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Público • Sexta-feira 11 Junho 2010 • 47

As palavras valem cada vez menos, os actos cada vez mais

Quando os maus exemplos vêm de cima…

L
MELANIE MAP’S
embram-se do 10 de Junho de 2009? Pou-
cos se recordarão – até porque demasiados
trataram de fazer o contrário do que então
lá se recomendava.
António Barreto – que ontem voltou a
fazer um discurso notável, só que centrado na ne-
cessidade de o país honrar os seus ex-combatentes
José – pregou então as virtudes do exemplo. “Dê-se o
Manuel exemplo de um poder firme, mas flexível, e a demo-
Fernandes cracia melhorará”, disse então. “Dê-se o exemplo
de honestidade e verdade, e a corrupção diminuirá.
Extremo Dê-se o exemplo de tratamento humano e justo e a
ocidental crispação reduzir-se-á. Dê-se o exemplo de traba-
lho, de poupança e de investimento e a economia
sentirá os seus efeitos.”
Dificilmente se poderia ter ido, nos 12 meses que
desde então decorreram, por caminhos mais radi-
calmente distintos. O poder não foi firme, antes teve
tiques de autoritarismo, e também não foi flexível,
porque foi errático. Não houve nem honestidade
nem verdade, pois assistimos a grosseiros casos de
manipulação dos poderes públicos e a uma campa-
nha eleitoral erguida sobre um castelo de mentiras
que a dura realidade desmascarou sem delonga. E
também não houve nem poupança nem investimen-
to saudável, antes endividamento e delapidação do
escasso património da nação.
Pior: se há um ano António Barreto apelou a que
se tivesse “consciência de que, em tempos de exces-
so de informação e de propaganda”, as palavras dos
políticos, empresários, sindicalistas e funcionários
“são cada vez mais vazias e inúteis” e que o seu Ao lembrar que “quanto no rumo do país, será necessário pública –, verificamos como insistimos em escavar
“exemplo é cada vez mais decisivo”, o ciclo eleitoral ouvir os eleitores. a nossa sepultura. Pela simples razão de que o nos-

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e o ciclo dos orçamentos e dos PEC mostrou como mais se exigir do povo, so principal problema é a falta de competitividade
há quem nada tenha aprendido e repita, de forma á um ano, no 10 de da nossa economia e nenhuma economia se torna
cada vez mais patética, um discurso propagandístico
mais o povo exigirá Junho de Santarém, mais competitiva quando as empresas e os cidadãos
sem colagem com a realidade. dos que o governam”, o Cavaco Silva disse que pagam mais impostos mas não recebem mais e me-

N
“a verdade gera con- lhores serviços públicos.
ão surpreende, por isso, que, não tendo Presidente começou a fiança, a ilusão é fon- Se, em contrapartida, olharmos para os serviços
o socratismo vigente entendido que “em abrir caminho para a te de descrença”, acrescentando públicos e verificarmos que muitos deles são redun-
momentos de crise económica, de abai- que, “tanto no Estado como na dantes, agravam as distorções sociais ao introduzir
xamento dos critérios morais no exercí- hipótese de dissolução. sociedade civil, é preciso adoptar rigidez e centralismo onde deveria haver imagina-
cio de funções empresariais ou políticas, uma cultura de transparência e de ção, inovação e descentralização, e até poderiam
o bom exemplo pode ser a chave, não para as solu-
Até porque no dia em que prestação de contas”. Agora acres- desaparecer de um dia para o outro que nem darí-
ções milagrosas, mas para o esforço de recuperação os eleitores (“a sociedade”) centou, quase enigmaticamente, amos por isso, então agradeceríamos todo o espaço
do país”, se tenham sucedido os maus exemplos e o que “os portugueses anseiam por que fosse devolvido aos portugueses.
país esteja hoje mais longe da recuperação do que não se revirem no rumo do limpar Portugal, aspiram a um país Como disse D. Manuel Clemente, bispo do Por-
estava há um ano. Na verdade, como aqui escrevi a país, será necessário ouvir mais são, mais limpo, não querem to, na cerimónia de entrega do Prémio Pessoa, “o
semana passada, a miséria moral que mina as fileiras viver numa atmosfera carregada melhor de Portugal pouco aparece e não abre geral-
do partido maioritário não é apenas lamentável e os eleitores e irrespirável”. Faltou-lhe escla- mente os noticiários (…) mas existe e por ele mesmo
indecorosa, é politicamente corrosiva. recer que o lixo não está apenas continuamos nós a existir – apesar de tudo, mas
Assim, ao contrário do que alguns trataram de espalhado pelas florestas portuguesas por falta de não apesar de nós”. Ora esse “melhor de Portu-
dizer precipitadamente, o discurso de ontem do civismo, mas que do mais alto do poder executivo gal” que se encontra “em muitas escolas, estatais
Presidente da República não é tão inócuo como vêm os piores exemplos e o teimoso autismo que o ou particulares, em muitos estabelecimentos de
uma leitura apressada do seu apelo a não existirem impediu de escutar os avisos neste caminho para a saúde, serviços públicos e instituições particulares
“crispações inúteis” pode fazer crer. Isto porque insustentabilidade e hoje o impede de restaurar um de solidariedade social”, ou na vontade de vencer
Cavaco Silva disse, com clareza, que a “coesão na- clima de confiança. Um autismo que, de resto, José de muitos jovens licenciados, ou entre os “empre-
cional exige que a sociedade se reveja no rumo da Sócrates manifestou na sua reacção às palavras do sários e gestores com verdadeiro sentido de missão,
acção política”. Ou seja, não só “os sacrifícios que Presidente, ao considerar – no dia seguinte a termos que revelam surpreendente capacidade de inovar
fazemos têm de ser repartidos de forma equitativa e contraído empréstimos a um juro superior ao que a e conquistar mercados”, esse melhor de Portugal
justa e, mais do que isso, têm de possuir um sentido Grécia pagará no plano de ajuda financeira da União precisa de mais espaço e de mais liberdade para
claro e transparente, que todos compreendam”, Europeia (UE) e do Fundo Monetário Internacional triunfar. Não precisa, sobretudo, de um Estado con-
como é fundamental não esquecer que “não se po- (FMI) – que a nossa situação não é insustentável… trolador, dirigista, paquidérmico e submetido aos
dem pedir sacrifícios sem se explicar a sua razão Ora é exactamente neste ponto que Cavaco Silva senhores do momento.
de ser, que finalidades e objectivos se perseguem, se deixa não só aprisionar pelos limites dos seus po- Querem um exemplo? Precisamos de escolas e de
que destino irá ser dado ao produto daquilo de que deres presidenciais, como pelos cálculos inerentes professores com mais autonomia e responsabilidade
abrimos mão”. ao calendário das Presidenciais, como ainda pela para, face a um aluno de 15 anos retido no 8.º ano,
O contraste entre estas máximas e a forma ata- sua própria dificuldade em imaginar um país e um decidirem se este deve ou não ter uma oportunidade
balhoada como se tem vindo a despejar medidas rumo realmente distintos. Mas encontrar esse país para tentar chegar ao 10.º ano, não precisamos de
sem coerência nem visão, ou sem sequer se ter o e esse rumo é, acredito, a única forma de sairmos um ministério a passar quase administrativamen-
cuidado de cumprir as normas constitucionais, não do buraco onde nos deixámos aprisionar. te alunos ad hoc por esse país fora. Infelizmente,
podia ser maior. Pelo que, ao lembrar que “quanto Se olharmos para o que nos propomos fazer para nos últimos anos, em Portugal tudo se centralizou,
mais se exigir do povo, mais o povo exigirá dos que enfrentar a crise das finanças públicas – no essencial para tudo se criaram regulamentos e comissões e
o governam”, o Presidente começou a abrir caminho aumentar a carga fiscal – e aquilo que países como por todo o lado se desconfiou da imaginação e da
para a hipótese de dissolução. Até porque no dia o Reino Unido, a Alemanha e a própria Espanha iniciativa dos portugueses. Jornalista, http://twitter.
em que os eleitores (“a sociedade”) não se revirem se propõem fazer – no essencial reduzir a despesa com/jmf1957

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