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Epicurismo: o prazer
como missão
A doutrina da antiguidade
clássica pregava a satisfação
(moderada) e zombava do
destino.
Comecemos pelo não temor aos deuses. Epicuro não era ateu, como foi acusado por
alguns. Ele acreditava na existência dos deuses, mas sustentava que estes eram
indiferentes aos humanos. Serenos, as deidades habitariam um plano perfeito, não
nutrindo nenhum interesse pelas coisas que acontecem aqui embaixo. Assim, é inútil
temê-los ou se preocupar com castigos. Ter medo do destino é igualmente
desnecessário:ele não é tecido por forças divinas, mas escrito pelos humanos .
Voltemos, agora, ao tema da morte. Para os epicuristas, simplesmente não faz sentido se
preocupar com ela. Acompanhe, leitor, o raciocínio: quando um ser humano existe, a
morte não existe para ele. Quando ela existe, ele é que não existe mais. Assim, nós
nunca nos encontramos com nossa morte – nossa existência nunca se dá ao mesmo
tempo da existência dela. Logo, ocupemos nossas mentes com a vida e desfrutemos
dela. E qual é o maior bem que podemos usufruir? O prazer. Ah, o prazer!
Mas, calma lá. A noção de prazer, no epicurismo, é extremamente refinada. Não se trata
de uma busca desenfreada pela fruição do momento presente, como era para outro
grego, Aristipo de Cirene (435-366 a.C.), conhecido por pregar o hedonismo. O prazer
do epicurismo é calmo e sereno. O sábio deve evitar a dor e as perturbações, levando
uma vida isolada da multidão, dos luxos e excessos. Colocando-se em harmonia com a
natureza, ele desfruta da paz. Epicuro condena a renovação a qualquer preço e a ânsia
pela mudança, pregando uma espécie de prazer tranquilo.
Para vivenciar esse prazer, é fundamental evitar a dor, como ensina o quarto remédio de
Diógenes. A tarefa não é difícil para Epicuro. Diferentemente da postura desapegada em
relação ao passado e ao futuro, característica dos seguidores do estoicismo – corrente
filosófica contemporânea e rival à de Epicuro –, os epicuristas afirmavam que, para
amenizar momentos dolorosos, nada como se lembrar de alegrias passadas ou criar
expectativas felizes em relação ao futuro. E não pense que o mestre ensinava sem
conhecimento de causa: ele mesmo sofria dores constantes, em virtude de uma grave
doença que o acompanhou em grande parte da vida.
Os epicuristas são os inimigos hereditários dos estóicos. Não tem fim a polêmica entre
as dois campos. Fundador da. escola é Epicuro de Samos (314-270). Foi seu mestre o
discípulo de Demócrito, Nausífanes. A ascendência atomista foi decisiva para toda a
escola, que Epicuro dirigiu no seu Jardim. em Atenas, desde 306. E foi devido a esses
Jardins que os epicuristas receberam a denominação — os do Jardim (οι απο τον
κητωον). A figura do fundador da escola constitui a alma do todo, mais do que o
método ou a dogmática aí em pregados. Epicuro era uma fina, distinta e atraente
personali-de. Era louvado pelo seu desinteresse, sua brandura, bondade eprofunda
concepção da amizade. Suas máximas valiam tanto como dogmas. Dos seus escritos,
que devem ter orçado pelos 300, só se conservaram fragmentos. — Entre os demais
membros da escola merecem menção os seguintes: Metrodoro de Lâmpsaco, talvez
coevo, representante de uma doutrina algo rústica do prazer. Da segunda metade do
segundo século a. C, Apolodoro, polígrafo, que recebeu o título de tirano do Jardim;
Zeno de Sidônia, bem como Fedro, ouvido e estimado por Cícero; Siron, mestre de
Virgílio, e Filodemo de Gádara, de cujos escritos partes importantes foram encontradas
em Her culano. — A fonte mais instrutiva para conheceiv-se o epi curismo é Lucrécio
Caro (96-55 a. C). Seu poema Sobre a Natureza pretende expor fielmente o atomismo
de Demócrito, renovado por Epicuro. í: ele seu discípulo entusiasta: "Tu, ornamento do
povo grego; primeiro a projetares uma radiante luz sobre a profunda escuridão e a
mostrares a beleza da vida, a ti sigo-te eu passo a passo, não para rivalizar contigo, mas
por querer imitar-te com amor e veneração” (De rer. nat. 111,1). Por meio de Lucrécio,
de novo, a Filosofia grega foi introduzida em Roma; e também o epicurismo foi um
pensamento talhado para esse tipo espiritual, que é o homem fino da época de Virgílio,
Mecenas, Horacio, Augusto. Mas não foi só em Roma que Lucrécio introduziu o
atomismo, pois também nele se inspirou a Filosofia moderna. E assim se entrelaçam,
ainda uma vez, os arcos que prendem a antigüidade aos tempos modernos.
Com o epicurismo, a Filosofia volta a ser dividida em Lógica, Física e Ética, sendo que
a Ética constitui a meta do conjunto.
A. LÓGICA
a) Origem e sentido do conhecimento
β) Uma petitio principii. — É verdade que, segundo êle ensina, devemos nos certificar
da verdade do juízo enunciado, e vermos se a realidade o confirma, ou, pelo menos, não
o contradiz. Mas isto é um modo puramente superficial de exprimir-se, pois, com Isso
se pressupõe, exatamente, o que está em discussão. Porque, se o conhecimento é. no seu
total, apenas sensibilidade, e a percepção sensível, possivelmente, não passa de uma
pura representação da fantasia, quem poderá então garantir que a representação, que
deve exercer influência sobre outras percepções, não possa ela também falhar?
Precisaria, pois, ela de amparar-se em outra e esta ainda em outra, e assim
sucessivamente. A verdade, porém, atribuída a toda percepção sensível, de nada serve,
por não passar de uma realidade puramente psíquica, sobre a qual não se discute. A
canôníca se reduz ao mínimo, no sistema de Epicuro. E a posição de Epicuro, relativa ao
problema da verdade, fundamental para toda Filosofia, é estranhamente descuidada.
Aliás, esse pouco caso é sistemático para todo o seu pensamento.
Bibliografia
B. Física
a) Renovação do atomismo
Não, foi causa muito diversa o que levou Epicuro á sua posição. O que êle busca com a
idéia do acaso é, particularmente, libertar o homem do despotismo do fatum. Os
epicuristas professam a liberdade da vontade. Mas se, como ensinam os estóicos, há
um fatum-, então desaparece a liberdade da vontade e pende, sobre a vida do homem,
como espada de Dâmocles, a perpétua fatalidade. Uma tal mundividência é coisa
impossível para os hedonistas: perturba todo o gozo da vida. Daí a tentativa de salvar a
liberdade, mediante o conceito de acaso e da ausência de causalidade. Por êle, o homem
escapa ao nexo causai universal, pode começar por si mesmo, e com atividade criadora,
uma série de causas; é, portanto, senhor da sua vida e pode construí-la como -lhe
aprouver. Cícero declara, expressamente, que Epicüro, com o fito de salvar a liberdade,
introduziu a declinatio. E o mesmo lemos em Lucrécio: "Por causa da declinatio não se
dá o fato de o espírito estar encadeado ao ímpeto do próprio peso, nem de ser por este
dominado, nem fica adstrito a suportar e a sofrer" (cf. II, 289). Daí o terem os
epicuristas travado, em favor da liberdade humana, um constante combate contra o
fatum estóico. Seu refúgio teórico foi o conceito de acaso. Sobre a réplica dos
adversários v. Cícero, De fato, 46.
β) Crentes nos deuses. — Também não se colocou no pesado prato da balança o fato
de, na vida e comportamento público, ainda se "acreditar" nos deuses, que a cosmologia
de Epicuro transferira para os intermúndios, os espaços postos entre os mundos, onde
passavam a existência num repouso definitivo. Pois o Jardim não admitia, como o
Pórtico, a unidade do universo, mas a pluralidade dos mundos. E nesses espaços vazios
de matéria cósmica, entre os vários mundos, moravam os deuses, vivendo uma plácida
existência. Só viviam para si, sem intervir de modo nenhum no tráfego do mundo. Isto
era, praticamente, o mesmo que dizer: para nós não há nenhuns deuses; e, na realidade,
o que se queria era viver como um deus entre os homens, fundado na nova felicidade da.
vida, prometida pela doutrina do prazer (Epicuro, Carta a Meneceu, conclusão). Pois,
que necessidade havia de chocar o sentimento dos homens por um declarado ateísmo?
Decidiram-se, então, por um deísmo ou algo ainda menos que isso: ser cortês com os
deuses, invocá-los, como, p.ex., Lu-crécio invoca Vênus no começo do seu poema
didático. Viver e deixar viverem os crentes. Os epicuristas não são homens perigosos.
Sabem viver, falam bem, escrevem bem, mas;1 não se metem em fundas especulações.
Sua Filosofia não se .constitui de pensamentos carregados de melancolia, mas assume
os ares gratos e leves da musa. Isto se lhes manifesta principalmente na ética, e é sempre
nela que se pensa quando vem à baila a questão dos epicuristas.
d) Bibliografia
C. Bailey, The Greek Atomists and Epicurus (Oxford, 1928). J. Mewaldt, Der Kampf
des Dichtcrs Lukrez gegen die Religion —
A Luta do Poeta Lucrécio contra a Religião (1935). W. Schmid, Epikurs Krítik der
platonischen. Elementarlehre — Crítica de Epicuro aos Ensinamentos Elementares, de
Platão (1980). A.-.T. Festu gière, Epicure et ses dieux (Paris, 1940).
C. ÉTICA
a) Hedonismo
β) Ataraxia.. — Ressalta assim, claramente, aos olhos qual prazer tem Epicuro em
mente com o seu hedonismo. Entende êle por prazer a ausência da dor e a isenção de
perturbações da alma (αταραξια), a paz e o sossego do ânimo.
Aristipo tinha em vista um prazer que implicava a mais intensa vivência possível; êle
queria o ”prazer do movimento". Epicuro, ao contrário, pensa no "prazer do repouso".
αα) A φρονησιζ superior ao prazer. — Dizia êle, ainda, que não devemos, cega e
avidamente, ceder aos prazeres imediatos, mas levar em conta uma arte de medi-los, que
deve considerar a vida no seu total e pesar os prazeres, compa rando-os racionalmente,
afim de não ser um momentâneo prazer a causa de uma dor futura, ou um pequeno
prazer, avidamente abraçado, vir a impedir um maior, que está à vista. É em geral
necessário, diz Epicuro, a razão e a φρονησιζ; sem ela e a virtude, não liá nenhum
prazer: "O princípio de toda a vida feliz e, portanto, o máximo bem, é a φρονησιζ; é
superior à Filosofia; dela procedem as demais vantagens; sem φρονησιζ;, sem
moralidade e justiça não se pode viver com prazer, e, ao inverso, sem prazer também
não se pode viver racional, moral e justamente. Pois todas as virtudes estão entrelaçadas
com a vida agradável e esta, por sua vez, não pode separar-se delas" (Epístola a
Menecea). Não se sabe a que ater-se lendo isto. Pois, será o prazer o princípio de todas
as nossas ações, ou há algo de superior a êle, que dirige e ordena: a razão, a moralidade,
a justiça, a vida no seu conjunto?
Mas, talvez, a situação histórica é toda outra. Talvez, segundo ela, os epicuristas não
quiseram tanto expor uma Filosofia teórica, mas, antes, uma prática sabedoria da vida.
Muitos são de opinião de que o epicurismo é, antes, um estilo de vida, mesmo uma
religião — antes uma mundivivência, diríamos hoje — do que pura Filosofia
(Hoffmann). Considerado a esta luz, de fato são mais inteligíveis muitas doutrinas do
epicurismo. E o que êle nas dá como sabedoria da vida contém, realmente, muitos dados
preciosos.
δ) O sábio. — Amizade, fruto da sabedoria. Com isto temos aqui, de novo presente, o
muitas vezes invocado conceito da sabedoria. Todas as escolas gregas de Filosofia
conhecem o "sábio"’, mas cada qual com a sua concepção própria. A educação do
espírito crítico, que se alcança pelo esforço em fazer sobressair, de termos iguais,
conteúdos significativos, às vezes diversos, não é para desprezar-se. Aqui, para os
epicuristas, o sábio é o artista da vida. Não serão poucos os homens que lhes aceitarão
as máximas com aprazimento. Mas o senso crítico logo perguntará: Que é a arte da
vida? Que significa aqui precisamente "vida"? Não são possíveis muitas maneiras de
entendê-la? Mas, se quisermos,, para nos fixarmos em um sentido, determinar, em
princípio, a concepção epicurista da vida, devemos nos lembrar de quão pouco levaram
o princípio ético às derradeiras conseqüências. Esta objeção, porém, não leva a excluir,
de todo, o valor das regras concretas de vida. Pois, teoremas não passam, muitas vezes,
de símbolos, a ocultarem uma realidade,, mais forte do que a simples notificação lógica,
e que afirma o seu valor e abre, instintivamente, o seu caminho, mesmo quando as
elucidações conceptuais julguem-na falsa. "Cinzenta, querido amigo, é toda teoria, mas
verde, é a árvore de ouro da vida".Bibliografia: F. Wehrli, Lathe Biosas (1931).