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Estudos de DIREITO DA ARBITRAGEM em Homenagem a MARIO RAPOSO Comisséio Organizadora AGOSTINHO PEREIRA DE MIRANDA | MIGUEL CANCELLA DE ABREU PAULA COSTA B SILVA | RUI PENA | SOFIA MARTINS A arbitragem necessaria — natureza e regime: breves contributos para o desbravar de uma (também ela) necessaria discussaio ANTONIO DE MAGALHAES CARDOSO" ‘Sara Nazare** 1. Notas introdut6rias — a preméncia do tema esquecido 1. E com parciménia historica que Duarte NOGUEIRA situa, em Portugal, o aparecimento da realidade arbitral como compositora de diferendos. Apesar de ndo ser entio aparentemente vulgar 0 recurso a0 Instituto, é algures entre os séculos xi ¢ xi que surge a arbitragem, nos seus contomos mais gerais, no ordenamento juridico portugués (ou, pelo menos, ibérico)' ‘Tratamos assim, neste texto, de uma figura que conta ja com cerca de der sécnlos de histérin em territério portugues, de progressos e retro- ccessos na sua definigo, de aprimoramentos na sua regulamentagao, de desenvolvimentos na sua recegao doutrinal e jurisprudenciale, sobretudo, de progressivo crescimento na sua aplicagao? ‘A arbitragem ocupa hoje um lugar de destaque no comércio interna- cional, apresentando-se aos agentes econémicos como uma vilvula de escape a pesada e, por vezes, indiferente e desatualizada maquina da * Sécio, Vieira de Almeida & Associados, ** Associada, Viera de Almeida & Associados. "Jose A. A. Duarte Nogueira, «A Arbitragem na Histria do Direito Portugués (Subsidiog)», em Revista Juridica, Lishoa, Associagio Académicn da Faculdade de Dirsito de Lisboa, n° 20, outubro 1996, pigs. 12-23, 2 Para uma resenhahistrica do insituto da arbitragem em Portugal, idem. M4 DIREITO DA ARBITRAGEM justia estatal, inapta a (bem) resolver os litigios que, embora complexos, reclamam solugées simples, rapidas, eficientes. Esse caminho, que veio trilhando pari passu com a constante evoluyo das relagdes comerciais internacionais, chamou a atengdo de iniimeros, ‘académicos um pouco por todo 0 mundo, que se dedicaram ao estudo € a anilise do instituto; vém garantindo a sua constante modernizaca0, procurando moldé-lo e adapti-lo as necessidades econémicas mais atuais. Foi também com este objetivo que se aprovou (e posteriormente reviu) 4 Lei-Modelo da UNCITRALS, que se revelou um contributo decisive na consolidagao da arbitragem, escolhida voluntariamente pelas partes, ‘como resposta jurisdicional de destaque para a resoluco de litigios. 2. Mas esta atengo ~ doutrinéria, mas também legal e jurispruden- cial — que tem sido dada & arbitragem centra-se, sobretudo, na sua mod: dade voluntiria: apenas esta foi extensivamente regulada pelo legislador* as referéncias a arbitragem necesséria, nas obras doutrinarias ou textos dedicados matéria, surgem como meros apontamnentos dclimitadores do conceito mais amplo de arbitragem, ai tido como geral. Numa perspetiva ‘mais radical, certos Autores negam inclusivamente a natureza arbitral 8 arbitrage necessaria, reconhecendo-Ihe um palco quase secundério, voire insignificante’ ‘A verdade € que 0 universo de regimes sujeitos a arbitragem neces- sdria ocupa hoje, em Portugal, um espaco considerivel nas relagdes ceconémicas ~ por oposigo a escassez de dedicagdo conceptual de que tem sido alvo, Afirmou-se, na verdade, em relagdes de eardcter laboral’, 3 0 texto consolidado (aprovado em 1985 e revisto em 2006) 6a Let-Modelo da LUNCTTRAL (United Nations Commission on International Trade Law) pode ser desea: regado aqui tp www uncitral.or/pdenglshtexts/arbitation!ml-arb07-86998, Ebook. pat, * Em Portugal, veje-se a Lei da Acbitragem Voluntria,aprovada pela Lei n” 63/2011, de 14 de dezemro, Do mesmo modo, a sua antecessora apenas regulava a rbitagem voluntiia (Lei n?” 31/86, de 29 de agosto. "A regulamentagdo genérica do abitragem necessiria encontre-se hoje relegada para quatro soltrios artigos do Cédigo de Processo Civil (artigos 1082. a 1085”), Femetendo o timo dees para a Lei da Arbitragem Voluntiria a regulamentaglo sub sidiria do inttto. © Ene outros, MANUEL PEREIRA Barsocas (Manuel Pereira Barroeas, Manual de Arbitrage, Coimbra, Aimedina, 213, piss. 90-92) 7”CF. artigos 510° e 1 * do Codigo do Trabalho, egulamentados pelo Decreto-Lei 11925912008, de 25 de setembro, subsidariamente apliavel ao regime constante do amigo /N ARBITRAGEM NECESSARIA ~ NATUREZA F REGIE 35 desportivo’, em matéria de expropriagées?, de venda de energia elétrica {em alta tensio'”e de litigios sobre direitos de patente envolvendo medi- camentos genéricos't. Como se vé, so jf varios os casos, dispersos pelas mais diversas areas socioecondmicas, cujos litigios o legislador entendeu, por um motivo ou por outro, submeter a um regime arbitral necessario!?, Adiante veremos, ainda que sem grande profundidade, quais as razdes que fundamentam opgdes legislativas como estas! Mas mais refevante do que a abrangéncia temitica da consagragio legislativa de regimes de arbitragem necessiria é a constatagao de que esta, ndo obstante a sua drea de intervengao aparentemente reduzida em relago & arbitragem voluntéria, acaba por ser responsivel por muita da jurisprudéncia proferida pelos tribunais estaduais de recurso sobre temas arbitrais. A este propésito, ¢ interessante ouvir a intervengao do Presidente do Tribunal da Relagao de Lisboa, o Senhor Desembargador Luis Vaz das Neves, no VIII Congresso Centro de Arbitragem Comercial! ‘ou consultar a mais recente jurisprudéncia disponivel sobre questdes relacionadas com arbitragem, Este fendmeno explica-se por dois fatores: por um lado, pela conclusio de que, contra o que se tem advogado, o campo de atuagao da arbitrage necessiria nio ¢ afinal despiciendo (ou, pelo menos, n80 0 € tanto quanto 379° da Lei Geral do Trabalho em Funes Piblicas (aprovada pela Lei a” 35/2014, 44 20 de junto), Amigos 4.” ¢ 5° da Lei n® 74/2013, de 6 de stembro, Amigos 38" e seguintes do Codigo das Expropriages "© Cf. artigo 49: do Decreto-Lei n” 43335, de 19 de novernbro de 1960, tal como alterado pelo Decreto-Lei n® 296/82, de 28 dejulho na sequéaca de uma declaragao de ‘nconstituconalidade pelo Tribunal Consiucional(AcérdSo n° $2092, de S de Feverira de 192) "Lei m 622011, de 12 de dezembro. "2 O regime arbitral previsto no Regime de Proteg dos Utentes dos Servis Pico, constante do artigo 15°, n° I, da Lei n® 23/96, de 26 de julho, surge, de certs forma, ‘como uma teceira via da arbitragem, stuada algures entre a arbitrgem necessria © @ Voluntiria, Com efeto, no abstante nee se prever que os litigios de consumo no ambito os servigas pblics esseciais esto suetos a arbitrage necessaria mediante express ‘peo dos uentes manifestada nese sentido, a verdade é que esta submis opera de forma unilateralmenteimpostiva Os utentes detém assim odieito poesatvo de sujetar 1s servigospiblions. arbitragem, que assim se presenta como uma abitragem “orga "CE. ponta 4 do presente antigo. ™ Ttervengdo que teve lugar no dia 10 de julho, presindo a painel subordinado ao tema “Nomeagio de Arbiros ~ 0 papel das entidades de nomeaco os entris de esignagio” (video disponivel em hitp/www.usticav.comindex.php?p=4862) 36 DIREITO DA ARBITRAGEM se pensava) ¢ incide, muitas vezes, sobre interesses patrimoniais muito relevantes; por outro, pela urgéncia sentida pelos operadores juridicos ‘que nessc instituto se movem em clarificar o regime aplicvel a esta modalidade de arbitragem, apenas subsidiariamente regulada pela Lei dda Arbitragem Voluntéria (*LAV"). 3. Pareceu-nos importante, assim, oferecer alguns modestos contributos para os debates que se tém levantado quanto a interpretagao da LAV no contexto de arbitragens necessérias, mormente quanto as diversas referéncias que ai so feitas 4 convengdo de arbitragem — elemento que sti, precisamente © como abaixo melhor demonstraremos, ausente na litigancia arbitral necessiria, Para o efeito, e porque se procura obter um contributo tanto intempo- ral como ttl, sera necessério enquadrar primeiro ~ mas sem quaisquer pretenses exaustivas ~ a questio da naturcza da arbitragem: perceber se ‘uma origem contratual é caracteristica essencial da natureza do instituto ‘ou se essa origem corresponde apenas a uma sua possivel fonte, entre outras eoncebiveis. ‘A discussio que se traré para o presente texto teri por base alguns arti- ‘g0s da LAY, tal como hoje ela se encontra aprovada pela Lei n° 63/2011, de 14 de dezembro. Mas tendo a origem da arbitragem como pano de fundo de todos os comentérios que abaixo se desenvolveri, as solugSes {que se apresentam desligam-se da LAV atual e valem como estudo das caracteristicas mais intrinsecas deste instituto, Esclarega-se, por fim e por um lado, que 0 presente estudo se cen- ‘rari apenas na arbitragem interna, nfo se abordando temas como 0 do reconhecimento ou da execuyao de seutengas arbitrais estrangciras; © ue, por outro, serio apresentados, por referéncia aos temas tratados, alguns comentarios sobre um concreto regime de arbitragem necessé ria atualmente em vigor em Portugal, constante da Lei n.° 62/2011, de 12 de dezembro!s"6 («Lei n® 62/2011»), que assim funciona como tubo de ensaio para as soluedes que se propoem. °S Que, desde dezembro de 2011, veiosujitar a arbitragem necessiria 0s litigios emergent da invade ereitos de propriedade industrial, incluindo os procedimentos ‘autelares, relacionados com medicamentos de referencia c medicamentos generics (cf artigos 1" © 2° da Lei n* 62/2011, de 12 de dezemro). "Vim contibuto doutrindriorelevante na analise deste regime arbitral ehegou- os pela mio de Sorta Risin MENDES (Sofia Ribeito Mendes, «© Novo Regime de Arbitrage Necssrio de Litgios Retatvos a Medicamentos de Referénsa © Genésoos |A ARBITRAGEM NECESSARIA - NATUREZA BEGIN 7 O que 6, entdo, a arbitragem necesséria? 1. a arbitragem necessariamente voluntéria? A. Nota histor 4, Nao se julgue que a arbitragem necessiria & problema dos tempos modernos. Bem pelo contrario. Recorremos aqui novamente sobretudo aos trabalhos levados a cabo por Duarte NOGUEIRA, que compilou a informagio que recolheu de consulta de diversos textos legislativos, uns ordenados e outros niio, ‘com 0 objetivo de tragar os principais contomos da evolucdo historico- -juridica da arbitragem no direito portugués'’. Elencamos trés casos identificados ao longo da nossa (curta) incursio histérica pelo estudo deste instituto, O primeiro regime de arbitragem necessaria identificado por aquele historiador surge logo no século xm ¢ materializou-se na subtragdo da competéncia da jurisdigdo estatal para 0 conhecimento das querelas, no uc ao seu valor diz respeito, ditas menores (recorrendo a uma expressio emprestada do direito penal, as «bagatelas ltigiosas»), reservando essa intervengto para os litigios de maior relevo'*, Motives de racionalizagio dos recursos estatais — humanos ¢ financeiros ~ parecem ter presidido uma tal solugdo juridica. Tratava-se, no fundo, de assumir que 0 diferendo seria de tal forma (aparentemente) irrelevante que nio se justificava convocar o Estado a intervir. Dos regimes arbitrais necessé- rios acima identificados, parece ser por um motivo semelhante a este que os litigios de consumo no Ambito dos servi puiblivos essenciais (Alguns Problemas)», em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, coord, Armando Marques Guedes et.al, Coimbra, Coimbra Eaitora, 2013, vl. I, pigs. 1005-1037. Nogueira, «A Arbitragem na Histria..», et. Mais recentemente, tem igualmente {neresse 0 estudo de SaNTOs JUSTO, apesar de vocacionado apenas para warbiragem no direito romano (Anténio dos Santos Justo, «A Arbitrage no Direito Romano ~ Breve Referéncia 90 Direito Portugués», em Estudos em Homonagem ao Prof, Dowtor José Lebre de Freitas, Coimbra, Almedina, 2013, tomo Il, pigs. 675-701) "S Nogueira, «A Arbitragem na Historia.» eit, pg. 16 € nota 27. "Vide ponto 2 supra 8 DIREITO DA ARBITRAGEM ficam sujeitos a um regime arbitral necessério, ainda que por opgio expressa dos utentes singulares”, ‘Um segundo caso de arbitragem necessiria pode ser encontrado no Livro de Leis ¢ Posturas", que dispunha que os litigios emergentes entre homens do mar ficariam sujeitos a regulagdo por via exclusiva de arbi- tragem, Esta opeao legislativa aparenta sugerir a constituigo de um foro arbitral para uma matéria tida como reclamando competéncias técnicas especializadas”, E & muito por motivos desta indole que o legislador consagra ainda hoje solugdes jurisdicionais bascadas na submissie de litigios a arbitragem necessaria. E 0 caso das arbitragens desportivas, dos litigios resultantes da interpretacdo ¢ execugio dos contratos de venda de energia elétrica em alta tensfo* e, sobretudo, da fixagao do valor da indemnizagao nas expropriagées litigiosa’*, por um lado, e dos litigios de propricdade industrial envolvendo medicaments genéricos, por outro, que implicam uma anélise de temas de alta complexidade técnica nao Juridica, que, num processo judicial, ficariam muito provavelmente a cargo de peritos. Por fim, ensinam RU! € MARTIM DE ALBUQUERQUE que © caminho para a estipulagdo de um monopélio estadual da punig20 se fez, num determinado estédio do progresso legislativo, com o estabelecimento de tum regime de arbitragem (que, tendo comegado por assumir natureza facultativa, acaba por revestir um cariter obrigatério)?, Aproximamo-nos aqui do cenario hoje previsto para a resolugao dos litigios que surgem no ® Abstendo-es, por or, de discutir se este regime corresponde, verdadeiramente, um caso de arbitragem necesséria (como questionimos na nota 12 supra), nio obstante ‘© vucdbulo empregue no argo 15. Iya Let n° 25/90, de 26 de Julho ® Produzido, de acordo com a informagao disponivel na pgina oficial do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, etre 1249 ¢ 1393, htip/digitary.dgarg gov pt ‘etails?id4223265 (consultado a & de sctembro de 2014). % Previsto, como se disse, no Liva dat Leis e Pasturas (Lei Cl) ~ 4A Arbtragem na Histri..», eit, nota 42 (pig. 20), ® 0 artigo 49° do Decreto-Lei n. 43335 previa inclusivamente, na sua versto riginiria, que cas dividas ou dvergéncias gue se levantarem entre o consumidor & 0 distribuidor sobre a execugdo ou a inerpretagdo das dsposigdes destas condigdes _grais, do caderno de encargos da concessdo ou da aplice aprovada serdo decididas ‘Por uma comissdo de trésperitas-drbtres[...b Aleta da lei € aqui novamente reveladora: «as drbitros sao escolhidos de entre (9% perits da lista oficial...) (artigo 45.,n. 2, do Cédigo das Expropriagtes). 2% Rui de Albuquerque e Martim de Albuquerque, Historia do Direito Portugués, Lisboa, Faculdade de Direito de Lisboa, 1983, vol. 1, tomo Il, pags. 218-219, ide Nogueira, A ARBITRAGEM NECESSARIA ~ NATUREZA E REGIME 9 contexto de relagSes laborais. As razBes para a preconizagio da solugio hoje existente podem ser encontradas no Livro Branco das Relagdes Laborais. Entre outros motivos, af se identificou que a resoluggo dos conflitos de trabalho se reconduz a uma atividade quase exclusivamente contencios@¢ ltigiosa, no estando o Estado apto aatingir a paz social que se perdeu na execugdo de contratos desta natureza, por via dos tribunals 5, Servem estas breves notas histéricas para demonstrar que a arbi- tragem necessiria teve e manteve reservado um lugar que the é proprio no seio da definiga0 dos contomos do poder judicial E evidente e indiscutivel que, em geral, o principal impulso para recurso ao insttuto da arbitragem no é dado pela fei mas antes pelas partes, a0 manifestarem contratualmente a vontade de se submeterem a este meio jurisdicional na resolugdo dos litigios que as opdem ou podem vir a opor. Mas nfo se pode pretender fazer tabu rasa de todos os séculos de existéncia da arbitragem necesséria, numa busca pela total autonomi- zagio da arbitragem voluntiria”” ~ que, de resto, em nada é afetada pela subsungo daquela modalidade ao conceito geral de arbitragem. B, Enunciaglo do problema: a vontade das partes 6 elemento definidor ou ‘mera fonte da arbitrage? 6. Diz-nos 0 senso comum ~ niio juridico ~ que se designa por arbi- tragem a decisio de um diferendo por um tribunal escolhido pelas partes em eonfronto, A arbitragem», tal como definida no diciondrio, corresponde aliés (1) jurisdigao exercida por juizes nao profissionais; (2) ao julgamento por drbitro ou arbitros; (3) a intervengdo do tribunal arbitral; ou (4) a 2» Disponivel em hp:/www gep.msess.gov pledcoesloutaslive_branco digital pa, consullado a8 de setembro de 2014 ‘Como parece pretender MANUF. PEREIRA BARROCAS, quando afrma que wdefender se que a arbitragem necessaria constitu verdadeira arbitragem no & mats do que mputar esta uma signficativa parte do que ela representa e conguistow ao longo de Soules, pois significa, em resumo, zornd-a confundvel com ajustica pba admins trada por julzes ow drbtros investidos por lei e ndo a wma justica privada, toda ea, desde sua origem até i sontenca final, haseada na vontade das partes e na liber dade dd cidadania, para que oligo sea resolvido desse modo e nao de outron ~ Barocas, Manual. i, pig. 92 0 DIREITO DA ARBITRAGEM ‘mediagio imparcial para resolver um litigio2* e tem a sua origem no termo homénimo francés «arbitrage». Para os gauleses, «arbitrage», na perspetiva do poder exercido e como primeira definicao, & a action arbiter e, no prisma adjetivo, a procédure de réglement d'un litige ar linermédiaire d'un ou de plusieurs arbitres; décision rendue®. © Direito, como fenémeno humano e social que &, nao se pode desligar da sua esséncia e deve ser analisado a luz dessa natureza. N3o deixa por isso de ser curioso que o elemento tido pela doutrina como 0 ‘mais caracteristico do instituto nao conste da definigao que a sociedade acolhew na sua linguagem para o termo arbitragem, que nao faz qualquer referéneia & sua fontc, contratual ou outta. Fora do contexto juridico, a crigem da arbitragem no ¢, assim, elemento integrante da definigdo do conceit. Seri que 0 é, verdadeiramente, dentro do mundo do Direito? 7. As definigdes de arbitragem propostas no scio da doutrina portuguesa que mais detalhadamente se dedicam a este tema ndo tendem a divergir muito entre si e em quase todas se encontra a tio aclamada “vontade das partes” como seu requisito definidor. MANurL Pereina Barocas defende que « arbitragem constitu! um modo de resolucao de litigios entre duas ou mais partes, efetuada por uma ou mais pessoas que detém poderes para esse efeito reconhecidos or lei, mas atribuidos por convengdo das partesy>'; MARIANA FRANCA Govveta, por seu tumo, afitma que «A arbitragem pode ser definida ‘como um modo de resolucao jurisdicional de conflitos em que a decisao, com base na vontade das partes, é confiada a terceiros»*: Parece-nos da leitura destas definigdes que, pelo menos em Portugal, ‘© espago conquistado pela arbitragem voluntiria no seio das relagdes De acordo com o dicionario ds Lingua Portuguesa da Porto Editora¢ entre outas entradas signifieativas, nfo relevantes no contexto do presente artigo. Disponivel em -npwwwanfopedia ppesquise-globa/arbitragem (consultado a8 de setembro de 2014) 2 Definio parcial constante do dicionério da Lingua Francesa da Larousse, dispo- nivel em hip://www Larousse fedictionnaires/raneaislarbitrage/4949"q=arbitrgen4927 {consultado a 8 de setembro de 2014), % José de Olivera Ascensto, O Diretio, Coimbra, Alimedina, 2005, piginas 23 © seguimes, 91 Barroeas, Manual. et, pig. 33. ® Mariana Franga Gouveia, Curso de Resoluydo Alternativ de Liigis, Coimbra, Almedina, 2014, pig. 119. A ARBITRAGEM NECESSARIA - NATUREZA E REGIME 41 (sobretudo) juridico-ccondmicas, apesar de inteiramente merecido, abriu tum ensejo & sua excessiva autonomizacao teérica, nao s6 por referéncia 20 poder judicial como também aos demais institutos jurisdicionais ‘A questio € delicada endo pode ser resolvida, sem mais, com a mera incluso daquilo que representa uma caracteristica corrente da arbitragem no rol dos seus elementos essenciais. Desempenhando funges jurisdi- mais, a arbitragem deve ser cuidadosamente compreendida, integrada ‘que esti no elenco dos érgios de soberania’. Importa, assim, comegar por recordar as implicagdes que advém do artigo 2° da Constituigao da Repiblica Portuguesa, que consagra um Estado de direito democritico, assente no principio da divisdo de pode- res, Uma dessas implicagdes, e a principal no contexto da presente andlise, € da expressa rejei¢do constitucional da “justiga privada”, com ‘a consequente e necessiria atribuigao da realizaga0 do Direito, posto 30 servigo do dirimir de conflitos, a érgdos imparciais que detém 0 mono- pélio da jurisdigio™. # por isso que, como cautelosamente escreve LEBRE DE FREITAS®, © diteito objetivo “acaba sempre por definir os limites da autonomia da vontade”, resultando por conseguinte da lei “a origem imediata dos efeitos juridicos estipulados pelas partes”. E na intersegao destas duas realidades ~ Direito, por um lado, ¢ auto- nomia da vontade, por outro ~ que se divisam as diversas teorias sobre a natureza da arbitragem. Onde nos situarmos? ° Por forga do artigo 209, n° 2, com reporte 20 artigo 110,11, da Constituigéo. > Estado de Diteto,escrove JORGE MIRANDA, “0 Estado em que, para garantia dos direitos dos cidadios, se estabelece juridicamente a divisto do poder [..J” Gorge Miranda, Manual de Direito Consttucional ~ Preliminares, O Estado ¢ os Sistemas CConstincionais, Coimbra, Coimbra Editors, 2003, tomo I, pig. 87). °S J.J. Gomes Canotilno,Direito Consttucional e Teoria da Constituigd, Coimbra, Almedina, 2003, pina 668, °% Evitando, por conseguinle, ter de lomar qualquer posigo quanto a articulagdo do Aireito objetivo com a reaidade social que Ine preeiste José Lebre de Freitas, «Algumas Implicagées da Natureza da Convengio de ‘Asbiuagem, em Estudos om Homenagem a Profssora Dutra Isabel de Magathaes Collago, Coimbra, Almedina, 2002, vol Il, pig. 626, nota 3. 2 DIREITO DA ARBITRAGEM C. Da (verdadeira) teoria mi 8, Sao fundamentalmente trés as teorias existentes sobre a natureza Juridica da arbitragem: duas em polos opostos (a contratualista® e a jurisdicionalista™) © uma intermédia (a mista®). ‘Sem nos demorarmos em detalhe em qualquer das duas primciras, diremos apenas, na esteira do enquadramento constitucional que acima levemente abordémos, que a tese contratualista nao pode prevalecer. Como escrevem Gomes CaNoTILHO/VITAL MOREIRA a propésito da admissibilidade da criagdo de tribunais arbitrais, «ndo estdé em causa a privatizacao da funcao jurisdicional, como sugerem alguns, com base numa discutivel natureza jusfundamental da arbitragem, mas sim a cooperacio do Estado com os particulares no dmbito do exercicio da fungéo jurisdicional da arbitragem*. Esta cooperagao do Estado com 0s particulares manifesta-se na eriago, pela lei, de tribunais arbitrais. Como é, de resto, por todos reconhecido ~ inclusivamente pelos apoiantes da teoria contratualista -, a exequibilidade da sentenga arbi- tral depende, sempre, da intervengao dos drgaos jurisdicionais estatais, detentores do jus imperi® Refere RAUL VENTURA, num estudo profundo sobre a convengio de arbitragem que levou a cabo em 1986, que a submissao de litigios a arbitragem necesséria tem necessariamente de se fazer por meio de especial. Com efeito, a lei tem de ser especial, visto que a lei geral sobre a jurisdicdo dos tribunais estaduais esté, por sua vez, derrogada pela lei permissiva da arbitragem voluntariay®. Essa derrogagio da lei Barocas, Manual... it, pig. 45, ¢ Franga Gouveia, Curso de Resolucdo... cit, % Tbidem, pigs. 44-45 o 119-120, respetivaments, © Thidem: pis. 46-47 e 120, espetivameate * 3.5. Gomes Canotilho Vital Moreira, Consinudo da Repiblica Pormguesa Anotada, Coimbra, Coimbra Editor, 2010, vol Il, pig. $07 "© Jonae Miran, no elenco das caracteristicas gras do Estado, discute natura da coercbidade,concluindo que esta ¢ uma carscteistica da organizagio politica esata (Miranda, Manual... cit, pig. 47). ati Ventura, «Convengao de Arbitraem, em Revista cla Ordem des Advowadas, Lisboa, 1986 (Ano 462), pig. 318, Também Lene: Dr FREITAS,assumindo a su — passe © oximoro — imparcial posiglo, comega por reconheccr a evident naturezajurisdicional da arbitragem, afrmando depois que «o pover de decisdo do tribunal arbitral deriva dda vontade das partes e por isso se cantém dentro dos limites em que esta pode aetuar, segundo 0 direito consituido» (Lebre de Freitas, «Algumas Implieagdes...», ei, pig 626 e nota 26), /\ ARBITRAGEM NECESSARIA - NATURIZA E REGIME 8 geral corresponde aquilo a que, mais a frente nessa mesma publicagio, designa por «beneplacito do Estado» em permitir que os interessados criem um tribunal para dirimir certos ou eventuais ltigios. A eriagio desta categoria de tribunais materializa-se depois na concreta instalagto dos tribunais que resolverio 0s ltigios que as partes Ihes hajam subme- tido, por a lei assim thes permitir. E pois indiscutivel que a arbitragem nao pode ter natureza contratual Mas se é verdade que a arbitragem apenas existe porque a lei assim o consagrou'S ~ mormente por forga do artigo 209°, n.” 2, da Constituigao dda Repiilica Portuguesa -, nao ¢ ja verdade que & diretamente dela que 10s arbitros recebem o poder de julgar. E é na compreensao deste concreto ;ponto do investimento dos érbitros no poder jurisdicional que, em summa, residem as diferengas das diversas teses para a resoluedo das quais s¢ impoe uma tese de compromisso. E para chegarmos a uma soluglo que se aproxime daquilo que corres- ponde a verdadeira natureza do instituto, a ténica compromi ser encontrada naquele atributo que — assim o eremos ~ corresponde & propria caracterizagio da arbitragem: a nomeagio dos arbitros como ‘manifestago da autonomia da vontade das partes litigantes. 9. Em 1974, o processualista Henk! MOvULSKY dedicou-se a estudar © Instituto da arbitragem e abriu @ andlise que entio levou a cabo por refletir sobre a sua natureza*, Segundo expde nessa obra, # questo releva na medida em que tem implicagdes no ambito do direito interno, entre outras, nas caracteristicas € qualidades exigiveis ao arbitro © na possibilidade de execugao da decisao arbitral¥”. Falamos do pai da tese ‘mista, que @ mais relevante doutrina arbitral portuguesa afima perfilhar®. Para o Autor francés, o instituto da arbitragem reveste-se de trés caracteristicas: (i) corresponde a uma justiga™, (ii) justiga essa que é 4 Ventura, «Convengio de Arbitrage...» cit, pagina 380, 4 Barrocas, Manual... cit, pig. 4, 4 Hensi Motulsky, crits ~ Brudes er noes su arbitrage, Pats, Dalloz, 2010, © A querela da exequibildade da decisio arbitral esti hoje, ssi 0 eremas,pratica- nteultrapastada isto independentemente da definigo de arbitrazem que se sffague. ‘ Barrocas, Manual. it, pig. 47, Franga Gouveia, Curso de Resolugdo... it, pig. 120, 8 Monulsky, Bort. ot, pgs. 6-13, DIREITO DA ARBETRAGEM privada™, (ii) cuja origem ¢ normalmente convencional, Dissequemos as duas tltimas caracteristicas, que a primeira ndo merece controvérsia ‘A qualidade privada da justiga arbitral, tal como apresentada por HENRI Morutsky, ndo equivale a afirmar-se que sem convengao de arbitragem ndo existe verdadeira arbitragem™. O cardcter privado da arbitragem € destacado na perspetiva da qualidade dos arbitros, enquanto érgio privado. Nas palavras do processualista, «les arbitres sont des particu- fiers, auxquels Uordre juridique permet d'exercer une fonction qui est en principe réservée él Etat. ‘Nao se nega, quanto terceira caracteristica identficada por MoTuLsky, que a arbitragem & (para usar a expressto empregue pelo Autor) nor. ‘malmente convencional ¢ que normaimente, na maioria dos casos, ela ‘encontra a sua fonte na vontade das partes, manifestada por uma qualquer convengao entre estas. Mas ¢ igualmente indiscutivel que, ao limitar um requisito de um conceito por referéncia & «generalidade» da frequéncia da verificagdo dessa caracteristica, subtrai-se esse atributo, a final, do elenco dos elementos essenciais do conccito Posto isto, a origem normalmente convencional da arbitragem no deve, no entanto e obviamente, ser menosprezada. Ela reveste-se de extrema utilidade como criterio interpretativo, aproximando ou afastando © instituto do regime processual jurisdicional estadual 10. Aqui chegados, antecipemos que a verdadeira teoria mista da natureza juridica da arbitragem (mai se quiser), assenta em dois requisitos apenas: ela corresponde a um instituto jurisdicional de io de litigios, submetido a um érgio privado escolhide pclas partes. © conceito apresentado, aproximando-se da definig2o proposta por Hex MorULsky, ¢ ademais 0 tinico que abrange a arbitragem neces- sia. Reconduz-se assim a figura sua primitiva e mais pura definigio, «em contraciclo com os desenvolvimentos doutrinarios mais recentes que, de certa forma, tém renegado as suas origens historieas em prol de uma © Thidem, pags. 13-16. 51 Ibidem, pags. 16-20. ® Ao conirrio do que escreve MANUEL PEREIRA BARROCAS (Barrocas, Manual cit, pig. 40) ' Motulshy, Berit. ct, pig, 14, [A ARBITRAGEM NECESSARIA - NATUREZA E REGIME 45 concetualizagio teérica que, no que & sua nogao diz respeito, se acaba por revelar supérflua Da detinigdo proposta por MANUEL PEREIRA BARKOCAS* releva apenas a sua fumed jurisdicional de resolu de liigios os ttulares dessa funedo, ‘que so privados escolhidos pelas partes. O critério do reconhecimento legal, porventura despiciendo em face do enquadramento constitucional ‘que acima se ofereceu, jf havia sido abandonado por MARIANA FRANCA Govveia’s. Da definigao oferecida por esta Autora discordamos apenas do critério da natureza convencional, expressa na afirmagao de que, «a decisiio, com base na vontade das partes, é confiada a terceirosn. Explicitando: 0 que depende da vontade das partes néo é, em nosso entender, a decisao de cometer a resolugdo do litigio a terceiros® ou a 'uma ou mais pessoas concretas, com poderes para esse efeito, atribuidos or convencio das partes*’; 0 que a lei permite as partes que escolham € quem decidira o seu litigio. 5 Transerita no ponto 16 supra, 5 Ch. defnigdo apresentada no ponte 7 supra. 5 oped pelo termo wterceiros», na definigdo avangada por MARIANA FRANCA Gouveia, nto nos parece especialmente feliz. Na verdad, terceios so todos e quaisquer ‘agentes jurisdcionais em relagdo &s partes em oposigho 0 magistado estatl include Em iltima instancia, ¢ perant a probigio da «justia plas prprias miso, a subrmissto 4a resolugdo do litigio existete ene as partes em confronto a um ou mals trceieos (cstatais ou arbitrais)¢o resultado — pritco, de resto — da veriticayo da impossibilidade 4d as partes abterem, amigavelmentc, uma solupdo para 0 diferend que a opie ®° Tendemos a concordar um pouco mals com a proposia de MANUEL PEREIRA [Barnocas, que defende que a resolueio do litigio¢ efetuada por “ume ou mais pessoas ‘que detém: pderes ara exe efeto reconlecldos por lel, mas artbuldos por convencao day partes”. Mas também esta defnigdo se afigura incoreta¢ insufciente, Com efit, ro € a existénci de uma convengao das partes que arb, concretament, poderes is) pessoas) que iro resolver liigo em causa. Aids, as convengesarbitras nem podem, las propria, aribuir tas poderes, na medida em que ninguém pode ser obrigado& atuat ‘como drbito ~ menos ainda por imposigo privada. E ve)a-so como esta impossibilidade se manteveintocada 20 longo de toda a histria da arbitragem (neste sentido, Nogueira, “A Arbitragem na Histéria..», cit). Dai que aquilo que as partes estipulam, e sobre ‘que tém efetva disponibilidade, seis apenas designsdo ou o modo de escolha dos frbitros. Os poderes de julgamentos20investides nos ibitos pela lei eno peas pats, Apresentando uma critica mais pitica do que tbrica do problema em anotagHo a0 artigo 10°, n* 1, da LAY. que parece contradizer o que apontimos definigdo de MANUEL. PEREIRA BARROCAS, veja-se a Let da Arbitrage Volunséria ~ Comentada, coord. Maro Esteves 4e Oliveira, Coimbra, Almedina, 2014, pigs. 142-143. Assumindo a impossbilidade da ‘nomeagio direta dos irbitros plas partes, vide Amindo Ribeiro Mendes fe al, Lei da 46 DIREITO D4 ARBITRAGEN Por outras palavras, 0 que falha, em nossa opinigo, nas posigdes cexpressas pelos Autores citados, é a recondugio da vontade das partes 4 submissao do litigio a este instituto. Do nosso ponto de vista, 0 que caracteriza a arbitragem é a escotha, pelas partes, do privado que ird atuar ‘como decisor do litigio e a quem a lei confere a funga0 jurisdicional que, originalmente, nao Ihe cabe™. 11. No seio do poder judicial, a arbitragem separa-se do poder jurisdi- cional estadual, na medida em que, para o exercicio deste, o Estado coloca 4 disposigdo dos cidadios, em cumprimento de um dever constitucional, uum conjunto de magistrados a quem é confiada a fungio de julgar. Os cidadios que pretendam aceder & justiga estadual conformam-se com © resultado da distribuigdo do seu processo a um qualquer magistrado, de entre aqueles cuja selegdo o Estado ja havia previamente efetuado. Nesta medida, a arbitragem representa uma total alteragio daqucle que € 0 paradigma do escopo do poder judicial concentrada no monopolio estatal, Esse paradigma muda radicalmente na arbitrage: a decisto dda causa no ¢ assim cometida nevessariamente a um juiz.profissional nomeado pelo Estado, mas antes a um privado escolhido pelas partes; essa nomeagao pelo Estado, que € feita previamente a0 deflagrar do litigio, passa agora a ser uma escolha posterior a esse momento; o juiz estatal, estatutariamente dotado de isengdo e imparcialidade, a quem 0 demandante tem obrigatoriamente de se dirigir, é aqui substituido por ‘uma ou mais pessoas que as partes escolhem e a quem atribuem poderes de resolver o diferendo que as opie. © que & pois, verdadeiramente caracteristico do regime arbitral, aquilo em que ele se evidencia fundamentalmente, é a circunstancia de ser um sistema junsdicional em que o tribunal é escolhido pelas partes, (ou seja, em que o litigio ¢ remetido para a decisio de um tribunal pri- vvado, munido de poderes jurisdicionais que the so conferidos pela lei Aeescolha dos érbitros ¢ assim, porventura, o momento mais emblemiatico «de um processo arbitral e & considerado como uma prerrogativa essencial das partes no litigio que se visa dirimir. Arbitragem Anotada, Coimbra, Almedina, 2012, pig. 27, ¢ Manuel Pereira Barocas, Lei de Arbitragem Comentaca, Coimbra, Almedina, 2013, pi. 60 2 Na esteira do afirmado por Hexti MOTULSKY, essa fungi jursdicional que & lei permite que os privados exergam apenas xe corporaliars com a sua escotha da sua nomeagio como bio, por uma pat, A ARBITRAGEM NECESSARIA — NATUREZA E REGIME ” 12, Posto tudo isto, € face a tese que propomos, como entender, no dominio da arbitragem necesséria, as varias referéncias & convengio de arbitragem que vém sido desenvolvidas ~ na Iei, na jurisprudéneia e na doutrina? ‘Como interpretar o regime arbitral necessirio na sua relagao com o instrumento tipo por central na arbitragem voluntaria... e de que aquele nao dispde? |. A convencio de arbitragem aplicada 4 arbitragem necessiria ‘A. Enquadramento 13. A titulo de nota prévia, esclarega-se 0 leitor que no se enveredara aqui pela discussao ~ itil e interessante, nfo obstante ~ da solugo a dar ‘20 enquadramento juridico da arbitragem necessiria, Nomeadamente, a questiio de saber se a arbitragem necessaria deve ser consagrado um regime proprio e independente do regime da arbitragem voluntiria, ou se deve ser regulada a arbitragem em geral, com especificagdes para cada uma das modalidades, ou se, por fim, o cendrio legislativo se deve ‘manter inalterado, assistindo-se a um siléncio total da LAV quanto ‘modalidade necesséria da arbitragem, procedendo-se A sua aplicagao de forma subsididria ‘As consideragdes seguintes reportam-se portanto ao quadro legislativo vigente, aprovado pela Lei n." 63/2011, de 14 de dezembro, ¢ comple- ‘mentado, quanto a arbitragem necesséria, pelos artigos 1082.° a 1085.° do Cédigo de Processo Civil. Como forma de testar as solugdes que se avangario, far-se-Go alguns comentarios & aplicagao subsidiria da LAV aos processes arbitiais regulados pela Lei n° 62/2011°. 14, Como dissemos jé, 0 estudo doutrindrio do regime da arbitragem tem-se centrado, sobretudo, na analise da arbitragem voluntéria, reputada como a tinica modalidade congregadora de todos os elementos essenciais da verdadeira arbitragem, cuja intervengio deve assentar na convengi0 das partes, Ja escrevemos e procurdmos demonstrar, ainda que de forma sucinta, que assim nao deve ser entendido este institut. ° Também nao seré aqui analisado o singular regime previsto no artigo 61." da Lei {bo Tribunal Arbitral do Desporto, que consagra a aplicasio subsidiria do Cédigo de Processo nos Tribunais Administraivos nos processos de jursdiglo arbitral necessiia, ry DIREITO DA ARBETRAGEN A definigao de arbitragem que propomos e acolhemos nao afasta a constatagio, fitica alids, que ¢ a modalidade voluntéria a que mais peso tem no contexto arbitral geral. Nestes termos, ndo surpreende que a convengio de arbitragem, manifestagao de vontade das partes pelo qual estas se vinculam a submeter a deciso de um tribunal arbitral os litigios existentes ou futuros®, ocupe um lugar absolutamente central no estudo dda arbitragem, Essa centralidade conquistou-a, também e como nao podia deixar de ser, na regulagao do seu regime por via da Lei da Arbitragem Voluntéria, 15. Além do primeiro capitulo da LAV, que ¢ inteiramente dedicado 4 convengio de arbitragem, varios s2o os artigos daquele diploma que, dispersos, Ihe fazer referéncia, Na maioria dos casos, os preceitos limitam- -Se a prever um regime geral, estipulando que as partes podem dispor diferentemente na convengao de arbitragem'!. Noutros, a referéncia onvengao funciona como elemento delimitador dos contornos do litigio® Trata-se, a arbitragem necessiria, de um regime arbitral sem conven- ‘rio instituidora. Tal nfo significa, porém, que as questdes de natureza processual que se suscitam no seu dmbito néo devam ser solucionadas a luz do contetido do ato que as origina. Perante © quadro legislativo atual © nunca perdendo de vista a ver- dadeira natureza de arbitragem do instituto arbitral necessario, importa compreender como seré possivel enquadrar as diversas remissdes para a convengio de arbitragem feitas pela LAV, no ambito da problemitica das arbitragens necessarias. E 0 que procuraremos fazer de seguida, reportando-nos a algumas sinuagBes e questdes conctetas que se tem deparado fs partes e a08 arbi tros neste tipo de arbitragens, © Ventura, «Convenydo de Arbitragem...», cit, pigs. 292-293; Franga Gouveia, (Curso de Resoiugdo., ct, pig. 125; Barroeas, Manual. ct, pgs. 143-144 81 B 0 caso dos artigos 10°, n° 1, 11°, n° 4, 122, 1, 36% 27, 3 46°, m2" Le 10, da LAY. © Referimo-nos aqui aos artigos 13, 10, todos da LAV. 1,33, m2 4, © 46°, m9 3, iniso di, € A ARBITRAGEM NECESSARIA - NATUREZA E REGIME 9 B. Os satéites da convengio de arbitragem L.A convenciio de arbitragem eo Ambito dos litigios a ela sujeitos® 16. De acordo com o artigo 1., n. 1, da LAV, «qualquer litigio res- peitante a interesses de natureza patrimonial pode ser cometido pelas artes, mediante convencao de arbitragem, a decisdo dos arbitros». Define-se assim, na convengio de arbitragem, o Ambito do(s) litigio(s) que as partes poderdo submeter a decisio arbitral. Dispde por sua vez 0 artigo 33.*,n.°4, da LAV que «o demandado pode deducir reconvencao, desde que 0 seu objecto seja abrangido pela convencao de arbitragem. Escolhemos este preceito por um motivo muito simples. Tratam estes dois preceitos de uma matéria sobre a qual, nas arbitragens necessi- rias, as partes dificilmente se terdo pronuneiado de forma prévia. Nao se vislumbram muito provaveis os cendrios em que as partes de uma arbitragem necesséria teriam acordado, fosse por que forma fosse, no que se deve entender por «mbito do(s) litigio(s)», com vista a aferir da admissibilidade da agao intentada ou da reconvengio deduzida. E 0 mesmo se diga quanto ao artigo 46.°, n° 3, alinea a), inciso iti), da LAV. Aqui se estabelece, como um dos casos em que a anulagio da decisio arbitral pode ser levada a cabo pelo competente tribunal esta- dual, a proniincia da decisio arbitral sobre um litigio nao abrangido pela convengio de arbitragem. E tratam-se, no entanto, de disposigdes que se podem revelar de uma importincia extrema na determinagao da competéncia do tribunal arbitral, na garantia do contraditério assegurado ao demandado, bem como na determinacao dos limites da anulagdo/recurso da decisio final proferida ue haja tomado uma posigao sobre esta questo. F assim crucial encontrar © sucedaineo mais préximo do instrumento da convengao de arbitragem no contexto das arbitragens necessirias, para efeitos de determinagiio do Ambito do(s) litigio(S). Esse sucedéneo tem de ser encontrado, em regra, no diploma‘ que institui a arbitragem como meio necessirio da resolucdio de. um deter: © Nao se deve confunro mbit dos liigos com o objeto do litgio, que €definido pelo demandante no pedo que submete ao demandado de submissio do itigio a arbi- tragem ~ neste sentido, vide Lebre de Freitas, «Algumas Implicagdes..., cit, pg. 631 SA questo da admissibilidade constitucional da eriago de regimes de arbitragem necessira est hoje praticament ultrapassada, tendo o Tribunal Constitaciona sedimen- {ado as bases para a sua admissiblidade mediante a consagragao de alguns requisitos 50 DIREITO DA ARBITRAGEN minado tipo de ttigios. Com efeito, é neste diploma que se define Ambito dos litigios cuja solugao devera ser obrigatoriamente confiada a um tribunal arbitral. Mas é também neste diploma que se podem est belecer 08 contomos regulamentares do proceso e cuja previsio fugira 4 posterior disponibilidade das partes, 17. Um dos varios problemas interpretativos que a Lei n° 62/2011 tem colocado reporta-se, em larga medida, ao problema que acabimos dle expor: existe uma limitagZo do Ambito objetivo possivel de cada ago arbitral? Esta questo tem surgido por diversas vezes e deriva da conjugagao do artigo 2.° com o artigo 3°, mimero 1, da Lei n.” 62/2011 Estabelece o artigo 2° deste diploma que ficam sujeitos a arbitragem necessiria,insttucionalizada ou ndo, os Ttigios emergentes da invocagio de direitos de propriedade industrial, incluindo os procedimentos cautelares, relacionados com medicamentos de referéncia e medicamentos genéricos. (0 seu artigo 3°, n° 1, determina depois que o interessado que pretenda invocar o seu direito de propriedade industrial nos termos do artigo 2." deve fazé-to junto do tribunal arbitral institucionalizado ou efetuar pedido de submissdo do ltigio a arbitragem nio institucionalizada no prazo de 30 dias a contar da publicitagio por parte do INFARMED ~ Autoridade Nacional do Medicamento ¢ Produtos de Saiie, I.P. («INFARMED») do pedido de autorizagao de introdugdo no mercado («AIM») relativo ao genérico em causa na sua pagina eletronica. Ou seja, enquanto o artigo 2.° prevé a arbitrabilidade necesséria de todas as questées que se suscitem relativamente a medicamentos gené- ricos por alegada violacao de direitos de propriedade industrial, o artigo 3°, n 1, estabelece que a agao arbitral deve ser desencadeada no prazo de 30 dias a contar da data em que for publicitado no INFARMED o relevante pedido de AIM. “Muitas empresas de genéricos, partes passivas nas acgdcs arbitrais, tém defendido que da correta leitura daquelas disposigdes resulta a ideia de que cada agao arbitral apenas pode dizer respeito aos medicamentos abrangidos pelas AIM cujo pedido desencadeou a agio arbitral, porque _garantsticos dos direitos fundamentas dos cidadios para a sua constitucionalidade se ‘manter salvaguardada, Um desses requisites, anunciado por Soria Ruatiko MENDES, (© Nao seabordar aqui (fe questa de saber come resolver a questi formals ‘num cendrio em que haja acordo das partes quanto a uma ou mais regras do proceso, ‘mas que nfo mereceram, no enianto, a concordincia do tribunal abit °W Esclaecendo que alguma maleabilidade deve ser, em cancreto,praticada pelo ‘Tribunal Abita, veje-se a Lei da Arbitragem Volunaria ~ Comentada, coord, Misio Esteves de Oliveira, ct, pigs. 381-383, Para uma definigdo deste conceto,remete-se para Lei da Arblmragem Voluntdria ‘Comentadia, coors. Mirio Esteves de Oliveira, cit, pags. 379-380 Barocas, Manual. it, pigs. 292-293 st DIREITO DA ARBITRAGE lil, Convengio de arbitragem e direitos fundamentais 21. Problema mais intrincado, por fim, decorre da fixagao de algumas regras processuais, pelo diploma que consagre a solugdo de um litigio a » 0 Tribunal Constitucional ja tomou posigao sobre a admissibilidade da instituigao de regimes arbitrais necessérios que apenas preveem a Acénio proferido no ambito do Processon” 402/13 2YRLSB SI, ado publicado, A ARBITRAGEM NECESSARIA NATUREZA € REGIME 85 possibilidade de recurso em caso excecionais”, Mas esse no € aqui o caso. O problema que aqui se poe € menos impressivo, na medida em que 0 artigo 3.*, n° 7, da Lei n.° 62/2011 garante — aparentemente, pelo ‘menos ~ uma instincia geral de recurso para os tribunais estaduais. ‘A questo pode ser vista sob dois prismas: um puramente interpre- tativo € outro teérico, De um ponto de vista interpretative, a norma em causa nio tem nenhuma indicagao de pretender ser limitativa do mimero de instancias de recurso disponivel as partes, parecendo antes autorizar a interposi- «0 de recurso da decisdo arbitral e nao a proibigo de se recorrer do acérdio da Relagio que o decidir Por outro lado, ¢ numa perspetiva teorica, parece dificil aceitar-se que, na auséncia de uma concreta indi- cagdo legislativa da intenedo de limitar a possibilidade de impugnagao da decisio arbitral a apenas uma instancia de recurso, as partes de uma arbitragem necessria vejam essa via limitada mesmo que acordassem de forma diferente Quanto a este ponto, sugere-se uma terceira via de interpretago que vai beber & Lei da Arbitragem Voluntiria o principio da liberdade das partes em estabelecerem a recoribilidade das decisées dos drbitros sem quaisquer limitagoes. E assim supde-se que a solugao correcta seria a de que a garantia de recurso para a Relario (que deriva da necessidade de a matéria em ‘causa ser escrutinada por um érgio jurisdicional estadual) nfo coincida com uma restrigao imperativa ao nimero de graus de jurisdigao que nao existe na arbitragem voluntiria Entendemos, assim, que uma visio unitéria do conceito da arbitra- ‘gem impde que as dividas interpretativas sobre as normas que regulam a arbitragem necesséria devem ser resolvidas, tanto quanto possivel, pelos principios enformadores da arbitragem voluntiria ~nomeadamente aqueles que privilegiem a autonomia da vontade das partes. ™ Aedes no" 23072013 © 781/2013, ® Em contraposipo, veja-se por exemplo artigo & a Lei do Tribunal Arbitea do Desporto, aprovada pela Lei.” 74/2013, de 6 de setombro,

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