. A proposição se dilui e se caricaturiza na pornochanchada e no pornô-chic, chegando a uma visão francamente negativa como a de Rio Babilônia (1980) (cat. 779), de Neville D’Almeida. Estamos em vias de expor com o máximo de violência possível a cidade de “partida”, para usar o termo do jornalista Zuenir Ventura. A cidade se parte e sua imagem se fragmenta. Não há nada de particulamente distintivo na Copacabana de A viúva virgem (1972), de Pedro Carlos Rovai, no Centro de A dama da lotação (1975), de Neville D’Almeida, ou na Zona Norte de Chuvas de verão (1978), de Carlos Diegues. São filmes comuns sobre uma cidade comum. Os velhos ícones são agora ícones de uma decadência como a Estação da Leopoldina que aparece em Romance da empregada (1984), de Bruno Barreto. O esplendor se foi. Isso não significa que a cidade não tenha sido mais filmada. Muito pelo contrário. O documentário continuará a registra-la em profusão, eventualmente ainda fazendo-lhe elogios como em Rio amado (1966), curta de fernando Cony Campos. Mas as centenas de complementos que lhe são dedicados ao longo dos anos 70 apontam na verdade para a busca de uma cidade que já não existe mais. Os temas giram quase sempre sobre costumes ou locais em vias de desaparecimento, como Cinema Íris (1977), de Carlos Diegues, que inclusive ajudou na luta pelo tombamento da sala, ou Palácio Monroe (1978), de Célio Gonçalves, que documenta a demolição do palácio de mesmo nome. Há inclusive um tom nostálgico em alguns projetos como Folia (1974), de Adhemar Gonzaga e Memória do carnaval (1976), de Alice Gonzaga, em que imagens de arquivo servem de contraponto ao vazio ou degradação conteporâneos. O esplendor realmente se foi. Era preciso portanto reinventar a cidade, ainda que isto não ocorresse de fato na realidade. É ao que se propõe filmes como Bete Balanço e Ópera do Malandro (1984), de Ruy Guerra estilizações altamente sofisticadas, que brincam com as noções do espectador a respeito de seus conhecimentos visuais e sonoros a respeito do Rio de Janeiro daquele momento e de outrora. Signos como bondes, carrilhões e blocos de carnaval surgem na banda sonora deste, enquanto aquele promove uma desconstrução geográfica da cidade, apresentando um novo Rio para um novo público, que estava voltando a consumir cinema naquele momento. O que prevalece no entanto é a imagem fracionada e violenta, vista de Uma avenida chamada Brasil (1989), de Octávio Bezerra, a Primeiro dia (1999), de Daniela Thomas e Walter Salles, este inclusive baseado parcialmente no livro Cidade partida. A nova geo-iconografia (um Sambódromo em Isto é Noel [1991], de Rogério Sganzerla, a Gávea e o Leblon em Não quero falar sobre isso agora [1991], de Mauro Faria) não tem força e a velha imagem (Maracanã, Central do Brasil, Copacabana em Veja esta canção [1994], de Carlos Diegues e novamente a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar em Como ser solteiro) perece apenas rebarbativa. Em que pese a beleza do plano sobre o Pão de Açúcar no filme de Rosane Svartman, ele indica que o Rio é apenas isso ou se resume a isso. Nada de novo no front.