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Maré Vermelha

A História do Grande Urso

Chow Yun Fat


VIETNAN – NOITE SEM LUAR
MAL CONSIGO ABRIR OS OLHOS, MEU CORPO, MINHA CABEÇA; JÁ É NOITE.
OS FANTASMAS DAS BATALHAS AINDA ATORMENTAM MEU SONO FORÇADO. O CALOR É
FORTE, MAS TENHO QUE CONTINUAR.

VIETNAN – INFERNO
COMO UMA SERPENTE VELHA, VOU CONQUISTANDO O CAMINHO PARA A LIBERDADE.
O BARULHO DO RIO ME GUIA EM MEIO ÀS CONVERSAS DE MEUS INIMIGOS. SIM, ELES
ESTÃO ME PROCURANDO, E O MAIS SENSATO SERIA ME ATIRAR AO FOGO DO
INFERNO E ESPERAR A MELHOR HORA PARA QUEIMAR, MAS NÃO POSSO, OUTROS
DEPENDEM DE MIM... TUDO ESTÁ ESCURECENDO MAIS AINDA, E AGORA MEUS OLHOS
SE ENCHEM DE AREIA; JÁ É DIA NOVAMENTE.

VIETNAN – TERCEIRO DIA DE FUGA


O SOL À PINO ME MOSTRA QUANTO TEMPO FIQUEI DELIRANDO E A SORTE QUE TIVE,
POIS “UM” ESTÁ A MINHA VOLTA. DEIXAREI QUE ELE SE APROXIME MAIS UM POUCO....

VIETNAN – AZAR E SORTE


UM RASGO NO PESCOÇO DE MEU INIMIGO FOI O SUFICIENTE. ESTOU FEITO.
UM CANTIL... ÁGUA!
A SORTE, ESSA MADRASTA MÁ, DEPOIS DE QUATRO MESES, PASSA A SORRIR PARA
MIM. APROVEITO A ÁGUA E O CALÇADO DO DEFUNTO, CONTINUO MEU CAMINHO...

VIETNAN – QUINTO DIA DE FUGA


MINHAS FORÇAS, MESMO ABALADAS PELA TORTURA DE UMA FUGA DESESPERADA,
COMEÇAM A RETORNAR QUANDO A RAÇÃO DE MEU INIMIGO SE TORNA UM
VERDADEIRO BANQUETE PARA O CHACAL DEBANDADO QUE ME TORNEI. AO MESMO
TEMPO, A INCOMODA LUCIDEZ VOLTA A ME PERSEGUIR.
O CHEIRO DO NAPALM AINDA É PRESENTE, ASSIM COMO O GRITO DAS ALMAS DE
MEUS AMIGOS SOLDADOS. O QUE ESPERAR DO INIMIGO DE AGORA EM DIANTE? UMA
CAÇADA IMPLACÁVEL OU UM TOTAL ESQUECIMENTO DEIXANDO QUE A MATA SE
APODERE DE MEU CORPO? E OS OUTROS? O QUE ESPERAM DE MIM?... SE É QUE
AINDA ESPERAM ALGUMA COISA...

VIETNAN – SEXTO DIA DE FUGA

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A TERRA TREME DE FORMA COMPASSADA. TALVEZ ESTEJA RELATANDO A MINHA
MORTE...
UMA SINFONIA SE APROXIMA DO HORIZONTE À MINHAS COSTAS. ACHO QUE UM
ATAQUE COMEÇOU. HELICÓPTEROS TENTAM ENXERGAR O QUE ACONTECE EM MEIO À
CLAREIRA. O CHÃO EXPLODE À MINHA VOLTA. JÁ NÃO ESCUTO MAIS NADA, SOMENTE
MEUS OLHOS CONSEGUEM ME MOSTRAR QUE O VERDE SE TORNOU VERMELHO, E
QUE SE NÃO CORRER O VERMELHO SE TORNARÁ NEGRO.

VIETNAN – SEXTO DIA VIVO


ESTOU VIVO. CORRI SEM OLHAR PARA TRÁS E SEM DESTINO, CORRI DESVIANDO DE
GALHOS, BURACOS E FUMAÇA, CORRI EM DIREÇÃO A PARTE MAIS ESCURA DA
FLORESTA, CORRI EM DIREÇÃO A VIDA, E CAI...

VIETNAN –NOITE FEBRIL


DRAGÕES VERDES GRITANDO NOS OUVIDOS E CRAVANDO DENTES EM MINHA
COLUNA COMANDARAM OS DELÍRIOS ANTES DE EU ACORDAR. ESTOU EM UMA
ESPÉCIE DE CAVERNA ONDE FIQUEI DESACORDADO POR UM TEMPO QUE NEM OUSO
MENSURAR.

VIETNAN –NOITE ÚMIDA


DESMAIEI NOVAMENTE. JÁ É NOITE OUTRA VEZ,..
POR QUE TENHO QUE PASSAR POR TUDO ISSO, MEU DEUS ?
SERÁ ESSA MINHA PROVAÇÃO?...
E OS OUTROS ?
EM MEIO ÀS LAGRIMAS... ESTOU ENLOQUENDO!
PELA PRIMEIRA VEZ ESTOU LONGE DO SERENO E DA CHUVA, AQUECIDO PELO FOGO
QUE UM MORTEIRO PRODUZIU PRÓXIMO A MIM. A SEGURANÇA DESSA CAVERNA É
PURA ILUSÃO. JÁ NÃO ME IMPORTA MAIS SE OS INIMIGOS ME ACHARÃO. VIDA OU
MORTE, O FOGO INDICARA OS CAMINHOS...

VIETNAN – TALVEZ, DUAS SEMANAS DEPOIS DA FUGA.


ALHEIO À VONTADE DOS HOMENS, O SOL NASCE MAIS UMA VEZ E, APESAR DA
GUERRA, ILUMINA E AQUECE A TODOS SEM FAZER DISTINÇÃO ENTRE OS INSANOS
SERES HUMANOS TENTANDO O EXTERMÍNIO. A LUZ TRAZ A CONSCIÊNCIA...

VIETNAN – HELICÓPTERO
NÃO. NÃO ESTOU EM UMA CAVERNA COMO IMAGINAVA. SIM, POSSO RECONHECER
AGORA. ESSE É O HELICÓPTERO DE TRANSPORTE DE MEU PELOTÃO.
FOI ABATIDO PELAS FORÇAS INIMIGAS NUM ATAQUE SURPRESA.
A NAVE AGORA ESTÁ TOMADA PELA FLORESTA. TORNOU-SE PARTE DELA. O
EQUIPAMENTO BÉLICO QUE ME ABRIGA E PROTEGE GANHOU NOVA FUNÇÃO NA
NATUREZA.

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É COMO SE PROCURASSE A REDENÇÃO ANTE A MALDADE QUE CARREGOU PELA
VIDA...

VIETNAN – LEMBRANÇAS
EU LEMBRO... ESSE HELICOPTERO SOBREVOAVA A MATA FECHADA NA NOITE ESCURA.
EU OLHAVA PARA OS SORRISOS DESPRETENSIOSOS DE MEUS SOLDADOS, CANTAVAM
EMBRIAGADOS PELA EUFORIA NO MOMENTO DA CILADA. MESMO ANTES DA BATALHA,
O SANGUE DOS IRMÃOS LATINOS DE MEU PELOTÃO COLORIU DE VERMELHO AS
FARDAS DAQUELES QUE SOBREVIVERAM; ROUPAS AINDA SEM AS MARCAS DO SUOR E
DO SOFRIMENTO QUE ESTARIAM POR VIR.
EU TINHA A CERTEZA DE UMA LUA APÓS A OUTRA QUE O INIMIGO VIRIA. E ELE VEIO E
NOS CERCOU. APESAR DE NOSSA RESISTÊNCIA HERÓICA ACABAMOS NUM CAMPO DE
CONCENTRAÇÃO. ÉRAMOS UMA PODEROSA ARMA NA GUERRA PSICOLÓGICA QUE SE
DESENVOLVIA ATRAVÉS DA MÍDIA MUNDIAL. TORNAMOS MOEDA DE TROCA NAS
MÃOS DE UM GRUPO QUE NOS CONHECIA BEM MAIS DO QUE AQUELES QUE NOS
COMANDAVAM. TALVEZ, POR CAUSA DISSO, PASSADOS QUATRO MESES DESDE A
CAPTURA; SOFRÍAMOS AINDA COM A TORTURA E COM O DESCASO DOS DONOS DA
GUERRA...

VIETNAN – DIA ESCALDANTE


CONTINUAR ANDANDO PARA LONGE DO CAOS, OU VOLTAR PARA LIBERTAR AQUELES
QUE SALVARAM MINHA VIDA E ESTÃO SOFRENDO MUITO MAIS POR NÃO ME
DELATAREM?
MAS, POR QUE VOLTAR E TENTAR SALVAR QUEM PRATICAMENTE JÁ ESTÁ MORTO?
SERÁ QUE TODOS IRÃO CONSEGUIR SE RECUPERAR COMO EU ESTOU ME
RECUPERANDO. SERÁ QUE VALE A PENA O RISCO? COMO SABER?

VIETNAN – UM MÊS
APARENTEMENTE ESTOU EM DISTANCIA SEGURA, HÁ ALGUMAS MILHAS DO OLHO DO
FURACÃO, E SOMENTE O MEDO AINDA ME PRENDE AQUI: - SERÁ QUE ESTE MEDO É
MAIOR DO QUE Os MEDOS DAQUELES QUE ESTÃO LÁ? SERÁ QUE ELES AINDA SENTEM
MEDO? SERÁ QUE ELES JÁ ESTÃO MAIS PERTO DE DEUS, E, EU SOZINHO, VAGUEIO
PELO INFERNO? ...

VIETNAN – LEALDADE
MINHA CABEÇA AINDA RODA E MEU CORAÇÃO APERTA. A LEALDADE DE MINHA
TROPA SEMPRE FOI INVEJADA, E AGORA A MINHA TROPA NÃO EXISTE MAIS. EXISTE
APENAS UM GRUPO DE HOMENS ESPERANDO SUAS AMARRAS SEREM SOLTAS; SEM
DESFAZER NÓS OU CORTAR CORDAS, ESPERAM SIM, A LIBERDADE DA ALMA, NÃO A
DO CORPO, ASSIM COMO EU, DIAS ATRÁS.
NÃO QUERO MAIS PENSAR NISSO, MINHA DECISÃO JÁ ESTÁ TOMADA.

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PRECISO CONTINUAR. PRECISO SAIR DESSE INFERNO. RECUPERAR AS FORÇAS E
DEPOIS VOLTAR.

VIETNAN – JURAMENTO DE UM TENENTE PARA SUA TROPA


FAREI UM JURAMENTO...
- PELO MEU SANGUE, PELA MINHA ALMA – EU VOLTAREI!
– SOZINHO, SE PRECISO FOR, EU VOLTAREI!
- MESMO QUE OS SUPERIORES DIGAM NÃO... EU VOLTAREI PARA RESGATAR
MEUS SOLDADOS!
- EU VOLTAREI! EU JURO!

O Soldado que outrora caminhava trôpego, fugitivo, em meio às folhas e ramas de uma
vegetação densa, revive através de seu diário, tudo o que escrevera sob o manto da agonia.
Agora, distante daquele horror, refletiu sobre a ironia da guerra - As únicas coisas que os
inimigos deixaram com ele, quando caiu prisioneiro, foram: Aquela caderneta e um lápis
que, como um testamento carregou consigo mesmo durante a fuga - Coisas inexplicáveis da
guerra. Respeitar o direito de um homem ter suas lembranças. Negaram-lhe água e comida.
Negaram-lhe respeito humano. Mas, a memória; por mais incrível que possa parecer, não.
Sentou-se de lado e posicionou o pequeno livro sobre a mesinha à sua frente para possibilitar
a continuidade da leitura, enquanto calçava as botas. Releu coisas. Recordações de sua
infância, cuja solidão da floresta trazia nos momentos sem esperança:

VIETNAN – CALOR, CHUVA E FEBRE


AQUI NESSE INFERNO, TALVEZ, EM MEUS ÚLTIMOS MOMENTOS, ME VÊM À CABEÇA
COISAS DE MEU TEMPO DE GAROTO.
EU TINHA A CABEÇA CHEIA DE ESTÓRIAS QUANDO ENTREI NO EXERCITO. LEMBRO-ME
BEM DA FELICIDADE, QUANDO NA FILA DO POSTO DE ALISTAMENTO, O SARGENTO
GRITOU MEU NOME: - XIÓNG! – PASSEI PARA OUTRA FILEIRA À SUAS COSTAS. –
ESTEJAM PRONTOS! AMANHÃ CEDO SEGUIRÃO PARA A ACADEMIA MILITAR EM
BEIJING! ESSA FRASE ENCHEU DE ORGULHO O MEU CORAÇÃO.
O EXÉRCITO POPULAR DE LIBERTAÇÃO HAVIA ME ACEITO. ESTAVA DISPOSTO A DOAR
MINHA VIDA PELA CAUSA E PROVEI ISSO NA CORÉIA EM 51: EU ESTAVA NO DÉCIMO
TERCEIRO EXERCITO QUANDO RECHAÇAMOS OS MARINERS AMERICANOS DE CHOSIN.
NÃO HOUVE MONTANHAS, NÃO HOUVE GELO, NEVE, NADA EVITOU NOSSA VITÓRIA.
MUITOS HERÓIS ANÔNIMOS TOMABARAM LÁ E, EU QUERO HONRÁ-LOS AGORA.

VIETNAN – AGRADECIMENTO
AGRADEÇO AOS MEUS MESTRES. SE AINDA VIVO, DEVO A ELES... FOI A ACADEMIA.

VIETNAN – LEMBRANÇAS DA ACADEMIA

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A ACADEMIA ME MOSTROU COM CLAREZA O CAMINHO. PUDE VIVER A GRANDE
MARCHA, FORAM DIAS DE GLÓRIA. APRENDI A RESPEITAR, ESSE MOMENTO ATRAVÉS
DOS MAIS EMOCIONADOS RELATOS DE VETERANOS QUE NOS VISITAVAM DE TEMPOS
EM TEMPOS.
HAVIA UM OFICIAL QUE TEIMAVA EM TOMAR-ME O PONTO AO ENTARDECER DE DIAS
FRIOS. BEM NAQUELES, QUANDO A GENTE SÓ QUER TIRAR AS BOTAS E CAIR NA
CAMA ESPERANDO O AMANHÃ DE TRABALHO DURO – VOCÊ É O FUTURO DA CHINA!
DIZIA O CAPITÃO PING – TEM DE ESTAR PREPARADO!

DEPOIS EU VI QUE ELE TINHA RAZÃO. ERA A REVOLUÇÃO CULTURAL SE


PROCESSANDO EM MIM.

VIETNAN – MINHA CERTEZA, MINHA LUTA.


O MUNDO HOJE PRECISA DE UMA GUARDA VERMELHA.
PRECISAMOS VARRER OS QUATRO VELHOS DESTAS TERRAS TAMBÉM - VELHOS
HÁBITOS, VELHA CULTURA, VELHAS IDÉIAS E VELHOS COSTUMES - TEMOS QUE
RENOVAR. RENOVAR PARA MELHOR. COMBATER O IMPERIALISMO CAPITALISTA. ESSA
INVENÇÃO BURGUESA PARA EXPLORAR A CLASSE OPERÁRIA. GENTE CAPAZ DE JOGAR
TONELADAS E TONELADAS DE NAPALM EM ALDEIAS INDEFESAS SOMENTE PARA
AUFERIR LUCROS SOBRE RIQUEZAS QUE SÃO DO POVO.
SIM, FOI POR ISSO QUE NÓS, NOSSOS CAMARADAS CUBANOS E RUSSOS NOS UNIMOS
A ESSA GRANDE NAÇÃO... PARA COMBATER!
VAMOS, DE UMA VEZ POR TODAS, RECHAÇAR OS OPRESSORES CAPITALISTAS DESTE
MUNDO!
NÓS VAMOS CONSTRUIR UM MUNDO MELHOR!

As memórias descritas no pequeno livreto perambulavam na cabeça do homem, reforçando a


certeza em tudo o que fizera. Levantou. Dirigiu-se para um grande espelho encravado na
porta do armário do quarto. Alinhou os botões da farda enquanto declarava à sua própria
imagem. Ele sussurrou palavras sobre a fé que tinha em todos os seus atos:

- Eu tinha que voltar. Tinha que cumprir minha missão. Meu juramento!
Tinha que libertar meus camaradas. Salvar Yuri, meu irmão de armas! Eu
jurei que voltaria! Tinha que Honrar minha palavra! Não podia fraquejar!
Tinha que ser forte!
- Sim! Xióng! Sim! Xióng quer dizer Urso... Talvez não seja à toa, como
dizia minha mãe: “Você é um Urso! Um Urso nunca fraqueja!”
- Dei um passo, depois o outro. O sol à pino queimando meus olhos e
minha carne; consumindo a pouca energia que restava. A fome. Estava

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fraco. Mas, a fraqueza era do corpo, não do espírito revolucionário. Este
permanecia intacto. Eu tinha que voltar!

Em seu dialogo de consciência encarando os olhos do próprio reflexo, ele ainda recordou,
constrangido, dos momentos antes de levantar vôo para a missão derradeira. As informações
da inteligência eram de que não encontrariam inimigos até atingirem o destino... Porém,
foram surpreendidos:

- Yuri, meu velho amigo! Você tinha razão quando passava o dia a se
lamentar no cativeiro: – Numa guerra você tem de estar preparado para
tudo. Sempre alerta! Sempre alerta!
- Não vou mais decepciona-lo, camarada!

Apanhou o lápis e escreveu na caderneta: Ainda não acabou. Continuo


sonhando!

A Porta do quarto se abriu. Dois soldados se aproximaram e executaram a saudação militar.


O Coronel Xióng devolveu o cumprimento e guardou a caderneta no bolso da túnica.
Altivo, ele caminhou célere, à frente da escolta, rumo ao seu fadário.
Depois de um grande corredor abriram-se as portas para o pátio central, onde os olhos
espreitaram-no curiosos.
O helicóptero e a voz de Yuri foram sumindo de sua mente e finalmente encarou o antigo
camarada de cativeiro. Tinha uma certeza no coração: Ainda travaria uma última batalha.
Viver para resgatar sua honra ou padecer como um covarde traidor.
Ergueu a cabeça e olhou ao redor. A assistência formada por parte do alto comando
escondeu o constrangimento. Xióng entregou a caderneta com suas anotações para Yuri.
Perfilou-se para, em seguida, retribuir a continência solidária de seus homens.

E foi assim que o Grande Urso enfrentou aqueles momentos em frente ao


Pelotão de Fuzilamento...

Yuri fora designado para comandar a execução do amigo. Recusou-se de inicio. Mas, um
bom soldado sempre cumpre as ordens.
Eram treze metros de distancia entre o homem convicto de sua inocência em frente à parede
fria e uma linha de soldados estremecidos ante a possibilidade de matar seu herói. Apenas
uma bala, aleatoriamente encapsulada em um dos sete fuzils, seria capaz de retirar a vida do

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maior combatente que conheceram. O Urso imortal não era mais o herói nacional, era
apenas um outro traidor. Pela palavra do Partido fez-se a crença da nação. No entanto, a
nação nunca o vira lutando pela Pátria. Para aqueles homens, ali perfilados, ninguém mais
que ele serviu o país com tanto amor e coragem no campo de Batalha e, se a palavra do
partido era outra, uma orelha lhes bastava para estabelecer a verdade.
- Xióng, o teu corpo não sentira jamais o amargo queimar de uma bala
de meu revolver! Desabafou Yuri ao amigo.
- Ao contrário, aquele que atentar contra ti é quem se arrependera
desse sacrilégio e pagara com a vida. Por isso, pela nossa amizade, eu
lhe imploro! Por favor, morre hoje com o primeiro tiro, pois esse será o
único homem que não conhecerá o ácido da minha vingança!

O responsável pela execução deixou Xiong parado em frente ao paredão e se posicionou ao


lado do pelotão. Se um Deus houvesse... Se fosse justo e sábio... Então, que levasse seu
camarada no primeiro tiro. Nunca ele executaria o disparo de misericórdia na cabeça do
amigo. Preferia morrer.
Xiong ouviu o grito: “PREPARAR!”... Se a sorte estivesse do seu lado, a morte ainda não iria
abraça-lo...

Seriam sete tiros, mas somente um carregaria a morte...

“One shot, one kill” Foi a oração que o franco atirador mentalizou quando, o
então Capitão Xióng - O Grande Urso, se tornou herói...

O Chinês calculou o calibre do projétil e o recuo daquele tipo de arma. Considerou a


inclinação da arma, o ângulo de saída de seis das sete já engatilhadas pelos carrascos. Yuri
de espada erguida comandou “APONTAR!”.
Com os todos os músculos retesados, Xiong, querendo acreditar que ainda podia existir
honra e que, esse sentimento estava acima da vingança; se lembrou de sua volta para floresta
meses depois da fuga. Estava recuperado dos ferimentos e da estafa. Então retornou à
floresta e batalhou valentemente comandando uma nova tropa, promovido que fora ao posto
de Capitão. Ele se lembrou de quando, por entre galhos, folhas e lama, a bala tocou-lhe a
pele, penetrando aguda em seu peito, queimando...

A encomenda do franco atirador quebrou costelas, comeu órgãos e


embaçou momentaneamente a visão matando a esperança de vencer a

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guerra. Com o pulmão perfurado, a cada expiração expulsava sangue
pela boca. Por isso, o medo que sentia, não era morrer pelo tiro, não
havia dor, o medo, era morrer sufocado pelo próprio sangue. Todavia, o
Urso não iria morrer naquele dia. E, se morrer tivesse, ele morreria
lutando como urso que era. Cravou a mão no fuzil e empunhou a
baioneta. Sentiu-se como no Décimo Terceiro Exercito novamente. Foi
assim que o mais bravo membro da Divisão Estrangeira no Vietnam se
atirou contra a infantaria inimiga.
Como um felino saltou contra e cuspiu o seu sangue nos olhos de um
surpreso americano. Com sua lâmina misturou o sangue asiático com o
sangue africano. O negro, que nem idade ou motivo tinha para morrer
naquela guerra, nunca saberia que seu corpo protegia os mercados
imperialistas de uma Pátria de Brancos, onde o direito a vida lhe era
negado. Ignorante criança... Manteve os olhos abertos. Estupefado, caído
na trincheira, não agonizou.
Os outros soldados, quase todos cubanos, testemunharam a valentia do
Urso e, acreditando na vitória, saíram de suas proteções avançando como
demônios contra os ianques.

Sargento Ramirez, um Porto-riquenho buscando a felicidade na América,


estava incumbido de abrir caminho aos fuzileiros de Nixon rumo à vitória.
Ele tinha de rechaçar o ataque vermelho. Portanto, passou as
coordenadas para orientar o comando sobre a exata posição onde
deveria ser impingido o bombardeio. Seria um banho de Napalm: “33-
63-36”.
O franco atirador mantinha Xióng preso em sua mira, sua cabeça no olho
de boi: “- One shot, one kill.. “ O primeiro tiro não correspondera ao
dito, ao contrário, serviu apenas para enfurecer a besta agora liderando o
ataque e se preparando para tomar o ninho de metralhadoras que
detinha o avanço dos comunistas. Pela mira, via o sangue jorrando da
boca de Xióng. Ousou duvidar da necessidade de um segundo disparo.
Inspirou, segurou o ar dentro do peito e puxou o gatilho lentamente. A
bala obedeceu ao comando e explodiu em rumo certeiro. A semente do
inferno, sem uma sombra de incerteza, zunindo foi e desenhou um arco
de parábola direito ao centro da cabeça de Xiong. O destino fez, no
momento do segundo tiro, para apanhar as granadas do negro

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adormecido aos seus pés; o chinês se abaixar e o projétil endereçado ao
seu cérebro, emitir seu canto estridente antes de decepar-lhe a orelha
esquerda, descansar erroneamente no peito do negro morto.
Vendo Xióng cair com o impacto da bala, seus companheiros pararam o
ataque e alguns oficiais russos iniciaram um recuo para dentro da
floresta. Helicópteros foram acionados pelo radio para dar suporte à
evacuação das tropas.

Quando Ramirez viu deitar no solo o corpo e a baioneta de Xióng, aliviou-


se. Sentiu o gosto da vitória. Acompanhou distante o sangue jorrando da
cabeça do comandante chinês. Sorriu ante o refugo dos inimigos. E,
poderoso, ordenou às quatro metralhadoras concentrarem fogo no lado
oposto ao da tropa fugitiva. Era um segundo Pelotão Vermelho iniciando
ataque. A falta de comunicação fora responsável pelo avanço efetivado
sem o apoio dos combatentes do outro flanco. Era um verdadeiro suicídio
coletivo.

O rosto de Xióng estava coberto de Vermelho, mesmo assim, rastejou


sem ser visto pelos fuzileiros. Estes estavam ocupados com o massacre
provocado por suas metralhadoras nas tropas que tentavam atravessar o
rio sem sucesso. Chegou em boa distancia para atirar as granadas.
Ergueu-se...

“Fuck, fuck, fuck... Die, asshole!”. O franco atirador, inconformado,


recalculou o azimute, a inclinação e o angulo de saída do projétil.
Preparou a arma para o próximo tiro.
Enquanto o avanço dos camaradas, rio adentro, era consumido pelas
poderosas armas que produziam mortes por segundo, Xióng podia ouvir o
rosnar inconfundível dos aviões carregados com NaPalm. Mesmo assim, a
visão do Urso Imortal, vivo e combatendo, foi tão poderosa, que
recomeçou o ataque em seu flanco.

De seu local privilegiado, o franco atirador foi o único a constatar o


perigo. Acompanhou, aninhado sobre uma arvore acima da casamata,
Xióng levantar-se e retirar o pino de segurança da granada. Ele sabia da
importância do terceiro tiro. Tinha consciência que este seria o ponto

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final daquela batalha. O Urso, por outro lado, tinha certeza que, se
conseguisse alcançar as metralhadoras, enterraria o sonho capitalista
naquele lugar esquecido por Deus, se ele realmente existisse.

Na mira o peito do herói; sem pressa, limpou a mente de pensamentos


ruins e o coração de emoções fúteis: “One shot, one kill”. Repetiu o
mantra.

Sangue traidor! Xióng não conseguia enxergar nada. Ouvia, cada vez
mais perto, o som dos bombardeiros. Seu próprio sangue conspirava
contra ele. Não encontrava forças para levantar o braço. Precisava lançar
a granada e teria apenas uma chance.
“One shot, one kill...” Segurou o ar dentro do peito e comedidamente
puxou o gatilho. No clique da precisa maquina mortal do atirador, o Urso
mandou sua granada devastadora. Inconseqüente, ela explodiu a quase
cinco metros do alvo.
O soldado atirador, conferindo o equipamento, teve um mau
pressentimento. Nunca antes uma de suas balas negara fogo. Repetiu o
ritual. Ainda ouvia o assovio das bombas vindo purificar o ar com cheiro
de Enxofre quando prendeu a respiração. “One shot, one kill...”. Antes
que o gatilho fosse acionado, Ramirez, descrente, testemunhou centenas
de fuzileiros americanos e o próprio franco atirador serem carbonizados
pela primeira varredura do NaPalm. “Puta Madre! Ayuda me ante del
sacrifio!” Exclamou, olhando incrédulo para o céu. Algo não estava
certo. “Insistiu, desesperadamente, contra a estática de seu rádio, o
repasse das coordenadas corretas. ” 33-63-63. Puta Madre! Estan
locos?”. Inútil.
Por ficar totalmente petrificado assistindo a calcinação de parte de sua
tropa, o sargento não viu sua própria morte trazida pela segunda
granada de Xióng. E, com o estancar da metralha, os vermelhos
puderam cruzar o rio rumo à vitória.

O silêncio parecia eterno. Uma lágrima quase escapou pelo canto dos olhos de Yuri. Ele não
queria demonstrar fraqueza perante seu mestre a quem iria executar naquele momento. Se
aprumou nos calcanhares e baixando a espada com violência, proferiu o comando fatídico:
“FOGO!”.

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Sete gatilhos acionados. Sete armas rugindo. Sete canos fumegando e exalando fumaça. O
prenuncio da morte estava na fumaça, como fosse a fumaça Papal anunciando o fim de uma
era e inicio de outra.
Nos olhos do Urso o filme passou na velocidade da morte que se avizinhava. Até o cheiro
daquele dia ficara marcado em sua alma. Já podia sentir o quente da bala se aproximando do
coração. Escorou-se na parede preparando o corpo para o impacto. Não queria cair, nem
chorar como naquele dia em Dan nang...

Tudo estava calmo. Havia espoco e detonações esporádicas ao longe.


Nas trincheiras, os homens se barbeavam ou fumavam, alguns dormiam
sem se incomodar com as moscas. Todos sabiam; era natal para os
capitalistas. Mas isso era para o resto do mundo, lá, a realidade era
outra. Nove meses depois da vitória no Rio, Xióng estava recuperado e
elevado ao posto de Coronel. Fora condecorado e reconhecido como
herói. Já era uma lenda.
A ordem para levantar acampamento chegou. À noite toda a tropa iria
para Dan nang. Aqueles homens endurecidos pela guerra tremeram. A
tensão eletrificou o ar; a morte era companheira naquela região.
Embarcaram nos caminhões e ao amanhecer já estavam recebendo seus
equipamentos e as ordens do 4º exercito. Tudo passou a acontecer muito
rápido a partir dali. No final daquele mesmo dia, somente doze homens
ainda estariam vivos... Outros, novecentos, seriam apenas números na
prancheta de um sargento ou lembranças, nas memórias de amigos
sobreviventes.
Sangue, pólvora e muito ódio foram tudo o que restou. Nada mais fazia
sentido, a não ser permanecer vivo ou coisa parecida com isso.
Vinte km em um dia... O motivo da grande comemoração. Novecentas
baixas por 20 km de pântano, lama, água podre e mato. Na celebração
feita pelos generais e estrategistas para honrar aos que tombaram
sepultados na lama de natal, Xióng não sorriu. Esmurrou um dos
comandantes e se retirou em silêncio.
Solitário em sua tenda, o Coronel Xióng ainda deu uma última olhada nos
mapas que traçaram a ofensiva de Dan Nang. Haviam massacrado
milhares de americanos. Queria entender aquela guerra.
O velho Hochimim, o símbolo maior dos Vietnamitas, queria ver o
Vietnam unido. Sabia que o custo seria alto. Não se vence nações

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imperialistas sem luta, muita luta! Após a expulsão dos franceses
veio a guerra contra os americanos. O apoio inicial da China e da Rússia,
depois os desentendimentos. O distanciamento dos aliados. A ideologia.
O capitalismo versus o comunismo. A nova ordem mundial.
Não. A ideologia pouco interessava a um soldado no campo de batalha
em Dan nang. O que realmente interessava a todos ali, era sobreviver. E
assim, unia-se mais aos inimigos do que aos comandantes. O bravo Urso
cerrou os olhos e, fitando o horizonte devastado por aquela batalha
insana, chorou...

Os homens do Pelotão de Fuzilamento ainda sentiam o tranco das armas quando o Grande
Urso reviveu sua derradeira decisão.
Era hora de cumprir a promessa. Voltar e libertar seus camaradas. Foi por isso, que superou
todas as agruras que a guerra impõe a homens como ele. Foi por isso que continuou mesmo
depois daquela loucura em Dan nang. Foi por isso que tomou a decisão fatal...

Quase um ano após a travessia dos homens na batalha do rio em que,


mesmo ferido, conduzira a brigada à vitória, dois meses depois do
Massacre em Dan nag, Xiong, finalmente se encontrava diante do
acampamento onde seus homens ainda agonizavam no cativeiro.
O cerco aos americanos se completara. As instruções chegavam
inapeláveis pelo rádio: “Não deixem pedra sobre pedra! Matem
todos! Não façam prisioneiros!”.

O projétil cortando o ar em direção ao Chinês não o impediu de se indignar com o motivo de


sua execução.
Ainda havia tempo para conjecturas? “Não façam prisioneiros!” Quem diria... Um
soldado... Um verdadeiro soldado... Não é um assassino. Soldados devem ganhar as guerras.
Vence-las... Batalha após batalha. Soldados não matam. Ganham guerras ou morrem
defendo seus ideais.
Será este o pensamento dos sete homens que acabaram de acionar suas armas? Afinal,
cumprem ordens apenas... São soldados.

Dan nang produzira o efeito desejado. O medo. Varias bandeiras brancas


balançavam incessantemente no acampamento inimigo. Seus camaradas
o aguardavam naquele lugar. Ele sabia. Eram como escudos humanos. A

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Adrenalina reduziu seu nível entre o Vietcongs, engajados naquilo que
restara da Legião Estrangeira. O rádio ignorava as informações sobre a
rendição e insistente ordenava a morte: “Não façam prisioneiros!
Repitam Dan nang!”
Horas se arrastavam enquanto o Coronel, condecorado e amado em toda
a China, tentava demover superiores sedentos de vigança. “Não façam
prisioneiros! Repitam Dan nang! Continuem! Repitam Dan nang!
Continuem!””.
O pano alvo desesperadamente bailava por todo campo americano. A
tropa, sob o comando do Urso, se dividira. Muitos ainda queriam o
sangue dos inimigos banhando a terra na qual ousaram pisar sem
permissão e se proclamarem salvadores da Pátria. Uma Pátria que nunca
lhes pertenceu. Muitos queriam apenas descansar. Ver novamente o
arroz crescendo dentro das águas mansas e uma chuva de verão
umedecendo a floresta, refrescando o corpo.

O projétil percorrera mais da metade do caminho lúgubre carregando a injustiça e a inveja


que, mesmo entre irmãos, insistem estabelecer regras funestas.
Xiong ainda remoia o dia em que lhe chamaram traidor...

O Urso era um soldado. Soldados obedecem a ordens e as ordens eram


claras: “Queremos um banho de sangue que sirva de exemplo
para todos os porcos que ainda ousam combater!”.
Três disparos ecoaram no ar....

Ele fora julgado e condenado. Deveria ser executado.


A embaixada Americana em Saigon tomada na semana anterior; serviu como Tribunal onde
aconteceu promulgação da sentença de morte do Grande Urso, abalando ainda mais as
relações diplomáticas entre Pequim e Hanói. Por isso, homens das Brigadas Internacionais
deveriam executar o trabalho sujo. Ninguém testemunharia Vietnamita matando um herói
chinês. Um herói?

Os três estampidos soaram mortais por todo campo Americano. O cerco


era total e o pedido de rendição, desesperado. O ecoar dos tiros foram
ouvidos por milhas e milhas. As armas de ambos os lados se preparam
para matar. A respiração ofegante de cada ser humano era como fosse

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Maré Vermelha
A História do Grande Urso
um ultimo suspiro. Todo medo percorreu os corpos de cada elemento
tocaiado em sua trincheira. A morte rondou os corações.
A decisão estava tomada. O rádio já não comandava mais nada. Estava
espatifado sobre a mesa do assustado operador, cujo “Zim” das balas,
ainda estridente dentro da cabeça, soava. Xiong deixou sua tenda, subiu
no alto de uma colina e, com um lenço branco, sujo de sangue, acenou
para os antigos algozes aceitando a rendição. Sim, um soldado vence
Batalhas...
Do outro lado, centenas de homens comemoraram e chacoalharam suas
bandeiras como se comemorassem um gol no ultimo segundo de um jogo
perdido.
O Chinês sabia que seria seu último dia no comando. Não esperava que o
acusassem de traição... Traidor? Um soldado que venceu a Batalha?

Cada qual se isentou na defesa do Herói... Todos os níveis de comando. Cada qual achou que
sua decisão seria anulada pela estância superior e, quando a sentença alcançou o pico da
pirâmide; era impossível ir contra aquilo tudo o que todos os níveis inferiores haviam
decidido. E eles decidiram que: Xiong deveria morrer...

O chumbo frio e certeiro se encaminhava veloz para cumprir a ordem...

As ordens eram importantes, mas a prioridade era registrar a ultima a contradição. Abriu o
seu diário e plantou com a caneta nas paginas do tempo, as sementes de sua imortabilidade.
Anotou: “Não depende do meu corpo, a morte pode vir e me
levar porque o sonho não depende dele e nem tão
pouco, da minha vontade de sonhar ou de morrer,
depende. Mesmo depois de morto o meu sonho
continuará a ser sonhado”.
Os jornais anunciaram que o Urso foi encontrado morto.

Agora, todas as Chinas choram a morte de seu herói. Em


cadernos especiais, os tablóides contam detalhes de sua
inesquecível jornada e de seu heroísmo em vida. Insinuam outros
detalhes de sua contraditória morte como covarde e traidor. Na

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Maré Vermelha
A História do Grande Urso
TV, fala-se sobre a bala; alojou-se no quadrante superior
esquerdo do cérebro. Junto das palavras, foi mostrado o rosto do
medico legista pronto para responder milhares de perguntas. O
repórter com um discreto fechamento de olhos, se apresenta em
total concordância com a história. Então, o medico começa as
suas explicações técnicas. Ele olha diretamente para as câmeras
com ares de grande especialista no assunto e, de sua boca
saltam ecleticamente, o sorriso e a resposta dos danos causados
no órgão. Informa que a vida acabou, depois da bala, cabeça
adentro, ter carregado pele, pêlos, cabelos e fragmentos do osso
parietal junto com a morte.

No outro canto da tela aparece em quadro discreto, imagens das


pompas do funeral e as demonstrações de afeto do povo chinês
em fila indiana esperando pelo momento do último adeus. Rostos
de desconhecidos disputam lugar atrás de ombros de
autoridades nacionais e internacionais que comparecem ao
evento afim de se auto-promoverem na fama do herói morto.

Bloggers comentam sobre os militares e políticos a condenar


publicamente os atos do traidor. Mas, procuram relembrar a toda
população, com frases não comprometedoras, da importância de
suas participações pessoais em cada ato tomado pelo soldado
Xiong, antes do momento da traição. Alguns ainda acham muito
cedo para denunciar um traidor e mais cedo ainda, para saber se
o povo acatara essa acusação. Os donos do poder, entretanto,
carregam consigo essa estranha sensação; como realmente
fossem eles também, nesse momento de perda nacional, mesmo
que tão somente por inferência, heróis imortais. Então, ficam por
ali, no meio do povo, esperando pêsames e reconhecimentos.

Yuri acompanha o cortejo ignorando os abutres. Não ignora seus


sedentos desejos de fama. O destino lhe obrigou quebrar a
promessa de vingar com sangue, o homem que roubasse a vida
do amigo. Ele lamenta como aqueles vermes oportunistas estão
sendo salvos pelo destino. Haveria na fotografia oficial, olhos

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Maré Vermelha
A História do Grande Urso
fúnebres e lamentativos dos poderosos sinceramente recebendo
as condolências da nação. Condolências prestadas ao Urso
Imortal. Na ultima imagem transmitida pela Tv. enquadrado em
plano solene, Yuri aparece chorando ao lado do caixão.

O representante indicado por Hanói, Capitão Mitvol Trutnev, para verificar que o traidor
fosse colocado contra a parede e enfrentasse o pelotão de fuzilamento; não queria estar
presente. Mitvol queria somente voltar a sua rotina de catalogar os livros proibidos e deixar
de ter que testemunhar traidores “estrangeiros” sendo exterminados. Tinha receio de que os
seguidores desses infiéis executados viessem vingar a morte de seus lideres. Não queria ter
assinado as ordens em nome comitê central de uma nação que não era sua. Não queria que
suas ações, ao voltar para Moscou, fossem interpretadas de uma maneira adversa. No tempo,
poderia ele mesmo ser visto como o maestro de um crime. Tudo é possível na reedição da
historia de uma guerra. Sabia que era provável, no futuro, conhecer o mesmo fadário dos
traidores, hoje em suas mãos. Queria menos ainda, ter o destino que as centenas de
autoridades locais tiveram depois de Dannang.
Mitvol, antes da guerra, era apenas um bibliotecário. Agora servia como prefeito, delegado e
juiz em uma terra desconhecida. Essa honra foi dada a ele não somente porque nenhum
vietnamita seria envolvido na morte de um herói chinês, mas também, porque qualquer outra
autoridade local capaz de ler e escrever havia sido ou morta, ou presa, ou tinha desaparecido.

Indiferente a seus quereres e receios, Hanói, concedeu a honra e glória de comandar o


Tenente Yuri e os homens das Brigadas Internacionais a levar ao cabo a execução de Xióng.
Moscou lhe ordenara aceitar a “honra”. Assim ele o fez. Não queria, mas aceitou.

Quando a bala terminou sua jornada mortal, Xióng concluiu, ao escutar o rosnar dos rifles,
que ainda podia continuar sonhando...

Mitvol pensava em títulos de livros proibidos que devessem ser executados, quando
inesperadamente o projétil descansou inofensivo na parede e o prisioneiro continuou em pé.
O Chinês permaneceu calado, esperando a morte. Mitvol queria que tudo tivesse sido
diferente, não queria ter tido a “honra” de ter que ordenar nada. Os sete soldados repousaram
suas armas e Yuri abaixou a espada lentamente, como se o tempo fosse um instrumento
capaz de mudar o rumo do destino e também alterar o querer do Capitão Trutnev. E o
Capitão apressadamente repudiou a “honra” de ser o homem a disparar o tiro de misericórdia
naquele traidor ainda vivo.

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A História do Grande Urso
Todos, naquele momento, guardaram seus pensamentos, receios e palavras. Mitvol observou
Yuri. O homem estava aparentemente inabalado, caminhando lentamente rumo aos soldados
designados para terminar com a vida de Xióng. Sua espada retornou a bainha. Os atiradores
ficaram mudos não queriam justificar seus atos de insubordinação. Mitvol conseguiu
somente perceber a concordância de todos quando Yuri lhes questionou estarem dispostos a
pagar qualquer preço por suas ações.

O russo amigo de Xióng ordenou ao pelotão não quebrar a formação e empunhou sua
pistola. Yuri se afastou de seus soldados e rumou em direção ao prisioneiro. Não mais
procrastinaria esperando o tempo mudar o seu destino. Agora, suas ações e suas decisões
eram condutoras de seu destino; não as tais “honras” concedidas ou impostas por Pequim,
Hanói ou Moscou.
Parou em frente ao prisioneiro e o relembrou que um soldado em guerra ou não, tem o dever
de estar sempre preparado para tudo. Então olhou fixamente para os olhos vendados do
Chinês e sussurrou: Você esta preparado? Xióng não temeu. Retornou o sussurro com um
sorriso. O amigo executaria as ordens do Partido. No entanto, havia certo direito implícito,
conquistado pelos anos de amizade e por ganhadas guerras a ser considerado naquele
momento. Xióng comentou que os querentes de sua morte, cometeram um erro básico de
estratégia. Fora realmente infantil tentar forçar uma tropa tirar a vida de seu comandante.
Pediu ao amigo para poupar a vida dos jovens soldados e respondeu que sim; “Estava
preparado para morte muito antes dos tempos da academia.” Foi por isso que começou a
escrever seu diário.

O Grande Urso repousou seu diário sobre a mesa e ligou o computador.


Apanhou o revolver da gaveta e verificou o tambor. Seus olhos
confirmaram que novamente o ciclo se fechara. Novamente, uma bala
apenas. Finalmente uma única e poderosa companheira capaz de findar
com os fantasmas das inúmeras batalhas. Capaz em uma só vez, de
acabar com todos os exércitos imperialistas. Ele sabia. Com esse ato,
independentemente de sua pretensão, a historia o imortalizaria. Releu
cada palavra de sua vontade e com um clique, o computador enviou a
mensagem.
As ordens do MARECHAL foram recebidas, confirmadas e executadas
militarmente. Ordens são ordens. Devem ser cumpridas sem perguntas.
Mais uma vez, para ganhar a guerra, o Grande Urso de herói
transformou-se em traidor. Soldados que liam e seguiam as instruções
ficaram chocados com as informações. Alguns queriam buscar

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Maré Vermelha
A História do Grande Urso
confirmação de outros oficiais no centro de inteligência. Mas, soldados
não têm desejos ou quereres; simplesmente obedecem aos ditames de
seus comandantes. Ninguém estava preparado para as conseqüências
daquilo que fazia, mas, fazia conforme comandado por Xióng. Fazia como
soldado. Obedecia...

Capitão Trutnev como representante oficial, foi forçado a levantar de seu lugar de honra e
sobre os olhares curiosos da assistência, juntou-se ao condenado e ao executor. Ele fez esse
gesto respeitosamente, afinal a Rússia também conhecia a fama do Urso Chinês. Desculpou-
se com olhos por interromper a conversa dos oficiais e com seu mandarim rudimentar ousou
perguntar: - Se a ordem foi dada... Porque, Tenente Yuri, nenhuma bala matou o prisioneiro?

Quando Xióng, surpreso, descobrira que continuaria viver; Yuri, momentaneamente


ignorava os questionamentos do Capitão Trutnev. Ele degustava o raro prazer de encontrar o
amigo despreparado para o ocorrido e, por isso, queria prolongar o momento pela eternidade.
Porém, compelido pela hierarquia, simplesmente sorriu para si mesmo e confirmou
sardonicamente: - Meu amigo, sempre soube que o Urso estava preparado para morte numa
guerra. Numa guerra, um soldado tem que estar preparado para tudo...
Dito isto de forma enigmaticamente bem humorada, silenciou por alguns segundos e então,
voltando-se para o oficial questionou: - Camarada Trutnev! Creio sabermos por que estamos
aqui e qual é o nosso papel nessa guerra... Será que o nobre comandante não vê a fantasia a
que estamos sendo forçados participar? O Capitão olhou ao redor e abanou positivamente a
cabeça para emitir cuidadosamente seu esclarecimento: - A fantasia esta clara, Tenente!
Disso... Não tenho dúvidas... Apanhou uns papéis no bolso de seu jaleco e apontou
burocraticamente as linhas de assinaturas no formulário de execução. Depois, continuou: -
Contudo, a falta de um morto para continuar a fantasia, nos traz de volta a realidade, não é,
camarada Yuri?
O capitao Russo, responsável por operacionalizar a morte do Chinês, em vez de espada,
empunhou a caneta. Tomou os formulários em suas mãos: - Capitão Trutnev! Nossos
superiores criaram aqui, uma interessante situação. Veja bem... Somente aqueles que não
deixaram suas casas e que não sujaram com sangue suas mãos, serão recompensados. E,
sendo assim... Yuri dirigiu-se a Xióng enquanto assinava os formulários: Não haverá
punição a ninguém porque, como está claro nesses papéis; as ordens foram totalmente
cumpridas. E você, meu irmão... Está legalmente morto! Devolveu os papeis assinados para
Trutnev e completou: - Satisfeita a burocracia... Caso a fantasia, honrado Capitão, exija o
corpo de um oficial... Bem... Posso providenciá-lo com brevidade, já que aqui tenho uma
pistola e você é um oficial. Mitvol checou os formulários. Verificou as paginas todas

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A História do Grande Urso
assinadas: - Suas ameaças são supérfluas, Tenente. Os formulários assinados exoneram
Hanói e Moscou de responsabilidades futuras. Portanto, aqui tens os formulários liberando o
transporte do corpo. Advirto apenas; sua pistola não será suficiente para enfrentar a ira de
Pequim, quando a China imaginar que um traidor ainda vive... Lembre-se bem... Mortos!
Estão mortos! Eles podem simplesmente querer fazer desaparecer aquele que já desapareceu.
Tornar realidade a fantasia que já se consumou como verdade. O Traidor está morto...

Yuri ordenou ao pelotão para escoltar o executado de volta para casa. Antes de deixar o local
cercado por uma platéia atônita, dirigiu-se a Trutnev: - Honorável camarada! Soldados
ganham guerras ou morrem defendo seus ideais se preciso for. Estás enganado! Minha
pistola não será usada. Volto para China, não com um traidor, mas com um herói vivo.
O Capitão calou-se. Guardou os papeis e voltou a catalogar mentalmente títulos de livros
proibidos. Seus olhos encontraram os olhos de Xióng e silenciosamente disseram tudo que
tinha que ser dito...

O repórter interrompeu as explicações do medico para informar


sobre a descoberta de dezenas de e-mails enviadas por Xióng
contendo nomes de varias autoridades civis e militares
envolvidas em corrupção e venda de segredos militares para
companhia americana Blackstone. Claramente excitado, lia um
boletim feito por um Enviado Especial à Moscou relatando
noticias de vários jornais e agencias de informações. Haviam
recebido provas do envolvimento de altas patentes chinesas,
americanas e japonesas em trafico de drogas e armas.
Sem nenhuma introdução previa, na tela, o rosto de Wen Jiabao,
primeiro ministro da China, apareceu. Foi tão de repente que,
ainda posicionando-se na cadeira e ajustando o microfone na
lapela do paletó fez o anuncio: O governo central, devido às
falsas acusações póstumas do general maior do exercito popular
da China, decidiu retirar... O som desapareceu. Segundos mais
tarde, a imagem do homenzinho congelou e pouco depois
desapareceu. Por quatro longas horas todos os canais de TV
pararam suas transmissões.

Transmissão completa – Indicou o computador. Xióng incluiu seu diário


no pacote. Preencheu a etiqueta e chamou o assistente pelo interfone.

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A História do Grande Urso
O jovem oficial ficou surpreso. Não era comum receber ordens tão tarde
da noite. Havia um carro pronto para levá-lo ao aeroporto e ele
conheceria seu destino somente em pleno vôo. O pacote deveria ser
entregue pessoalmente nas mãos do destinatário. Caso a missão não se
cumprisse como ordenado ele seria preso e executado.
- Compreendeu as ordens? O assistente respondeu que sim...
- Avise que não quero ser incomodado por ninguém. Dispensado!
O jovem tenente prestou continência e partiu para a missão mais
importante de sua vida. Xióng sentou-se novamente em frente da
escrivaninha e esperou o telefonema. Uma hora se passou até uma voz
informar sobre a partida do avião. Assim, trinta e dois anos depois de ser
declarado oficialmente morto, a solitária bala que o procurou por
inúmeras guerras, alcançou o seu destino.

Por quatro horas, o planeta sofreu o medo do vazio de


informação. Rumores sobre o futuro da China eram diversos e
assustadores. O mesmo repórter que fazia a cobertura do velório
de Xióng introduziu o General Yuri ao povo Chinês. O general
anunciou que a junta militar tinha decidido prender o primeiro
ministro e mais outras tantas autoridades envolvidas em crimes
contra o povo chinês. Esclareceu que, temporariamente, a junta
o havia indicado como presidente para administrar o país
durante o período de estabilização.

General Trutnev abriu o pacote. Abriu e achou um envelope, vários CDs,


fotos, documentos, dezenas de paginas com listas de nomes, datas e
endereços, um diário e dinheiro. Muito dinheiro. No envelope, uma carta
instruía e explicava os motivos e conseqüências das ações do Urso
Chinês. Trutnev viu sua chance de redimir-se por todos os livros que
queimara e aceitou a responsabilidade de destruir os imperialistas
russos, chineses e japoneses. Iria destruir todos os imperialistas.
Lembrou-se do dia que o pelotão de fuzilamento se recusou cumprir suas
ordens e agradeceu a história. Desde aquele momento esperara pelo dia
indicado na carta para entrar em contato com Yuri. Ele examinou
novamente a lista e marcou o nome de diversas autoridades russas
escravas dos imperialistas.

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A História do Grande Urso

Leu o diário do Urso Chinês. Era um sonho: - Rússia e China unidas contra
todos os imperialistas!

Anos mais tarde, para comemorar a assinatura do acordo financeiro de


reconstrução dos estados americanos, Yuri, em frente a estatua do urso
ladeando o touro em Nova York, assistiu a um grupo de Duzentas
crianças recitando o poema “Continuo Sonhando” em homenagem ao
Grande Urso – Heroi da Nacao.

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