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Pós-modernidade, Direito e Hermenêutica

Introdução
A chamada Pós-Modernidade, embora o termo e sua conceituação não sejam unívocos
em todos os autores, representa um conjunto de situações que agrupadas configura
m a sociedade atual. A expressão qualifica uma espécie de estágio presente em qu
e se encontra o mundo no século XXI.
Pós-Modernidade
Várias são as características básicas deste estágio, podendo-se considerar prime
iro o processo socioeconômico, que passa a ser embasado num modelo de produção p
ós-industrial, o qual por sua vez apresenta-se como a passagem da economia de pr
odução para a de informação. O produto hoje não é aquilo com que a indústria ou
o comércio trabalham mais diretamente, mas sim o significado que tal produto pos
sui dentro e diante do mercado, não tendo mais valor o produto em si, porém ele
e mais todas as circunstâncias que o envolvem, recebendo isto a nomenclatura de
marca. É o que o produto representa nesta coletividade de mercado que lhe fornec
e sua marca, ao mesmo tempo em que a indústria também trabalha para além da prod
ução no sentido de criar e estabelecer a marca do produto. O consumo, assim, não
obedece mais rigidamente à conhecida e citada lei da oferta e procura, mas ante
s passa a ser provocado como conteúdo também do significado da marca.
Aqui, o consumo vem a ter atuação importante, pois se torna o fim social mais de
stacado dentre outros, podendo ser considerada a aquisição de certos bens ou a p
osse ou propriedade de certos bens, equivalentes a valores, como critério de rea
lização, status e posição na sociedade. O consumo acaba por ser o meio de qualif
icação do cidadão na sociedade e a própria vida deste cidadão é considerada dign
a se ele reúne em torno de si a possibilidade de ter bens considerados mínimos p
ara sua existência individual e comum.
Desta forma, o cidadão que trabalha, um trabalhador tem uma vida digna ou possui
dignidade humana se conseguir obter um conteúdo mínimo de bens que garantam sua
subsistência. Para tanto, seu trabalho deverá como contraprestação ser avaliado
e expresso num valor monetário que permita tal aquisição. Estabelece-se, via de
conseqüência, um salário mínimo que o trabalhador deva receber como garantia de
sua dignidade. E o trabalhador não adquire mais mercadorias, mas o significado,
a marca de possuir, usar ou fruir daquele produto. Melhores cidadãos não são ma
is aqueles que exercem melhor a cidadania em si, mas os que possuem os produtos
de melhor significado ou melhor marca.
Como o que gera o significado não é mais o produto em si, não há qualquer necess
idade do produto ser efetivamente real, basta que seja virtual. Vale dizer, mesm
o que o produto não seja palpável ou concreto, se ele possuir marca, terá valor
de mercado, possuindo seu significado. Isto implica que coisas irreais como cult
ura, ensino, bem-estar, direitos e até mesmo cidadania possam ser consideradas e
vendidas como produto.
Para melhor explicar, deve-se apontar uma outra característica da Pós-Modernidad
e, que é chamada pelos autores da questão do sujeito. Ao se falar na questão do
sujeito ou no princípio da subjetividade, deve-se entender como se deu a modific
ação do conceito de indivíduo.
Normalmente, utilizam-se as expressões sujeito, indivíduo, cidadão, pessoa, como
sinônimos todos de ser humano, mas para desvendar-se o problema, há que se cons
iderar as expressões mais cautelosamente. Aqui se fará uma distinção primeira en
tre indivíduo e sujeito. As demais expressões serão acompanhadas das necessárias
e decorrentes explicitações de acordo com o desenvolvimento do texto.
O ser humano vem sendo visualizado, compreendido, entendido, estudado e conceitu
ado de modo diferente ao longo da história do pensamento, da filosofia e do dire
ito. Indivíduo é o ser humano que se percebe em sua totalidade, numa compreensão
integral de si mesmo, como uma unidade completa, mas que, para viver necessita
e deseja conviver, ou seja, existir em comunidade.
A expressão sujeito indica um dos modos de visão sobre e do ser humano, estabele
cida a partir do século XVII com Descartes, pensador francês, que definiu o ser
humano como um ser pensante, ou melhor, como algo que pensa. É dele a conhecida
expressão "penso, logo existo", significando sinteticamente que a característica
básica do ser humano é o pensar. A atividade do pensamento é realizada pela raz
ão, logo o ser humano é o ser racional, ou seja, aquele que usa a razão ou que d
ela pode dispor independente de qualquer outra característica ou qualidade. Como
a razão se situa na mente, o ser humano divide-se em mente e corpo e também em
espírito e físico, em razão e emoção. Assim, o sujeito é fundado numa bidimensio
nalidade dada por uma estrutura racional que se opõe a uma estrutura sentimental
, esta fornecida pelas sensações do corpo e aquela pelos pensamentos da mente.
Embora tenha se oposto a Descartes, o filósofo alemão Kant, no século XVIII, ten
tando fugir do rígido esquema dual do sujeito, acabou por permitir a amplitude d
o conceito, ao estabelecer a razão como elemento transcendental de conhecimento,
ou seja, como único requisito para o alcance de compreensão de todas as coisas.
Em seguida, mas não em seqüência, ocorre o ápice da noção de sujeito, já no iníc
io do século XIX, com outro filósofo alemão chamado Hegel. Ao fazer a crítica de
seu antecessor, sugerindo modificações inclusive no modo como a razão atua e o
pensamento se realiza, Hegel consegue demonstrar que a noção de sujeito é a únic
a possível para o ser humano e para a pessoa; só o sujeito, dotado de razão, que
desta se utiliza num determinado modo dialético, num complexo processo de sensa
ção-objetivação-negação-retenção-memorização-conceituação – normalmente reduzido
à idéia tese-antitese-síntese – é que tem a possibilidade de conhecer todas as
coisas, inclusive a si mesmo. Assim, "todo real é racional e todo racional é rea
l". Ou seja, toda a realidade se efetiva ou se realiza no próprio sujeito, por m
eio de um conceito, que enxerga a realidade dos dados brutos como entes em si me
smos. Cada sujeito é dono de sua verdade e de sua realidade, as quais se formam
como entes, ou seja, coisas em si. Todo real é configurado como algo em si, num
ente, produzido em um conceito concebido pelo sujeito. Como a verdade tem que se
r única, mas todos a tem em si mesmos, tudo passa a ser resolvido pelo critério
de uma maioria racional.
Esta compreensão do sujeito aliada a outros fatores facilita muito o desenvolvim
ento de um modelo econômico capitalista que, mesmo com a oposição socialista bas
eada num inverso modelo hegeliano (viciado num erro de entendimento da amplitude
da base inicial que foi invertida), termina por se estender por todo o mundo, n
um processo de adaptação por retro-alimentação e autobalanceamento.
Com efeito, se a verdade está no sujeito, a certeza está no sujeito, a realidade
está no sujeito, a ética está no sujeito, a vida comum do sujeito é dada pela s
omatória da maioria dos sujeitos, que se individualizam, mas que se perdem como
indivíduos, ou seja, que se perdem de si mesmos como seres integrais numa totali
dade ou numa unidade. Há o individualismo, porém perde-se a individualidade, a u
nidade. Obtém-se uma sociedade de maioria dos sujeitos e perde-se a comunidade d
a unidade dos indivíduos.
O ser humano passa a ser um sujeito do ter em sociedade e deixa de ser um indiví
duo a existir em comunidade. O comum é estabelecido pelo consumo e não mais por
projetos ou ideais realmente comuns.
Como hoje as coisas em si podem ser virtuais, o sujeito também o pode ser, deixa
ndo inclusive de ser sujeito e passando a ser um papel, ou seja, um feixe de fun
ções dentro da sociedade, pulverizando-se em sua racionalidade, que então é cons
iderada apenas instrumentalmente. O sujeito como papel de funções é um significa
do, o significado da função que ele realiza, pois o único elemento necessário é
sua razão considerada como instrumento pleno de sua capacidade. Como todos a têm
, os que a puderem utilizar com o mesmo significado diante de determinada função
a caracterizar um papel, podem exercer este papel, sendo enfim todos intercambi
áveis. Isto quer dizer que um sujeito que por força de sua racionalidade desenvo
lva habilidade técnica, qualquer que seja ela, pode ser substituído por outro su
jeito que tenha desenvolvido semelhante habilidade instrumental. Como o que faz
o sujeito é o ter e não mais o ser, todos aqueles que desenvolvem a mesma técnic
a ou todos aqueles que possuem determinado conjunto de bens se consideram perten
centes à mesma classe respectivamente profissional ou social. Logo, todos perdem
sua condição de integrarem uma classe por ideais, aspirações, desejos ou projet
os. A situação se agrava ainda mais quando o consumo se torna conspícuo, ou seja
, induzido ao extremo, produzindo inclusive a mesma categoria de desejos para to
das as pessoas e dividindo estes desejos em setores para diferentes sujeitos-pap
éis.
O sujeito que pertencer a certa classe – não por sonhos comuns – mas por desejos
comuns e tiver possibilidade de realizar a atividade de consumo ou aquisição do
s bens dirigidos a esta classe é inserido na mesma classe, passando a ela perten
cer, permitindo a retro-alimentação do procedimento.
Neste mecanismo, o sujeito é desconstruído em papéis, pulverizando-se em funções
instrumentais que são recompensadas pelo consumo incondicional, provocado pela
necessidade produzida de adquirir bens a fim de se realizar, pertencendo a uma c
lasse, cuja característica essencial é possuir, em conformidade com o conjunto d
e bens exigidos, um determinado significado para a sociedade. As classes também
se tornam produtos de marca, pois os sujeitos que a integram não apresentam um s
er comum, mas um conjunto de marcas em comum.
O sujeito desconstruído da pós-modernidade é enfim uma marca dada por um papel,
representado por uma função técnica de racionalidade instrumental, que reúne um
conjunto de bens, que por sua vez são marcas que o posicionam numa classe a qual
também possui seu significado e dá significado ao sujeito. Eis o processo de fo
rmação da consciência de classe da pós-modernidade a originar o sistema social.
Este processo se realiza num dado espaço-tempo que pode ser denominado de "subsi
stema civilidade", posto que ocorre em determinada área geográfica, por um lapso
de tempo, com um dado grupo de pessoas, não importando o tamanho, a duração do
tempo ou o número de pessoas (salvo se o estudo pretender analisar específico su
bsistema civilidade). Normalmente o espaço examinado é o da "urbes", ou seja, o
da cidade em que o sujeito realiza suas atividades cotidianas, pois os demais es
paços geopolíticos distanciam-se do sujeito uma vez que reconhecidamente ficcion
ais.
No processo social, tendo em vista a presença da noção de significado, principal
mente como visto na pós-modernidade, o conjunto destes significados reunidos em
ideais, valores, ou seja, aqueles bens de caráter mais etéreo ou abstrato, todos
hoje derivados da noção de consumo, vão se reunir em projetos que pertencerão a
uma esfera social que pode ser denominada "subsistema cultura".
A dinâmica social, tendo por ator o sujeito desconstruído, irá se realizar como
ininterrupto produto dialético – não no sentido marxista da palavra – mas como u
ma relação de confronto constante entre os subsistemas "civilidade" e "cultura",
relação esta dialética porque ambos os subsistemas se retro-alimentam e se modi
ficam a si mesmos enquanto se relacionam. Cada classe pós-moderna a que pertence
um conjunto de sujeitos desconstruídos mantém entre si subsistemas civilidade e
cultura, que de sua somatória conjunta, não em adição simples, mas também numa
soma dialética, produzem e mantém em funcionamento o sistema social, todo ele ba
seado na noção do consumo, todo ele formado de sujeitos definidos pelo ter e não
pelo ser, todo ele construído em cima de marcas e não sobre a solidez de verdad
eiros ideais ou projetos. Eis aí a dinâmica da pós-modernidade.
Direito e Pós-Modernidade
Diante deste quadro, o direito consegue realizar ou proteger a humanidade do ser
humano ou a dignidade da pessoa humana? Para se responder, volte-se ao momento
em que se construiu a noção de sujeito, ou seja, volte-se para o embrião do deno
minado Estado de Direito.
Num resumo bastante apertado, sabe-se que a noção de comunidade em que se fundav
a na Idade Média a convivência social do ser humano era fornecida pelas bases re
ligiosas comuns. Deitavam na profundidade do sentimento religioso as concepções
de mundo que permitiam os pressupostos da vida em sociedade.
Com a mudança de perspectiva na compreensão do ser humano, com a cisão entre Est
ado e religião, com o advento da noção de sujeito como senhor em plenitude de su
a razão, esta única essência exigida passou a ser o elo comum integrador da soci
edade. Fundada na razão, a comunidade passa a ser Estado, por meio de um contrat
o social e este passa a ser o princípio de integração do convívio comunitário. U
m instrumento racional toma lugar de um sentimento difuso e comum, funcionando c
omo imperativo categorial de união da sociedade.
O movimento em direção ao Estado da razão é impulsionado pela Revolução Francesa
, cujos frutos são a base do direito atual, com seus conteúdos respectivos do Es
tado constitucional, dos direitos individuais, das garantias de igualdade e libe
rdade, com a divisão de poderes e com o voto em assembléia pelos representantes
do povo.
Não se ousa pretender reduzir a importância da revolução burguesa jamais. Apenas
tenta-se situar que a mudança estrutural da sociedade na época causou profundas
modificações no modelo de compreensão do direito e no modo de com ele trabalhar
.
O direito moderno, de conotação burguesa, reproduziu dentro de seu espaço de exi
stência e finalidade a dinâmica que a sociedade de então exigia e seu legado foi
transmitido para a pós-modernidade. Sua característica é constituir-se de base
racional, com oposição entre correntes positivistas (a lei como eixo fundamental
) e naturalistas (o contrato social ou então valores universais religiosos ou ra
cionais como fundamento), visando a manutenção do sistema socioeconômico nascent
e da pós-revolução, de cunho capitalista.
É o direito considerado também um ente em si, pois reúne conteúdos autônomos de
existência, que se dividem basicamente em direitos objetivos, aqueles preceitos
fornecidos pela lei e direitos subjetivos, as decorrentes faculdades ou condiçõe
s de atuação permitidas ou fornecidas pelas prescrições objetivas, ambos mantend
o relação entre si, porém como entes ou coisas que se opõem.
Fala-se em humanismo diante do fato de terem sido estabelecidas garantias indivi
duais ou fundamentais da pessoa em face do novo modelo de Estado que surgia. Tin
ha-se um Estado de Direito, que existia somente dentro dos limites estabelecidos
constitucionalmente, representada tal limitação pela expressão dos postulados d
as citadas garantias. A liberdade era o valor fundamental para o ser humano.
Nos fins do século XIX e início do século XX, as certezas do Estado constitucion
al desmoronaram. Movimentos, que em síntese se resume aqui pela expressão “corre
ntes socialistas”, lutavam pelo valor da igualdade, clamavam por uma consciência
social que não permitisse a instrumentalização de algumas pessoas por outras, p
rincipalmente a dos assalariados por aqueles que retinham o capital ou os meios
de produção. Nasce a era dos direitos sociais para além dos direitos individuais
, ou melhor, nasce uma nova geração de direitos individuais.
As duas Grandes Guerras deitam por terra as ilusões de todos. Como o ser humano,
racional por excelência, dotado de mecanismo tão perfeito como a razão, destina
do a viver em igualdade e liberdade, iluminado pela técnica da mais elaborada ci
ência poderia cair em luta armada? Simplesmente caiu, ou melhor, complexamente c
aiu, pois o mundo e o ser humano não se configuravam como queriam os iluministas
na inocência de seu pensamento, respectivamente, nem de um lugar onde só ocorre
ria o progresso dado pelo esclarecimento, nem de um animal dotado da plena razão
destinado a viver em paz perpétua.
Descobriu-se que o mundo era um lugar complexo e que viver era muito perigoso. A
Guerra Fria provou isto ao dividir o mundo em dois eixos verticais, ao lançar p
or terra todos os valores sonhados como eternos nos séculos anteriores.
A realidade gélida e crua bateu á porta. E o direito? Houve reação?
Sim, surgiram os direitos humanos no pós-guerra em nova tentativa de estabilizar
conflitos entre pessoas e organizações estatais autoritárias. A lei era a garan
tia máxima do ser humano, porque era a medida de atuação para o governo e o Esta
do.
Mas o Direito era apenas a lei como queriam os positivistas ou era algo mais, di
vidindo-se estes últimos em correntes lastreadas em valores absolutos e outros e
m anseios sociais? Na primeira metade do século XX venceram os da primeira ala;
na segunda começaram uma reviravolta os da segunda em conflito entre si mesmos.
Hoje, já adentrado o século XXI, descortinada a pós-modernidade, vivencia-se lar
gamente o chamado "pós-positivismo" (de escolas diversas, também reunidas sob a
denominação de "neoconstitucionalismo"). A lei é soberana ainda, porém a visão p
ós-positivista elege algumas características que devem fazer parte da análise do
direito. São elas, em resumo: a) modelo constitucional prescritivo de lei para
norma, ampliando-se o conceito desta; b) consideração de princípios como integra
ntes da norma em conjunto com preceitos legais ou regras; c) eleição de técnica
interpretativa diferenciada da clássica pelo uso do balanceamento de princípios;
d) destaque de tarefas pragmáticas e de integração à Teoria do Direito e à Juri
sprudência.
Em síntese, verificou-se que o Direito também tem seu significado. Ele pode ser
construído como uma marca de um produto qualquer e defender bandeiras que tal ma
rca apresente como corretas ou politicamente corretas. Ou talvez não – diz-se ta
lvez, pois alguns autores informam que os problemas da pós-modernidade (se ela r
ealmente existir) podem ser identificados, mas não combatidos.
Tenta-se uma resposta, fundada não mais no retorno ao direito burguês ou a nova
modalidade de direito social, ou ainda, a uma ingênua postura pós-positivista de
verificar como se congrega teoria do direito com interpretação moral da constit
uição. Não se tentará demonstrar como valores convivem com normas porque tanto o
s valores como as normas são todos construídos, como se viu, pela dinâmica da so
ciedade pós-moderna. Tentar-se-á ler a realidade em que se vive, pois se tudo te
m um significado, deve haver um modo de leitura que permita a convivência numa c
omunidade. Em outras palavras: tentar-se-á dentro do campo do direito um retorno
à noção de indivíduo que tenha consciência real de cidadania para viver numa co
munidade, para além de Têmis e Leviatã. Tentar-se-á um modelo que considere a mi
séria do humano, a presença do conflito, a complexidade da sociedade moderna, a
multidimensionalidade do existir, os horizontes de compreensão dos indivíduos, u
m modelo enfim que sobreviva entre Nêmesis e Hades.
Pós-Modernidade, Direito e Hermenêutica.
Baseado no pensamento de Heidegger, Gadamer, Flusser e na leitura de Márcio Pugl
iesi (“Por uma Teoria do Direito: aspectos micro-sistêmicos”, ed. RCS, 2005), qu
e apresenta uma investigação sobre a possibilidade de estabelecer estratégias pa
ra a compreensão e decisão de determinado conflito, pode-se construir um método
de trabalho para o direito, incluindo a interpretação e aplicação da norma juríd
ica, que venha a superar os problemas apresentados pela doutrina tradicional.
Normalmente o método desta doutrina tradicional tem caráter dogmático-positivo,
seguindo passos instrumentais de trabalho. Por isto, muitas vezes, a análise ou
aplicação da lei acaba por se distanciar de um resultado social adequado, o que
se converte numa sensação de injustiça, quando, na verdade, o aplicador da norma
realizou uma atividade técnica em sua plenitude. O ponto do problema está na té
cnica empregada como meio de aplicação da norma que impede o operador de analisa
r a totalidade do fato envolvido no conflito.
De acordo com a prática judicial tradicional, a qual utiliza o chamado "método s
ubsuntivo", não se exige a compreensão do fato como situação complexa, mas ele é
isolado num desenho que deve ser emoldurado pela lei. Num primeiro momento, med
iante o emprego de procedimento dedutivo-indutivo, de caráter lógico-formal, ext
rai-se um significado da norma que, transformado em coisa em si ou ente, justifi
cada tal operação na idéia de suposta vontade da lei ou vontade do legislador, p
assa a funcionar como uma espécie de moldura à qual deve ser o fato ajustado. O
erro principal, contudo, está em reduzir a aplicação da lei ao caso concreto, po
r um modelo de subsunção, considerando tanto a própria lei quanto o caso como "e
ntes" – como um “sido” – como um acontecimento estático.
Para se evitar isto, na busca de uma alternativa lastreada nos autores acima, o
operador do Direito tem que ler a realidade como um todo complexo, como um siste
ma em homeostase, no qual o problema jurídico dado caracteriza-se como conflito
– o que já é considerado pela doutrina tradicional em parte, ao falar em conflit
o de interesses. Tal conflito tem de ser visto como um fenômeno, algo que surge
em movimento vivo dentro do sistema social homeostático, provocando um desequilí
brio que precisa ser encerrado, decidido, solucionado.
Neste novo modelo proposto, que pode ser denominado de “hermenêutica da situação
”, para ler o caso concreto o operador deve considerar uma função triádica cujos
elementos são apresentados e explicados na forma seguinte:
S = situação (atores num espaço-tempo)
FAD = fatores atuantes diretos ou determinados (textos legais e jurisprudência)
AEP = agentes externos de pressão (referentes à chamada ordem ou opinião pública
)
Em S considerar:
a) Espaço-tempo como relação constante
b) Atores diretos envolvidos no conflito
c) Lugar específico do conflito
d) Tempo específico do conflito
e) Objeto real do conflito, ou seja, elemento derivado do projeto inicial de cad
a ator e concretizado como interesse respectivo no conflito
Em FAD considerar
a) Textos legais frutos de um determinado sistema político-jurídico, presentes n
um dado sistema constitucional, representado por princípios diretivos de ação, p
or preceitos constitucionais estabelecidos e por regras infraconstitucionais. Os
textos legais funcionam como projetos pré-estabelecidos para o horizonte da açã
o concreta.
b) Decisões precedentes que irão funcionar como termômetro de consciência dos ju
lgadores, principalmente os do tribunal máximo, que é o mais político de todos.
Em AEP considerar
a) Poder estruturado no governo
b) Grupos organizados de pressão direta
c) Mídia e respectiva repercussão (opinião pública)
d) Grau de influência do que se pode chamar "inconsciente coletivo popular" sobr
e a situação conflitiva (opinião pública e clamor popular)
Hermenêutica da Situação: a leitura da norma
Não basta, como na plataforma subsuntiva clássica, apenas ler a lei e adequá-la
a constituição ou ler os princípios, partindo da dignidade da pessoa humana e en
caixá-los na lei, usando o significado obtido como um ente que serve de moldura
ao caso concreto. Também não é suficiente o uso já comum de uma analogia retóric
a, cuja função é a mesma do argumento de autoridade.
É preciso ler o texto legal em seu contexto completo e complexo, ou seja, efetua
r uma leitura com base na situação (S), recolhendo, retirando desta todos os com
ponentes fáticos possíveis e ponderá-los num confronto direto com o texto legal,
considerado este como projeto para uma dinâmica de redução de complexidades, ou
seja, como eixo orientador da ação concreta.
O operador tem, em primeiro lugar que ler a realidade expressa pela situação. Em
seguida, ponderada esta, deve concretizar o texto numa norma que decida (corte)
especificamente o conflito. Na leitura do texto, o operador deve recolher todo
o conteúdo semântico presente no próprio texto como projeto “escrito” do grupo s
ocial. Deve buscar a finalidade ou a proposta mais ampla do texto legal, inserid
o na cultura que o produziu. De posse desse conteúdo semântico, o operador estab
elecerá uma relação de ponderação com a situação, sopesando ainda os agentes ext
ernos de pressão (AEP).
Finalizando seu trabalho, deverá expressar sua decisão de modo a criar uma norma
concretizada, ou seja, um preceito ou regra que, contendo toda a significação d
a situação, seja aplicável àquele caso como concreto em si. Em termos heideggeri
anos, deve buscar o sentido do ser do conflito como uma realidade (a desequilibr
ar a homeostase sistêmica) e fazer de sua decisão o corte necessário a modalizar
o conflito de forma que este se torne um ente, um modo de ser dado, “sido”, cuj
a finalidade específica e necessária será permitir a retomada da homeostase soci
al.
Pelo modelo clássico, o conflito é um dado temporal e o significado da norma, ex
traído subsuntivamente é um ente atemporal e por isto pode ser aplicado a qualqu
er conflito semelhante, numa analogia superficial, como uma moldura a encerrar o
caso, que em sua realidade efetiva acaba por vezes a não ser resolvido.
No modelo proposto, o conflito é considerado atemporal, logo não um ente, mas um
campo de possibilidades amplificado, cuja presença e permanência provocam um in
desejado desequilíbrio sistêmico em face do aumento dessa mesma amplitude de pos
sibilidades (um caos estruturado de cálculo mais aberto). A decisão que corta o
conflito permite a passagem deste para o temporal, uma vez que reduz toda sua co
mplexidade pela norma concretizada num determinado modo de ser, num ente (sido)
que permite a retomada do equilíbrio homeostático social. Para reduzir o conflit
o a um modo de ser efetivo, há que se descobrir o sentido real de seu ser e esta
belecer normativamente um definido modo de ser, eis a proposta da “hermenêutica
da situação”.
A decisão mais formalmente técnica-dogmática é a que considera FAD e S em relaçã
o direta. A mais política, FAD e AEP. Finalmente, a mais ponderada, a obter efet
iva homeostase da dinâmica social é a resultante que se encontra num perfeito po
nto de equilíbrio entre FAD, AEP e S.

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