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André Brasil2
PUC Minas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Resumo
A sociedade de controle, como antecipada por Gilles Deleuze, opera com dispositivos
bastante diferentes daqueles da sociedade disciplinar (Michel Foucault). Eles contribuem
para reconfigurar nossa relação com o espaço e o tempo e nosso regime de visibilidade:
reduzida à sua forma-informação, a imagem participa das estratégias de vigilância, controle
e simulação, cada vez mais disseminadas em nosso cotidiano. Buscando discutir essa idéia,
o texto toma como intercessor o vídeo I think it would be better if I could weep, parte dos
arquivos do Atlas Group, de Walid Raad. Ele é visto como um dispositivo heterogêneo,
ambíguo, de passagem: o gesto de virar a câmera e suas implicações, ao mesmo tempo,
políticas, discursivas e estéticas.
Palavras-chave
Corpo do trabalho
Simples, despretensioso, quase desavisado: aquele gesto que resultou no vídeo I think it
would be better if I could weep, que se mantém arquivado no banco de dados do Atlas
Group3 .
O vídeo – uma série de imagens de sunsets editadas, sem som, uma após a outra – não seria
nada além disso não fosse a força do gesto que as gerou. Como nos conta o texto
explicativo do arquivo, o serviço de segurança do Líbano instalou, em 1992, na orla de
Corniche (região oeste de Beirute), inúmeras câmeras de segurança para vigiar as
autoridades políticas, espiões e agentes secretos que passassem por ali. Todos os dias, ao
Esse desvio, aparentemente insignificante, faz com que a imagem – antes, pura informação
destinada à vigilância e ao controle – se torne algo aquém ou além de sua função
informacional. A imagem agora não informa, não comunica nada de objetivo, a não ser o
gesto de virar a câmera e, ao desviá-la, captar algo que a informação não conseguiria
conformar nem transmitir precisamente.
Para além dos conflitos políticos e religiosos que marcam a história do Oriente Médio e, ao
mesmo tempo, intensamente implicado e relacionado a eles, o gesto simples de virar a
câmera possui uma potência política e estética que nos interessa sublinhar: gesto do
descontrole. Fuga, desvio, recusa. Intervenção que esboça um fora nesta que Deleuze
antecipou como uma sociedade de controle.4 Não devemos, portanto, nos enganar pela sua
economia: o gesto deve ser visto como um dispositivo complexo, que conecta elementos
políticos, discursivos e estéticos.
4 O termo sociedade de controle, criado pelo escritor William Burroughs, ganha o estatuto de conceito, ainda que
esboçado, em Deleuze (1992): Post-scriptum sobre as sociedades de controle.
Os recursos materiais e tecnológicos, as subjetividades, as ações e estratégias, as práticas
discursivas: estes são alguns dos componentes de um dispositivo. Mas, o que interessa
principalmente são as articulações eventuais estabelecidas entre eles em um diagrama
relacional variável. Nele, portanto, se operam passagens: entre campos, linguagens, mídias,
gêneros, instituições. Capturá-lo, apreendê-lo a partir de uma e única de suas dimensões –
seja ela semiótica, estética ou política – é desconsiderar aquilo que o dispositivo apresenta
de mais rico: suas linhas de cruzamento, trânsito, contaminação.
Como uma rede instável, movente e múltipla, perpassada por linhas de força de diferentes
naturezas, um dispositivo deve ser compreendido em sua circunstancialidade. Trata-se de
uma articulação na qual mudanças locais podem se amplificar, por vizinhança e
5 “O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que
se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura
da construção, elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre, outra, que dá para o exterior,
permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um
louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar.” (Foucault, 1987: 165 – 166) Essa é a descrição de Foucault
para o Panóptico, modelo arquitetônico projetado, no século XVII, pelo jurista Jeremy Bentham e que se torna uma
espécie de “tecnologia de poder” nas várias instituições disciplinares modernas.
O projeto do Panóptico torna-se “uma metáfora da transformação moderna, da moderna redistribuição dos poderes de
controle. Com mais discernimento que muitos dos seus contemporâneos, Bentham viu diretamente através dos variegados
invólucros dos poderes controladores a sua tarefa principal e comum, que era discplinar mantendo uma ameaça constante,
real e palpável de punição.” (Bauman, 1998: 56)
contaminação, em transformações globais: “se um ponto ou intersecção da rede muda
bruscamente de lugar (...), então o conjunto da rede transformar-se-á numa nova rede, onde
a situação respectiva dos pontos é tão diferente como a variedade dos caminhos”.(Serres,
s/d: 8)
Mas, a mobilidade e instabilidade do dispositivo não impedem que se trace sua genealogia,
ou seja, que suas possíveis e múltiplas gêneses não possam ser descritas. E esta genealogia
dos dispositivos, tão cara a Foucault, é também uma geologia e uma cartografia, já que a
história é imediatamente confrontada com a atualidade, em sua diferença irredutível com o
passado. Uma abordagem que procura vislumbrar “aquilo em que nos vamos tornando,
aquilo que somos em devir”. (Deleuze, 1996: 93) Um dispositivo carrega, a um só tempo,
suas linhas genealógicas, históricas, mas também suas linhas de fuga, de fratura, aquelas
que podem fazê-lo desabar ou tornar-se gradativamente outro. “Assim, todo dispositivo se
define pelo que detém em novidade e criatividade, e que ao mesmo tempo marca a sua
capacidade de se transformar, ou de desde logo se fender em proveito de um dispositivo
futuro.” (Deleuze, 1996: 92)
Do Panóptico ao scanner
E o que vamos deixando de ser, pouco a pouco? Saímos de uma sociedade disciplinar, com
suas instituições e estratégias de poder baseadas no panoptismo e passamos a lidar, cada
vez mais corriqueiramente, com novos dispositivos próprios da sociedade de controle.
Essa passagem, esboçada por Deleuze, será desenvolvida por Michael Hardt, em pelo
menos dois sentidos: o primeiro faz coincidir a sociedade de controle com a forma político-
social tomada pelo “império”, uma nova ordem mundial, que se desenvolve em torno dos
Estados Unidos, com as corporações transnacionais e o mercado financeiro. O segundo, que
deriva dessa primeira constatação, diz respeito ao processo intenso, violento, de
privatização dos espaços públicos e de desrealização do lugar da política. Ora, vivemos
hoje uma situação paradoxal: ao mesmo tempo em que tudo ganha visibilidade, se torna
público, ou melhor, é publicizado através das tecnologias e redes informacionais, a política,
ao se espetacularizar, transforma-se em mais um produto a ser consumido nos espaços
privados e domésticos. “A noção liberal do público como o lugar do fora, onde agimos sob
o olhar dos outros, tornou-se ao mesmo tempo universalizada (pois somos hoje
permanentemente colocados sob olhar dos outros, sob a observação das câmeras de
vigilância) e sublimada, ou desrealizada, nos espaços virtuais do espetáculo.” (Hardt, 2000:
360)
Mas se trata menos de uma ruptura entre um e outro – da disciplina ao controle, categórica
e abruptamente – e mais de uma passagem, uma mudança de qualidade a partir de uma
intensificação. Se na sociedade disciplinar segmentamos, hierarquizamos, normalizamos o
corpo, o espaço e o tempo, assim ainda o fazemos hoje. Mas vamos além: agora corpo e
espaço tendem a ser “escaneados” e monitorados ininterruptamente (mais do que apenas
normalizados). Trata-se de fazer corresponder a cada ponto do nosso corpo uma unidade
codificável (o código genético) e a cada ponto do espaço global um dígito, um pixel, uma
informação. Ou seja, fazer coincidir o mapa (genético ou geoprocessado) ao território (do
corpo, do mundo).
O mesmo ocorre com o tempo: se antes se buscava extrair do presente, iluminado pela
experiência do passado, o máximo de funcionalidade, de produtividade, hoje isso não basta:
é preciso conhecer, colonizar (ou para Santos, 2003, consumir) o futuro. Vivendo sob um
regime de instabilidade e risco, precisamos evitá-los, mantê-los sob controle, antecipando o
futuro no presente e fazendo do primeiro uma repetição monitorada do segundo.
Através de técnicas de simulação cada vez mais sofisticadas, utilizadas em campos os mais
diversos, da genética às finanças, buscamos tornar previsível o que é imprevisto, traduzir
em informação todo horizonte do possível. Como resume Paulo Vaz, em uma sociedade do
risco e da fragilidade, “odiamos o possível, pois ele nos persegue no passado e nos
amedronta com sua demasia no futuro. Por vingança contra o tempo, o pensamento
ocidental inventa então um mundo em que nada passa, afirmando que de direito nada
deveria passar e que tudo deve se conformar ao previsto”. (Vaz, 2003: 89)
Trata-se também, desde já, de quadricular, serializar, tabular: fazer deste não apenas um
local de visibilidade absoluta, mas também um espaço-informação. Nesse sentido, podemos
arriscar a dizer que a história da sociedade disciplinar, panóptica, está estreitamente ligada
à história do regime de visão baseado na Perspectiva, sem nos esquecer de seus
desdobramentos em dispositivos ópticos como a fotografia, o cinema e a televisão. Dito de
outro modo, uma genealogia dos atuais dispositivos de televigilância deveria passar
necessariamente pela invenção da Perspectiva, esta que, de um único ponto de vista e a
partir de uma única visada, torna tudo transparente, visível, passível de ser conhecido e,
posteriormente, registrado pelo olhar objetivo da câmera.
O que nossa atualidade traz de novo em relação ao regime de visibilidade moderno é sua
intensificação, através da associação quase imediata, instantânea, entre imagem e
informação.
Deslizam como dados, migram de uma mídia a outra, de um a outro dispositivo, passam
por nós enquanto passamos entre elas (Bellour, 1993). Configura-se assim aquilo que
Giselle Beiguelman (2003) chama um mundo cíbrido, repleto de potencialidades (mas
também de perigos), em que as mensagens tornadas dígitos migram e se transformam
permanentemente, articulam e se rearticulam a outras informações em redes cada vez mais
complexas de comunicação à distância.
Aqui, vale ressaltar, a imagem é ela mesma um dispositivo, que carrega sua própria
genealogia, mas, paradoxalmente, deixa de se reduzir a si mesma: ao se tornar informação,
passível de ser processada, utilizada, comercializada, ela participa de dispositivos
complexos e heterogêneos. Torna-se, assim, cada vez mais redutor compreende-la como um
em si, que poderia ser isolado e analisado em seus aspectos puramente formais e
representativos. Mais importante talvez seja investigar como a imagem se insere em um
processo que a ultrapassa, processo ao mesmo tempo técnico, sensível e mental (Duguet,
1988).
Por fim, chegamos ao ponto que nos é mais caro: se estes novos dispositivos – nômades,
reticulares, informacionais – participam das atuais estratégias de controle, eles são também
atravessados por vetores ou tensores estéticos, linhas de criação que fracassam ou que se
contaminam mutuamente e se multiplicam. Afinal, todo dispositivo comporta em suas
linhas de força, virtualidades, que podem fazê-lo funcionar de uma maneira totalmente
nova.
Além da catalogação e preservação dos arquivos doados, o Atlas Group cria seus próprios
trabalhos baseados nos documentos sobre a história recente do Líbano. O resultado são
palestras, exibições, performances e instalações, como My Neck is Thinner than a Hair: a
History of Car Bombs in the Lebanese Wars (1975 – 1991). Através do projeto, em
processo, a fundação pesquisa e produz dossiers sobre todos os 245 carros que explodiram
durante as guerras civis, resultando também em publicações, palestras e instalações.
Na fronteira entre política, arte e ciência, lidando com suportes, linguagens e gêneros os
mais diversos, a experiência do Atlas Group pode ser vista como um dispositivo: ele
articula elementos históricos, documentais àqueles artísticos e ficcionais e se utiliza de
documentos fotográficos, impressos e videográficos para compor um banco de dados digital
under construction.
Dispositivo narrativo, ficcional, mas cujo “enredo” vai se desvendando, de forma dispersa e
processual, através de arquivos e informações digitalizadas, que são consultadas via rede,
vistas em catálogos e publicações impressas, experienciadas nas instalações, apresentadas
nas palestras de Walid. Limítrofe, ambíguo, em trânsito, o dispositivo utiliza as estratégias
próprias da ciência para construir um banco de dados borgeano, que se estabelece no limite
indiscernível entre a realidade histórica e a fabulação. Uma estratégia que leva a memória –
no caso a reconstrução da história recente do Líbano – à sua fronteira mais indiscernível
com a ficção: memória que é menos registro do que reinvenção. Dispositivo, portanto, de
estremecimento: a informação, desestabilizada, oscila, hesita. Uma dúvida sutil se instala e
agora todo o banco de dados delira.
No entanto, mais importante do que aprofundar a análise do dispositivo criado por Walid,
nos interessa aqui retomar o gesto do operador anônimo, de número 17, que todas as tardes
desviava sua câmera para captar o pôr-do-sol na orla de Corniche. Seu vídeo também faz
parte do banco de dados do Atlas Group, como tendo sido doado pelo próprio operador,
demitido de sua função em 96.
Se, como quer Deleuze, “pertencemos aos dispositivos e neles agimos” (Deleuze,1996: 92)
e se, ao agir, podemos interferir nele, reinventá-lo, o desvio de câmera do operador desloca
também toda a genealogia deste dispositivo, que abandona sua função de controle e re-
assume aqui sua função estética. Através deste gesto, a experiência estética surge e abala
sutilmente a teia do cotidiano. Ao participar de um dispositivo de novo tipo, a imagem
estremece: não pode mais ser reduzida à matéria pura, homogênea da informação e se
precipita novamente em uma dimensão de virtualidade.
Composto por fios visíveis e invisíveis, o dispositivo é ambíguo, heterogêneo. Outra sua
cartografia: o desejo que levou o operador ao seu rito diário de, mais ou menos
conscientemente, virar a câmera; o próprio ato de desviar o foco, restituindo o olhar à
câmera; o silêncio das imagens; aquilo que se passa fora do enquadramento; a relação entre
o gesto e o contexto sócio-político do Líbano de então; a potência de afecção destas que
poderiam ter-se reduzido a imagens-clichê; a preservação do vídeo em um banco de dados
na internet, pretensa e ironicamente histórico; sua posição ambígua entre o discurso
científico, político e artístico.
“Desvirtuada” (e, assim, virtualizada) pelo gesto eventual, a imagem perde algo de sua
transparência (a visibilidade necessária ao controle), se torna opaca, oscilante. A imagem
agora se situa entre ver e não ver, transformando-se em uma espécie de vislumbre, que
apenas sugere, esboça e logo se desfaz. O vislumbre mesmo do pôr-do-sol que ela registra:
ao acontecer, vai fazendo tudo desaparecer, pouco a pouco, na penumbra.
Se tudo não passou de uma invenção de Walid Raad, do Atlas Group, para compor seu
banco de dados imaginário, isso não é mais tão importante aqui. O que realmente nos
interessa é a possibilidade do gesto e aquilo que ele apresenta de irredutível e também de
inapreensível.
E aquilo que possui de emblemático: esse que tem a força de provocar um desvio da e na
imagem é um gesto qualquer8 e poderia compor algo como uma estética do ordinário, do
circunstancial e do eventual. Esse pequeno deslocamento, um estremecimento, ou melhor,
um “imperceptível tremor do finito” (Agamben, 1993: 46), é o que faria mudar tudo na
imagem e em torno dela. Algo que nos lembra a parábola que Benjamin conta a Bloch e
que é retomada por Agamben: “Um rabino, um verdadeiro cabalista, disse um dia: para
instaurar o reino da paz não é necessário destruir tudo e dar início a um mundo
completamente novo; basta apenas deslocar ligeiramente esta taça ou este arbusto ou aquela
pedra, e proceder assim em relação a todas as coisas.” (1993:44)
8 Aqui, qualquer tem o sentido específico que lhe confere Giorgio Agamben: “O ser que vem é um ser qualquer.”
(Agamben, 1993:11).
Qualquer, portanto, como potencialidade, qualidade transcendental de uma comunidade por vir: “quodlibet ens não é ‘o
ser, qualquer ser’, mas ‘o ser que, seja como for, não é indiferente’; ele contém, desde logo, algo que remete para vontade
(libet), o ser qual-quer estabelece uma relação original com o desejo.” (Agamben, 1993: 11).
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