Você está na página 1de 13

http://conhecimentopratico.uol.com.br/filosofia/ideologia-sabedoria/17/artigo133470-1.

asp

Epicurismo: o prazer
como missão

A doutrina da antiguidade
clássica pregava a satisfação
(moderada) e zombava do
destino.

por Liliane Prata*

Os gregos antigos estavam habituados a fazer uma


série de especulações místicas e filosóficas a respeito
da morte. No campo supersticioso, a vontade dos
deuses e os caprichos do destino permeavam
explicações para o fim da vida. Na filosofia, discutia- ele não é tecido por forças
se a ligação da alma com o corpo e ensinavam-se divinas, mas escrito pelos
maneiras de se lidar com o medo da morte. Sócrates
(470-399 a.C.), diante da preocupação acerca do tema, humanos
ensinava que “filosofar é aprender a morrer”. Mas, no Para Epicuro, a verdadeira
fim do século IV a.C., eis que uma escola inovadora felicidade só pode ser
abria suas portas ou, melhor dizendo, seus jardins, em alcançada quando o homem
Atenas. O mestre, Epicuro (341-270 a.C.), não só entender que o único prazer
considerava sem sentido as angústias em relação à possível é aquele alcançado
morte, como ria do destino e pregava que o sentido da pela ausência de preocupação
vida era o prazer. Nascia o epicurismo. da mente e do corpo. Essa,
para o filósofo, é a
O papel da filosofia, para Epicuro, é bem claro: cuidar verdadeira ideia de
da saúde da alma. Assim como a medicina precisa se felicidade.
ocupar dos males do corpo, a filosofia só tem valor se
cuidar dos da alma, longe de consistir num discurso vazio e abstrato. O discípulo
Diógenes de Oenoanda resumiu a sabedoria do mestre em quatro “remédios” de cunho
bem prático: 1) Os deuses não devem ser temidos; 2) A morte não deve amedrontar; 3)
O bem é fácil de ser obtido; 4) E o mal, fácil de suportar.

Comecemos pelo não temor aos deuses. Epicuro não era ateu, como foi acusado por
alguns. Ele acreditava na existência dos deuses, mas sustentava que estes eram
indiferentes aos humanos. Serenos, as deidades habitariam um plano perfeito, não
nutrindo nenhum interesse pelas coisas que acontecem aqui embaixo. Assim, é inútil
temê-los ou se preocupar com castigos. Ter medo do destino é igualmente
desnecessário:ele não é tecido por forças divinas, mas escrito pelos humanos .
Voltemos, agora, ao tema da morte. Para os epicuristas, simplesmente não faz sentido se
preocupar com ela. Acompanhe, leitor, o raciocínio: quando um ser humano existe, a
morte não existe para ele. Quando ela existe, ele é que não existe mais. Assim, nós
nunca nos encontramos com nossa morte – nossa existência nunca se dá ao mesmo
tempo da existência dela. Logo, ocupemos nossas mentes com a vida e desfrutemos
dela. E qual é o maior bem que podemos usufruir? O prazer. Ah, o prazer!

Mas, calma lá. A noção de prazer, no epicurismo, é extremamente refinada. Não se trata
de uma busca desenfreada pela fruição do momento presente, como era para outro
grego, Aristipo de Cirene (435-366 a.C.), conhecido por pregar o hedonismo. O prazer
do epicurismo é calmo e sereno. O sábio deve evitar a dor e as perturbações, levando
uma vida isolada da multidão, dos luxos e excessos. Colocando-se em harmonia com a
natureza, ele desfruta da paz. Epicuro condena a renovação a qualquer preço e a ânsia
pela mudança, pregando uma espécie de prazer tranquilo.

Para vivenciar esse prazer, é fundamental evitar a dor, como ensina o quarto remédio de
Diógenes. A tarefa não é difícil para Epicuro. Diferentemente da postura desapegada em
relação ao passado e ao futuro, característica dos seguidores do estoicismo – corrente
filosófica contemporânea e rival à de Epicuro –, os epicuristas afirmavam que, para
amenizar momentos dolorosos, nada como se lembrar de alegrias passadas ou criar
expectativas felizes em relação ao futuro. E não pense que o mestre ensinava sem
conhecimento de causa: ele mesmo sofria dores constantes, em virtude de uma grave
doença que o acompanhou em grande parte da vida.

Amizade nas escolas

Um dos valores defendidos pelos epicuristas é a amizade. O sábio, compreendido


somente por outro sábio, vive melhor longe da multidão e da confusão da cidade, mas
nem por isso deve seguir solitário: Epicuro considerava a amizade uma grande
felicidade e repreendia os que pretendiam passar a vida sem ela. Aliás, a própria escola,
fundada em 306 a.C., era um espaço de convivência entre amigos. “Na Grécia Antiga, as
escolas eram bem diferentes das de hoje”, explica Marco Zingano, professor do
departamento de Filosofia da USP. “Lá, as pessoas viviam, dormiam, conversavam. Era
um verdadeiro espaço de convivência.” Diferentemente de outras escolas, como o
Pórtico, dos estóicos, a de Epicuro ficava em um lugar afastado na cidade, funcionando
como um calmo retiro, como convinha aos ensinamentos da doutrina. Como a escola
situava-se em um grande jardim, os discípulos, na época, ficaram conhecidos como
“Filósofos do Jardim”.

EPICURO E O EPICURISMO: ANTIGA FILOSOFIA DA VIDA – História da Filosofia


Antiga
2 — O  EPICURISMO: ANTIGA    FILOSOFIA   
DA   VIDA
Os   filósofos   do   epicurismo

Os epicuristas são os inimigos hereditários dos estóicos. Não tem fim a polêmica entre
as dois campos. Fundador da. escola é Epicuro de Samos (314-270). Foi seu mestre o
discípulo de Demócrito, Nausífanes. A ascendência atomista foi decisiva para toda a
escola, que Epicuro dirigiu no seu Jardim. em Atenas, desde 306. E foi devido a esses
Jardins que os epicuristas receberam a denominação — os do Jardim (οι απο τον
κητωον). A figura do fundador da escola constitui a alma do todo, mais do que o
método ou a dogmática aí em pregados. Epicuro era uma fina, distinta e atraente
personali-de.   Era louvado pelo seu desinteresse, sua brandura, bondade eprofunda
concepção da amizade. Suas máximas valiam tanto como dogmas. Dos seus escritos,
que devem ter orçado pelos 300, só se conservaram fragmentos. — Entre os demais
membros da escola merecem menção os seguintes: Metrodoro de Lâmpsaco, talvez
coevo, representante de uma doutrina algo rústica do prazer. Da segunda metade do
segundo século a. C, Apolodoro, polígrafo, que recebeu o título de tirano do Jardim;
Zeno de Sidônia, bem como Fedro, ouvido e estimado por Cícero; Siron, mestre de
Virgílio, e Filodemo de Gádara, de cujos escritos partes importantes foram encontradas
em Her culano. — A fonte mais instrutiva para conheceiv-se o epi curismo é Lucrécio
Caro (96-55 a. C). Seu poema Sobre a Natureza pretende expor fielmente o atomismo
de Demócrito, renovado por Epicuro. í: ele seu discípulo entusiasta: "Tu, ornamento do
povo grego; primeiro a projetares uma radiante luz sobre a profunda escuridão e a
mostrares a beleza da vida, a ti sigo-te eu passo a passo, não para rivalizar contigo, mas
por querer imitar-te com amor e veneração” (De rer. nat. 111,1). Por meio de Lucrécio,
de novo, a Filosofia grega foi introduzida em Roma; e também o epicurismo foi um
pensamento talhado para esse tipo espiritual, que é o homem fino da época de Virgílio,
Mecenas, Horacio, Augusto. Mas não foi só em Roma que Lucrécio introduziu o
atomismo, pois também nele se inspirou a Filosofia moderna. E assim se entrelaçam,
ainda uma vez, os arcos que prendem a antigüidade aos tempos modernos.

Fontes   e   Bibliografia

H. Usener, Epicurea (1887). E. Bignone, Epicuro (Bari. 1920). C. Bailey, Epicurus,


The Extant Rcmains (Oxford, 1926). W. Schmid, Ethica Epicurea (1939). A.
Kochalsky. Das Leben und die Lehre Epicurus — Vida c Doutrina de Epicuro (1914).
H. DIELS, T. Lucre tius Carus. De rerum natura. Em latim e, alemão (1923/24). O. RE
genbogen, Lukrez, Seine Gestalt in seinem Gedicht — Lucrécio — Sua Personalidade
através de sua Poesia (1932). E. Bignone, L’Aris totele perduto e la formazione
filosófica de Epicuro (Firenze, 1936). C. Bailey, Lucretius, with Introduction and
Commentary. 3 vols. (Oxford, 1947). Epikur, Von der überwindung der Furcht — Da
Vitória Sobre o Medo. Tradução e introdução de O. Gigon (Zürích, 1949). Lucretius
Caru,. De rerum natura. Textos com introdução e tradução do K. Büchner,   (Zürich,
1956).

Com o epicurismo, a Filosofia volta a ser dividida em Lógica, Física e Ética, sendo que
a Ética constitui a meta do conjunto.

A.    LÓGICA
a)    Origem e sentido do conhecimento

α) Utilidade. — A lógica também se chama canônica, porque dá a medida (χανον =


cânon, regra) de um conhecimento verdadeiro. Já não temos, agora, como em
Aristóteles, aquela eminente valorização do saber pelo saber, mas se busca conhecer,
para viver. O saber totalmente posto a serviço da utilidade. A contemplação pura da
verdade, a θεορια τεζ ανδρειαζ é supérflua. Por isso, definem eles a Filosofia: a
Filosofia é uma atividade, cujo conhecimento nos deve dar a felicidade. Comparados
com estes, os estóicos, homens pronunciadamente  realistas,   ainda  eram  teóricos.
β) Sensualismo. — Mas, não somente pelo fim que tem em vista, senão ainda pela sua
natureza, o saber fica rebaixado. Todo conhecimento é, para os epicuristas, apenas
percepção sensível, e nada mais. E estas percepções vêm à existência porque dos
objetos emanam imagenzinhas (ειδωλα) que penetram nos órgãos dos sentidos. Isto se
entende, principalmente, das percepções visuais, mas o mesmo se \dá com os demais
sentidos; também estes são postos em movimento por meio de certos eflúvios (ειδωλα).
Os objetos estão continuamente emitindo tais efluvios. Nisto consiste a percepção
sensível normal, ficando assim garantida a percepção da realidade. Esses efluvios
ininterruptos produzem a impressão do compacto e do volumoso e, portanto, a realidade
corpórea. Imagenzinhas ou ειδωλα, que estão fora dessa incessante emissão, seriam
tênues como teias de aranha, não encobrindo nenhuma realidade. Nem penetram em nós
pelos órgãos senso-riais, mas pelos poros da pele e tomam a direção do coração. Geram
imaginações vãs e representações fantasiosas. As percepções sensíveis da primeira
espécie, ao contrário, formam o conhecimento propriamente dito, e lhe esgotam toda a
possibilidade. E, assim, o conceito não constitui uma unidade de valor lógico, mas, ao
contrário, não passa de lembrança de um geral conteúdo de representações e se
consuma, portanto, completamente no reino da sensibilidade, com suas associações e
resíduos. Das imagenzinhas emitidas pelas coisas e que fluem até nós, já Empédocles e
Demócrito tinham falado. É preciso colocar esses ειδωλα materiais ao lado do ειδοζ
ideal de Platão e Aristóteles, para perceber, imediatamente e de um modo plástico,
como a doutrina do conhecimento do epi-curismo constitui coisa de todo diversa. O
epicurismo é um sensualismo e materialismo como já o era o seu modelo, o atomismo
de Demócrtto.

b)    Critério   da   verdade

Em se tratando de representações verdadeiras e falsas, os epicuristas têm naturalmente


de se apegar a um critério, que lhes garanta a verdade do conhecimento. E se eles não
tivessem, por si mesmos, sentido tal necessidade, os seus adversários, os estóicos, tê-
los-iam compelido a isso por uma intensiva discussão do problema da evidência.

α) A verdade sensível. — Mas Epicuro, líeste ponto, muito expeditamente se safa à


dificuldade. As percepções sensíveis, assim se explica, seriam sempre verdadeiras.
Mesmo às representações fantasiosas correspondem certos efeitos, "pois elas movem a
alma”. Isto significa que a veracidade de cada percepção sensível consiste na realidade
psicológica de tais sensações, e só nisso. A verdade lógico-ontológica dos nossos
conhecimentos depende de um outro elemento, a saber, dos nossos juízos e opiniões
(δοξα πτοληφιζ). E é por aí que se infiltra a possibilidade do erro. Esta afirmação já a faz
Aristóteles e lhe dá um determinado sentido. Mas, aqui, é repetida apenas verbalmente,
sem poder encaixar-se no con texto. Pois a epistemologia de Aristóteles pressupõe uma
norma que decide da sensação, coisa que o sensualismo de Epicuro desconhece.

β) Uma petitio principii. — É verdade que, segundo êle ensina, devemos nos certificar
da verdade do juízo enunciado, e vermos se a realidade o confirma, ou, pelo menos, não
o contradiz. Mas isto é um modo puramente superficial de exprimir-se, pois, com Isso
se pressupõe, exatamente, o que está em discussão. Porque, se o conhecimento é. no seu
total, apenas sensibilidade, e a percepção sensível, possivelmente, não passa de uma
pura representação da fantasia, quem poderá então garantir que a representação, que
deve exercer influência sobre outras percepções, não possa ela também falhar?
Precisaria, pois, ela de amparar-se em outra e esta ainda em outra, e assim
sucessivamente. A verdade, porém, atribuída a toda percepção sensível, de nada serve,
por não passar de uma realidade puramente psíquica, sobre a qual não se discute. A
canôníca se reduz ao mínimo, no sistema de Epicuro. E a posição de Epicuro, relativa ao
problema da verdade, fundamental para toda Filosofia, é estranhamente descuidada.
Aliás, esse pouco caso é sistemático para todo o seu pensamento.

Bibliografia

J. Mewaldt, Die geistige Einheit Epikurs — A Unidade Espiritual do Epicuro (1927). C.


Diano, La Psicologia (VEpicuro e la teoria delle passioni. Giornale critico della
Filosofia 20 (1939). Ph. H. De Lacy, The Epicurean Analysis of Language. American
Journal of Phi lology 60   (1939).

B.    Física
a)    Renovação    do    atomismo

α) Ontologia do atomismo. — Na metafísica, Epicuro e a sua escola renovam o


atomismo de Demócrito. Como para este, há também para aquele certos elementos
sólidos, últimos, insécaveis — os átomos. São desprovidos de qualidade e se distinguem
uns dos outros só quantitativamente, pela forma e pelo peso, não sendo absolutamente
diversos entre si. Porém, há mesmo semelhanças entre eles, de modo a podermos falar
de determinadas espécies de átomos. O número dessas espécies é limitado, havendo,
porém, em cada grupo, um número infinito de átomos (Lucrécio, De rer. nat. II, 478 ss;
522, ss.). Mas, ao lado dos átomos, é preciso também admitirmos o espaço vazio, onde
se acham e movem os átomos. Esse espaço é limitado (cf. I, 951 ss.). Ambos esses
elementos, corpo e espaço, bastam para explicar toda a realidade. Seres de outra e,
portanto, terceira espécie, não existem (I, 430ss.). Mate-rialismo evidente. Mesmo a
alma e o espírito são corpos, matéria muito rarefeita é verdade, mas enfim matéria. A
alma é parte do corpo, como as mãos e os pés (cf. III, 94; 161 ss.). Também ela é
divisível e. portanto, mortal como o corpo (cf. III, 417, ss; 634, ss.). Os átomos sempre
existiram e hão de eternamente existir. Sua soma permanece sempre a mesma (cf, II,
294 ss.).  Este princípio exprime a lei da conservação da substância, que sempre foi o
dogma fundamenta] do materialismo.

β) O devir como mecanismo.— Na ontologia do atomís mo se apóia a doutrina do devir


e de todo o processo cósmico. Todo devir se radica na imutável substância da matéria,
existente e infinita. O princípio primeiro da explicação do mundo, neste novo atomismo,
é que "nada pode provir do nada, e nada pode reduzir-se ao nada" (cf. I,150, ss.; 216
ss.). Os átomos ora se separam e ora se unem entre si, de um modo e, depois, de outro;
de novo se separam para, de novo, se entrelaçarem, e assim por diante, de eternidade
para eternidade. Assim se explicam todas as formas da natureza morta, bem como a vida
na sua plenitude, espécies e gênero; e, enfim, assim também o homem e a sua história.
"Pois, certo, não está a matéria adunada em formas insolúveis, pois vemos todas as
coisas fluírem num curso ininterrupto, e sempre se rejuvenescerem aos nossos olhos…
Assim, tudo o que aqui tiramos a um corpo e fá-lo diminuir, acrescenta-se a outro e fá-
lo crescer, de modo que o murchar de um é, semelhantemente, o florir de outro. E a este
lhe chegará também o seu turno. De maneira que, perpètuamente, se renova a soma dos
seres. Assim gozam os mortais o feudo da vida. Aqui surge uma nova raça, ali outra
desaparece. Em curto prazo se renovam as gerações dos seres que respiram e, como
fugazes cursores, transmitem uns aos outros a tocha da vida" (cf. II, 67 ss.). E a lei deste
devir? Apenas duas são as causas, como se certifica logo a seguir, responsáveis deste
eterno movimento: o peso dos átomos mesmos e a pressão e impulso de outros átomos
(cf. II, 84ss.). Declarado mecanicismo, e meca nicismo de Demócrito.

γ) Acaso, αα) Declinatio. — Mas, de repente, o mestre é corrigido e surge um


pensamento de todo novo, a idéia da declinatio (παρεγκλισιζ), i.é, o repentino
desviarem-se os átomos da linha vertical. Desde toda a eternidade caíram os átomos
para baixo, no espaço infinito. Mas, agora e de repente, "sem se saber quando nem
onde", começa a manifestar–se um desviarem-se os átomos da linha vertical, "apenas
um desvio da linha do movimento, sobrevindo depois um forte choque de átomos, que
provoca um entrelaçamento e mudança contínua deles.   Se não se admite esta
declinatio, objeta Lucrécio,  defendendo  Epicuro contra  Demócrito,  nunca  haverá
criação"  (cf. II,216ss.).

ββ) Acaso. — 0 conceito de declinatio implica um estrito acaso, no sentido de ausência


de causalidade. Cícero explica o caso de Epicuro (τυχη, casu) com a declaração
expressa de que, na declinatio, trata-se de um acontecer "sem causa" (Usener, Epic. pg.
200). Com isso, introduziu Epicuro na História da Filosofia uma idéia nova. Certo, a
Filosofia, já antes dele. conhece o acaso. Mas Aristóteles, p.ex., que se esforça por
explicar com exatidão o conceito do acaso, não o entende no" sentido de ausência de
causalidade. O que chamamos acaso, segundo êle, é um acontecimento de que não
podemos, momentaneamente, assinalar a causa, embora seja certo que êle a tem.
Também o automaton de Demócrito não é o acaso no sentido de Epicuro. Este nega, em
verdade, a causalidade, que se deveria buscar no querer e na intenção de um espírito
livre vivente; pois todo devir depende somente da massa dos átomos e, portanto,
acontece "por si mesmo". Exatamente por Isso, o automoton de Demócrito é contrário
do acaso de Epicuro. Este professa o mais estrito determinismo de todo o ser e devir,
dentro do universal mecanismo dos corpos que, enquanto massa, podem considerar-se
simultaneamente como forças ou energias; e, logo, as leis da ação não são outras que as
do ser, da massa. Os estóícos estenderam sem razão o conceito de acaso dos epicuristas
também aos seus mestres, Leucipo e Demócrito. Mas é, na verdade, uma descoberta
própria só da escola de Epicuro que, certo, não emendou Demócrito nesse pontoi Pois,
na concepção epicurista, desaparece, exatamente, o que havia de mais grandioso na
cosmologia de Demócrito: a absoluta regularidade do curso cósmico e a possibilidade,
nela fundada, de calcular, previamente,  todos os acontecimentos futuros. "Êle dissipou
toda a herança", diz Agostinho, de Epicuro e de seu conceito de acaso conexo com a
declinatio (Usener, Epic. pg. 201). Porventura não entendeu Epicuro a concepção de seu
mestre?

b)    Luta   contra   o   fado

Não, foi causa muito diversa o que levou Epicuro á sua posição. O que êle busca com a
idéia do acaso é, particularmente, libertar o homem do despotismo do fatum. Os
epicuristas professam a liberdade da vontade.   Mas se, como ensinam os estóicos, há
um fatum-, então desaparece a liberdade da vontade e pende, sobre a vida do homem,
como espada de Dâmocles, a perpétua fatalidade. Uma tal mundividência é coisa
impossível para os hedonistas: perturba todo o gozo da vida. Daí a tentativa de salvar a
liberdade, mediante o conceito de acaso e da ausência de causalidade. Por êle, o homem
escapa ao nexo causai universal, pode começar por si mesmo, e com atividade criadora,
uma série de causas; é, portanto, senhor da sua vida e pode construí-la como -lhe
aprouver. Cícero declara, expressamente, que Epicüro, com o fito de salvar a liberdade,
introduziu a declinatio. E o mesmo lemos em Lucrécio: "Por causa da declinatio não se
dá o fato de o espírito estar encadeado ao ímpeto do próprio peso, nem de ser por este
dominado, nem fica adstrito a suportar e a sofrer" (cf. II, 289). Daí o terem os
epicuristas travado, em favor da liberdade humana, um constante combate contra o
fatum estóico. Seu refúgio teórico foi o conceito de acaso. Sobre a réplica dos
adversários v. Cícero, De fato, 46.

c)    Luta contra os mitos religiosos

α) Ilustração. — O segundo combate os epicuristas o dirigiram contra os mitos


religiosos, tão incômodos como o fatum. Pois, admitir a intervenção dos deuses na vida
humana, sobretudo as fábulas da sobrevivência após a morte, do julgamento dos mortos
e de lugares de castigo eterno; e também as histórias da cólera de Deus, que é mister
aplacar, e da sua graça e providência, que devemos lograr, tudo isso age também como
elementos perturbadores do sereno gozo da vida, e da vontade no seu livre agir ou
deixar de agir, a seu belo prazer. Nestas lutas, o epicurista se apega à teoria, dos átomos.
Tudo acontece necessariamente, assim se dizia, por força das leis da natureza, como
Demócrito o mostrou. Nenhuma necessidade há de se recorrer à intervenção dos deuses;
precisamos apenas dos átomos com as leis a que estão sujeitos. É uma espécie de
"iluminação". Por isso, escreveu Lucrécio o seu poema científico sobre a natureza.
"Para expulsar esses temores e dissipar todas as trevas religiosas, não precisamos dos
raios solares nem da luz do dia, bastando apenas considerar a natureza e as suas leis"
(cf. 1,146). Exalta-se, com ênfase, a ação libertadora de Epicuro e apontam-na com
grande mérito:   "como se não somente tivesse reduzido a nada ns imaginações vãs, mas
também como se tivesse exterminado os espíritos malignos em carne e osso, e libertado
o homem da escravidão deles" (Hoffmann). Mas que esse duplo combate empreendido
se enredava numa berrante contradição, a isso pouco se atenta. Pois, para evitar o fatum
se refugia no acaso e na liberdade que êle implica; e, contra a livre intervenção dos
deuses, de novo se apela para a fatalidade do nexo causal. Também se passa por sobre a
oposição entre a sua "melhorada" teoria e o pensamento fundamental do atomismo de
Demócrito, que, contudo, se pretendia restaurar.

 β) Crentes nos deuses. — Também não se colocou no pesado prato da balança o fato
de, na vida e comportamento público, ainda se "acreditar" nos deuses, que a cosmologia
de Epicuro transferira para os intermúndios, os espaços postos entre os mundos, onde
passavam a existência num repouso definitivo. Pois o Jardim não admitia, como o
Pórtico, a unidade do universo, mas a pluralidade dos mundos. E nesses espaços vazios
de matéria cósmica, entre os vários mundos, moravam os deuses, vivendo uma plácida
existência. Só viviam para si, sem intervir de modo nenhum no tráfego do mundo. Isto
era, praticamente, o mesmo que dizer: para nós não há nenhuns deuses; e, na realidade,
o que se queria era viver como um deus entre os homens, fundado na nova felicidade da.
vida, prometida pela doutrina do prazer (Epicuro, Carta a Meneceu, conclusão). Pois,
que necessidade havia de chocar o sentimento dos homens por um declarado ateísmo?
Decidiram-se, então, por um deísmo ou algo ainda menos que isso: ser cortês com os
deuses, invocá-los, como, p.ex., Lu-crécio invoca Vênus no começo do seu poema
didático. Viver e deixar viverem os crentes. Os epicuristas não são homens perigosos.
Sabem viver, falam bem, escrevem bem, mas;1 não se metem em fundas especulações.
Sua Filosofia não se .constitui de pensamentos carregados de melancolia, mas assume
os ares gratos e leves da musa. Isto se lhes manifesta principalmente na ética, e é sempre
nela que se pensa quando vem à baila a questão dos epicuristas.

d)    Bibliografia

C. Bailey, The Greek Atomists and Epicurus (Oxford, 1928). J.   Mewaldt,  Der Kampf 
des  Dichtcrs Lukrez  gegen  die Religion —

A Luta do Poeta Lucrécio contra a Religião (1935). W. Schmid, Epikurs Krítik der
platonischen. Elementarlehre — Crítica de Epicuro aos Ensinamentos Elementares, de
Platão (1980). A.-.T. Festu gière, Epicure et ses dieux  (Paris, 1940).
C.    ÉTICA
a)    Hedonismo

α) O prazer como τελοζ.— A ética contém, propriamente, o fim da Filosofia hedonista;


para ela convergem as demais peças doutrinais, como já vimos. O seu cerne é o
princípio: o bem moral consiste no prazer, o que Demócrito já havia sugerido com a sua
"euforia". Mas, quem abertamente ensinou a doutrina do prazer foi Aristipo; e foi o seu
hedonismo que forneceu aos epicuristas a direção principal. Para os estóicos, pairava,
diante dos olhos, como ideal, o viver conforme à natureza, e se exortava a suportar e
resignar-se para se pôr de acordo com as exigências da norma suprema. Mas, agora,
erige-se o prazer,  τελοζ|, como o  τελοζ propriamente humano e, portanto, pode-se
desejar e gozar à solta. Posição inteiramente diferente para a vida. O sentido primitivo
da palavra "bem" não significa, para os epicuristas, nenhuma submissão a qualquer
ordem de natureza ideal ou real, mas exprime, fundamentalmente, uma relação com a
nossa faculdade de desejar. Pois, o que nos agrada e causa prazer a isso chamamos bem;
e chamamos mal ao que nos desagrada e causa dor. Aristóteles tinha dito: é por ser uma
coisa boa que algo nos causa prazer. Epicuro, como se vê, toma as coisas ao contrário.
O seu princípio ético não consiste em nenhum bem objetivo, mas o prazer subjetivo é o
princípio do bem. "O prazer é o princípio e o fim da vida feliz", diz-se na epístola de
Epicuro a Meneceu, que contém, in nuce, o essencial da sua ética. Ou, como aí mesmo
também se diz: "O τελοζ de uma vida feliz cifra-se em escolher e evitar tudo, em vista
do bem do corpo e da tranqüilidade da alma. E, o que fizermos, fá-lo-emos com o fito
de evitar a dor e encontrar a paz da alma".

β) Ataraxia.. — Ressalta assim, claramente, aos olhos qual prazer tem Epicuro em
mente com o seu hedonismo. Entende êle por prazer a ausência da dor e a isenção de
perturbações da alma  (αταραξια), a paz e o sossego do ânimo.

Aristipo tinha em vista um prazer que implicava a mais intensa vivência possível; êle
queria o ”prazer do movimento". Epicuro, ao contrário, pensa no "prazer do repouso".

γ) Obscuridades principais. — Parece-nos isto mais fino e culto do que a tese de


Aristipo, sobretudo, como geralmente se admite, quando Epicuro, de bom grado, dizia
que deviam preferir-se os prazeres espirituais  aos corpóreos.

αα) A φρονησιζ superior ao prazer. — Dizia êle, ainda, que não devemos, cega e
avidamente, ceder aos prazeres imediatos, mas levar em conta uma arte de medi-los, que
deve considerar a vida no seu total e pesar os prazeres, compa rando-os racionalmente,
afim de não ser um momentâneo prazer a causa de uma dor futura, ou um pequeno
prazer, avidamente abraçado, vir a impedir um maior, que está à vista. É em geral
necessário, diz Epicuro, a razão e a φρονησιζ; sem ela e a virtude, não liá nenhum
prazer: "O princípio de toda a vida feliz e, portanto, o máximo bem, é a φρονησιζ; é
superior à Filosofia; dela procedem as demais vantagens; sem φρονησιζ;, sem
moralidade e justiça não se pode viver com prazer, e, ao inverso, sem prazer também
não se pode viver racional, moral e justamente. Pois todas as virtudes estão entrelaçadas
com a vida agradável e esta, por sua vez, não pode separar-se delas" (Epístola a
Menecea). Não se sabe a que ater-se lendo isto. Pois, será o prazer o princípio de todas
as nossas ações, ou há algo de superior a êle, que dirige e ordena: a razão, a moralidade,
a justiça, a vida no seu conjunto?

ββ) O prazer superior à φρονησιζ. — Poderíamos pensá-lo. Mas outras afirmações,


em contrário, não são menos claras. Primeiro, o fato de que, para os epicuristas, o prazer
como tal, e em todas as circunstâncias, é bom, como já o havia também declarado
Aristipo. Não há diferenças qualitativas eticamente relevantes. Mas, depois, o prazer é
expressamente considerado como coisa sensível. Não é somente Metrodoro de
Lâmpsaco que se exprime nesse sentido: toda bondade e beleza, pensa êle, se refere ao
ventre. Este é a medida de tudo que se refere à felicidade e pouco devemos nos importar
com cultura e bem-estar-social, mas só procurar comer e beber, para não prejudicarmos
o estômago e gozar,. assim, realmente, o prazer. O próprio Epicuro também tinha
declarado: "Origem e raiz de todo prazer é o estômago; a este se reduz a sabedoria e
toda superioridade espiritual" (Frg. 42.9). E êle certifica, literalmente, que "todo valor e
não-valor é coisa da αισθησιζ (Epístola a- Mencccit). Ào sensualismo na epistemologia
corresponde também o .sensualismo na estimação dos valores.
γγ) Sensualismo. — Não foi a Bíblia, em primeiro lugar, nem ainda os estóicos,
eméritos professores da virtude, nem o rigoroso Kant que caracterizaram a vida de
prazeres com o qualificativo de "sensualidade". Pois os próprios profissionais do
hedonismo foram que introduziram esta terminologia. Também Goethe opinou do
mesmo modo e, ainda hoje, afirmam os artistas que êíes pretendem ser homens dos
sentidos. Mas será mesmo real que o prazer .que sentimos, p.ex., ouvindo uma sinfonia
de Beethoven, e a vivência do seu conteúdo, se constituem, afinal, por uma relação com
a sensibilidade e, de todo, com o estômago? Aqui teriam tido os hedonistas uma tarefa
bem digna a realizar. Teriam de analisar e descrever, fenomenològicamente, prazer e
prazer, e classificá-los segundo suas específicas modalidades; deveriam ter chegado às
últimas determinações e categorias básicas dessas várias espécies de prazer, e teriam,
em particular, que estabelecer a diferença entre prazeres sensíveis e espirituais. Mas tal
não o fizeram. Nem mesmo no seu próprio terreno, na teoria do prazer, ousaram chegar
até às últimas e radicais posições  teóricas.

b)    Sabedoria   da   vida

Mas, talvez, a situação histórica é toda outra. Talvez, segundo ela, os epicuristas não
quiseram tanto expor uma Filosofia teórica, mas, antes, uma prática sabedoria da vida.
Muitos são de opinião de que o epicurismo é, antes, um estilo de vida, mesmo uma
religião — antes uma mundivivência, diríamos hoje — do que pura Filosofia
(Hoffmann). Considerado a esta luz, de fato são mais inteligíveis muitas doutrinas do
epicurismo. E o que êle nas dá como sabedoria da vida contém, realmente, muitos dados
preciosos.

α) Afirmação da vida. — Assim, tem o epicurista os olhos  bem  abertos para  a 


riqueza  e a  beleza  do  mundo, afirma a vida na sua plenitude, na sua pujança, na sua
força vitoriosa. Por aí supera-se a si mesmo, sobrepuja-se aos lados sombrios da vida e
não se deixa tolher por eles, ficando-se assim livre para uma positiva concepção da
existência. Nem o pensamento da morte consegue abatê-lo. A prova tola, de que "a
morte não nos importa" — enquanto vivemos ela não vem, e quando ela vem, já nós não
vivemos — oculta algo de muito valioso: o sim alegre dado á vida, que só vê o positivo
e assim pode realmente utilizar o dia. O horaciano "carpe diem" não tem a sua origem
numa avidez insaciável dos prazeres da vida, mas em uma visão ampla dos valores da
existência. E Vênus era o símbolo disso, para os epicuristas. Como ela, a existência, na
sua totalidade, é fonte de prazer vital, de encanto e dita, E porque só a existência nos
pode proporcionar tais coisas, e só ela, vale a pena então viver e "colher" o dia.

β) Comedimento. — A sabedoria da vida do Jardim também conhece o comedimento, a


medida, a tranqüilidade, a paz interior. "Temos a autosuficiência por um grande bem;
não por considerarmos bastante o contentarmo-nos com pouco, mas porque, não
podendo ter muito, satisfazemo-nos com pouco, convencidos de que vem a gozar o mais
felizmente possível ‘ da riqueza, quem menos dela necessita" (Epíst. a. Meneceu).
Também o conhecido "vive oculto" (λαθε βιωσαζ) tem um sentido profundo. Não é
somente fuga dos incômodos da realidade da vida quotidiana e da vida pública, para
conservar a tranqüilidade. Essa máxima nasce do conhecimento de que, na retração e
silêncio, abre-se para o homem uma nova realidade, o mundo precioso da vida interior,
do sossego e da clarificação da alma, a plácida serenidade e a plácida paz do coração.
"A coroa da tranqüilidade da alma é, incomparavelmente, superior às mais elevadas
magistraturas" (Epic. Frag. 556).
γ) A amizade. — Nesta direção se orienta o culto da amizade, tão típica no Jardim. O
Pórtico atirava-se para o largo, para a πολιζ e o cosmopolitismo. O Jardim busca a
felicidade em pequenos círculos, na aliança com um grupo de escolhidos amigos: "odi
profanum vulgus et arceo", canta Horácio. O homem se recolhe ao seu interior; as
relações políticas a isso o compeliam. É-se individualista, não, porém, egoísta.     A  
gente   vive   para   os   amigos,   entregando-se a êles. "De tudo o que a sabedoria
proporciona para a felicidade da vida, nada há maior, mais frutífero, mais penetrado de
alegria do que a amizade" (Epic. frg. 539). "Escolhemos os amigos com o fito no prazer;
mas, pelos amigos, enfrentamos os maiores sofrimentos" (546). Um humanismo que
assina se exprime, por certo não se reduz ao gozo egoísta.. Conhece muito bem as
incertezas dos homens e da vida, supera-as, porém, por acreditar, ainda mais fortemente,
nesses mesmos homens e nessa mesma vida.

δ) O sábio. — Amizade, fruto da sabedoria. Com isto temos aqui, de novo presente, o
muitas vezes invocado conceito da sabedoria. Todas as escolas gregas de Filosofia
conhecem o "sábio"’, mas cada qual com a sua concepção própria. A educação do
espírito crítico, que se alcança pelo esforço em fazer sobressair, de termos iguais,
conteúdos significativos, às vezes diversos, não é para desprezar-se. Aqui, para os
epicuristas, o sábio é o artista da vida. Não serão poucos os homens que lhes aceitarão
as máximas com aprazimento. Mas o senso crítico logo perguntará: Que é a arte da
vida? Que significa aqui precisamente "vida"? Não são possíveis muitas maneiras de
entendê-la? Mas, se quisermos,, para nos fixarmos em um sentido, determinar, em
princípio, a concepção epicurista da vida, devemos nos lembrar de quão pouco levaram
o princípio ético às derradeiras conseqüências. Esta objeção, porém, não leva a excluir,
de todo, o valor das regras concretas de vida. Pois, teoremas não passam, muitas vezes,
de símbolos, a ocultarem uma realidade,, mais forte do que a simples notificação lógica,
e que afirma o seu valor e abre, instintivamente, o seu caminho, mesmo quando as
elucidações conceptuais julguem-na falsa. "Cinzenta, querido amigo, é toda teoria, mas
verde, é a árvore de ouro da vida".Bibliografia:   F. Wehrli, Lathe Biosas (1931).

Você também pode gostar