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Virar a câmera, estremecer a imagem1

André Brasil2

PUC Minas
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo

A sociedade de controle, como antecipada por Gilles Deleuze, opera com dispositivos
bastante diferentes daqueles da sociedade disciplinar (Michel Foucault). Eles contribuem
para reconfigurar nossa relação com o espaço e o tempo e nosso regime de visibilidade:
reduzida à sua forma-informação, a imagem participa das estratégias de vigilância, controle
e simulação, cada vez mais disseminadas em nosso cotidiano. Buscando discutir essa idéia,
o texto toma como intercessor o vídeo I think it would be better if I could weep, parte dos
arquivos do Atlas Group, de Walid Raad. Ele é visto como um dispositivo heterogêneo,
ambíguo, de passagem: o gesto de virar a câmera e suas implicações, ao mesmo tempo,
políticas, discursivas e estéticas.

Palavras-chave

Sociedade de controle; dispositivo; Atlas Group

Corpo do trabalho

Simples, despretensioso, quase desavisado: aquele gesto que resultou no vídeo I think it
would be better if I could weep, que se mantém arquivado no banco de dados do Atlas
Group3 .

O vídeo – uma série de imagens de sunsets editadas, sem som, uma após a outra – não seria
nada além disso não fosse a força do gesto que as gerou. Como nos conta o texto
explicativo do arquivo, o serviço de segurança do Líbano instalou, em 1992, na orla de
Corniche (região oeste de Beirute), inúmeras câmeras de segurança para vigiar as
autoridades políticas, espiões e agentes secretos que passassem por ali. Todos os dias, ao

1 Trabalho enviado ao NP 07 – Comunicação Audiovisual, do XXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação


(Intercom)
2 Doutorando na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor da PUC
Minas, onde coordena o Centro de Experimentação em Imagem e Som (Ceis).
3 2001, DVD, 8min.
cair da tarde, o operador de número 17 desviava a câmera de seu foco habitual e a apontava
para o pôr-do-sol.

Esse desvio, aparentemente insignificante, faz com que a imagem – antes, pura informação
destinada à vigilância e ao controle – se torne algo aquém ou além de sua função
informacional. A imagem agora não informa, não comunica nada de objetivo, a não ser o
gesto de virar a câmera e, ao desviá-la, captar algo que a informação não conseguiria
conformar nem transmitir precisamente.

Para além dos conflitos políticos e religiosos que marcam a história do Oriente Médio e, ao
mesmo tempo, intensamente implicado e relacionado a eles, o gesto simples de virar a
câmera possui uma potência política e estética que nos interessa sublinhar: gesto do
descontrole. Fuga, desvio, recusa. Intervenção que esboça um fora nesta que Deleuze
antecipou como uma sociedade de controle.4 Não devemos, portanto, nos enganar pela sua
economia: o gesto deve ser visto como um dispositivo complexo, que conecta elementos
políticos, discursivos e estéticos.

Dispositivos por vir


Mas, antes de tudo, o que é um dispositivo? Mais que simplesmente um suporte, uma
ferramenta ou um aparato tecnológico, mais ainda que uma técnica, o dispositivo é uma
máquina relacional ou, para utilizar os termos de Deleuze e Guatarri, “uma máquina
diagramática”, “um diagrama maquínico”. Assim, o dispositivo coloca em conexão e em
funcionamento elementos os mais heterogêneos: trata-se sempre de uma articulação
multilinear, composta por fios visíveis e invisíveis, materiais e imateriais, de origem e
natureza diferentes. “E, no dispositivo, as linhas não delimitam ou envolvem sistemas
homogêneos por sua própria conta, como o objecto, o sujeito, a linguagem, etc., mas
seguem direcções, traçam processos que estão sempre em desequilíbrio, e que ora se
aproximam ora se afastam umas das outras.” (Deleuze, 1996: 83).

4 O termo sociedade de controle, criado pelo escritor William Burroughs, ganha o estatuto de conceito, ainda que
esboçado, em Deleuze (1992): Post-scriptum sobre as sociedades de controle.
Os recursos materiais e tecnológicos, as subjetividades, as ações e estratégias, as práticas
discursivas: estes são alguns dos componentes de um dispositivo. Mas, o que interessa
principalmente são as articulações eventuais estabelecidas entre eles em um diagrama
relacional variável. Nele, portanto, se operam passagens: entre campos, linguagens, mídias,
gêneros, instituições. Capturá-lo, apreendê-lo a partir de uma e única de suas dimensões –
seja ela semiótica, estética ou política – é desconsiderar aquilo que o dispositivo apresenta
de mais rico: suas linhas de cruzamento, trânsito, contaminação.

Não é essa a perspectiva de Foucault ao descrever e analisar o Panóptico5 , dispositivo que


convoca óptica e arquitetura, para, ao final, se constituir como um verdadeiro “laboratório
de poder” (Foucault, 1987: 166)? Não é disso que se trata? Através de uma engenharia,
operar a passagem entre ciência, política e economia? Ou mais ainda, não é disso que se
trata? Através de um efeito de visibilidade constante, impessoal e automático, fazer da
subjetividade a vigilância de si mesma?

Se o dispositivo do Panóptico acaba por se tornar emblemático do modo de funcionamento


das sociedades disciplinares é porque ele se multiplicou, se desdobrou em outros,
semelhantes, mas ligeiramente diferentes. A lógica aqui é, portanto, a da contaminação: do
hospício à escola, uma multiplicidade de dispositivos que se criam, se transformam e se
articulam de forma reticular.

Como uma rede instável, movente e múltipla, perpassada por linhas de força de diferentes
naturezas, um dispositivo deve ser compreendido em sua circunstancialidade. Trata-se de
uma articulação na qual mudanças locais podem se amplificar, por vizinhança e

5 “O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que
se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura
da construção, elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre, outra, que dá para o exterior,
permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um
louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar.” (Foucault, 1987: 165 – 166) Essa é a descrição de Foucault
para o Panóptico, modelo arquitetônico projetado, no século XVII, pelo jurista Jeremy Bentham e que se torna uma
espécie de “tecnologia de poder” nas várias instituições disciplinares modernas.
O projeto do Panóptico torna-se “uma metáfora da transformação moderna, da moderna redistribuição dos poderes de
controle. Com mais discernimento que muitos dos seus contemporâneos, Bentham viu diretamente através dos variegados
invólucros dos poderes controladores a sua tarefa principal e comum, que era discplinar mantendo uma ameaça constante,
real e palpável de punição.” (Bauman, 1998: 56)
contaminação, em transformações globais: “se um ponto ou intersecção da rede muda
bruscamente de lugar (...), então o conjunto da rede transformar-se-á numa nova rede, onde
a situação respectiva dos pontos é tão diferente como a variedade dos caminhos”.(Serres,
s/d: 8)

Mas, a mobilidade e instabilidade do dispositivo não impedem que se trace sua genealogia,
ou seja, que suas possíveis e múltiplas gêneses não possam ser descritas. E esta genealogia
dos dispositivos, tão cara a Foucault, é também uma geologia e uma cartografia, já que a
história é imediatamente confrontada com a atualidade, em sua diferença irredutível com o
passado. Uma abordagem que procura vislumbrar “aquilo em que nos vamos tornando,
aquilo que somos em devir”. (Deleuze, 1996: 93) Um dispositivo carrega, a um só tempo,
suas linhas genealógicas, históricas, mas também suas linhas de fuga, de fratura, aquelas
que podem fazê-lo desabar ou tornar-se gradativamente outro. “Assim, todo dispositivo se
define pelo que detém em novidade e criatividade, e que ao mesmo tempo marca a sua
capacidade de se transformar, ou de desde logo se fender em proveito de um dispositivo
futuro.” (Deleuze, 1996: 92)

Não é este, talvez e afinal de contas, o empreendimento de Foucault ao descrever os


dispositivos disciplinares? Apontar a tensão que reside ali entre o que é e, por outro lado, o
por vir, o vir a ser? Ou, para usar a formulação precisa de Deleuze, as disciplinas descritas
por Foucault não seriam, então, “a história daquilo que vamos deixando pouco a pouco de
ser”? (Deleuze, 1996: 93)

Do Panóptico ao scanner
E o que vamos deixando de ser, pouco a pouco? Saímos de uma sociedade disciplinar, com
suas instituições e estratégias de poder baseadas no panoptismo e passamos a lidar, cada
vez mais corriqueiramente, com novos dispositivos próprios da sociedade de controle.

A análise seminal de Foucault, tendo como emblemática a metáfora do Panóptico, nos


alertou para as microfísicas do poder na sociedade moderna, na qual os corpos e as
subjetividades são segmentados, hierarquizados e docilizados pelas técnicas
disciplinares. Hoje, as estratégias de poder talvez sejam mais sutis e passam menos pela
disciplina do que pelo controle: disseminam-se nas redes telemáticas dispositivos de
vigilância e monitoramento, que, para além do Estado, são os principais instrumentos
do novo marketing, ainda mais invasivo que seus descendentes.

As antigas sociedades de soberania manejavam máquinas simples, alavancas, roldanas,


relógios; mas as sociedades disciplinares recentes tinham por equipamento máquinas
energéticas, com o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem; as
sociedades de controle operam por máquinas de uma terceira espécie, máquinas de
informática e computadores, cujo perigo passivo é a interferência e, o ativo, a pirataria e
a introdução de vírus. (Deleuze, 1992:223)

Essa passagem, esboçada por Deleuze, será desenvolvida por Michael Hardt, em pelo
menos dois sentidos: o primeiro faz coincidir a sociedade de controle com a forma político-
social tomada pelo “império”, uma nova ordem mundial, que se desenvolve em torno dos
Estados Unidos, com as corporações transnacionais e o mercado financeiro. O segundo, que
deriva dessa primeira constatação, diz respeito ao processo intenso, violento, de
privatização dos espaços públicos e de desrealização do lugar da política. Ora, vivemos
hoje uma situação paradoxal: ao mesmo tempo em que tudo ganha visibilidade, se torna
público, ou melhor, é publicizado através das tecnologias e redes informacionais, a política,
ao se espetacularizar, transforma-se em mais um produto a ser consumido nos espaços
privados e domésticos. “A noção liberal do público como o lugar do fora, onde agimos sob
o olhar dos outros, tornou-se ao mesmo tempo universalizada (pois somos hoje
permanentemente colocados sob olhar dos outros, sob a observação das câmeras de
vigilância) e sublimada, ou desrealizada, nos espaços virtuais do espetáculo.” (Hardt, 2000:
360)

Os dispositivos da sociedade de controle têm como estratégias a invisibilidade e o


nomadismo, o que, por sua vez, os torna ubíquos e oblíquos. “O controle é de curto prazo e
de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado”. (Deleuze, 1992:224). Ou, como
acrescenta Hardt, “nesse espaço liso do império, não há o lugar do poder: ele está em todos
os lugares e em nenhum deles.” (Hardt, 2000:362)

Mas se trata menos de uma ruptura entre um e outro – da disciplina ao controle, categórica
e abruptamente – e mais de uma passagem, uma mudança de qualidade a partir de uma
intensificação. Se na sociedade disciplinar segmentamos, hierarquizamos, normalizamos o
corpo, o espaço e o tempo, assim ainda o fazemos hoje. Mas vamos além: agora corpo e
espaço tendem a ser “escaneados” e monitorados ininterruptamente (mais do que apenas
normalizados). Trata-se de fazer corresponder a cada ponto do nosso corpo uma unidade
codificável (o código genético) e a cada ponto do espaço global um dígito, um pixel, uma
informação. Ou seja, fazer coincidir o mapa (genético ou geoprocessado) ao território (do
corpo, do mundo).

O mesmo ocorre com o tempo: se antes se buscava extrair do presente, iluminado pela
experiência do passado, o máximo de funcionalidade, de produtividade, hoje isso não basta:
é preciso conhecer, colonizar (ou para Santos, 2003, consumir) o futuro. Vivendo sob um
regime de instabilidade e risco, precisamos evitá-los, mantê-los sob controle, antecipando o
futuro no presente e fazendo do primeiro uma repetição monitorada do segundo.

Através de técnicas de simulação cada vez mais sofisticadas, utilizadas em campos os mais
diversos, da genética às finanças, buscamos tornar previsível o que é imprevisto, traduzir
em informação todo horizonte do possível. Como resume Paulo Vaz, em uma sociedade do
risco e da fragilidade, “odiamos o possível, pois ele nos persegue no passado e nos
amedronta com sua demasia no futuro. Por vingança contra o tempo, o pensamento
ocidental inventa então um mundo em que nada passa, afirmando que de direito nada
deveria passar e que tudo deve se conformar ao previsto”. (Vaz, 2003: 89)

O dispositivo da imagem, a imagem no dispositivo


E, se modifica nossa relação com o tempo e o espaço, muda também nosso regime de
visibilidade. Sabemos como o Panóptico era não apenas uma arquitetura, mas
principalmente um dispositivo visual. Do lado do observador, trata-se de tudo ver sem ser
visto. Aquele que é observado, por seu turno, imagina estar sendo vigiado
permanentemente: com isso introjetamos a vigilância, tornando-a norma.

Trata-se também, desde já, de quadricular, serializar, tabular: fazer deste não apenas um
local de visibilidade absoluta, mas também um espaço-informação. Nesse sentido, podemos
arriscar a dizer que a história da sociedade disciplinar, panóptica, está estreitamente ligada
à história do regime de visão baseado na Perspectiva, sem nos esquecer de seus
desdobramentos em dispositivos ópticos como a fotografia, o cinema e a televisão. Dito de
outro modo, uma genealogia dos atuais dispositivos de televigilância deveria passar
necessariamente pela invenção da Perspectiva, esta que, de um único ponto de vista e a
partir de uma única visada, torna tudo transparente, visível, passível de ser conhecido e,
posteriormente, registrado pelo olhar objetivo da câmera.

O que nossa atualidade traz de novo em relação ao regime de visibilidade moderno é sua
intensificação, através da associação quase imediata, instantânea, entre imagem e
informação.

As imagens eletrônicas e digitais, transmitidas instantaneamente, contribuem para a criação


de um “FALSO DIA produzido pela iluminação das telecomunicações”, como nos adverte
Virilio (1999:20). As “máquinas de visão” (Virilio, 1993) vão, pouco a pouco, tornando as
cidades, os estabelecimentos comerciais, os condomínios, os espaços íntimos, a vida
privada, instâncias de visibilidade absoluta. Desse ponto de vista, “a famosa ‘realidade
virtual’ não é tanto a navegação no CIBERESPAÇO das redes, mas antes a AMPLIAÇÃO
DA ESPESSURA ÓTICA das aparências do mundo real.” (Virilio, 1999:21)

Traduzida imediatamente em informação, a imagem é esvaziada de toda virtualidade,


aquilo que nela há de invisível, inaudito e inapreensível. As tecnologias de controle e
vigilância, aliadas ao tele-voyeurismo planetário, restringem a imagem a exercer, única e
exclusivamente, uma função social, abandonando suas funções políticas e estéticas e
“substituindo as possibilidades de beleza e pensamento por poderes inteiramente outros”
(Deleuze, 1992:92). Aquilo que, em diálogo com Serge Daney, Deleuze diz da televisão,
pode ser ampliado para nossa discussão aqui: televigilância e tele-voyeurismo nos
apresentam “o social-técnico em estado puro”. (Deleuze, 1992: 96) Instrumentalizadas pela
comunicação, tornadas pura informação, as imagens podem assim participar,
estrategicamente, dos atuais dispositivos da sociedade de controle (estejam eles a serviço
do estado, do marketing ou do espetáculo).
Em outras palavras, o que se constata, nesse caso, é uma mudança fundamental no estatuto
da imagem e, especificamente, em nossa relação com ela: a partir da emergência dos
dispositivos eletrônicos e digitais, o par natureza-corpo ou paisagem-homem, cede lugar
para o par cidade-cérebro ou cérebro-informação. “A tela não é mais uma porta-janela (por
trás da qual...), nem um quadro-plano (no qual), mas uma mesa de informação sobre a qual
as imagens deslizam como dados.” (Deleuze, 1992: 98)

Deslizam como dados, migram de uma mídia a outra, de um a outro dispositivo, passam
por nós enquanto passamos entre elas (Bellour, 1993). Configura-se assim aquilo que
Giselle Beiguelman (2003) chama um mundo cíbrido, repleto de potencialidades (mas
também de perigos), em que as mensagens tornadas dígitos migram e se transformam
permanentemente, articulam e se rearticulam a outras informações em redes cada vez mais
complexas de comunicação à distância.

Ao se reduzir à sua forma-informação, traduzida antes por um modelo digital, a imagem,


que já permitia a extrema transparência do espaço global, ganha maleabilidade e
instantaneidade necessárias para a simulação do futuro, para dar visibilidade, no presente, a
seus quase-objetos, às suas ações e cenários possíveis. Ela torna-se assim um dispositivo de
visibilidade e monitoramento não apenas do espaço, mas do tempo: o futuro, outrora,
virtual, antecipa-se previsível, sem surpresas.

Aqui, vale ressaltar, a imagem é ela mesma um dispositivo, que carrega sua própria
genealogia, mas, paradoxalmente, deixa de se reduzir a si mesma: ao se tornar informação,
passível de ser processada, utilizada, comercializada, ela participa de dispositivos
complexos e heterogêneos. Torna-se, assim, cada vez mais redutor compreende-la como um
em si, que poderia ser isolado e analisado em seus aspectos puramente formais e
representativos. Mais importante talvez seja investigar como a imagem se insere em um
processo que a ultrapassa, processo ao mesmo tempo técnico, sensível e mental (Duguet,
1988).
Por fim, chegamos ao ponto que nos é mais caro: se estes novos dispositivos – nômades,
reticulares, informacionais – participam das atuais estratégias de controle, eles são também
atravessados por vetores ou tensores estéticos, linhas de criação que fracassam ou que se
contaminam mutuamente e se multiplicam. Afinal, todo dispositivo comporta em suas
linhas de força, virtualidades, que podem fazê-lo funcionar de uma maneira totalmente
nova.

Ao se disseminar em nosso cotidiano e ao abrigar linhas de criação e reinvenção, os


dispositivos informacionais podem operar passagens entre arte, política e vida social,
levando, por contaminação, modos de funcionamento de um a outro domínio. E para tornar
outros os dispositivos de controle, basta o gesto, ao mesmo tempo, ético, político e estético:
virar a câmera.

Desvirtuar o dispositivo, virtualizar a imagem


O ambiente é bastante diferente daquele do famoso cubo branco das galerias ou dos
museus. O artista que esperávamos, Walid Raad, criador do Atlas Group 6 , entra, liga seu
laptop e inicia sua “intervenção” artística. Mas, estranho, nada ali difere de uma palestra. O
datashow projeta dados, mapas, ilustrações. A sala, um auditório, está na penumbra. A
platéia ouve atenta, silenciosa. O tom do discurso é científico.

Ele apresenta, paciente e didaticamente, os arquivos do Atlas Group, uma fundação


imaginária que, desde 1999, pesquisa e documenta a história contemporânea do Líbano. A
fundação descobre, produz e arquiva documentos como cadernos de nota, fotografias,
filmes e vídeos e disponibiliza parte destes documentos em um banco de dados na internet.
Além disso, Walid participa de exposições internacionais com instalações e palestras-
performances como a que estamos assistindo7 .

6 Cf. em <http://www.theatlasgroup.org> (Último acesso em 03 de fevereiro de 2004).


7 Estamos nos referindo aqui à participação de Walid no 14º Videobrasil – Festival Internacional de Arte Eletrônica, parte
da curadoria Narrativas Possíveis, de Akram Zaatari e Christine Tohme. A participação do Atlas Group, de Walid, se deu
através da performance multimídia The Loudest Muttering is Over: Documents from the Atlas Group (2003).
Entre os arquivos do Atlas Group estão, por exemplo, os cadernos de notas do historiador
Dr. Fadl Fakhouri, doados após sua morte em 1993. São 226 cadernos com recortes de
jornais, fotos e anotações minuciosas, dos quais dois estão disponíveis: o primeiro, de
número 38, denominado Already Been in a Lake of Fire, consiste de 145 fotos de carros –
acompanhadas de dados e comentários – que correspondem exatamente aos modelos dos
carros-bomba que explodiram no Líbano, durante as guerras civis de 1975 a 1990. O
segundo, de número 72, chamado Lebanese Missing Wars, constitui-se de pranchas com
fotos das chegadas das corridas de cavalo, das quais historiadores libaneses costumavam
participar como apostadores. Cada foto vem acompanhada de anotações detalhadas sobre o
páreo, a distância do cavalo em relação à linha de chegada no momento da foto, assim
como a aposta de cada um dos historiadores.

Além da catalogação e preservação dos arquivos doados, o Atlas Group cria seus próprios
trabalhos baseados nos documentos sobre a história recente do Líbano. O resultado são
palestras, exibições, performances e instalações, como My Neck is Thinner than a Hair: a
History of Car Bombs in the Lebanese Wars (1975 – 1991). Através do projeto, em
processo, a fundação pesquisa e produz dossiers sobre todos os 245 carros que explodiram
durante as guerras civis, resultando também em publicações, palestras e instalações.

Na fronteira entre política, arte e ciência, lidando com suportes, linguagens e gêneros os
mais diversos, a experiência do Atlas Group pode ser vista como um dispositivo: ele
articula elementos históricos, documentais àqueles artísticos e ficcionais e se utiliza de
documentos fotográficos, impressos e videográficos para compor um banco de dados digital
under construction.

Dispositivo narrativo, ficcional, mas cujo “enredo” vai se desvendando, de forma dispersa e
processual, através de arquivos e informações digitalizadas, que são consultadas via rede,
vistas em catálogos e publicações impressas, experienciadas nas instalações, apresentadas
nas palestras de Walid. Limítrofe, ambíguo, em trânsito, o dispositivo utiliza as estratégias
próprias da ciência para construir um banco de dados borgeano, que se estabelece no limite
indiscernível entre a realidade histórica e a fabulação. Uma estratégia que leva a memória –
no caso a reconstrução da história recente do Líbano – à sua fronteira mais indiscernível
com a ficção: memória que é menos registro do que reinvenção. Dispositivo, portanto, de
estremecimento: a informação, desestabilizada, oscila, hesita. Uma dúvida sutil se instala e
agora todo o banco de dados delira.

No entanto, mais importante do que aprofundar a análise do dispositivo criado por Walid,
nos interessa aqui retomar o gesto do operador anônimo, de número 17, que todas as tardes
desviava sua câmera para captar o pôr-do-sol na orla de Corniche. Seu vídeo também faz
parte do banco de dados do Atlas Group, como tendo sido doado pelo próprio operador,
demitido de sua função em 96.

Se, como quer Deleuze, “pertencemos aos dispositivos e neles agimos” (Deleuze,1996: 92)
e se, ao agir, podemos interferir nele, reinventá-lo, o desvio de câmera do operador desloca
também toda a genealogia deste dispositivo, que abandona sua função de controle e re-
assume aqui sua função estética. Através deste gesto, a experiência estética surge e abala
sutilmente a teia do cotidiano. Ao participar de um dispositivo de novo tipo, a imagem
estremece: não pode mais ser reduzida à matéria pura, homogênea da informação e se
precipita novamente em uma dimensão de virtualidade.

Composto por fios visíveis e invisíveis, o dispositivo é ambíguo, heterogêneo. Outra sua
cartografia: o desejo que levou o operador ao seu rito diário de, mais ou menos
conscientemente, virar a câmera; o próprio ato de desviar o foco, restituindo o olhar à
câmera; o silêncio das imagens; aquilo que se passa fora do enquadramento; a relação entre
o gesto e o contexto sócio-político do Líbano de então; a potência de afecção destas que
poderiam ter-se reduzido a imagens-clichê; a preservação do vídeo em um banco de dados
na internet, pretensa e ironicamente histórico; sua posição ambígua entre o discurso
científico, político e artístico.

“Desvirtuada” (e, assim, virtualizada) pelo gesto eventual, a imagem perde algo de sua
transparência (a visibilidade necessária ao controle), se torna opaca, oscilante. A imagem
agora se situa entre ver e não ver, transformando-se em uma espécie de vislumbre, que
apenas sugere, esboça e logo se desfaz. O vislumbre mesmo do pôr-do-sol que ela registra:
ao acontecer, vai fazendo tudo desaparecer, pouco a pouco, na penumbra.

Se tudo não passou de uma invenção de Walid Raad, do Atlas Group, para compor seu
banco de dados imaginário, isso não é mais tão importante aqui. O que realmente nos
interessa é a possibilidade do gesto e aquilo que ele apresenta de irredutível e também de
inapreensível.

E aquilo que possui de emblemático: esse que tem a força de provocar um desvio da e na
imagem é um gesto qualquer8 e poderia compor algo como uma estética do ordinário, do
circunstancial e do eventual. Esse pequeno deslocamento, um estremecimento, ou melhor,
um “imperceptível tremor do finito” (Agamben, 1993: 46), é o que faria mudar tudo na
imagem e em torno dela. Algo que nos lembra a parábola que Benjamin conta a Bloch e
que é retomada por Agamben: “Um rabino, um verdadeiro cabalista, disse um dia: para
instaurar o reino da paz não é necessário destruir tudo e dar início a um mundo
completamente novo; basta apenas deslocar ligeiramente esta taça ou este arbusto ou aquela
pedra, e proceder assim em relação a todas as coisas.” (1993:44)

Somente assim – libertos do domínio exclusivo de um ou outro campo axiológico (seja a


arte, a política, a tecno-ciência, a comunicação, ou o marketing), sem se deixar reduzir à
pura informação – os dispositivos que povoam a nosso cotidiano podem cumprir seu
destino de operar passagens e de abrir o real ao potencial. Como nos provoca Deleuze, “o
importante talvez venha a ser criar vacúolos de não-comunicação, interruptores, para
escapar ao controle.” (Deleuze, 1992:217). Ou parafraseando o título do vídeo de um
operador qualquer, I think it would be better if I could scape.

8 Aqui, qualquer tem o sentido específico que lhe confere Giorgio Agamben: “O ser que vem é um ser qualquer.”
(Agamben, 1993:11).
Qualquer, portanto, como potencialidade, qualidade transcendental de uma comunidade por vir: “quodlibet ens não é ‘o
ser, qualquer ser’, mas ‘o ser que, seja como for, não é indiferente’; ele contém, desde logo, algo que remete para vontade
(libet), o ser qual-quer estabelece uma relação original com o desejo.” (Agamben, 1993: 11).
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