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O LIVRO NEGRO DA REVOLUCAO FRANCESA Fr. RENAUD ESCANDE, O.P. (DIRECCAO) O LIVRO NEGRO DA REVOLUCAO FRANCESA Minka Snpalpével Biblioteca OnTED® PREFACIO Legitimos e glotiosos, festivos e fraternais, os amplos frutos de uma «razon aguardada durante séculos: é assim que sio habitualmente apresentados os acontecimentos do que constituiu também um dos periodos mais sangrentos da histéria, inaugurando tragicamente uma sucessio de revolugdes ¢ de conflitos que marcaram a Europa até meados do século XX. ‘Toda e qualquer nagio assenta sobre uma mitologia que a fundamenta e unifica, proporcionando-Ihe as chaves de interpretagio da sua propria histéria € do seu projecto, permitindo-lhe compreender-se ¢ identificar-se face a outea € fornecendo-Ihe, finalmente, uma lingua comum. A nagio francesa tem os seus mitos fundacionais. Um dos mais notaveis ‘em sombra de diivida, a Revolugio Francesa. A sua cronologia, os seus actotes, 05 seus acontecimentos, os seus turiferirios fazem parte desta grandiosa gesta, épica, majestosa, fazendo-a crer que nasceu de qualquer coisa em algum lugar. E sempre do interesse de uma nacdo fazer brilhar os seus ‘mitos fundacionais ¢ & também, do interesse daqueles que conquistaram 0 poder mascarar a violéncia ¢ 0 arbitritio sobre os quais assentaram 0 seu dominio, Mas a hist6ria nao se escreve como a mitologia e a sua exigéncia de verdade no deveria deixar-se embaracat pelos interesses ¢ intuitos utilitaristas. A ideia de um Livro Negro da Revolugéo Francesa nasceu ha dois anos, por ocasiio de um encontro entre o editor € um dos autores deste trabalho. O seu ptojecto consistiu em estabelecer num acto nico e pela pena dos melhores especialistas simultaneamente uma «stimula e um dbrevidtion: stimula histérica sobre «os bastidores da histéria e da historiografia revolucioniriay, valendo- se da anilise de alguns episédios chave — a0 mesmo tempo fundadores destruidores; breviario filos6fico € politico reunindo os perfis e 0 modo de pensar daqueles que se opuscram 4 Revolusio e cujas perspectivas, longe de serem atcaicas, iluminam os tempos totalititios e democriticos de uma forma tio inesperada quanto pertinente. Uma antologia, enfim, que atesta a violéncia cega da ideologia revolucionitia. Fa, Renaup Escanbr, 0.?, Editor PRIMEIRA PARTE OS FACTOS 1 A SECULARIZACAO DOS BENS DA IGREJA: SIGNIFICADO POLITICO E CONSEQUENCIAS ECONOMICAS! E a Tallleyrand que, sem honra descaradamente, pertence a vergonha de ter proposto, a 10 de Outubro, «que, para se poder dispor dos meios de enfrentar os seus credores, o Estado se apropriasse da enorme riqueza (sic) constituida pelos bens do clero», o que implica, para que a operagio seja rentivel, que se roube em beneficio dos credores privilegiados, empurrando, eventualmente, as cidades para o crime, em detrimento de Deus, das criangas, dos pobres ¢ dos doentes. f. verdade que o proprio baixo clero tinha aberto uma brecha ao sacrificar, sem uma razio valida, a dizima. «Os deputados, mais sensiveis aos direitos dos pensionistas do Estado do que a Deus ¢ a0s pobres, defrontavam-se com a questio do direito de propriedade. Como des- ferir-lhe um golpe de uma tal amplitude menos de trés meses depois de o ter declarado inviolivel e sagrado?» Jean de Viguerie® resumiu com um traco sugestivo o essencial de um de- bate to pesado como este. Esses praticantes de procurador, esses togados esses advogados punham de lado com a maior facilidade a equidade, desde «que lhes fornecessem uma roupagem juridica conveniente. Talleyrand, que tinha compreendido o espirito das novas instituigdes, visa- va a existéncia da ordem na nagio: a nago dispée de soberania sobre os gru- pos e as organizagdes que existem no seu seio. $6 a propriedade individual & que é sagrada. Abaixo, pois, com a colectividade. © homem apenas éhomem por sis6, portanto, completamente nu em face da nag, que decide sobera- namente. E facil compreender que a liberdade entendida deste modo deixa de existiz. Burke explicou-o cabalmente. Assim, torna-se evidente o isco de tirania que 0 Contrat Sadal de Rousseau assumiu alegremente. «Na brechay 7 PRIMEIRA PARTE aberta pelo bispo «precipitaram-se os adversatios da propriedade eclesistica, Mirabeau, Thouret, Treilhard, o abade de Montesquiou A defesa foi assegu- rada com grande talento pelos abades d’Eymar e Maury. A 2 de Novembro de 1789, na votacio, quarta data sombria, foi obtida a maioria por 568 votos contra 345. Os bens impropriamente ditos do clero (eram, sim, da Igreja) sio colocados «A disposigao da nagio” ficando a seu cargo subvencionar as, despesas do culto ¢ dos servigos piiblicos assumidos até entio pela Igrejan. Como seria possivel evitar que a nacio nio se etigisse juiz daqueles custos € servigos? Jean de Viguerie ajuizou bem. Este debate pée a nu aquilo em que tanto uns como 0s outros acreditam. Mas parece-me pér mais ainda a nua esséncia de tudo isso, a verdadeira esséncia desta embrulhada inepta, a incoeréncia, 2 justificagio do facto consumado, da via seguida pelo Estado € pela so- ciedade. A politica deles foi um compromisso entre aquilo que tinha sido ingenuamente imaginado, e, por conseguinte, imprudentemente proclamado (cruel império das palavras), e a dura necessidade, totalmente desvalorizada; portanto, um compromisso entre o palavreado anterior € 0 cio exausto a lutar contra a corrente que veio a seguit. Todavia, é este cio exausto que leva a melhor. «Nas intervencdes dos oradores», um leitor tio atento como Jean de Viguerie, «atris de palavras arrebatadas e declaragées de principion, des- cobre «hesitacées e incertezas». Eles jé no conhecem muito bem — mas esta ignordncia da parte destes praticantes de procurador da repiiblica vale como uma confissio — «as instituigdes ¢ o direito da antiga Franga». Conhecem por -vezes a letra; raramente o espirito. Pudemos observa-lo quando se tratou dos direitos feudais, Nunca tiveram bem a nogio do que estavam a suprimit. 0 mesmo aconteceu com os bens do clero; tratava-se de uma verdadeira pro- priedade? Propriedade de quem? De qué? E qual teria sido a intengio do fundador? Para Barnave, 0 clero nio é mais do que um depositirio, O que é sagrado é a sua finalidade. Garanti cesta finalidade, pagai o rendimento e apropriai-vos do capital. E tratai de vos enriquecer. Isto pressupde que deixastes de assumir aquilo que tinha sido assumido. Afigura-se-me dificil que ninguém o tenha pensado e, todavia, nfo ‘o tenha referido, Para Talleyrand, ¢ /ify,ffy. O clero nio é proprietitio seno da parte dos bens necessérios & sua chonesta subsisténcia», o resto fica disponivel com a condigio, apontada por Barnave, de ficar garantida a finalidade. Como Mi- rabeau, Talleyrand pensa talvez numa parte do alento que teria mantido o niicleo de independéncia de um regime beneficiario empobrecido mas salvo. Para o abade de Montesquiou, o clero nao é um verdadeiro propriet- to, precisamente por causa do regime de inalienabilidade. Ja que nfo pode alienat, que seja o Estado a tomar conta. Isto nao passari de mais uma pro- 8 os FACTOS messa. Desde 1780, clas ja no tém conta, e como muito bem diz Mirabeau, cuja vida privada constitui um exemplo de exorcismo eficaz dos escripulos: «Libertar-se de um respeito supersticioso por aquilo que se designa por in- tengo dos fundadores» Eles ja morreram ha tanto tempol Face a isto, Montlosier recorda: a propriedade ¢ a propriedade. A nagio ‘no pode apropriar-se do que nio lhe pertence a no ser por direito de sobe- rania, e, pot conseguinte, indemnizando os titulares. O abade Maury chama a atengio para o facto de a propriedade no pertencer & nagao. Sem pro- priedade nio hé liberdade, «porque a liberdade nio é mais do que a primeira das propriedades sociais, a propriedade de si mesma». E, a0 fim € a0 cabo, 0 comer € 0 cocar vém do comecat. Com efeito, Boisgelin, arcebispo de Aix, tinha feito uma proposta honesta ¢ vantajosa para todos, Ofetccia uma hi- poteca de 400 mithdes sobre os bens da Igreja para cobrir aquilo que Necker tinha considerado ne ssdrio para por as coisas a andar: «O clero nunca se negou a ajudar a coisa piblica em tempos dificeis» Convém talvez lembrar, além disso, que estas dificuldades eram puramente ficticias. E que nunca uma Franga tio prdspeta contribuira menos, per capita, para a coisa piblica. E entiio que, 2 fase da necessidade disfarcada, sucede quasc imediatamen- te a vertigem da omnipoténcia. Le Chapelier, o destruidor das corporagies, que detesta tudo que ultrapassa o individuo, afirma: «Se 0 clero continuar detentor da propriedade, continuari a formar uma ordem no seio da na- Go» Dificilmente se concebe como € que, nesta franja de marginais do seu meio, nestes tipos meio falhados, mal integrados, a ideologia reducionista, que pretende reduzir tudo & unidade, é poderosa. Tal como um Luis XIV em poténcia, langam as culpas sobre a nobreza. Destruir todos os tipos de orga nizagio social, todas as associagdes, todas as comunidades, todos os lugares onde antes se vivia bem, tudo 0 que nao seja a grande comunidade, todo € qualquer clemento da sociedade ao qual nao se pertenga. F. verdade que os constituintes nunca tivetam liberdade a no ser nas palavras, nunca no co- ragio. Nenhuma regra de constitucionalidade protege o individuo separado de qualquer rede protectora contra a tirania colectiva da assemblela absoluta A igualdade passa antes da liberdade. Sim, o défice j4 niio é mais do que ‘um pretexto. No entanto, as dificuldades financeiras funcionaram realmente como detonador. Fim toda esta questio, a Constituinte parece-me ser ainda mais conduzida do que ela propria a conduzir. Sim, niio hi divida de que a questo dos bens da Igreja levou a uma radi- calizacio, a tirar consequéncias nfo forgosamente incluidas na Declaracio de 26 de Agosto. Quando o abade d’Eymar diz, a 18 de Outubro, em sua defesa, «Nés constituimos a parte essencial de um todo» e wApenas a forca pode dissolver o que existiu desde ha séculos como elemento constitutivon, prova que a nova nacio, pociras de individuos, «sem nada entre o ego fatalmente es- 9 PRIMEIRA PARTE magado € o todo necessariamente tirinico» (a liberdade de associagio repre sentari, nos fins do século XIX, uma reconquista da verdadeira democracia em Franca, que neste dominio tinha sofrido uma tio grande regressio), @ga felizmente salvo pelo poder conservador da vivéncia familiar, que 0 novo estado de coisas, proclamado para satisfazer as exigéncias de uma minoria {nfima, estava longe de ser universalmente aceite. Jean de Viguerie insiste muito na intencao perversa, no afrontamento ide olégico, no choque de duas concepgdes do mundo, Nao nego que Turgot, na Encyclopédie, tenba contestado o valor da fundagio perpétua. Encontro 0 mesmo debate na Espanha das Luzes. Nao hi diivida de que a mio morta, quando no é, como em Franca, controlada pela instituicio monérquica, conduz a acumulagdes excessivas (foi este o caso em Inglaterra e na Boémia) prejudiciais para o bem comum. A prépria Igreja, a0 longo dos tempos, procedeu a reducdes nas obrigacdes, no que respeita as fundagdes para a ce- lebragio de missas. Demos livre curso aos benéficos efeitos da erosio mone- taria, da negligéncia, dos novos compromissos e do esquecimento, Mirabeau exprime brutalmente uma verdade tradicional quando proclama: «Como é que individuos ignorantes e limitados teriam tido o diteito de acorrentar & sua vontade caprichosa as geragdes que ainda nio existiam? Nenhum tra- batho dos homens é feito para a imortalidade. Se todos os que viveram ti vessem tido um trimulo, seriamos obrigados a revolver as suas cinzas para encontrar terras para cultivar...» Evidentemente que sim, mas a vida opera insensivelmente, por etapas. Mais do que uma intencio deliberada, nesses instantes cruéis eu acredito na justificacio a posterior ¢ na improvisacio. Jean de Viguerie vai mais além: «A filosofia moderna desde Vico» se- para «o tempo profano do tempo sagrado |.J. Portanto, a confiseacio dos bens do clero tem um significado profundo. Trata-se simultaneamente de um expediente financeiro, de uma manifestacio de anticlericalismo e de uma operagio destinada & destruicéo definitiva das ordens religiosas» Sim, mas seguindo esta mesma ordem. Sem a necessidade financeira, 0 resto nio teria, sem diivida, aparecido, pelo menos nfo se teria imposto. Tudo decorre da mentira, de uma mentira que mata, a da recusa de reconhecer a evidéncia da insuficiéncia maciga global da cobranga dos tributos. Tudo decorre desta mentira. Ela leva consigo uma catadupa de outras mentitas, consequente- mente, de crimes: «Ao desafio glorioso da antiga cristandade», acrescenta Jean de Viguerie, «esta filosofia (Ieia-se, as Luzes) opée 0 tempo inexorivel dos homens, 0 tempo que faz passar todas as coisas.» Sim, foi esta a tese de Maistre ¢ de Bonald, a muito bela tese contra--re- ‘volucionétia. Interrogo-me mesmo se esta tese nfo tributa 4 Revolucio uma homenagem que ela nio merece, atribuindo-lhe um pensamento, portanto uma dignidade, Pelo contririo, recolocada no tempo e no espaco (a Franca 10 os cros na Europa ¢ em continuidade), ela consiste antes de mais em rancor, igno- rincia, fatuidade, estupidez e justificagio a postion. Nao seria este desafio glorioso um tanto ingénuo € manchado pelo orgulho? «Tu és pé ¢ em pd te his-de tornam, diz a antiga liturgia, decalcada sobre a Biblia, Palavra de Deus. «Se 0 gtio nio morte...» O meu Reino nio é deste mundo, ele nem mesmo se confunde totalmente coma Igreja visivel. O discipulo nao é maior do que o mestre. De que vale um sonho de perenidade, amadurecido nestes tempos, para um homem que finalmente atingiu a eternidade? O pensamen- to das Luzes no é mais compativel — mas, sem divida, menos ~ com a Re volugio cristi do que o era o aristotelismo, de que os escolisticos acabaram por extrair uma philosephia que se ctia perennis. A prova é que nfo implicou, noutros lugares, nomeadamente nos paises protestantes, tais dramas ¢ tais rupturas. O que é grave é a ruptura, o encadeamento que ocasiona um saque, um espezinhar da ordem existente. © comego de Outubro é, na verdade, de capital importincia. Ao con- fiscarem a totalidade dos bens da Igreja, 08 constituintes no espezinham somente o pasado, mas insultam também o futuro. Maury tinha razio 20 dizer: «As nossas propriedades garantem as vossas...» Um principio de di reito no pode cortar-se em fatias. F. de uma infinita gravidade a resposta de Mirabeau: «Nao existe qualquer acto legislativo que uma nacio nfo possa revogar, que no possa modificar quando lhe aprouver as suas leis, a sua constituigao, a sua organizacio e o seu mecanismo...» Eo principio da di- tadura, da tirania sem limites, sem entraves e sem principios da maioria par lamentar. E neste sentido que a Franga, desde o século XIX ao século XX, esti longe de ser um pais de liberdade da mesma maneira que a Inglaterra ou a Suica. Quer a Revolucio, quer a III ea TV Republica, jamais levaram a sério a Declaragio dos Direitos do Homem; ridicula é a distingio entre lei ordindria ¢ lei constitucional num pafs que mudou todos os anos de consti- tuicio durante o periodo dos fundadores idolatrados. A V Republica fez um esforgo louvavel ao instaurar 0 Conselho Constitucional, contrariando os costumes. Entenderam bem: «Nenhuma barreira, nem diteito natural, nem regta constitucionaby® se devia opor, na opiniao de Mirabeau, a uma maioria legislativa (neste caso, originada por uma minoria activista no pais). Este regime no é mais do que uma forma de tirania, Na perspectiva do Estado de Direito, marca uma regressio em comparacio com a pritica, no século XVIIL, do Ancien Régime. E aquilo que Ayek apelida de «democracia ilimi- tada» € que Benjamin Constant tinha estigmatizado como uma woberania ilimitada. Este acto é, sem duivida, o primeiro acto ostensivo de tirania, um abuso de direito caracteristico, A Assembleia recusava-se a assumit as dividas do lero, Espoliava, por conseguinte, uma categoria de credores-parias e, sobre- u PRIMEIRA PAR’ tudo, mantendo o principio de supressio, aliés sem equivaléncia ao dizimo, diminufa a cobranga que era necessirio aumentar em prol do bem comum. ‘Nao podemos recusar a anilise de Aftalion. Quando se depuram os bons pedacos de retdrica desta avalanche de palavras, talvez sejamos tentados a atribuir aquela multidio, que nio teve tempo de se tornar verdadeiramente ‘numa assembleia, num corpo organizado, principios ¢ uma linha de conduta. Quando na realidade se tratou de improvisacdes desordenadas Encostados parede, tinham desencantado, em Setembro, 0 tesouro es- condido dos seus fantasmas: os bens da Igreja. Nao por acaso, evidentemen- te, 0 modo de designagao tinha sobrerepresentado macigamente os 5 a 10 por cento dos menos religiosos da nago. Mas 0 mito do tesouro escondido abrange muito mais do que esta minoria. Nao é mais do que a consequéncia da grande mentira de Estado de 1781. Assim que 0 alvo foi escolhido, logo 0 crime foi perpetrado, com uma pressa que sevela também uma ma conscién- cia. Acabavam de votar dois mil milhdes de libras de terras, de pedras, 0 suor de todo um povo durante mil anos, Uma enorme quantidade, que excede 0 volume do numeririo em circulacio: «Entretanto, como os credores do Te- souro nao podiam ser pagos» em abadias, igrejas, quadros, bancos de igreja, «os problemas financeiros mantinham-se prementes». O ladrio fica com 0 produto do seu roubo, com o seu édio ¢ a sua sede. ‘A 14 de Novembro, Necker apresenta-se de novo, estitua empoada do comandante. Necessita imediatamente de 170 milhGes. O projecto do ban- queiro genovés é técnico ¢ sensato, Numa palavra, inspirado no modelo do Banco de Inglaterra, que consistiria em transformar a Caixa de Descontos, que se devia & Turgot, num poderoso banco nacional, que emitiria 240 mi- hdes de papel-moeda, coberto pelos pagamentos futuros (que a Assembleia tinha conseguido esgotar) e a venda a um titmo moderado (condigio de uma venda a uma taxa razoavel) dos bens roubados a Igreja. Tratava-se, sem dtivi- da, do melhor meio de tirar partido deste acto de rapina. Como é natural, Mirabeau opés-se a isto. Simplesmente porque a propos- ta, que era desta vez marcada pelo bom senso, provinha de Necker, de quem ele sonhara tomar o lugar. Dupont, vem, em vio, em socorto de Necker. Defendendo a solugio da Caixa de Descontos, contava-se com a posicio de Turgot, que jé tinha mor- ido, com Necker, Dupont ¢ Lavoisier, Mas a nagao, entenda-se, a maioria da Assembleia, decide actuar ela mesma, sem «intteis intermeditios», sem outro control que no seja o da satisfacio imediata ¢ iluséria dos seus desejos, ne- cessidades e impulsos, Se houve alguma ideia que tivesse progredido, foi sem diivida a de um despotismo ilimitado. Na verdade, o que Mirabeau propée, e que ird ser adoptado, é a aquisicio da pedra filosofal. Por que é que a nacio, na sua vertigem, nio teria o poder de 12 os FACTOS criar a moeda simplesmente com papel, tinta e niimeros? Tudo leva a crer que nove em cada dez dos constituintes nio tinham a menor nogio de economia politica e de ciéncia financeira, Em fins de 1789, o tom sobe. Aparentemente, nio tinha sido suficiente recuperat «0 padeiro, a padeira e o aprendiz» pata garantir 0 sustento da fa- iia, tanto mais que, para alimentar artficialmente Paris, € necesséria moeda sonante: os camponeses no enttegam 0 seu trigo a troco de uma sombra, Ora, cis que um comeso de competéncia aflora aquelas cabecas, sem diivida menos mal ordenadas (quanto & topografia das bossas, Lavater esti na moda) do que proprio comité das finangas da Assembleia (convém recordar que esta se considerava a si mesma, simultaneamente, 0 rei ¢ o Pai eterno). En- quanto nio se conseguissem 90 milhdes até ao Sio Silvestre, nao fazia qual- quer sentido pensar na Constituigio. A medida que os dias vio decorrendo, forma-se um pequeno niicleo em torno de Dupont. Parece que Talleyrand tenta, pelo menos, obter, contra a inevitavel colocagio 4 venda dos bens roubados, a tomada em consideragio das dividas do clero e a manutengio da dizima. A «cultura econémicay nio se ptopaga tio facilmente quanto uma epidemia de variola antes de Jenner, ‘mesmo no interior destes Estados Gerais transformados em Assembleia Na- ional. Sera necessario fazer notar que esta Assembleia nada tem ainda de parla- mentat? As primeiras cimaras dignas deste nome so as da Carta sob a Res. tauracio. Quer isto dizer que a competéncia nio é reconhecida, assim que se afasta da justificagio de uma fantasmitica safda da espuma, A maneira de Vé- nus. Esta Assembleia no conhece a sancio probatéria da reeleiglo ¢, pela sua propria natureza, nio é reclegivel (antes do decreto da nfo reelegibilidade). Isto significa, portanto, que nunca uma Assembleia furuou em tal imponde- tabilidade irresponsivel. Daf deriva que a espiral da irreversibilidade funciona em pleno, A incomensurivel tolice da supressio sem compensagio da dizima constitui um exemplo disso: nio se pode voltar atras, ainda que levianamente, sobte uma proposta, por irreflectida que seja. Ninguém reclamava a supres- sio da dizima: uma vez esta supressio prometida, sobretudo quando desviada para 0 reembolso de empréstimos suspeitos, a dizima tornou-se intolerivel Depois de ter recusado as solugdes moderadas dos seus especialistas aca bados de promover, a Assembleia escolheu a pior das solugdes, em 16 e 21 de Dezembro de 1789', a emissio de 400 milhdes de assignats’, para atendet 420 que era mais ungente, com um juto de cinco por cento. A garantia ofere- cida sobre os bens da Igreja ndo passava de uma ficcio, uma vez que 0 con- travalor imobiliério no era nem podia ser fixado, Tinhamos corrido o risco de criar uma moeda totalmente fiducidria, sem quaisquer limites, e garantida em concotréncia com uma boa moeda, a prata ¢ 0 ouro. PRIMEIRA PARTE Duas notas, Em breve se veria funcionar a lei de Gresham. A moeda ma repele a boa. Iremos ver o pais que possuia a maior quantidade de moeda me- tilica esvaziar-se do seu ouro e da sua prata, como um corpo ferido se esvazia do seu sangue. Por conseguinte, 0 crime nao compensa. O confisco dos bens que a nacio tinha colocado & disposigio da Ipreja ira servir para remunerar generosamente uma nova classe dirigente, mais bocal, mais avida, um sindi- cato de gatunos, ligando-a indissoluvelmente a este novo estado de coisas. A Revolugio, a0 fazer isto, criara uma situacio irrepardvel. «A Assembleia tinha portanto acabado, pelo menos aparentemente»’, de ‘uma maneira desordenada, sem qualquer plano nem ideia preconcebida, «por encontrar uma solugio para o problema que tinha justificado a sua convoca- io e que, durante os oito primeiros meses da sua existéncia, as suas decisdes nao tinham feito mais do que agtavar. A supressio dos impostos do Ancien Régime, antes do estabelecimento de uma nova fiscalidade, colocara as financas do Estado numa situagio de completo descalabro». A Constituinte no se tinha preocupado minimamente com tudo isto, sendo a sua tinica obsessio a de afirmar 0 seu poder e de concentrar nas suas mios tudo © que estava outrora repartido, de uma maneia equilibrada, entre o rei, os ministros € os tribunais soberanos. E Aftalion formula uma hipétese: «i talvez com a finali- dade de manter a Corte em situacio de dependénciay — e eu acrescento, para no alienar o grupo dos beneficiatios de pensdes do Estado que manipula, como aconteceu em Julho, a populagio parisiense, tinica forga que, como se verificara em Outubro, assumiri mesmo uma certa independéncia em relacio 40s seus primeiros manipuladores. Em resumo, seria por causa deste encadea- ‘mento maléfico que a solucio de bancarrota «que permite um novo arranque que a ideologia renascentista da Utopia parecia justificar, no foi adoptade. Um Estado no pode hontar os seus compromissos se nio se assegurar dos meios adequados. Para além de um determinado limiar de endividamento, j nfo é suficiente afirmar, verbalmente, o dicito de propriedade inviolivel e sagrado, que deixaré de ser respeitado, «Em 178%, a turba inexperiente assu- mindo-se como o Estado, tendo-se «recusado a recorret ao imposto, forma de financiamento forgado correntemente admitidan, devia, pois, escolher as suas, vitimas por outra forma, Qualquer soluco que consistisse em espoliar uma categoria em detrimento das outras defrontava-se com o receio de desagra- dar aos seus mandatérios, Por conseguinte, era necessitio visar uma categoria muito resttita, os mais ricos e os clérigos que se tenta dissociar da Igreja, ou seja, do conjunto do povo que se mantém cist. Mas os bens roubados eram muito insuficientes e foram, aliés, delapida- dos em beneficio exclusivo de algumas dezenas de milhares de comparsas, 0s novos senhores. Para pagar as suas promessas, alimentar os seus fantasmas ¢ financiar a guerra de agressio, escolhida deliberadamente contra uma Europa 4 os FACTOS pacifica, a Revolugio no encontrou outro meio que niio fosse o da inflagao, A inflacio é 0 mais atroz, o mais injusto, o mais cruel dos impostos. A inflagio constitui, conjuntamente com as perdas da guerra, a causa primordial, a causa ‘Moloc da desclassificacio definitiva da Franca. Nio procureis saber por que motivo as coisas correm mal. Nao imagineis, que 0 facto de o imposto apenas cobrir um quinto das despesas possa ter alguma relevincia, Nao, Claviére, que assume a direcgiio das financas, explica: «Conjura contra as financas» A crise financeira € um golpe baixo do clero reftactitio. Jamais alguém o terla imaginado, mas é um silogismo de légica revolucionaria. Se algo na consisténcia das coisas se opde a realizacio do mo- delo concebido « priori, 6 pode provir da parte do Inimigo. As acusagdes de Clavidte so de tal maneira absurdas que Aftalion’ péde constatar que as cir- cunscrigdes que mais rapidamente e melhor resolveram os problemas foram aquelas em que, sendo os sacerdotes mais numerosos, as estruturas morais, 0 sentido dos deveres para com os outros, portanto pata com a Cidade, foram os mais solidamente conservados. ‘Totalmente privado de recursos por sua culpa e obrigado a fazer face as, exigéncias de uma guerra que ele quis, declarada e mal conduzida, o governo no tem senio um recurso: 0 papel, a tinta e a chapa de impressio... para fabricar assignats Em Abril de 1792, 0 limite foi levado até 1600 milhdes, e em cupdes de 50, 25, 15 € 10 sous. A inflagio traz consigo a carestia de vida. Em 1792, confiscam os com- boios de cereais e matam Simoneau, o mair’, que recusa a taxa que esvazia os celeitos e provoca a fome. Um pouco por todo o lado, violéncias pitblicas e incéndios. A sociedade francesa marcha em passos gigantescos para situacdes de violéncia «pté-monetitian. E como Paris, onde se situa 0 «'” A personalidade de Necker, todavia, no faz dele um conspirador de pri- meira ordem: ele parece, antes, andar ao sabor das faccdes, como revela ainda esta tiltima estampa: «Constitui¢io da Franga: 0 Sr. duque d'Orléans € 0 Sr. Marqués de La Fayette apoiam o Sr. Necker que calca a seus pés os instrumentos da escravatura e que, com uma mio, segura a coroa da Franca ¢, com a outta, levanta em triunfo o barrete da liberdade'® O ALCANCE DA TOMADA DA BASTILHA, A liggo dos acontecimentos nio se resume, sem diivida, a estas conside- races, por muito titeis e interessantes que clas pontualmente possam ser. Existem t2és pontos que niio deixam de chamar a atengio do observador. primeiro é a demissio das autotidades. Talvez nio tivesse sido a primei- a vez, mas nunca se tinha verificado uma tal extensio da demissio, O incum- primento observa-se naturalmente a0 nivel da autoridade militar: Bésenval fica inactivo. Ser mais tarde acusado de ter voluntariamente deixado correr; serio evidenciados os seus lacos de amizade com Necker; aliés, ele vird a ser isento de qualquer acusacio pela intervencao do proprio Necker, sobretudo de La Fayette, quando vier a set, n0 Outono de 1789, acusado de ter feito disparar sobre 0 povo'', Launay, no que Ihe diz respeito, capitula, cede & msurreigio antes que a prova de forca tenha feito pender a balanga para um lado ou para o outro. Sustentou-se que, em estado de piinico, esteve a ponto de fazer rebentar a fortaleza com toda a sua guamnicio, pondo fogo 4 cimara 4a pélvora, O que levari Rivarol a dizer que Launay «a tinha perdido a cabeca muito antes que lha tivessem cortado»“®. Chateaubriand recorda sobsiamente esta debandada: «14 de Julho, tomada da Bastilha. Assisti, como espectador, 2 este assalto contra alguns invilidos e um timido governador: mantido as portas fechadas, nunca 0 povo teria entrado na fortaleza. Vi dis- parar dois ou trés tiros de canhio, no pelos invélidos, mas pelos guardas franceses, que jf tinham subido as torres»"®, doi a que se xeduziw, conchuiu amargamente Rivarol, «esta tomada da Bastilha, tio celebrada pela populaca parisiense. Pouco risco, muitas atrocidades da parte dela e uma penosa impre- ‘idéncia da parte de M. de Launay»' Infelizmente, objecta Marmontel, «esta larividéncia que lhe faltava, ninguém dos conselhos a teve por ele», A demissio do ministésio também foi bem patente: com efeito, o princi- pal ministro, Breteuil, chegado ao poder na manhii de 11 de Julho em subs- e tivessem. 33 PRIMEIRA PARTE tituigfio de Necker, porque era partidatio de uma resisténcia na Assembleia, ficou como que patalisado ante a sublevagio, Nenhuma ordem concteta foi enviada a Paris, mesmo apesar da insisténcia de Sombreuil. Siléncio as- sombroso que nos é revelado pelos arquivos. Ora a vaga de motins durou trés dias ¢ Versalhes, muito proximo, nao podia ter deixado de sentir 0 eco sinistro. Quanto As grandes instituigdes parisienses, érgios da justia e da policia da cidade entram, nesse dia, num proceso de dissolucio interna que mani- festa & evidéncia uma total auséncia de intervencio. O Parlamento de Patis, particularmente discreto, hé que reconhecé-lo, desde 0 comego do ano, niio guarda nada nos seus arquivos" de quaisquer teacgdes da alta magistratura: nem peti¢ao, nem pedido verbal do procurador-geral, nem decisio do tri bunal, enquanto parece continua, talvez au ralenti, uma actividade judiciaria de rotina que no deve absolutamente nada aos trégicos acontecimentos que abalam a cidade. Quando o Parlamento desperta, € no dia seguinte 4 accio para suspender os agradecimentos ao tei. Com efeito, em 16 de Julho, as dez horas da manha, a assembleia das cimaras convocada faz re- gistar os factos seguintes: «Neste dia, 0 Senhor primeito presidente € os Senhores de servigo na Primeira Camara, tendo-se deslocado ao Palicio para a audiéncia das sete horas, mas que nfo foi aberta, tal como a das nove, porque nfo se encontraram advogados, o Senhor primeito presidente enviou as cimaras, pelas dez horas, nota para Ihes rogar que se reunissem.» Jean-Baptiste Gaspard Bochart de Saron da parte da intengao de um dos conselheiros de comunicar & assembleia alguma coisa que «pode merecer a sua atengion; o referido magistrado, de que o processo-verbal nao conserva ‘© nome, toma entio a palavra nestes termos espantosos: «Meus Senhores, © afastamento das tropas de Paris ¢ de Versalhes acaba por fim de devol- ver a seguranga aos cidadios. Deputados da assembleia vieram anunciar i Capital os testemunhos notaveis do amor do rei pelos seus stibditos, con- signados no discurso mais tocante que 0 nosso Monarca dirigiu em pessoa aos representantes da nacio, Parece-me que o Parlamento nao pode ficar testemunha muda do restabelecimento da calma que a cidade de Paris deve as determinagées paternais do rei, secundadas pelo zelo e pelo pattiotismo da Assembleia Nacional” Em consequéncia disto, a cimara decidiu que © primeito presidente levaria a Luis XVI os seus agradecimentos. Nao era esta convocacio da assembleia das cAmaras a menos importante das coi- sas? Mesmo que pareca nio ter assistido mais do que um nimero muito mediocre de conselheitos'*, No dia seguinte, Bochart de Saron relata em termos lacénicos a sua entrevista com o tei: «Sire, 0 Vosso Parlamento, penetrado de reconhecimento pelos sentimentos de sabedoria e bondade de que Vossa Majestade esti permanentemente animada para com 0 bem 34 Os FACTOS piiblico, encarregou-me de me ditigir a Vossa Majestade com o intuito de Ihe agradecer muito humildemente as provas que acaba de dar do seu amor pelos seus Povos e da sua confianga nos seus representantes cujo zelo € Ppatriotismo contribuiram para restaurar a tranquilidade pablica...»! Foi re gistado.... ¢ 0 siléncio mais impressionante tombou sobre as tragédias do 14 de Julho. Na segunda-feira, dia 20, Bochart de Saron apresentava-se como 0 admirador abismado ¢ enternecido, «destes deputados fiéis a todos os seus deveres» que, quando da vinda do rei a Paris, na sexta-feira precedente, se tinham tornado «o né da nova alianca e da confianca respectiva da nago ¢ do seu chefe que, seguindo a propria expressio do rei, ndo é seniio um com elas", «Lm dia tio memoravel, com efeitol, «a consagear nos registoo para a monarquia, onde — inocentemente? — o primeiro presidente da mais veneravel instituicio do Estado invertia e, portanto, subvertia, os termos da uniiio mistica do rei e do seu povo!! Independentemente do facto de que 0 discurso da magistratura tendia finalmente a fazer da politica régia anterior a causa das «desordens», a atitude do Parlamento demonstrava uma absoluta incompreensio do que estava de momento em jogo. E imperativo que finalmente nos convengamos da demissio da auto- ridade régia. FE. a mais grave, a mais pesada de consequéncias. Luis XVI, depois de ter consignado gravemente no seu carnet de caca o resultado da sua sortida do dia («14 de Julho: nada»), reuniu um conselho no dia 15, depois um outro no dia 16 de Julho. E sugerida a eventualidade de uma partida da familia real para a provincia onde ela continua a gozar de um prestigio intacto. Na manhi de 15, ainda mesmo em Versalhes, a rainha é aclamada 4 varanda do patio de Marmore. Mas Breteuil receia nao dispor de tropas figis suficientes para escoltar o rei, quando teria bastado contar com a alianga secular do povo como seu rei. O conde d’Artois, os principes da casa de Condé nio irio embaracar-se com tais consideragdes e, depois de terem tentado em vio arrastar Luis XVI, tomam o caminho do exilio™™ Ao contritio, Luis XVI anuncia entio a ordem de regresso de Necker € a sua vinda a Patis pata o dia 17 de Julho. No entanto, ele receia o pior e, em consequéncia, cumpre com os seus deveres religiosos. No dia aprazado, entra em Patis onde é acolhido aos gritos de «Viva o reil Viva a liberdade!» € ditige-se ao Hotel de Ville onde lhe impéem a roseta tricolor. Bis a grande debandada: o tei, 0 justiceiro, absolvia a sublevacio, reconhecia implicita- mente as instituicdes insurteccionais (guarda nacional e Comuna de Paris), no ousava sequet evocar os massacres indignos dos representantes da sua propria autoridade. Foi nesta data, ¢ no no 14 de Julho, que se jogou 0 futuro da monarquia. Como explicar uma tal demissio? Fraqueza do rei? Sem diwvida, mas, Luis XVI nio é esse gordo pateta que a propaganda orleanista se tinha com- 35 PRIMEIRA PARTE prazido em descrever. Influéncia 20 mais alto nivel do Estado, e até mesmo sobre o rei, das novas teorias herdadas do exemplo inglés e dos filésofos do século XVIII? Nao sem prudéncia, nem sem amargura, é a pista que alguns historiadores tém explorado desde ha uns 20 anos. De resto, Guy C sinand-Nogaret confessa: «© proprio poder, assaltado pela diivida, hesita quanto & sua legitimidade e intervém tio frouxamente, quando a revolta se desencadeia, que a sua acgio quase equivale a uma aprovagio...»'” Desde hé aproximadamente meio século, o poder tégio tinha-se habituado a falar a linguagem dos scus inimigos, a da «onstituigo» ¢ da dlegalidade». Face a magistratura que desacreditava 0 seu poder acusando-o de «lespotismo», Luis XV, primeiro — com mais firmeza 4 medida que avangava em idade ¢ experiéncia -, replica pela afitmacio do seu dever soberano de guardiio da cantiga constituicio monirquicay do reino'™. Confrontado de novo com a rebeliio de Paris em 1787, tendo desta vez a seu lado principes de sangue ¢ pares de Franga, face a0 duque d’Orléans que o desafia acusando-o de cdlegalidade», Luis XVI, encerrado num discurso «constitucionalistay arant Ja kittre, xesponde-Ihe: «E legal porque eu 0 queto» Quando teria sido ne- cessitio fazer a demonstracio da sua «legitimidade» pelo beneficio politico esperado das suas decisdes, o rei argumenta sobre a coincidéncia — aliés indubitavell ~ da sua atitude com os prineipios monérquicos dos quais 0 corpo politico agora duvidava, como se tratasse de um desvio doentio do Estado. Ao fazé-lo, nem Luis XV nem Luis XVI souberam encontrar esse tom simultaneamente politico € carismatico que tinha congregado 0 povo como um sé homem a Filipe Augusto, contra as cavalarias estrangeiras, a Carlos VII, depois da sua sagraco, a volta de Joana d’Arc, a Luis XII como a Francisco I durante as guerras na Itilia, a Henrique IV, sem diivida, apesar da atroz fractura religiosa, a Luis XIII ¢ Richelieu, depois do desastre de Corbie, a Luis XIV, por fim, nas boas ¢ més horas das guerras europeias. Luis XVI, convidado a fugit de Paris ~ como aliés o tinha feito 0 regente (fururo Carlos V, « Sabie), em 1358, para fugir ao dominio sanguinario de ‘Etienne Marcel — pela rainha, pelos seus «amigos», passa uma esponja sobre a revolta, tal como, algumas semanas antes, tinha capitulado face a0 golpe de forca do terceiro estado, em vez de procurar no amor ~ real ~ do seu povo a fonte secular da sua legitimidade. Acreditara ainda nesse amor? O segundo ponto € o da responsabilidade da Assembleia Nacional nas- cida da insutrei¢io politica do terceiro estado contra a monarquia e da sub- versio dos tradicionais Estados Gerais: as alusdes jé feitas a propésito de Mirabeau evidenciam que, nesses motins de Julho, todas as personagens im- portantes do ex-terceiro estado da Assembleia de Versalhes tomaram uma parte activa nos acontecimentos. Desde a origem, a Assembleia mostrou-se petmeivel as influéncias orleanistas, inteiramente submetida as manipula. 36 os FAcTOS ges do «partido populam': no dia seguinte & reuniio das txés osdens (27 de Junho de 1789), de que alias ele se tinha feito advogado no seio da no- breza, Filipe d'Orléans fora eleito presidente da Assembleia por 553 votos contra 869. Esta maioria confortavel causou uma to forte inquietagio que foi exercida pressio sobre Luis XVI para que o duque recusasse esta honta. Por outro lado, constituiria um segredo a vinculagio dos chefes do tercei- 0 estado a0 «partido patriot»? Bailly, Sieyés, Le Chapelier, Mirabeau, La Fayette ~, que, da nobreza, foi dos primeiros a juntar-se a eles -, Guillotin, todos pertenciam & loja parisiense dos Amis Réwnis. A Société des Amis des Noirs desempenhava o papel de correia de transmissto: af se encontravam Mirabeau, Sieyés e La Fayette ao lado de Brissot e de Condorcet. Todos eles foram as personagens chave destes acontecimentos de Julho. A partir de 5 de Julho, sobre a questo do aprovisionamento de Paris, a confiscagio da decisio pelos vultos do «partido patriotay revelou-se quando, em vez de me- didas concretas, Lally-Tollendal paralisou a acco da Assembleia em benefi- cio de uma vi acusasio contra... os parlamentos! «Era bem necessétion, diz ingenuamente Barére de Vieuzac no seu jornal Le Paint di Jour, «apresentar 20 povo a prova de que havia quem pensasse nos seus infortiinios e quem se ocupasse das suas necessidades»'% «Orleanistas» ou epatriotas, & certo que um niimero nao negligenciavel de membros da Assembleia resolveu-se conscientemente a utilizar a desordem para fins politicos favoraveis 20s seus projectos. Testemunha isto a confissio do deputado Dupont, relatada por Montjoie, a propésito do bloqueio de um plano de finangas submetido pelo governo aos deputados: «A desordem € 0 estado desastroso das financas foram considerados pelos nossos comitentes como os meios mais eficazes de garantir a Constituigio. Adoptar 0 plano proposto, concluiu ele, belecer nas financas wma orden que nos desapossani desses meio», Molleville telata igualmente a tranquilidade optimista de Barnave diante dos primeios estremecimentos da violencia popular que, segundo ele, entraria nos eixos por meio do estabelecimento da Constituic¢éo: «O povo jé ouviu demais esta Jinguagem», concluiu Mollevill a cle que é necessirio reprovar do que aqueles que o fizeram extraviar-ser", A partir de 10 de Julho, Mirabeau e Bancal des Issards intervém na tribuna para denunciar a chamada de tropas a Paris. Em 13 de Julho, La Fayette, Sieyés ¢ Le Chapelier redigem, ¢ fazem adoptar, um decreto responsabili- zando pessoalmente todos os conselheiros do rei’, Nesse dia critico, sobre uma proposta do presidente de fixar a préxima sesso 2 16 de Julho, Leutre levanta-se e reclama que a Assembleia se mantenha em sessio permanente: «A Assembleia Nacional ¢ a cidade de Paris esto ameacadas pelos maiores infortinios»", A 15 de Julho, a Assembleia, posta 20 corrente dos acon- tecimentos da véspera, delibera imediatamente... sobre a responsabilidade -, «cometeu milhdes de crimes, mas é menos a7 PRIMEIRA PARTE do ministério! Enviam uma mocio ao rei suplicando-Ihe o testabelecimento da ordem chamando de novo Necker: «ste triunfo era realmente o dos facciosos aos quais o rei acabava de se entregar»' Bertrand de Molleville vvia nisso um verdadeito complé tramado contra o clero a nobreza: [0 povo] podia tudo ousar impunemente contra os “atistocratas” € era so- mente para eles que a Assembleia reservava toda a sua severidade.»'® A 16 de Julho, uma delegaio de deputados dirige-se a Paris e faz-se ai aclamar. De facto, a Assembleia Nacional Constituinte sabia perfeitamente afitmar a sua existéncia a partir da insubordinacio e da desobediéncia, Ela sabia-se ameagada do risco de dissolucio se o rei, apesar dos seus recuos do fim do més de Junho, decidisse restabelecer a lei e a sua autoridade. Sabia-se tam- ‘bém ameacada do perigo de desmembramento interno quando as primeiras discusses sobre a Constituicéo revelassem as enormes divergéncias entre os deputados, dos quais uma maioria continuava a pensar em termos do Ancien Régime, So mesmo tempo, apareceriam as claras as manipulacdes a que se tinham votado nos dias precedentes os Sieyés, Mirabeau, Bailly e outros para conseguirem a subversio politica dos Estados Gerais. Encon- ‘ra-se entio facilmente a explicacio da razio pela qual a Assembleia favo- receu todos os complés anteriormente mencionados, uma vez que reunia 0s principais representantes. Assim se exprime Chaussinand-Nogaret: «© que a Assembleia nio pode obter pelas vias legais, o povo fornece-lho pelas armas e pela violencia» Ei finalmente em Julho de 1789 que, depois das tentativas dos meses precedentes, se apura uma verdadeira técnica insurreccional, a das famo- sas «jornadas revoluciondrias», uma técnica que implica 0 recurso ao medo como mola principal da accéo. De Launay, atrancado ao seu esconderijo, depois de ter suportados mil ultrajes, é espancado nas escadas do Hotel de Ville, 0 delegado dos comerciantes, Flesselles, racharam-Ihe a cabeca com uum golpe de pistol», recorda Chateaubriand, «Foi este especticulo que be- atos sem cora¢io achavam tio belo. No meio destes assassinatos, entrega- vam-se a orgias como nas desordens de Roma, sob Otio ¢ Vitellius»'®. Os trabalhos realizados sobre o decurso da insurreigio de Agosto de 1788, por ocasiio da demissio de Loménie de Brienne, fazem dela um ensaio geral da insurreicio, conscientemente analisada por Bosquillon, a partir de Outubro de 1788, no seu Cade National. Este optisculo extraia as licdes do fracasso da sublevacio fomentada em Paris sob a capa de um movimento espontiineo de alegria popular. Era necessétio, programava Bosquillon, infiltrar as tro- pas para obter a sua adesio, utilizar um tema mobilizador, subvencionar os quadros da revolta que o desemprego dispunha a todos os excessos™, atin- git um objectivo politico, sem relagio directa com as reivindicacdes gritadas pela multido e desviar assim o beneficio da revolta da massa popular, que 38 os FacTos fora instrumentalizada, para um niicleo de pessoas decididas & subversio politica do regime. «E isso, confirma Chaussinand-Nogaret, que confere simultaneamente 0 seu caricter exemplar e a sua ambiguidade ao 14 de Julho. A Assembleia nfo pode fazer vergar o rei e assegurar a sua propria salvaguarda a nio ser pela intervengao popular. Mas a vit6ria do povo com- promete a revolucio na via da insurrei¢ao permanente. Doravante, cada vez que a legalidade for um obsticulo & sua vontade, ou aos designios daqueles que a manipulam, o povo tera recurso 4 insurreico, primeiro contra o rei, ¢, eliminado este, contra a prdpria Assembleia»'® Jean-Pierre: & Isaperte BraNcouer, Historiadores, professor na Universidade de ‘Tours e investigadora no CNRS 39 ll O MASSACRE DO 10 DE AGOSTO! Desde a invasio das Tulherias, em 20 de Junho de 1792, por uma po. pulaca avinhada, que Ihe tinha enfiado na cabeca o barrete frigio, Luis XVI sabia-se condenado como monarca e, em breve, como simples cidadio. Re- cusando defender-se por fraqueza, apelidada de bondade pelos seus hagi- 6grafos, ele esti resignado ao martirio com o seu fatalismo habitual, mas no faz nada para poupar a uma sorte semelhante aqueles que, a despeito da sua inconsisténcia, Ihe sto fiéis. Conta ainda com um certo mimero deles, gentis-homens vindos da provincia para o defender, sobretudo os guardas suicos que, ligados pessoalmente 20 soberano por juramento, ¢ nio 4 nacio, estio dispostos a morrer por ele. Durante dois séculos, 0 regimento dos guardas sufgos constituiu uma das coroas de gloria do exército francés, servindo de exemplo de uma fra- tetnidade de armas tornada ainda mais estreita pelos lagos que os unem aos seus oficiais e estes aos seus homens. Trata-se de uma vasta gens — no sentido romano da expressio —, sendo os soldados muitas vezes recrutados nas suas terras pelos oficiais e, para estes tiltimos, o regimento constitui uma vvasta familia no seio da qual se esquecem as diferencas entre cant6es aristo- criticos e cantdes populares, mas sobretudo entre catdlicos e protestantes, todos unidos numa religiéo comum: a do trono de Franca e daquele que 0 ocupe. Nao tinha um guarda suigo deixado sobre um muro de Versalhes este ingénuo graffiti «Estou enamorado do meu reiv? Pouco a pouco, Lufs XVI foi-se deixando desarmar, nio podendo jé contar com as tropas regulates, trabalhadas pela propaganda revolucioni- ria, nem com a Casa do Rei, suprimida, nem com a guarda constitucional, igualmente dissolvida. Quanto 4 guarda nacional, esta esti mais disposta @ apoiar os amotinados do que a reprimi-los. Sempre por fraqueza, 0 rei permitiu que o regimento dos guardas suicos entregasse as suas reservas de munigdes € os seus oito canhdes & guarda nacional e aceitou todos os pe- didos de licenca formulados, o que reduziu substancialmente o efectivo de uum batalho em que tinha deixado de haver recrutamento, Como esereverd 0 coronel Pfyffer d’Altishofen: «Este infeliz principe procurava evitar até a sombra de qualquer coisa que pudesse levantar suspeita.» 40 os FACTOS ‘A chegada dos federados, designadamente a dos marselheses, com a aju- da do calor € do vinho, levou ao rubro a febre dos subtirbios. No dia 1 de Agosto de 1792, o capittio Charles d’Rrlach escreveu a0 anvyer’ de Millinen, em Berna: «Os federados de Marselha chegaram antes de ontem em mimero de 500; estio destinados a aumentar as nossas inquietacdes. Varios burgueses guardas nacionais foram j4 massacrados por eles em pleno dia. O povo, Jonge de os impedir, junta-se a cles e a Assembleia, ao receber a noticia destes escindalos, passou ordem do dia. Por isto, pode avaliar, Senhor, a terrivel situagio do Palicio’ no meio destas desordens. A sua tinica esperanga reside no regimento dos guardas suicos; deixam transparecer isso ¢ espero que 10 venha a ser em vio...» Em 4 de Agosto, a ameaga que pesava sobre as Tulherias aumenta até a0 onto em que companhias de guardas suicos acantonados em Rueil e Cour- bevoie recebem ordens de se reunirem no Palicio as que fazem o seu servico por turnos. Esta demonstragio de forca, depois de ter intimidado, excita ain- da mais os agitadores, que importunam os guardas que estavam de sentinela. Infelizmente, a 7 de Agosto, Luis XVI consente em que um destacamento de 300 homens, com sete oficiais, se desloque & Normandia para escoltar um comboio de cereais, o que, nessa medida, diminui a guarnicio das Tulherias. Durante esse tempo, o comité insurreccional faz distribuir 80 000 cartuchos ds secges, das quais 47 em 48 j votaram a deposigio do rei. Estes prepara- tivos nfo deixam aos guardas qualquer ilusio sobre a sua sorte: «Ontem, por unanimidades, escreve em 6 de Agosto o sub-tenente Louis de Forestier a Mme. d’Bpinay, «dissemos todos que, se acontecesse alguma infelicidade a0 rei, € que, se milo houvesse pelo menos 600 casacas vermelhas deitados aos pés da escadaria do rei, estarfamos desonrados. Desejo mesmo fazer parte do niimero das vitimas, se fosse isso preciso para salvar este infortunado mo- narca...» Uns tantos jovens oficiais, apercebendo-se do perigo, regressam a0 tegimento antes do fim da licenca; alguns, vindos de outros batalhées suigos, solicitam a sua admissfo, mas a boa vontade que demonstram nio constitui um reforco suficiente para modificar a relacio de forcas. Em 8 de Agosto, os batalhdes aquartelados em Rueil e Courbevoie sio chamados e dirigem-se durante a noite para Paris, no deixando para tris senio os doentes ¢ alguns homens de guarda. Distribuem a cada um deles entre 20 a 35 cartuchos. As trés horas da manhi, os quatro batalhdes cer- cam as Tulherias e repartem-se numa vintena de destacamentos destinados 4 protecgio de todos os pontos estratégicos. O velho conde d’AfEry, coro- nel comandando os guardas suigos, em vista da situacéo saiu de sua casa ¢ muhiplica os conselhos de prudéncia: no dar inicio as hostilidades, nio disparar sem ordem expressa do rei, confirmada pelo comandante da guar- da nacional ou da Comuna. Depois destas recomendacées, regressa a casa, 41 PRIMERA PARTE doente, ¢ confia o comando do regimento ao tenente-coronel, 0 marqués de Maillardoz. Este organiza imediatamente a defesa, que apresenta grande dificuldade quanto A sua eficacia, dada a extensio dos edificios régios ¢ a sua imbricacio num dédalo de ruelas, ruas ¢ patios, que os ligam 4 Rua Saint-Honoré. O capitio de Diirler toma posigio em frente do Carrousek o capitio Henri de Salis-Zizers no flanco dos jardins; o capitio Pfyffer d’Altishofen € coloca- do em reserva com 300 homens no patio de Marsan. Quanto a0 major de Bachmann, um dos bastides da resisténcia, aparece em todo o lado, vigian- do, encorajando, dando ou recordando as palavras de ordem. Nos patios, barricam-se as portas com traves. Em 9 de Agosto, os subtirbios entram em efervescéncia, a bandeira vermelha ondula a0 vento no Hlétel de Ville, tocam a reunie no quatteitéo de Les Halles ¢ do lado do Arsenal, enquanto a Comuna adverte a Assembleia de que, se até a meia-noite nao tiver votado a deposicio do tei, proclamaré a guerra civil ‘Advertidos pelas noticias que correm, 200 gentis-homens, entre os quais pai de Lamartine e Henri de La Rochejacquelein, a maior parte deles antigos oficiais, vém colocar a sua espada ao servigo do rei. O capitio Pfyffer d’Altishofen vird a escrever: «Deve-se desaprovar a sua iniciativa e confessar que, armados como estavam, s6 serviriam para embaracar a de- fesa, a0 mesmo tempo que inspisariam a desconfianca da guarda nacional», mas a atitude é louvivel, honrando a nobreza francesa. No total, sio pouco mais ou menos 1000 homens dispostos a tentar tudo para salvar o reis mas a este repugna qualquer iniciativa: “Se a meio da noite», declata uma tes- temunha, Moreau de Jonnés, «Luis XVI se tivesse colocado no centro do batalhiio quadrado dos sufgos como fizeram outrora Carlos IX ea sua mie, ese tivesse saido de Paris pelos Campos Elisios e pela barreira da Evoile, ro- deado desta escolta intrépida e devotada, teria ficado fora de alcance antes que estivessem em condigdes de o perseguir. No dia seguinte teria podido embarcat para Inglaterra, ou encontrar asilo nos departamentos do Oeste, prontos a pegar em armas pela sua causa» Para reforcar a guarnicZo das Tulherias, o marqués de Mandat, comandan- te geral da guarda nacional, requisitou esta, mas, dos 10 000 homens espera- dos, nfio vieram mais do que 2000, e pouco seguros, que passario, aids, para © lado dos insurrectos. Enquanto nas ‘Tulherias se aguatda o assalto, Danton, na caserna dos cor deliers', indica aos federados marselheses 0 Palécio como o centro de um vas- to complé contra o povo, incluindo 0 projecto de uma degolacio geral dos patsiotas» pelos suicos, «satélites do tirano». Pouco a pouco, os marselheses dirigem-se em guarda-avancada para o Palicio, levando dois canhées com 42 os FACTOs eles. O rumor surdo que acompanha esta marcha desperta os suigos de uma espécie de torpor que se tinha abatido sobre as Tulherias, cada um tentando, & falta de bebida e de comida, dormir um pouco para recuperar as forgas antes do combate. Préximo da meia-noite, os suigos pegam em armas: «Estavam», recordaré Mme. Campan, camareira da rainha, «enfileirados como verdadeiras muralhas, e nesse siléncio militar que contrastava com o rumor permanente da guarda burguesa» Pétion, o novo maire de Patis, que tinha dado a0 mar qués de Mandat a ordem de repelir qualquer ataque, chega nesse momento, ‘do para estimular a defesa, mas para a desorganizar com ordens contradité- rias e, sobretudo, dando garantias aos jacobinos, sacrificando-Ihes o marqués de Mandat que, convocado & Municipalidade, foi af mesmo massacrado a ‘vista do filho, decapitado e depois langado ao Sena. Na realidade, Pétion, nio sabendo ainda quem seria o vencedor, tenta contemporizar com todos, In- sultado pelos guardas nacionais e ameacado de morte, fica apavorado. Hensi de Salis-Zizers tenta acalmé-lo: «Eistai tranquilo, Senhor Pétion, prometo-vos que o primeiro que vos matar ser imediatamente orto...» Uns a seguir aos outros, os sinos de Paris tocam a rebate, chamando as armas uma populacio que, quando raia a alvorada de 10 de Agosto, cobre ja 08 dois cais do Sena e pode ser estimada em uns 30 000 homens, armados de forquilhas, chugos, espetos de ferro, foices e baionetas. Os piquetes da guarda nacional encarregados de impedir a passagem das pontes no fizeram nada disso, chegando mesmo a entregar as suas armas aos insurrectos. A estes, Danton deu como palavra de ordem «pdr cerco ao Palicio, exterminar todos ai, sobretudo os suicos; apoderar-se do rei e da familia, conduzi-los a Vin- cennes ¢ guardi-los como reféns». Com efeito, Danton quer ter um trunfo a fim de, eventualmente, negociar com o duque de Brunswick que, 4 cabeca da coligagio, marcha sobre Paris para libertar o sei. Para treinar a mio, os amotinados, conduzidos por Théroigne de Méri- court, massactam algumas pessoas que acabam de prender 4 sorte: 0 jorna- lista Suleau, monirquico, é certo, um ex-eent suiss, o Senhor de Vigier, um sacerdote... Nove cadiveres sio artastados pela Praca Vendéme e as suas cabegas cortadas levadas em triunfo. Depois do aparecimento de Roederer, procurador-geral sindico da Co- ‘muna, chegado para confirmar a ordem de responder A forga pela forca, Luis XVI decide-se, finalmente, a passar em revista aqueles que vio morrer por ele, quer dizer, por nada. © Marechal-duque de Mailly, com 84 anos de idade, garante-Jhe a fidelidade da nobreza francesa a0 que o rei balbucia um agra decimento no qual trata mais da sua preocupacio pelos «bons cidadios cuja causa é a sua, Sio seis horas da manha quando o tei, saindo dos aposentos em que tinha recebido os seus gentis-homens, desce para 0 patio dos Principes onde os 43 PRIMEIRA PARTE tambores dos suicos rufam em honra do rei. Ele passa-os em revista, sem que pareca vé-los, apitico, sombtio, e prossegue o seu caminho através do patio Real, 0 dos suigos e o de Marsan, curvado, sem um olhar e sem uma palavra ‘Apenas parece despertar no posto estabelecido na Ponte Giratéria onde, ai, responde & saudacio dos suicos. Regressando ao Palicio, é vaiado pelos sans- ‘eubottes,e mesmo pelos attilheiros da guarda nacional que tinham deixado as, suas pecas. Tal como a rainha confidencia a Mme. Campan, esta revista la- mentével fez mais mal do que bem. Roederer, que tinha chegado duas horas antes, reaparece para persuadir © rei de que toda a resisténcia é imiitil. Nao teve grande dificuldade em convencé-lo, mas a rainha indigna-se e recusa ceder sem combate. Suplica ao rei que confie nos suigos € resista, quanto mais nfo seja para salvar a honra, linguagem a que Luis XVI permanece surdo, obnubilado pela pre- ocupagio de nao fazer correr o sangue, sobretudo o dos seus inimigos. Levando consigo a familia, desce a escadaria principal, em que em cada degrau um guarda suico o saida A sua passagem. Ao tomar conhecimento da sua partida, os gentis-homens quebram as espadas, os guardas nacionais ainda figis debandam e 0 major de Bachmann confidencia a um oficial suigo: «O rei esta perdido!» Escoltada por 100 homens da companhia geral dos guardas suigos, conduzidos pelo capitio Rodolphe de Salis-Zizers, a familia real atraves- sa o jardim das ‘Tulherias para se refugiar na Assembleia, que tem a sede nos feuillants. Energimenos, vociferando, agitando a cabeca de Mandat na ponta de um espeto, impedem 0 acesso & varanda e clamam ameacas de morte. Apontam armas 20 tei; um individuo rouba & rainha o relégio ea bolsa. Por breves instantes, roubam o delfim que, por fim, acaba por ser devolvido a sua mie. O capitio Charles D’Eslach abre caminho a baioneta a fim de permitir que 0 cortejo possa entrar na Assembleia. Enquanto a familia real, encetrada na cabine do logégrafo, passa af um dia opressivo, a populaca, acirrada por estes preliminares, passa 20 ataque do Palicio. La dentro, encontram-se apenas os 200 gentis-homens que ti- nham acorrido a defender o rei, mas desencorajados pela desersio deste, 70 granadeiros das Filles de Saint-Thomas, uns trinta policias, alguns artilhei- 108 € 800 guardas suicos, privados da companhia geral e do seu estado- maior, retidos com a familia real nos feuillants antes de terem sido presos. Convém actescentar que a maior parte destes homens nao se alimentava havia mais de vinte € quatro horas e, por vezes, cambaleia de sono, tendo estado de vigiia durante toda a noite. Uma vez que 0 marqués de Maillardoz jé tinha sido chamado & traicao & Assembleia, € 0 capitio de Diirler, o mais antigo oficial dos guardas suigos, que assume 0 comando do regimento. Comeca por feagrupar os 44 Os FACTOS diferentes batalhdes estacionados nos jardins para os afectar a defesa do proprio Palicio. Sio aproximadamente nove horas da manha. A multidio dos assaltantes, consideravelmente aumentada em algumas horas, é ava- linda por certos contemporineos em 100 000 pessoas. A principio, essa turba contenta-se em bramir, arremessar pedras contra as fachadas; depois alguns homens tentam arrombar as portas barricadas. As nove horas € meia, o grande portio do Paldcio, atacado & machadada, cede e deixa entrar no patio algumas dezenas de federados. Em face deles, ao fundo da gran- de escadaria, armas fincadas no chi, esperam-nos quatro companhias de guardas; outros tomam posigio nos degraus, cobrindo-os como se fossem. um grande manto escarlate. Pela brecha assim aberta e por outros acessos que, por sua ver, cede- ram, os federados, reforcados pelos artilheiros ¢ agentes policiais que se bandearam com eles, invadem uma grande parte das Tulherias, mas sio mantidos a uma distancia respeitosa pelos suicos, cujo siléncio e impassi- bilidade os impressiona, Westermann, um dos chefes dos revoltosos, tenta parlamentar com o capitio de Diirler, que recusa capitular, dizendo-the que é responsavel pela sua conduta diante dos seus préprios soberanos, os Cantdes Su‘gos, e faz erguer uma barricada a fim de proteger o vestibulo. Neste momento, ressoam tiros no patio dos Principes, onde seis soldados da companhia de Loys foram atacados com massas e crivados de golpes de varapaus. Quase simultaneamente, os canhdes da guarda nacional abrem fogo contra a grande escadaria, ceifando a primeira fila da escadaria, O segundo tenente Jean-Louis de Castelberg, que tinha apenas o pé desfeito, foi atacado 4 baioneta pelos federados. Entio os suigos ripostam: bastou apenas uma descarga para limpar 0 Patio e cobrir o peristilo de mortos e feridos. Os federados recuam em de- sotdem, Diirler aproveita a circunstincia para fazer uma sortida com 200 homens e limpa a ptaga do Carrousel, apoderando-se de quatro canhdes. Apoiados por uma companhia suiga, os 200 gentis-homens langam uma sortida a partir do pavilhio de Flora e repelem os assaltantes até ao cais do Louvre. Os Zimmermann, pai e filho, um marechal de campo, o outro sub- tenente, limpam com somente 30 homens o patio dos suicos e recuperam trés canhées. Este contra-ataque semeou o terror no campo dos federados de onde alguns recuam até ao faubourg Saint-Antoine, clamando traicio € acusando os suigos de os terem atraido aos patios para os metralhar a queima-roupa. Nio foi preciso aos suigos mais do que um quarto de hora para repelit © inimigo ¢ intimidé-lo, mas no poderio resistir a um segundo assalto porque ja faltam as munigdes. Enquanto reagrupam as suas forcas, um canhio, colocado & porta da sala dos feuillants, abre fogo sobre a compa- 45 PRIMEIRA PARTE nhia geral que tinha escoltado Luis XVI e ficado ali & espera. Ela riposta € a multidio pée-se em fuga. Rodolphe de Salis-Zizers e o capitio Charles Eslach aproveitam para disparar sobre um batalhio da guarda nacional e obrigam-no a fugit precipitadamente. Na Assembleia, a despeito dos gritos de patriotismo e das mogies mais incendiatias, aperceberam-se do rufdo do tiroteio e Luis XVI, sempre preocupado em dar provas do seu humanitaris- mo, manda o conde d’Hervilly levar a0 Palicio uma ordem de cessat-fogo. «O rei ordena aos suigos que se retirem para as suas casernas. Ele encontra- se no seio da Assembleia Nacional» D’Ervilly, tendo lido mal o bilhete do rei, ditige-se a0 Palicio ¢ declara a todos os oficiais suicos que encontra: «Ordem do rei de se dirigirem a Assembleial>, 0 que faz crer aos suicos que © soberano os chama em seu socorro, O general de Viomesnil,fiando-se nas palavras do conde d’Ervilly, limenta essa ilusio: de, nobres suigos, e salvai © rei, os vossos antepassados fizeram-no mais de uma vez» Os tambores ressoam, todos aqueles que ouvem e compreendem o sinal, ou seja, uns 200 homens, precipitam-se, a despeito da metralha, e ditigem-se em coluna para a Assembleia, suportando 0 fogo dos federados e deixando uns cinquenta ho- ‘mens mortos ou feridos pelo caminho, nomeadamente ao pé do grande Iago. Os sobreviventes chegam por fim a sala da Assembleia, semeando primeiro © pinico, antes de suscitarem gritos de ddio: «Carrascos do povo, entregai as armasl» O conde d’Ervilly reconhece demasiado tarde o seu erro: era As suas casernas que os suicos deviam ditigir-se e nio & Assembleia. Henry de Salis € 0 capitio Diirler aproximam-se do rei, protestando que de maneira alguma se devern depor as armas e que, se fosse esse 0 caso, apenas o fariam por sua ordem expressa. Luis XVI confirma-lha e dé ordem de se escrever um. bilhete: «O rei ordena aos suigos que deponham imediatamente as armas e se retirem para as suas casernas.» © sei assina-o € confia-o a Diirler que, através das balas, regressa s Tulherias. Tomando conhecimento desta decistio que 0s entrega, desarmados, aos seus inimigos, os soldados indignam-se e alguns choram de raiva. Salis mandou entio ensarilhar as armas e depor as cartuchei- ras de que os revoltosos imediatamente se apoderam, Metade da companhia sgeral, conduzida pelo porta-bandeira Gabriel Deville’ e pelo capitio d’Erlach, tenta regressar a caserna da Rua Grange-Bateliére forcando a passagem, mas € imediatamente apanhada pelo fogo de varios canhées e a policia montada carrega sobre cla, o que a obriga a retomar o precitio abrigo da Assembleia Aqueles que no puderam fazé-o, isolados dos seus camaradas, sio conduzi- dos 20 Hote de Ville e imediatamente abatidos, despidos, mutilados e depois atirados para dentro de carrocas. Refugiado em casa de amigos, o capitio d’Erlach & af descoberto, arrasta- do para fora e serrado por duas megeras que depois espetam a sua cabega na ponta de um chugo, Enquanto isso, o jardim das Tulherias esta semeado de 6 Os FAcTOS uniformes vermelhos* e cadaveres de suicos futuam nos lagos ¢, no Palicio, 450 guardas suigos continuam a resistir. Agora os revoltosos, tendo recebido reforgos e munigdes do Arsenal, disparam os canhdes sobre 0 Palicio, incen diando os apartamentos. Na grande escadatia principal, escorrendo sangue no qual se escorrega, o subtenente Hubert de Diesbach, com 80 granadeiros de Friburgo, defende-se degrau a degrau, deixando-os juncados de mortos, ¢ depois, quando comecam a faltar os cartuchos, langa-se no combate corpo a corpo, baioneta no cano da espingarda, bradando: «Nao vale a pena viver depois da morte de tantos bravosby A partir dai é a chacina total ~ os federa- dos vio no encalco dos suigos atravessando os apartamentos, espancam-nos e depois entregam-se a uma verdadeira carnificina: os suicos sio esventrados, empalados ou sangrados até 4 morte. Viragos despem-hes as calcas, cortam- Ihes 0 sexo ou fazem rosetas com as suas tripas, outras despedacam o porta- bandeira George-Frangois de Mont-Mollin e devoram-the 0 coragio. Langam. pequenos tambores pelas janclas sobre os varapaus e as forquilhas, outros so langados nas caldeiras das cozinhas reais, que continuaram a funciona, ¢ cozidos vivos. Um tambor de nove anos, que soluga agarrado ao cadaver do pai é pregado sobre este a golpes de baionetas. Os médicos sfio massacrados enquanto prestam os seus cuidados aos feridos. As cenas de sadismo e de canibalismo multplicam-se, ante os olhos de uma testemunha apavorada, 0 inglés Fennel, que vé criancas disputarem cabeeas, bragos, pernas, enquan- to os pais jogam as marionetas com os cadaveres, pondo-os de pé e depois assentando-Ihes bofetadas e fazendo chacota: «Ab! que bom soldado! Uma bofetada fi-lo cairl» Bonaparte, que primeiramente tinha assistido de longe 20 assalto, e deplorado a fraqueza de Luis XVI, exclamando: «Che coglione!», onstata que as megeras ¢ as viragos nio so as tinicas a desonrar 0 seu sexo: «Mulheres bem arranjadas entregam-se as piores indecéncias sobre os cadé- veres dos suicos» Existe uma origem sexual neste sadismo: com efeito, os suigos, em geral belos homens e de uma altura superior a da média dos fran. ceses, passavam por amantes vigorosos, muito procurados pelas mulheres, ¢ naquele dia as desdenhadas vingam-se. Na cimara da rainha, em que cinco homens se refugiaram, em companhia de uma senhora de idade e de uma jovem, os marselheses comecam por lan- ar as duas mulheres pela janela, depois degolam trés dos suigos, cortam as petnas do quarto antes de o langar também pela janela, mas no conseguem. agarrat 0 quinto, o granadeiro Fonjallaz, que lhes escapa trepando pelo cano da chaminé onde ficari escondido durante dezoito horas antes de ser salvo por um parisiense. Se, por vezes, os federados poupam as mulheres, como foi o caso de ‘Mme. Campan, mostram-se impiedosos para com os suicos que tentam fugir das Tulherias para regressarem 2 Courbevoie, fuzilando-os quando chegam a 7 PRIMEIRA PARTE Praga Luis XV. Alguns conseguem refugiat-se no Héte! de la Marine e outros so recolhidos, depois escondidos pelo embaixador de Veneza, na Rua Saint- Florentin. O conde de Montarby, que se defende com alguns guardas suicos, encostado & estitua de Luis XV, consegue salvar varios deles. Um guarda nacional, Tasset, arranca aos scus compatriotas ¢ as suas baionetas dois pe- quenos tambores suicos, que solucavam sobre o corpo do seu pai. A medida que decorre a tarde € que o Palacio comega a emergir da espessa uve de fumo dos combates ¢ dos incéndios, a loucura sanguinéria, apeli- dada por Rosbepierre de «ustica revolucionariay, estende-se até Courbevoie onde se encontram uns cinquenta guatdas suicos, a maior parte deles doentes, que so degolados, depois a Rueil, onde perece ainda uma quinzena de guar- das, incapazes de se defender, por falta de munigées. Na capital, € a caga aos suicos, mesmo Aqueles que nfo tém nada de suico, como os porteios de palé- cios particulares e os guardas de igrejas, a todos os que usam uma vestimenta vvermelha, tal como aquele arquitecto, Meulan, massacrado porque tinha um vvestuatio dessa cor. \ justiga popular nao se prende com detalhes. Nos feillans, onde esta sedeada a Assembleia, ficou prisioneira uma cen- tena de guardas suicos que os deputados declararam enfaticamente «sob a salvaguarda da lei ¢ das virtudes hospitaleiras do povo francés», Quando vie- rem a recordar esta salvaguarda a Danton, ele contentar-se-d em responder: «Queto li saber dos prisioneiros; que Ihes acontesa o que eles quiseremb Alguns deles esto feridos, outros moribundos, que a populaca, rugindo as portas, reclama Ihe sejam entrepues para acabar com eles. Guardas nacionais, revoltados com as cenas de carnificina a que tinham assistido, arranjam ves- tuitio civil aos mais validos dos guardas suigos que lhes permita fugir para vaguearem em seguida em Paris onde os bébados dangam a carmagralé’ 08 cruzamentos, agitando pedacos de carne humana na ponta dos seus espetos. Para alguns deles, as tréguas so curtas. Romain de Diesbach, de 19 anos, salvo com outros oficiais suicos gracas ao deputado do Alto Reno, Bruat, tinha encontrado refiigio juntamente com o seu amigo Frédéric d’Ernst em casa de um tio deste tiltimo. Denunciados, sio os dois presos e conduzidos & Abadia. Ao cabo de uns dias, comparecem diante do Tribunal revolucionatio: «Nao percamos tempo a interrogi-los», declara um juiz, «so todos culpados.» Condenados sem serem ouvidos e sem poderem defender-se alegando, por excep¢ao, a sua nacionalidade estrangeira, sio empurrados em direccio a sat da, onde os degoladores 0s aguardam. Romain de Diesbach, desprendendo-se do abraco dos seus camaradas, desvairados pelo stibito desenrolar do drama, exclama que sera o primeiro a morrer para Ihes dar o exemplo e acrescenta: «Ficai sabendo que nfo receamos a morte que era nosso dever enfrentar por causa de vos nos combates!» Cai sob os golpes de sabre ¢ de baioneta. Os seus camaradas partiham a mesma sorte. 48 Os FACTOs Em 2 de Setembro, 0 capitio Rodolphe de Reding, ferido em 10 de Agos- toe tratado na capela da Abadia, élevado 20s ombros por um guarda enquan- to outro, com o seu sabre, o decapita. Na prisio de la Force, 50 guardas sucos morrem 20 mesmo tempo que a princesa de Lamballe. Se 0 marqués de Maillardoz é massacrado em 2 de Setembro com tais requintes de crueldade, a sua mulher, ao ter conhecimento disso, perde para toda a vida o uso da fala, 0 major de Bachmann, esse, é guilhotinado em 3 de Setembro, em frente is Tulherias, depois de um processo iniquo em que E acusado de «perversidade individuab.. Jé em cima do cadafalso, contenta-se em proclamar com voz forte: «A minha morte serd vingadaby Nas jornadas de 10 de Agosto ¢ de Setembro, foram mortos, muitas vezes de maneica atroz, 26 oficiais, 850 suboficiais e soldados. O minimo que se pode dizer € que 0 10 de Agosto produziu na Sufga um feito deplorivel, inspirando as familias das vitimas uma repugndncia invenef- vel pela Repiblica Francesa, resultante de um banho de sangue, repugnincia acrescida pela invasio da Suica em 1798, Nao contentes em pilhar sistema- ticamente o pais, de 0 esmagarem com impostos ¢ requisigdes, os franceses, brandindo com uma mio um facho e com a outra a Declaragio dos Direitos do Homem e do Cidadio, repetindo a saciedade as palavras virtude, justica e liberdade, fizeram ai virios massacres com grande especticulo, encerrando a populagio na igreja e pegando-Ihe o fogo, como em Stans, ou em Unterwald, onde nove igrejas foram queimadas com os habitantes das aldeias. Sob a Restauragio, os restos mortais dos guardas suigos, descobertos nos cemitérios nas cercanias da Madeleine, foram depositados na capela mortui- tia antes de serem transfetidos para as catacumbas. Na Suica, em Lucerna, foi inaugurado em 10 de Agosto de 1821 um monumento grandioso, da autoria de Thorwaldsen, na presenca dos sobreviventes e de numerosas personalida- des. Quando, em 1992, as familias dos suigos massacrados em 10 de Agosto de 1792 pediram a celebracio de uma missa em Notre-Dame, na falta de uma «repentance» do governo francés, no entanto sempre disposto a este género de cexercicios, esta satisfacio foi-lhes recusada. A ceriménia teve lugar n0s Ima- ‘ides, depois de uma recep¢ao na embaixada helvética, onde um conselheiro federal declarou simplesmente que «os guardas suicos no se posicionaram no sentido da hist6riay, Eles ter-se-iam sem diivida salvo se tivessem pactua- do com os amotinados. Vaeviis... Gunstaiy De Diessacn, Escritor 49 Iv A REVOLUGAO INTERMITENTE. FRAGMENTOS INTEMPESTIVOS DE HISTORIOGRAFIA POS-REVOLUCIONARIA A historia que se faz da Revolugio depende em parte da recomposi¢io politica que a sociedade faz dela; requer simultaneamente uma sociologia do seu mito ¢ a desmitologizacio da sua heranca, a menos que se aceite ficar prisioneizo de um acontecimento encerrado no quadro ideolégico que o produziu e no destino do qual os seus actores acteditaram selar 0 nosso. 1. REVOLUTIO PERENNIS: O OBJECTO DENTRO DO ACONTECIMENTO! © jacobinismo entre Liberdade ou Igualdade A histéria da Revolugio cedeu sob o peso da sua propria historia eo histo- riador udeve anunciar as suas cores. A andlise liberal nio foi retomada seni contra a anilise social. Deveremos nés ter de escolher entre liberdade e igual- dade, entre Estado e sociedade? O problema é originado por uma «dupla» confusio do Estado e da sociedade: a confusdo igualitéria que se fundamenta sobre o paradoxo de uma dissolugio da sociedade através da sua abstraccio estadistica (dentro do Estado) e a sua inscri¢io partidaria (dentro dos partidos politicos); e a confusao liberal que se fundamenta sobre o paradoxo utilitarista de ‘uma dissolugio do Estado através da particularizagao dos interesses sociais ¢ a sua insctigio corporativista (com a produgio de novos corpos intermédios, privilegiados). Este duplo paradoxo, esta dupla confusio, constitui a mesma matriz jacobina de uma quantidade de tendéncias, Estrutura a sociedade em sindicatos e partidos e o debate piiblico em programa c em reivindicagdes, em promessas e em decepedes. O jacobinismo é 0 mesmo plano de imanéncia que se constitui, portanto, em pluralismo ilusério, Aqueles que se deffontam ou debatem sio as espécies de um mesmo género de jacobino fundado sobre a dissolucio da diferenca Estado-sociedade na inversio do conceito politico, 50 os FACTOS na passagem do bem comum (que ¢ um fim) ao interesse geral (que é um meio), na instrumentalizagio do politico pelo ideolégico. A Revolugio «jacobina» foi o mito de uma igualdade que se acreditou que, por meio da virtude generalizada, produviria liberdade e sociedade ¢, 120 querer uma realidade que as produziria a todas (as liberdades individuais e colectivas), ela celebrou o seu divércio, O comunismo considera que a fe- licidade social legitima uma tirania ade transigiion acaba por preferir a sua tirania a propria felicidade que se acredita que ela edifique; o liberalismo, pelo contritio, ulga que a felicidade ¢ mediatizada por uma liberdade de indife- renga e também ele acaba por preferir © meio ao fim. Poderfamos dispensar um € outro, de costas um para o outro, quando afinal cles sé estiveram na histéria contemporinea face a face, e foi mesmo este face a face cinico que determinou os dois séculos que nos precedem, A Revolugio estabeleceu as referéncias desta oposigio que é sua polaridade, o seu movimento dialéctico, ‘a sua Coincidentia oppositorum. A liberdade do liberal é totalmente psicoldgica, nio ¢ historicamente mais do que uma vontade de poder e a sua desregulacto esconde de facto a supressio de um diteito protector dos mais fracos, é a so- brevivéncia de uma oligarquia adaptada ao jargio democritico. A sociedade do comunista no é mais concreta, uma vez que ela se resume historicamente 4 instalagio de um sistema carceritio generalizado, Entre a prisio e o direito do mais forte, o contemporineo é esmagado: a tirania ou a oligarquia, ainda que ambas revestidas com o nome de democracia que clas conjuntamente rei- vindicam (liberal ou popular), sto perigosissimas regressdes politicas, como se o homem, seguro da sua longa experiéncia, no tivesse sabido produzir ‘mais do que regimes, certamente sofisticados quanto ao funcionamento, mas tertivelmente primitivos quanto ao principio. «Os» TEMPOS DA REVOLUGAO Em historia, escrever é fazer. E. nenhum acontecimento emerge da fac- tualidade ainda inominada a niio ser que seja escrito, a menos que seja his- toriado, A historiografia da Revolugo Francesa é importante nio somente em razo do acontecimento que apreende, mas também porque ela mesma se define a partir dele. A Revolucio ¢ a sua historia estéo ligadas a uma filosofia da historia: escrever a revolucio é conceber a histéria, € produzir a partir dela uma concepgio da histéria, uma inteligéncia da historia. Na historiografia da Revolugio, a ideia e o ideal prevalecem sobre a ordem hi- potética dos significados. O que significa a Revolugio, o seu ideal ou a sua abstraccio? A resposta é dada quando a Revolugio deixa de ser o centro ¢ a hist6ria cultural responde ja nfo por uma construcio do acontecimento, mas pela sua desconstrugio e pela sua fragmentagio, O que se perde em 51 PRIMEIRA PARTE unidade de sentido ganha-se em pluralidade de abordagens. A Revolucio «polissémica» j4 no é compreendida, embora sirva a partir de agora para compreender: é também «polifénicay. Estas duas fungdes no sio basica- mente contraditérias, elas indicam os limiares a ulteapassar, as alturas a res- peitar quando se quer escrever. Francois Furet levou até af ao reler os seus predecessoses’. A Revolucio nunca mais ser4 0 monélito que foi e que ainda é, por vezes, na alma colectiva dos povos. Isso é, religiio e no histé- tia. Quando a Revolusio se faz Revelacio, ela pretende set um fundamento novo da vida social ¢ os seus historiadores tornam-se tedlogos no desempe- nho de uma fungao teleolégica no seio do organismo social. Estas teologias acumuladas niio so mais do que uma utopia a estudar pelo historiador das representagdes ou pelo socidlogo da cultura. Existe, todavia, a irredutivel materialidade de um pasado que nao se pode por de parte, o mistétio de um facto que dura indefinidamente e se comunica de geragao em geracio, continuando a inflamar aqueles que se determinam a favor ou contra aqui- Jo que recebem, a favor ou contra, A linha liberal - marxista — ou a linha contra-revoluciondria produziram uma hist6ria truncada do «significado» Revolugao. E necessario passar a historia do «significante» Revolugio. Esta historia coloca subjectivamente trés séries de questdes. Ha antes de mais a questo da meméria que incide sobre o passado do presente. De que maneira € que o acontecimento histérico da Revolugio esta presente, sob que formas e quais sio as questdes que fazem emergir dele a probabilidade? Esta meméria pré-cientifica pode constituir 0 objecto de uma ciéncia extremamente fina’, Vem de seguida a questio da intuicio que trata do presente do presente. O que é que esta a preparar-se neste contemporineo? Sera que vivemos o fim das construcées antigas?* O que ‘vem a seguit? E como é que o conhecimento da Revolugio pode ser ad- quitido nesta evolugio? Aparece, finalmente, a questio da promessa que incide sobre o presente do futuro. Como enfrentar aquilo que vem af? Todo 6 acontecimento na sua actualidade defronta esta temporalidade «psicol6- gica», e € neste confronto que ele encontra a sua historicidade. Uma leitura filoséfica é, portanto, capital, mas ela é ou ut6pica, ou ideolégica. A forga de uma historia consiste em evitar a alternativa filoséfica entre a utopia e a ideologia, 20 apresentar ao mesmo tempo a ideia de um sentido ou de uma questo filosdfica da histéria, Consiste também em colocar-se entre estes dois extremos que sio 0 ideal e o sistema, em aderir & realidade das coisas. ‘A finalidade de um alivro negro» nfo é 0 de opor uma lenda negra a uma lenda dourada, mas de convidar a reflexao. O debate nao deve acabar nun- ca porque constituiu sempre o motor de uma renovagio social e cultural, com a tinica condiao de um plutalismo real, de posigées reais a discutir. «istabelecer-se» € aqui impossivel. Ninguém se instala na Revolugio Fran- 52 os FACTOS cesa como se desposa uma opinizio, mas confronta-se consigo mesmo’. A Revolucio é uma conflitualidade fundamental, de realizacio, de leitura e de escrita, Nao se trata de se fazer contabilista do passado, mas de recusa em se deixar tiranizar por cle, de virar a pagina sem a apagar, de ver 0 que a Revolueao fez nascer e ver 0 que ela fez morrer para compreender também © que esté em vias de morrer ¢ 0 que esta para nascer. Afirmar que a Revolugio Francesa especificamente francesa ¢ nomear esta diferenca especifica’, que faz com que a Revolugio Francesa seja, apesat dos paralelos que se devem tracar ¢ das inevitiveis analogias, uma espécie sé dela (no 0 género de uma realidade comum, mas a espécie de que nio existem géneros), dizer ¢ fazer isso nao equivale a dizer que a Revolucio é uma excepcdo francesa no sentido em que a identidade francesa se esgotaria no acontecimento da Revolugio, Em suma, a Franca no é a sua Revolucio, ainda que a sua Revolucio seja exclusivamente sua, E. precisamente este distanciamento que determina o conflito das interpretagdes. Porque, fun- damentalmente, quem quer explicar a Revolucio quer explicar também o que a Franca é ou o que nao é. A historiografia da Revolugio Francesa tem wma coisa de uma ontologia da Franga, «O que é a Franca?» pergunta im- plicitamente o historiador da Revolucao. Deste modo, ele quet conhecer 0 objecto «Franca e negligencia 0 objecto «Revolucio». A novidade consiste no interesse pelo wobjector Revolucio. Desde ji, a historia da Revolucio guer-se menos holistica, mais analitica do que sintética; as grandes histérias da Revolucao? dao lugar a estudos mais precisos sob determinado aspecto, a vontade de explicar traduz-se no desejo de identificar mecanismos que nao estio confinados & introspeccio. Passou-s revolucionéria para a de um inconsciente revolucionatio ou, pelo menos, de tum «desconhecido», de um «ignorado» pelos proprios actores, de uma his t6tia menos ébvia, menos passional, menos automaticamente epidérmica, menos sensual, menos livre do lado dos actores, mas bastante mais do lado dos historiadores. e de uma histria da consciéncia Interpretar nao € restabelecer uma contemporaneidade impossivel, é, antes de mais, procurar o sentido de acontecimentos que s6 eles emergem do tempo que passa, de uma disténcia que nem sempre € tio terapéutica quanto se poderia esperar. A histéria é mais a medicina daqueles que ela in- forma do que o juiz daquilo que Ihes ensina. A historiografia da Revolugio Francesa & sucessio deste género de esforcos, pelos quais os homens, des- de ha mais de dois séculos, esto & cabeceira do «nal misterioso» que atingiu a sociedade e 0 seu conceito desde o dia em que um acto de fraternidade efémero e sublime fundou a liberdade pablica sobre a paixio social da igual- dade. Fazer de uma virrude paixio, é sempre foi correr o risco de nunca mais ver as coisas tais como elas sio, para as substituir pelo horizonte de 53 PRIMEIRA PARTE ‘uma espera jamais realizada", de dar 4 cidade um horizonte religioso ima- nente nela (¢ jé nao transcendente). Verificamos duas maneiras de organizar 0 factos que se tinham consumado, de escrever a sua histétia: segundo uma ideia antecedente ou segundo uma ideia subsequente, segundo a ilusio de que uma ideia tinha constituido a sua origem (0 Estado), ou segundo 0 erro de que estes factos podiam produzir por si mesmos uma ideia, uma ordem nova (uma teocracia laica). Perdoar-se-4 a0 autor do que se segue que ele admita globalmente como insuficiente, incompleto € esquemitico, mas reconhecer-se-4 certamente ele tet a honestidade de apenas o propor prudentemente a outros que terio, sem diivida a disponibilidade de melhor ‘tratarem o assunto, Para compreender uma construgio mental, um objecto como a Revolugio Francesa, partiu-se geralmente de uma filosofia da histé- ria, quer dizer, ao fim e a0 cabo, de um certo de-dentro ou de-fora dos factos, de um tempo inteligente, ordenado por um prazo intencional e apontado 20 progresso da humanidade. A ideia de progresso exige da sua tematizacio particular que ela seja o proceso critico da sua pretensio. A Revolucio foi entio pensada como uma ruptura, tanto pelos seus faniticos" como pelos seus adversirios!”, Depois, Tocqueville criou a primeira revolugio dentro da Revolugo, foi um dos primeitos «nio-crentes» demonstrando que cla era uma continuidade, uma realizagio no cumprimento do Ancien Régime. A Revolucio tornou-se ento a chave de uma dialéctica: tinha sido engendrada por aquilo que ela tinha destruido. A Revolucio tinha matado, é verdade, ‘mas tinha morto as suas proprias raizes, negado a sua origem. Para se pensar como origem pura, teria sido necessério apagar cuidadosamente o rasto ¢ a heranca. Tocqueville exumou os corpos que se acreditava estarem definiti- vamente mergulhados na cal e absiu, assim, testamentos assustadotes. Com ele, a ideia de uma Revolugio absoluta tornou-se impossivel. As cadeias de Tocqueville eram menos penosas do que as de Michelet, porque a interpre~ taco (niio-crente) liberta quando o relato (crente) aprisiona. Bla nio faz uuma contabilidade, quer compreender 0 que esté no coracio do presente € onde ja se insinua 0 futuro, O nosso presente é 0 ponto de pattida da Revo- luo Francesa. A causa vem depois, a origem é 0 agora. A Revolucio nio é ais do que a infancia do nosso presente, no sentido de que ela explicaria 0 que nés somos, o que nés vivernos; esti nela também a velhice, o fururo do nosso presente, a promessa de um presente ainda ndo consumado, porque o destino da Revolucio foi o de fazer entrar a histéria na ordem do nio con- sumado, E nisto que ela é transcendental, embora nenhuma transcendéncia a sustente. A Franga contemporinea nao vem da revolucio, destina-se a sé-lo; desde ha dois séculos, ela dirige-se ai, fracturando-se ao pensat a sua historia como uma sucessio de rupturas e de choques. E a propria légica da igualdade: a Revolucio € sempre um futuro ¢ um 34 os FACTOS puro futuro, uma chaga sempre aberta, Em 1789 0 tempo voltow atras. E quanto mais nos afastamos, mais nos aproximamos, mais retomamos © ponto origem. Marx qualificou-a de Revolucao burguesa, de revolucio inacabada fechada sobre uma conquista do poder e, por conseguinte, fe- chada 4 transformagio do mundo. A Revolugio seria uma falsa revolugio ‘que foi bem-sucedida. Na historiografia marxista, tornou-se entio a filha da Revolucio Russa, a verdadeira revolucio que fracassou. Para Edgar Quinet, ela foi, antes de mais, uma verdadeira revolusio falhada, o que lhe permitiu critici-la sem a aniquilar. A histéria oficial liberal e acomodaticia, cujo esforco louvavel foi o de esconder as feridas, de evitar os rancores e que foi atacada tanto & sua diteita como 4 sua esquerda, promoveu o tito € a come- moragio. Mas hoje esta histéria oficial j4 nfo é mais do que uma sucessio de celebragdes nas quais jé ninguém acredita ou faz de contas que acredita"*. E 0 estilo pompier do Panthéon: continua-se a celebrar um culto idolos que se sabe bem nio existirem, porque até a Razio desceu, ha muito, dos altares da patria ou das arvores da liberdade. A prosopografia daqueles que tém escrito sobre a Revolugio France- sa'8, mesmo a mais resumida, ultrapassaria largamente em volume o que é preciso que um homem conhega dela. Nao sio necessarias grandes anilises para aprender a profundidade de um objecto, por mais complexo que seja, mas ¢ infinitamente mais improvavel expressar 0 que é esta profundidade, Em suma, a prosopografia nio é ontologia. Ha que deixé-la aparecer na sua dimensio mais fenomenal. Foram muitos os que escreveram, mas poucos 0s que pensaram, no que fossem incapazes de o fazer, mas o que eles es- creveram devia servir para justificar ou destruir a justificaglo, ja que escre- veram uma teologia sem Revelago, quer dizer, uma tautologia (uma vez que a distincia entre a verdade eo dogma ou a sua expressio jé nio é garantida), porque a fé deles no repousa sobre qualquer transcendéncia, Francois Fu- ret deixou de crer na Revolugio quando a quis pensar", dar antes a pensar do que dar a cret. A sua posi¢io nio exige uma adesio de principio, mas novas questdes. Ele é o primeito republicano de esquerda que libertou mito da sua meméria de aparelho, profeta de um establishment que se liberta asi mesmo daquilo que fazia a coeréncia do seu sistema, Denunciou a vul- gata do seu proptio horizonte em nome da historia e da sua ciéncia. A besta revoluciondria deixara de ser sagrada desde Tocqueville, mas ele retirou-lhe 08 seus tiltimos ouropéis que eram marxistas”. O SANGUE DO TERROR No século XVI, 0 patriménio ¢ a sua heranga ultrapassaram simbo- licamente 0 sangue. O sangue perdeu o seu valor genético. Deixou de ser 35 PRIMEIRA PARTE © sinal de nascimento ¢ tornou-se o apanigio da massa ¢ das guerras de ‘massa, 0 sinal do sacrificio e da morte. A Revolugio confundiu a igualdade a liberdade em conformidade com esta nova concepgio politica da liber- dade. A liberdade deixou de set uma virtude atistocratica fundada sobre © privilégio do sangue ou sobre a capacidade de um homem se impor, de resistir, mas passou a ser uma paixio democritica, um passatempo popular, que se atribui ao da mesma posicio social, aquele que nela continua e nela sensatamente se mantém. Sé é livre o amigo desta liberdade, segundo o adagio popular. A liberdade ¢ uma recompensa e deixou de set uma con- quista, j4 nao o limite que se rejeita, mas um certo otium que o mundo dos negécios (negotivm) vos concede. A democracia nio é criadora, mas funda- mentalmente conservadora ¢, mais ainda, autoconservadora, uma vez que la se confunde com o seu objecto (Felicidade comum). A ideia de Corte de Luis XIV esté impressa nela. A invencio da sociedade francesa contempo- rinea é 0 sistema «Versalhes» da mutilaio das elites tradicionais. E talvez por isso que nos sentimos tio préximos do Palicio, porque estes locais sio mais franceses do que Marianne, porque a austriaca Maria Antonieta corre mais no sangue dos franceses do que no sangue de Robespierre, no porque cla seja a vitima ¢ ele 0 carrasco, mas porque 0 assassinato fez nascet mais, intensamente 0 que cle matou. © mimetismo monirquico esta por todo 0 lado, desde 0 topo ao fundo mais secreto. Nunca 0 povo censuraré aos seus senhores as tendéncias que partilha com eles e 0 gosto pelos «ouros. episédio do Terror é a grande rugosidade da Revolucio Francesa. Para uns, trata-se de um dano colateral, de uma derrapagem, uma deriva, ‘um acidente intolerével devido a circunstincias em si mesmas intoleriveis, uma subversio do ideak, para os outros, 0 Terror é 0 verdadeiro rosto de 1789, © movimento ditado pela sua légica interna, uma subverséo pelo ideal. Mas como é que circunstiincias tio excepcionais poderiam explicar uma inclina- do da humanidade para o assassinio e para a violéncia? Mas como é que uma légica interna que se poderia fazer remontar & propria monarquia e por que nao até a propria ideia de Franca poderia resolver-se no drama do Ter- 108? O Terror nfio é nem subversio do ideal nem subversio pelo ideal. Ele é a propria violencia do ideal, de todo 0 ideal, porque o ideal no pode deixar de colocar a questio do mal e da salvagio. O trabalho de Patrice Guenitffey & nisto exemplar: vem abrir a via a uma tenovacio dos estudos sobre a Re- volugio Francesa"*, Ele atinge uma inteligéncia absolutamente notivel do ‘Terror separando-o do problema da sua ligacio 4 Revolucio e da ligacio da Revolugio defesa dos «adquitidos» da Revolugio. O terrorismo é, em ptimeiro lugar, preventivo: suscita o pavor; em seguida é repressivo, mas nio reprime o que setia o resultado de um fracasso da sua «prevengion. E justamente porque o seu Terror tem sucesso, é quando o medo triunfa que a 56 os FacTos violéncia se desencadeia. No fundo, o Terror encarnicou-se sobre adversé tios que no existiam, sobre fantasmas, mas matando individuos bem reais. A sua violencia no foi funcional. Nao foi mais do que 0 culto necessério do medo. A violencia é a titualizagio do medo que ela suscita, Na realidade, para ser eficaz e para evitar a rebeligo, é preciso representar concretamente © virtual. A guilhotina, os afogamentos ou as colunas infernais situalizaram (© que o discurso estava precisamente em vias de estilizar”. Sea democracia ¢ principio de autoconservagio ¢ o terrorismo principio de auto-teferencialidade, seria interessante encarar a relagio (pelo menos te6rica) dos dois termos. Ja se conhece a rela¢io entre imperialismo e de mocracia, ¢ sabe-se que uma democtacia no interior pode funcionar como tum imperialismo no exterior. Mas nifo se trata de teorizar excessivamente ‘Terror, que continua a constituir um acontecimento contingente da histéria, com a sua espessura propria ¢ a sua irredutibilidade. Arriscar-nos-famos a fazer dele um género de uma espécie que levaria a procutar encontrar os predmbulos na hist6ria a partir de uma gencalogia da violéncia na qual 0 Tertor ficaria lado a lado com a Inquisigio € com Bin Laden, Este género de paralelismo niio faz muito sentido, Porém, 0 acontecimento contingente mostra-nos, pelo menos, que ha combinacdes paradoxalmente possiveis, nomeadamente quando a paixio da igualdade toma a forma de aniquila- mento de uma populagio porque ela é construida pelo seu assassino como representagio do que Ihe faz a ele obstéculo, A democracia é fandada sobre a igualdade ou sobre a liberdade? Dito de outra forma, na ordem das pro- cesses, a liberdade procede da igualdade ou a igualdade procede da liberda- de? Paradoxalmente, a fraternidade, 0 acto pelo qual homens que a ordem social separava se uniram para tomar o poder ao rei —, acto de transcendén- cia, uma vez que abandonaram as suas identidades por uma nova que teria de ser construida este acto foi imediatamente esquecido. A fraternidade ab-togou as ordens do sangue e da fungio social para as restabelecer pron. tamente nos espiritos. A nacio come¢ou pot uma integracao de todos para acabar na eliminacio de alguns. O ‘Terror € 0 fracasso do juramento do Jeu de Pawme, A verdadeita cesura separa a liberdade fundada sobre a igualda- de (imanéncia) da liberdade fundada sobre a fraternidade (transcendéncia), entre uma mistica da identidade (0 novo pattiotismo) ¢ a amizade daqueles que tudo separa (0 antigo patriotismo). ‘Tratava-se de restaurar ou o antigo contrato social ou criar um novo. Foram estas as duas linhas dos actores da Revolugio. A Revolugio Francesa quis as duas: sabe-se hoje que 1789 niio foi mera- ‘mente uma etapa liberal e que 1793 nao foi meramente uma etapa igualitiria. A liberdade no pode ignorar completamente uma ideia de justica, mas a igualdade nao saberia ser toda a justica, e hi também em tudo isso a equi- 7 PRIMEIRA PARTE dade, a segutanca, a tranquilidade, a satide, a educacio. A violéncia tem um fundo antropolégico (o homem social), histérico (os precedentes na histéria da Franca), ideolégico (a propria légica dos discursos revolucionarios) ¢ po- litico (a conquista e © dominio da cidade). Em suma, o esquema da violéncia complexo: uma sociedade nio igualitaria contém violéncias que a passagem_ igualdade no fax desaparecet, mas que ela propria pode acusar, criando ‘uma reaccio mais viva a essa realidade. A relac&o com a realidade é nebulosa: a paixio do real € 20 mesmo tempo a negacio do real, paixio como ilusio de que se pode transformar aquilo que ¢, submeté-lo a uma pura vontade colectiva, negacio como ilusio de que se pode reduzir esta vontade colectiva Aquela paixio do real. Quer-se mudat uma realidade & qual ja nem sequer se presta atengio. ‘O ano de 1789 nao ¢ separivel do de 1793 e 0 crime nio aproveitava a nin- guém. O problema consiste na falta de um objectivo como alibi. Nao se pode explicar nem o acto terrorista nem isentar o Estado desse acto. O mattitio de uma populacio, o exterminio sistematico de uma populagao em razio do simples facto de que ela existe, nao pode ter um mébil nem um Alibi, pois acto compromete, simultaneamente a responsabilidade publica ea sua loucura: é 0 sinal do mal absoluto, Por absoluto entende-se uma série de males que no se relaciona com um qualquer interesse ¢ que no encontra qualquer justificacio, por mais odiosa que cla seja. Ha tantos meios de manipular, de subverter, de comprar as multiddes! Este episédio manifesta 0 mecanismo do mal tal como cle se encontra por vezes na histéria. O homem abstracto (a ideia do homem) é exaltado quando o homem conereto se torna num vulgar animal, carne para canhiio ou objecto de experimentacio cientifica. F, verdadeiramen- te o Homem com maitiscula que foi celebrado em 1789. O homem concreto (este ou aquele) ficou como piria de um sistema filos6fico que nio queria embaracar-se com miseriveis individuos particulares. Certamente, aqueles que em Nantes afogavam os homens concretos nao eram os que imaginavam © homem ideal em Paris, mas tanto uns como os outros exam produtos de um mesmo sistema. ‘A histéria visa mais lancar a perturbacio ou, pelo menos, a divida na boa condugio das comemoragdes do que dirigir a ceriménia, Ea historia contra o culto, a interpretacio contra o relato, a recusa de uma damnatio Historiae. Uma celebracao é raramente outra coisa que niio seja a celebracio daquele que celebra. A celebracio é sempre mais ou menos a organizacio do seu ptdprio culto. Uma comemoragio (um bicentendtio) nunca é senio munificéncia de um presente em crise. A meméria é sempre o fruto de uma auséncia ¢ a tentativa de uma reactivacao de sentido para os contem- potiineos, de um sentido que seja um consensus. E isso impossibilita falar de assuntos que abortecam ou que dividam, descobrir que os grandes homens 58 os FACTOS © sio raramente para além do seu préprio culto ou representacio, descobsir que 0s acontecimentos fundadores raramente escapam a mesquinhez ¢ a violencia dos grandes homens; porque af se joga o pligio de figuras pro- ‘metaicas ou narcisicas. A Revolugio é grande como o é geralmente aquele diante de cuja campa as pessoas se prostram sem conviceio; mais ainda, uma divindade pag ¢ uma evanescéncia ou desmaterializagio fundamental do tempo. Ela é grande com a condigio de que se detenha no limiar da sua representagio, Por um lado, leva consigo a mesquinhez ¢ a violéncia dos seus homens; por outro, carrega o crime dos conquistadores do poder. Nao hd conquista que no seja sanguinaria. © problema é saber de que sangue se trata e donde vem o crime. Acidente da histéria ou sentido da histéria? Serd culpa de alguns ou uma estrutura em si mesma pecaminosa? A violéncia & Ihe intrinseca ou no? Seré um «efeito colateral» da conquista ou o préptio espirito da conquista? Parece dificil responder com preciso, mas ainda 0 & mais afastar a possibilidade desta questio. Isto no quer dizer que se possa atirar a violéncia revolucionéria para 0 nivel do secundario e do acidental. A questo constitui uma chamada a aprofundar os tracos intrinsecos dessa violncia ¢ que ela no péde destruir. As comemoragdes so funerais que ‘uma nagio que nio se pode encontrar organiza para si mesma. Alguns cho- ram as suas antigas recordagdes da escola, dos velhos catecismos veneraveis € outrora titeis, e tém saudades do tempo dos simbolismos acomodaticios com 0 passado, do tempo do consenso, da imagem virginal da nagio, da boa consciéncia colectiva. Alguns entre estes mantém as velhas lutas de antigamente contra um clericalismo que apenas subsiste nas sacristias, Ou- tos, os mais numerosos, que nao vivem nos bastides do Estado, trogam perdidamente dessas lutas e até nem se apercebem de que uma sociedade esté morta. A Revolugio € hoje a nostalgia da Terceira Repiblica quando jd se fala de uma sexta, jd a tender para uma sétimal A teocracia laica é um «politeismon. Il. REVOLUTIO PRO TEMPORE: O SIMBOLO NO OBJECTO” A HERANGA INCERTA «A nossa heranga nio é precedida de qualquer testamento» Hannah Arendt apresentou um precioso comentério a este aforismo de René Char”. Se a nossa heranga revoluciondria nao € precedida de qualquer testamen- 10, entio resta-nos escrevé-lo; se a Revoluco € um comeco absoluto, 0 mito do comego absoluto, nese caso o tempo que ele funda nio € seniio 59 PRIMEIRA PARTE © empreendimento colectivo de o fundar. Fundar a Revolugio depois da Revolugio, € a isso que o mito do comeco absoluto condena. As histérias, da Revolucio (favoraveis ou nao quilo que elas admiram ou detestam) nunca sio mais do que a procura de fundamentos a posterior. Mas como encontrar no futuro o que fundamenta a sua origem? A Revolucio que no tem comeso nem fim, que € comeco ¢ fim, abre uma ebrecha entre 0 passado ¢ o futuro», Desde que a Revolucio é concebida como «origem», cla nao pode ser senio revolucio permanente, senfio uma presenca. Ora, a revolugo permanente nao existe em sinicto sensu porque as sociedades no podem resistir a0 género da inversio permanente: uma sociedade estabelece-se segundo uma ordem e segundo o estabelecimento de estru- turas que se consideram entio como definitivas, uma sociedade no pode pensar-se como proviséria ou transitétia, Ora, é precisamente 0 que faz a ideia de revolugio permanente. E precisamente o que é socialmente im- possivel. «Revolucio permanente» € um conceito negativo, hipotético, cuja linica funcio — retérica—é a de evitar a contradi¢io para um acontecimento que consiste em pensat-se pura origem (¢ consequentemente pura ruptura) sem s¢ incluir naquilo de que ele é a origem (se a Revolucio é ruptura, en- tao ela é também ruptura de si mesma). Portanto, a revolucio permanente, para continuar a ser uma presenca socialmente suportivel, é na realidade

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