Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
VIETNAN – INFERNO
COMO UMA SERPENTE VELHA, VOU CONQUISTANDO O CAMINHO PARA A LIBERDADE.
O BARULHO DO RIO ME GUIA EM MEIO ÀS CONVERSAS DE MEUS INIMIGOS. SIM, ELES
ESTÃO ME PROCURANDO, E O MAIS SENSATO SERIA ME ATIRAR AO FOGO DO
INFERNO E ESPERAR A MELHOR HORA PARA QUEIMAR, MAS NÃO POSSO, OUTROS
DEPENDEM DE MIM... TUDO ESTÁ ESCURECENDO MAIS AINDA, E AGORA MEUS OLHOS
SE ENCHEM DE AREIA; JÁ É DIA NOVAMENTE.
pg 1
Maré Vermelha
A História do Grande Urso
A TERRA TREME DE FORMA COMPASSADA. TALVEZ ESTEJA RELATANDO A MINHA
MORTE...
UMA SINFONIA SE APROXIMA DO HORIZONTE À MINHAS COSTAS. ACHO QUE UM
ATAQUE COMEÇOU. HELICÓPTEROS TENTAM ENXERGAR O QUE ACONTECE EM MEIO À
CLAREIRA. O CHÃO EXPLODE À MINHA VOLTA. JÁ NÃO ESCUTO MAIS NADA, SOMENTE
MEUS OLHOS CONSEGUEM ME MOSTRAR QUE O VERDE SE TORNOU VERMELHO, E
QUE SE NÃO CORRER O VERMELHO SE TORNARÁ NEGRO.
VIETNAN – HELICÓPTERO
NÃO. NÃO ESTOU EM UMA CAVERNA COMO IMAGINAVA. SIM, POSSO RECONHECER
AGORA. ESSE É O HELICÓPTERO DE TRANSPORTE DE MEU PELOTÃO.
FOI ABATIDO PELAS FORÇAS INIMIGAS NUM ATAQUE SURPRESA.
A NAVE AGORA ESTÁ TOMADA PELA FLORESTA. TORNOU-SE PARTE DELA. O
EQUIPAMENTO BÉLICO QUE ME ABRIGA E PROTEGE GANHOU NOVA FUNÇÃO NA
NATUREZA.
pg 2
Maré Vermelha
A História do Grande Urso
É COMO SE PROCURASSE A REDENÇÃO ANTE A MALDADE QUE CARREGOU PELA
VIDA...
VIETNAN – LEMBRANÇAS
EU LEMBRO... ESSE HELICOPTERO SOBREVOAVA A MATA FECHADA NA NOITE ESCURA.
EU OLHAVA PARA OS SORRISOS DESPRETENSIOSOS DE MEUS SOLDADOS, CANTAVAM
EMBRIAGADOS PELA EUFORIA NO MOMENTO DA CILADA. MESMO ANTES DA BATALHA,
O SANGUE DOS IRMÃOS LATINOS DE MEU PELOTÃO COLORIU DE VERMELHO AS
FARDAS DAQUELES QUE SOBREVIVERAM; ROUPAS AINDA SEM AS MARCAS DO SUOR E
DO SOFRIMENTO QUE ESTARIAM POR VIR.
EU TINHA A CERTEZA DE UMA LUA APÓS A OUTRA QUE O INIMIGO VIRIA. E ELE VEIO E
NOS CERCOU. APESAR DE NOSSA RESISTÊNCIA HERÓICA ACABAMOS NUM CAMPO DE
CONCENTRAÇÃO. ÉRAMOS UMA PODEROSA ARMA NA GUERRA PSICOLÓGICA QUE SE
DESENVOLVIA ATRAVÉS DA MÍDIA MUNDIAL. TORNAMOS MOEDA DE TROCA NAS
MÃOS DE UM GRUPO QUE NOS CONHECIA BEM MAIS DO QUE AQUELES QUE NOS
COMANDAVAM. TALVEZ, POR CAUSA DISSO, PASSADOS QUATRO MESES DESDE A
CAPTURA; SOFRÍAMOS AINDA COM A TORTURA E COM O DESCASO DOS DONOS DA
GUERRA...
VIETNAN – UM MÊS
APARENTEMENTE ESTOU EM DISTANCIA SEGURA, HÁ ALGUMAS MILHAS DO OLHO DO
FURACÃO, E SOMENTE O MEDO AINDA ME PRENDE AQUI: - SERÁ QUE ESTE MEDO É
MAIOR DO QUE Os MEDOS DAQUELES QUE ESTÃO LÁ? SERÁ QUE ELES AINDA SENTEM
MEDO? SERÁ QUE ELES JÁ ESTÃO MAIS PERTO DE DEUS, E, EU SOZINHO, VAGUEIO
PELO INFERNO? ...
VIETNAN – LEALDADE
MINHA CABEÇA AINDA RODA E MEU CORAÇÃO APERTA. A LEALDADE DE MINHA
TROPA SEMPRE FOI INVEJADA, E AGORA A MINHA TROPA NÃO EXISTE MAIS. EXISTE
APENAS UM GRUPO DE HOMENS ESPERANDO SUAS AMARRAS SEREM SOLTAS; SEM
DESFAZER NÓS OU CORTAR CORDAS, ESPERAM SIM, A LIBERDADE DA ALMA, NÃO A
DO CORPO, ASSIM COMO EU, DIAS ATRÁS.
NÃO QUERO MAIS PENSAR NISSO, MINHA DECISÃO JÁ ESTÁ TOMADA.
pg 3
Maré Vermelha
A História do Grande Urso
PRECISO CONTINUAR. PRECISO SAIR DESSE INFERNO. RECUPERAR AS FORÇAS E
DEPOIS VOLTAR.
O Soldado que outrora caminhava trôpego, fugitivo, em meio às folhas e ramas de uma
vegetação densa, revive através de seu diário, tudo o que escrevera sob o manto da agonia.
Agora, distante daquele horror, refletiu sobre a ironia da guerra - As únicas coisas que os
inimigos deixaram com ele, quando caiu prisioneiro, foram: Aquela caderneta e um lápis
que, como um testamento carregou consigo mesmo durante a fuga - Coisas inexplicáveis da
guerra. Respeitar o direito de um homem ter suas lembranças. Negaram-lhe água e comida.
Negaram-lhe respeito humano. Mas, a memória; por mais incrível que possa parecer, não.
Sentou-se de lado e posicionou o pequeno livro sobre a mesinha à sua frente para possibilitar
a continuidade da leitura, enquanto calçava as botas. Releu coisas. Recordações de sua
infância, cuja solidão da floresta trazia nos momentos sem esperança:
VIETNAN – AGRADECIMENTO
AGRADEÇO AOS MEUS MESTRES. SE AINDA VIVO, DEVO A ELES... FOI A ACADEMIA.
pg 4
Maré Vermelha
A História do Grande Urso
A ACADEMIA ME MOSTROU COM CLAREZA O CAMINHO. PUDE VIVER A GRANDE
MARCHA, FORAM DIAS DE GLÓRIA. APRENDI A RESPEITAR, ESSE MOMENTO ATRAVÉS
DOS MAIS EMOCIONADOS RELATOS DE VETERANOS QUE NOS VISITAVAM DE TEMPOS
EM TEMPOS.
HAVIA UM OFICIAL QUE TEIMAVA EM TOMAR-ME O PONTO AO ENTARDECER DE DIAS
FRIOS. BEM NAQUELES, QUANDO A GENTE SÓ QUER TIRAR AS BOTAS E CAIR NA
CAMA ESPERANDO O AMANHÃ DE TRABALHO DURO – VOCÊ É O FUTURO DA CHINA!
DIZIA O CAPITÃO PING – TEM DE ESTAR PREPARADO!
- Eu tinha que voltar. Tinha que cumprir minha missão. Meu juramento!
Tinha que libertar meus camaradas. Salvar Yuri, meu irmão de armas! Eu
jurei que voltaria! Tinha que Honrar minha palavra! Não podia fraquejar!
Tinha que ser forte!
- Sim! Xióng! Sim! Xióng quer dizer Urso... Talvez não seja à toa, como
dizia minha mãe: “Você é um Urso! Um Urso nunca fraqueja!”
- Dei um passo, depois o outro. O sol à pino queimando meus olhos e
minha carne; consumindo a pouca energia que restava. A fome. Estava
pg 5
Maré Vermelha
A História do Grande Urso
fraco. Mas, a fraqueza era do corpo, não do espírito revolucionário. Este
permanecia intacto. Eu tinha que voltar!
Em seu dialogo de consciência encarando os olhos do próprio reflexo, ele ainda recordou,
constrangido, dos momentos antes de levantar vôo para a missão derradeira. As informações
da inteligência eram de que não encontrariam inimigos até atingirem o destino... Porém,
foram surpreendidos:
- Yuri, meu velho amigo! Você tinha razão quando passava o dia a se
lamentar no cativeiro: – Numa guerra você tem de estar preparado para
tudo. Sempre alerta! Sempre alerta!
- Não vou mais decepciona-lo, camarada!
Yuri fora designado para comandar a execução do amigo. Recusou-se de inicio. Mas, um
bom soldado sempre cumpre as ordens.
Eram treze metros de distancia entre o homem convicto de sua inocência em frente à parede
fria e uma linha de soldados estremecidos ante a possibilidade de matar seu herói. Apenas
uma bala, aleatoriamente encapsulada em um dos sete fuzils, seria capaz de retirar a vida do
pg 6
Maré Vermelha
A História do Grande Urso
maior combatente que conheceram. O Urso imortal não era mais o herói nacional, era
apenas um outro traidor. Pela palavra do Partido fez-se a crença da nação. No entanto, a
nação nunca o vira lutando pela Pátria. Para aqueles homens, ali perfilados, ninguém mais
que ele serviu o país com tanto amor e coragem no campo de Batalha e, se a palavra do
partido era outra, uma orelha lhes bastava para estabelecer a verdade.
- Xióng, o teu corpo não sentira jamais o amargo queimar de uma bala
de meu revolver! Desabafou Yuri ao amigo.
- Ao contrário, aquele que atentar contra ti é quem se arrependera
desse sacrilégio e pagara com a vida. Por isso, pela nossa amizade, eu
lhe imploro! Por favor, morre hoje com o primeiro tiro, pois esse será o
único homem que não conhecerá o ácido da minha vingança!
“One shot, one kill” Foi a oração que o franco atirador mentalizou quando, o
então Capitão Xióng - O Grande Urso, se tornou herói...
pg 7
Maré Vermelha
A História do Grande Urso
guerra. Com o pulmão perfurado, a cada expiração expulsava sangue
pela boca. Por isso, o medo que sentia, não era morrer pelo tiro, não
havia dor, o medo, era morrer sufocado pelo próprio sangue. Todavia, o
Urso não iria morrer naquele dia. E, se morrer tivesse, ele morreria
lutando como urso que era. Cravou a mão no fuzil e empunhou a
baioneta. Sentiu-se como no Décimo Terceiro Exercito novamente. Foi
assim que o mais bravo membro da Divisão Estrangeira no Vietnam se
atirou contra a infantaria inimiga.
Como um felino saltou contra e cuspiu o seu sangue nos olhos de um
surpreso americano. Com sua lâmina misturou o sangue asiático com o
sangue africano. O negro, que nem idade ou motivo tinha para morrer
naquela guerra, nunca saberia que seu corpo protegia os mercados
imperialistas de uma Pátria de Brancos, onde o direito a vida lhe era
negado. Ignorante criança... Manteve os olhos abertos. Estupefado, caído
na trincheira, não agonizou.
Os outros soldados, quase todos cubanos, testemunharam a valentia do
Urso e, acreditando na vitória, saíram de suas proteções avançando como
demônios contra os ianques.
pg 8
Maré Vermelha
A História do Grande Urso
adormecido aos seus pés; o chinês se abaixar e o projétil endereçado ao
seu cérebro, emitir seu canto estridente antes de decepar-lhe a orelha
esquerda, descansar erroneamente no peito do negro morto.
Vendo Xióng cair com o impacto da bala, seus companheiros pararam o
ataque e alguns oficiais russos iniciaram um recuo para dentro da
floresta. Helicópteros foram acionados pelo radio para dar suporte à
evacuação das tropas.
pg 9
Maré Vermelha
A História do Grande Urso
final daquela batalha. O Urso, por outro lado, tinha certeza que, se
conseguisse alcançar as metralhadoras, enterraria o sonho capitalista
naquele lugar esquecido por Deus, se ele realmente existisse.
Sangue traidor! Xióng não conseguia enxergar nada. Ouvia, cada vez
mais perto, o som dos bombardeiros. Seu próprio sangue conspirava
contra ele. Não encontrava forças para levantar o braço. Precisava lançar
a granada e teria apenas uma chance.
“One shot, one kill...” Segurou o ar dentro do peito e comedidamente
puxou o gatilho. No clique da precisa maquina mortal do atirador, o Urso
mandou sua granada devastadora. Inconseqüente, ela explodiu a quase
cinco metros do alvo.
O soldado atirador, conferindo o equipamento, teve um mau
pressentimento. Nunca antes uma de suas balas negara fogo. Repetiu o
ritual. Ainda ouvia o assovio das bombas vindo purificar o ar com cheiro
de Enxofre quando prendeu a respiração. “One shot, one kill...”. Antes
que o gatilho fosse acionado, Ramirez, descrente, testemunhou centenas
de fuzileiros americanos e o próprio franco atirador serem carbonizados
pela primeira varredura do NaPalm. “Puta Madre! Ayuda me ante del
sacrifio!” Exclamou, olhando incrédulo para o céu. Algo não estava
certo. “Insistiu, desesperadamente, contra a estática de seu rádio, o
repasse das coordenadas corretas. ” 33-63-63. Puta Madre! Estan
locos?”. Inútil.
Por ficar totalmente petrificado assistindo a calcinação de parte de sua
tropa, o sargento não viu sua própria morte trazida pela segunda
granada de Xióng. E, com o estancar da metralha, os vermelhos
puderam cruzar o rio rumo à vitória.
O silêncio parecia eterno. Uma lágrima quase escapou pelo canto dos olhos de Yuri. Ele não
queria demonstrar fraqueza perante seu mestre a quem iria executar naquele momento. Se
aprumou nos calcanhares e baixando a espada com violência, proferiu o comando fatídico:
“FOGO!”.
pg 10
Maré Vermelha
A História do Grande Urso
Sete gatilhos acionados. Sete armas rugindo. Sete canos fumegando e exalando fumaça. O
prenuncio da morte estava na fumaça, como fosse a fumaça Papal anunciando o fim de uma
era e inicio de outra.
Nos olhos do Urso o filme passou na velocidade da morte que se avizinhava. Até o cheiro
daquele dia ficara marcado em sua alma. Já podia sentir o quente da bala se aproximando do
coração. Escorou-se na parede preparando o corpo para o impacto. Não queria cair, nem
chorar como naquele dia em Dan nang...
pg 11
Maré Vermelha
A História do Grande Urso
imperialistas sem luta, muita luta! Após a expulsão dos franceses
veio a guerra contra os americanos. O apoio inicial da China e da Rússia,
depois os desentendimentos. O distanciamento dos aliados. A ideologia.
O capitalismo versus o comunismo. A nova ordem mundial.
Não. A ideologia pouco interessava a um soldado no campo de batalha
em Dan nang. O que realmente interessava a todos ali, era sobreviver. E
assim, unia-se mais aos inimigos do que aos comandantes. O bravo Urso
cerrou os olhos e, fitando o horizonte devastado por aquela batalha
insana, chorou...
Os homens do Pelotão de Fuzilamento ainda sentiam o tranco das armas quando o Grande
Urso reviveu sua derradeira decisão.
Era hora de cumprir a promessa. Voltar e libertar seus camaradas. Foi por isso, que superou
todas as agruras que a guerra impõe a homens como ele. Foi por isso que continuou mesmo
depois daquela loucura em Dan nang. Foi por isso que tomou a decisão fatal...
pg 12
Maré Vermelha
A História do Grande Urso
Adrenalina reduziu seu nível entre o Vietcongs, engajados naquilo que
restara da Legião Estrangeira. O rádio ignorava as informações sobre a
rendição e insistente ordenava a morte: “Não façam prisioneiros!
Repitam Dan nang!”
Horas se arrastavam enquanto o Coronel, condecorado e amado em toda
a China, tentava demover superiores sedentos de vigança. “Não façam
prisioneiros! Repitam Dan nang! Continuem! Repitam Dan nang!
Continuem!””.
O pano alvo desesperadamente bailava por todo campo americano. A
tropa, sob o comando do Urso, se dividira. Muitos ainda queriam o
sangue dos inimigos banhando a terra na qual ousaram pisar sem
permissão e se proclamarem salvadores da Pátria. Uma Pátria que nunca
lhes pertenceu. Muitos queriam apenas descansar. Ver novamente o
arroz crescendo dentro das águas mansas e uma chuva de verão
umedecendo a floresta, refrescando o corpo.
pg 13
Maré Vermelha
A História do Grande Urso
um ultimo suspiro. Todo medo percorreu os corpos de cada elemento
tocaiado em sua trincheira. A morte rondou os corações.
A decisão estava tomada. O rádio já não comandava mais nada. Estava
espatifado sobre a mesa do assustado operador, cujo “Zim” das balas,
ainda estridente dentro da cabeça, soava. Xiong deixou sua tenda, subiu
no alto de uma colina e, com um lenço branco, sujo de sangue, acenou
para os antigos algozes aceitando a rendição. Sim, um soldado vence
Batalhas...
Do outro lado, centenas de homens comemoraram e chacoalharam suas
bandeiras como se comemorassem um gol no ultimo segundo de um jogo
perdido.
O Chinês sabia que seria seu último dia no comando. Não esperava que o
acusassem de traição... Traidor? Um soldado que venceu a Batalha?
Cada qual se isentou na defesa do Herói... Todos os níveis de comando. Cada qual achou que
sua decisão seria anulada pela estância superior e, quando a sentença alcançou o pico da
pirâmide; era impossível ir contra aquilo tudo o que todos os níveis inferiores haviam
decidido. E eles decidiram que: Xiong deveria morrer...
As ordens eram importantes, mas a prioridade era registrar a ultima a contradição. Abriu o
seu diário e plantou com a caneta nas paginas do tempo, as sementes de sua imortabilidade.
Anotou: “Não depende do meu corpo, a morte pode vir e me
levar porque o sonho não depende dele e nem tão
pouco, da minha vontade de sonhar ou de morrer,
depende. Mesmo depois de morto o meu sonho
continuará a ser sonhado”.
Os jornais anunciaram que o Urso foi encontrado morto.
pg 14
Maré Vermelha
A História do Grande Urso
TV, fala-se sobre a bala; alojou-se no quadrante superior
esquerdo do cérebro. Junto das palavras, foi mostrado o rosto do
medico legista pronto para responder milhares de perguntas. O
repórter com um discreto fechamento de olhos, se apresenta em
total concordância com a história. Então, o medico começa as
suas explicações técnicas. Ele olha diretamente para as câmeras
com ares de grande especialista no assunto e, de sua boca
saltam ecleticamente, o sorriso e a resposta dos danos causados
no órgão. Informa que a vida acabou, depois da bala, cabeça
adentro, ter carregado pele, pêlos, cabelos e fragmentos do osso
parietal junto com a morte.
pg 15
Maré Vermelha
A História do Grande Urso
fúnebres e lamentativos dos poderosos sinceramente recebendo
as condolências da nação. Condolências prestadas ao Urso
Imortal. Na ultima imagem transmitida pela Tv. enquadrado em
plano solene, Yuri aparece chorando ao lado do caixão.
O representante indicado por Hanói, Capitão Mitvol Trutnev, para verificar que o traidor
fosse colocado contra a parede e enfrentasse o pelotão de fuzilamento; não queria estar
presente. Mitvol queria somente voltar a sua rotina de catalogar os livros proibidos e deixar
de ter que testemunhar traidores “estrangeiros” sendo exterminados. Tinha receio de que os
seguidores desses infiéis executados viessem vingar a morte de seus lideres. Não queria ter
assinado as ordens em nome comitê central de uma nação que não era sua. Não queria que
suas ações, ao voltar para Moscou, fossem interpretadas de uma maneira adversa. No tempo,
poderia ele mesmo ser visto como o maestro de um crime. Tudo é possível na reedição da
historia de uma guerra. Sabia que era provável, no futuro, conhecer o mesmo fadário dos
traidores, hoje em suas mãos. Queria menos ainda, ter o destino que as centenas de
autoridades locais tiveram depois de Dannang.
Mitvol, antes da guerra, era apenas um bibliotecário. Agora servia como prefeito, delegado e
juiz em uma terra desconhecida. Essa honra foi dada a ele não somente porque nenhum
vietnamita seria envolvido na morte de um herói chinês, mas também, porque qualquer outra
autoridade local capaz de ler e escrever havia sido ou morta, ou presa, ou tinha desaparecido.
Quando a bala terminou sua jornada mortal, Xióng concluiu, ao escutar o rosnar dos rifles,
que ainda podia continuar sonhando...
Mitvol pensava em títulos de livros proibidos que devessem ser executados, quando
inesperadamente o projétil descansou inofensivo na parede e o prisioneiro continuou em pé.
O Chinês permaneceu calado, esperando a morte. Mitvol queria que tudo tivesse sido
diferente, não queria ter tido a “honra” de ter que ordenar nada. Os sete soldados repousaram
suas armas e Yuri abaixou a espada lentamente, como se o tempo fosse um instrumento
capaz de mudar o rumo do destino e também alterar o querer do Capitão Trutnev. E o
Capitão apressadamente repudiou a “honra” de ser o homem a disparar o tiro de misericórdia
naquele traidor ainda vivo.
pg 16
Maré Vermelha
A História do Grande Urso
Todos, naquele momento, guardaram seus pensamentos, receios e palavras. Mitvol observou
Yuri. O homem estava aparentemente inabalado, caminhando lentamente rumo aos soldados
designados para terminar com a vida de Xióng. Sua espada retornou a bainha. Os atiradores
ficaram mudos não queriam justificar seus atos de insubordinação. Mitvol conseguiu
somente perceber a concordância de todos quando Yuri lhes questionou estarem dispostos a
pagar qualquer preço por suas ações.
O russo amigo de Xióng ordenou ao pelotão não quebrar a formação e empunhou sua
pistola. Yuri se afastou de seus soldados e rumou em direção ao prisioneiro. Não mais
procrastinaria esperando o tempo mudar o seu destino. Agora, suas ações e suas decisões
eram condutoras de seu destino; não as tais “honras” concedidas ou impostas por Pequim,
Hanói ou Moscou.
Parou em frente ao prisioneiro e o relembrou que um soldado em guerra ou não, tem o dever
de estar sempre preparado para tudo. Então olhou fixamente para os olhos vendados do
Chinês e sussurrou: Você esta preparado? Xióng não temeu. Retornou o sussurro com um
sorriso. O amigo executaria as ordens do Partido. No entanto, havia certo direito implícito,
conquistado pelos anos de amizade e por ganhadas guerras a ser considerado naquele
momento. Xióng comentou que os querentes de sua morte, cometeram um erro básico de
estratégia. Fora realmente infantil tentar forçar uma tropa tirar a vida de seu comandante.
Pediu ao amigo para poupar a vida dos jovens soldados e respondeu que sim; “Estava
preparado para morte muito antes dos tempos da academia.” Foi por isso que começou a
escrever seu diário.
pg 17
Maré Vermelha
A História do Grande Urso
confirmação de outros oficiais no centro de inteligência. Mas, soldados
não têm desejos ou quereres; simplesmente obedecem aos ditames de
seus comandantes. Ninguém estava preparado para as conseqüências
daquilo que fazia, mas, fazia conforme comandado por Xióng. Fazia como
soldado. Obedecia...
Capitão Trutnev como representante oficial, foi forçado a levantar de seu lugar de honra e
sobre os olhares curiosos da assistência, juntou-se ao condenado e ao executor. Ele fez esse
gesto respeitosamente, afinal a Rússia também conhecia a fama do Urso Chinês. Desculpou-
se com olhos por interromper a conversa dos oficiais e com seu mandarim rudimentar ousou
perguntar: - Se a ordem foi dada... Porque, Tenente Yuri, nenhuma bala matou o prisioneiro?
pg 18
Maré Vermelha
A História do Grande Urso
assinadas: - Suas ameaças são supérfluas, Tenente. Os formulários assinados exoneram
Hanói e Moscou de responsabilidades futuras. Portanto, aqui tens os formulários liberando o
transporte do corpo. Advirto apenas; sua pistola não será suficiente para enfrentar a ira de
Pequim, quando a China imaginar que um traidor ainda vive... Lembre-se bem... Mortos!
Estão mortos! Eles podem simplesmente querer fazer desaparecer aquele que já desapareceu.
Tornar realidade a fantasia que já se consumou como verdade. O Traidor está morto...
Yuri ordenou ao pelotão para escoltar o executado de volta para casa. Antes de deixar o local
cercado por uma platéia atônita, dirigiu-se a Trutnev: - Honorável camarada! Soldados
ganham guerras ou morrem defendo seus ideais se preciso for. Estás enganado! Minha
pistola não será usada. Volto para China, não com um traidor, mas com um herói vivo.
O Capitão calou-se. Guardou os papeis e voltou a catalogar mentalmente títulos de livros
proibidos. Seus olhos encontraram os olhos de Xióng e silenciosamente disseram tudo que
tinha que ser dito...
pg 19
Maré Vermelha
A História do Grande Urso
O jovem oficial ficou surpreso. Não era comum receber ordens tão tarde
da noite. Havia um carro pronto para levá-lo ao aeroporto e ele
conheceria seu destino somente em pleno vôo. O pacote deveria ser
entregue pessoalmente nas mãos do destinatário. Caso a missão não se
cumprisse como ordenado ele seria preso e executado.
- Compreendeu as ordens? O assistente respondeu que sim...
- Avise que não quero ser incomodado por ninguém. Dispensado!
O jovem tenente prestou continência e partiu para a missão mais
importante de sua vida. Xióng sentou-se novamente em frente da
escrivaninha e esperou o telefonema. Uma hora se passou até uma voz
informar sobre a partida do avião. Assim, trinta e dois anos depois de ser
declarado oficialmente morto, a solitária bala que o procurou por
inúmeras guerras, alcançou o seu destino.
pg 20
Maré Vermelha
A História do Grande Urso
Leu o diário do Urso Chinês. Era um sonho: - Rússia e China unidas contra
todos os imperialistas!
pg 21