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Capitulo 1 Mistura de géneros: a reconfiguracgao do pensamento social Existe uma série de fatos que, ameu ver, séo verdadeiros. Um deles é que, na vida intelectual destes tltimos anos, houve uma grande mixagem de géneros, e que esta indistin- cao de espécies continua a passo acelerado, Outra verdade € que muitos dos cientistas sociais trocaram uma explicagdo ideal, que inclui leis ¢ casos ilustrativos, por um tipo de explicagio que envolve casos ¢ interpretagées, buscando, hoje, algo capaz de demonstrar a conexao entre crisntemos € espadas, mais do que um método que identifique a relagao entre planctas © péndulos, Uma terceira yerdade € que as analogias utilizadas pelas ciéncias humanas comegam a ter um papel mais relevante para o entendimento sociolégico do que o papel que as analogias relacionadas com o artesa- nato € a tecnologia desempenharam para o entendimento fisico. A meu ver, estes fatos no $6 sao verdadeiros, como também acontecem simultaneamente; 0 objetivo deste en- saio é discutir a mudanga cultural que permitiu a ocorréncia destes fatos: a reconfiguragio do pensamento social Esta indistingao dos géneros é mais complexa que 0 tipo de confusao estilistica que transformou Harry Houdini ou Richard Nixon em personagens de romances, ou que fazcom que uma orgia de assassinatos no oeste central americano seja descrita como se tivesse sido imaginada por um roman- cista g6tico. Questionamentos filos6ficos parecem criticas literarias (basta lembrar Stanley Cavell escrevendo sobre Beckett ou Thoreau; e Sartre sobre Flaubert), debates cien- tificos se assemelham a textos selecionados das belles lettres 33 (Lewis Thomas, Loren Biseley), fantasias barrocas so apre- sentadas como sérias observagdes empiricas (Borges, Bar- thelme), estérias sio compostas de equacdes ¢ tabelas ou parecem testemunhos em juizo (Fogel ¢ Engerman, Le Roi Ladurie), documentarios adotam o estilo de verdadeiras confissoes (Mailer), parabolas adotam a postura de etnogra- fias (Castenada), tratados teéricos mais parecem confe- réncias ilustradas sobre viagens (Lévi-Strauss), argumentos ideolégicos tomam o formato de pesquisas historiogeaficas (Edward Said), estudos epistemoldgicos sao elaborados como tratados politicos (Paul Feyerabend), ¢ polémicas me- todolégicas disfarcam-se em memérias pessoais (James Wat- son.) © Fogo pélido, de Nabokov, um objeto literario composto de poesia ¢ ficcao, notas de referéncia ¢ imagens dacclinica, parece ser realmente um produto destes tempos; s6 nos falta ver a teoria quantica apresentada em versos ou uma biografia em algebra. i bem verdade que, até certo ponto, este tipo de confu- sdo estilistica sempre existiu. Afinal, Lucrécio, Mandeville € Erasmo Darwin fizeram rimas com suas teorias. A desordem atual dos varios tipos de discurso, no entanto, chegou a tal ponto que se torna dificil qualificar seus autores. (Afinal, 0 que é Foucault? historiador, filsofo, sociélogo do conheci- mento?) ou classificar seus trabalhos (Como classificamos After Babel dc George Steiner — lingiiistica, critica literaria, historia da cultura? ¢ On being blue de William Gass, 0 que @ — um tratado, uma palestra, uma apologia?) Trata-se, portanto, de algo mais sério que a simples pratica de um esporte temporario, ou a satisfagio de uma curiosidade ocasional; nem podemos justificd-lo pelo fato reconhecido de que coisas inovadoras sio, por definicao, dificeis de categorizar. O fendmeno generalizou-se tanto, € tornou-se tao evidente, que sugere que o que estamos observando nao € apenas uma verso mais recente do mapa cultural — a modificagio de umas poucas fronteiras mais disputadas, a demarcacao de mais alguns pitorescos lagos de montanba ~ ¢, sim, uma mudanca no proprio sistema de mapear. Algo Bt esté sucedendo com a maneira como achamos que pensa- mos. Nao que seja necessario aceitar pontos de vista herméti- cos onde a écriture passa a ser algo assim como marcos que assinalam caminhos, ou entregar-nos tao inteiramente ao prazer do texto que seu significado seja ofuscado por nossas reacdes, para verificar que uma disposic4o distintamente democratica introduziu-se na visao que temos daquilo que lemos € daquilo que escrevemos. Quando se trata de cate- gorizar textos, as propriedades que os conectam uns aos outros, ou que os colocam, pelo menos ontologicamente falando, no mesmo nivel, comecam a ser mais importantes que aquelas que os dividem; e, em vez de termos a frente uma colegio de estilos naturais, ¢staticamente divididos pelas diferengas qualitativas profundas que apresentam en- tre si, vemo-nos, cada vez mais, rodeados por um campo gigantesco e quase continuo, composto de trabalhos com objetivos os mais variados, ¢ elaborados de formas as mais diferentes, trabalhos estes que s6 podemos ordenar na pritica, através da relacio que apresentem entre si ¢ segun- do nossos propésitos mais imediatos. Nao é que tenhamos abandonado as convengées de interpretagao; ao contrario, mais que nunca as estamos construindo — ¢ algumas vezes construindo as pressas ~ para adaptar-nos a uma situagao ao mesmo tempo fluida, plural, descentralizada, ¢ inerradica- velmente desorganizada Com relagio as ciéncias sociais, o que isto significa € que a falta de personalidade que lhes era atribuida e freqitente- mente lamentada nao as separa mais das outras ciéncias. Torna-se cada vez mais dificil consideré-las como um ramo subdesenvolvido das ciéncias naturais, que tinha esperanca de se fortalecer com o passar do tempo € a ajuda de setores mais avangados; ou como usurpadores ignorantes € preten- siosos da missao das Humanidades, prometendo certezas onde estas ndo podem existir; ou ainda como um tipo diferente de empreendimento, claramente demarcado, uma terceira cultura além das duas que Snow canonicamente identificou. Mas tudo isto é para o bem geral: livre da obrigacao de erguerse as custas da taxinomia, j4 que nin- guém mais os ergue, os individuos que se consideram cien- tistas sociais (ou comportamentais, ou humanos, ou culturais) podem agora moldar seu trabalho de acordo com as necessidades que estes apresentem e nio para satisfazer percepgées externas sobre aquilo que devem ou nao fazer. O que Clyde Kluckhohn disse uma vez sobre a antropologi —que é uma licenca intelectual para cagar em terreno alheio = nao sé parece mais verdadeiro hoje, mas aplica-se também a outras ciéncias além da antropologia. Nascidas oniformes, as ciéncias sociais prosperam 4 medida que a situagao que descrevi acima se generaliza. Nessas circunstincias, os cientistas sociais subitamente se deram conta de que nao precisam mais ser fisicos da mimica, ou humanistas de armério, ou inventar alguma outra esfera do ser que se transforme no objeto de suas investigacGes. Em vez disso, podem continuar sua vocagio, tentando descobrir ordem na vida coletiva, ¢ decidir de que forma aquilo que faziam — quando conseguiram fazer algo ~ se relacionava com outras atividades paralelas; muitos deles adotaram uma abordagem essencialmente hermenéutica (se por acaso a palavra atemoriza, invocando imagens de zelotes biblicos, fraudes literarias ou professores teutdnicos, pode- mos dizer “interpretativa”) em suas tarefas. Dada a nova dispersio de géneros, muitos adotaram outros tipos de abordagem: estruturalismo, neopositivismo, neomarxismo, descritivismo micro-micro, construcao de sistemas macro- macro, € aquela combinacao curiosa de senso comum com contra-senso comum, a sociobiologia. O movimento que defende uma concepgao da organizacao da vida social em termos de simbolos (sinais, representacdes, signifiants, Darstellungen... a terminologia varia), cujo sentido (sense, import, signification, Bedeutung) devemos captar se quiser- mos entendé-la e formular seus principios, cresceu em pro- 36 porcées assustadoras. Os bosques esto hoje repletos de intérpretes entusiasmados. A explicagao interpretativa ~ e trata-se de uma forma de explicagao € nao de algum tipo de glossografia exaltada — concentra-se no significado que instituigdes, agoes, imagens, elocucées, eventos, costumes — ou seja, todos os objetos que normalmente interessam aos cientistas sociais — tém para seus “proprietarios”. Por esta razao, seus instrumentos de trabalho nao sao leis, como os de Boyle, nem forcas, como 0s de Volta, ou ainda mecanismos, como os de Darwin, mas sim construcées como as de Burckhardt, Weber ou Freud: um sistematico desfazer de malas no mundo conceptual onde vivem condotiere, calvinistas ou parandicos, Até mesmo a maneira como sio feitas estas construgdes yaria: Burckhardt retrata, Weber cria modelos, Freud faz diagnésticos. ‘Todas elas, no entanto, representam esforgos para formular conccitos que expliquem como este ou aquele povo, este ou aquele periodo, esta ou aquela pessoa, fazem. sentido para si mesmos, e, quando este processo torna-se claro, buscam explicacdes para a ordem social, para mudan- cas historicas, ou para o funcionamento psiquico de um modo geral. A investigacao € orientada para casos, ou grupos de casos, ¢ para os tracos particulares que os distinguem uns dos outros; scus objetivos, porém, so tio amplos como os da mecanica ou da fisiologia: identificar com que mate! € feita a experiéncia humana. Com tais objetivos € tais instrumentos para alcangé-los, surgem também algumas no- vidades na retorica analitica, nos tropos € no imaginério da explicacao. Pois, j que a teoria — seja esta cientifica ou nao —avanca principalmente gracas a analogia, um tipo de com- preensio que “vé” aquilo que € menos inteligivel através de uma comparagio com 0 mais inteligivel (a terra € um ima, 0 coracio uma bomba de agua, a luz uma onda, 0 cérebro um computador, 0 espaco um balio), quando esta muda de curso, os conceitos através dos quais ela se expressa também se modificam, Nos estagios iniciais das ciéncias naturais, antes que as analogias se tornassem tao fortemente acadé- micas — ¢ naquelas ciéncias (cibernética, neurologia) onde isto ainda persiste - foi o mundo artesanal, ¢, mais tarde, a industria que, na maioria dos casos, forneceram as realida- des mais inteligiveis (mais inteligiveis porque, como disse Vico, certum quod factum, tinham sido criadas pelo proprio homem) que permitiriam “trazer” as menos inteligiveis (me nos inteligiveis porque o homem nao as criara) para o ambito do entendivel. A ciéncia deve mais 4 maquina a vapor, que esta A ciéncia; sem a arte do artesiio que tingia, a quimica nao existiria; a metalurgica é a mineragao teorizada. Nas ciéncias sociais, ou pelo menos naquelas que abandonaram uma concepeao reducionista de sua fungao, as analogias sao obtidas, com freqiiéncia cada vez. maior, nas atividades cul- turais ¢ nao nos instrumentos de manipulacao fisica — no teatro, na pintura, na gramética, na literatura, no direito ¢ até nos jogos. O que a alayanca fez um dia para a fisica, 0 movimento de uma peca de xadrez promete fazer hoje para a sociologia. Promessas nem sempre sao cumpridas, € claro, e quando © sio, muitas vezes acabam sendo ameagas; mas a remolda- gem da teoria social em termos mais conhecidos por jog dores ¢ esteticistas do que por bombeiros € engenheiros, j esta em proceso avangado. O fato de que as ciéncias sociais esto recorrendo as humanidades na busca de suas analogias explicativas é, a0 mesmo tempo, evidéncia da desestabilizar cao dos géneros e de que agora chegou a vex da inter. pretacio, O resultado mais visivel deste processo € que os estudos sociais estio adotando um novo estilo de discurso. Os instrumentos do raciocinio estio se modificando. Repre- sentase a sociedade cada vez menos como uma maquina complicada ou como um quase-organismo ¢, cada vez mais, como um jogo sério, um drama de rua, ou um texto sobre comportamento: 38 It ‘Toda esta movimentacao nas propriedades de composi- cdo, investigacéo ¢ explicagao significa, sem duivida, uma mudanga radical na imaginagio sociolégica, impulsionando- a em diregdes que sao tao dificeis como pouco conhecidas. E, como sempre sucede com todas as mudangas deste tipo, que alteram padroes mentais, esta pode levar tanto 4 obscu- ridade ¢ 2 ilusio como A preciso e A verdade. Para que © produto final nao seja apenas uma conversa um pouco mais elaborada, ou algum contra-senso ainda pior, € necessario que se desenvolva uma consciéncia critica; ja que agora uma proporcéo maior do imaginario, da metodologia, da teoria € do estilo sera importada das humanidades, esta consci- éncia critica também devera vir dos humanistas ¢ seus segui- dores, ¢ nao de cientistas naturais € dos que os seguem. Nao seria exagero ou pessimismo afirmar que os humanistas, tendo considerado os cientistas sociais como tecndlogos ou intrusos durante tantos anos, simplesmente nao esto equi- pados para tal tarefa. Por outro lado, os proprios cientistas sociais, que acaba- ram de livrarse, ¢ s6 parcialmente, de suas ilusées de fisicos sociais — com leis que tudo explicam, ciéncia nica, opera- cionalismo, etc. - também nao estio melhor equipados, Para estes, esta mistura de identidades vocacionais nao poderia ter surgido em momento mais adequado. Se forem realmen- te elaborar sistemas de andlise nos quais conceitos tais como seguir regras, construir uma representacao, expressar uma atitude ou formar uma intencao passem a ocupar um papel principal — em vez de conceitos como isolar a causa, deter- minar a variavel, medir uma forca, ou definir uma fungao ~ 0s cientistas sociais vao precisar de todo 0 apoio que pude- rem obter daqueles que tém mais familiaridade com estes conceitos. Neste caso, ndo € somente a irmandade interdis- ciplinar, ou sequer o ecletismo erudito que se tornam neces- sarios. um reconhecimento, por todas as partes envolvidas, de que as linhas que agrupavam académicos em varias 39 comunidades intelectuais, ou (o que tem mais ou menos © mesmo resultado) os dividiam em comunidades diferentes, estao se cruzando em 4ngulos muito excéntricos hoje em dia. O tema que necessita reflexGes mais urgentes da parte dos humanistas em relagao as praticas sociocientificas € aquele que diz respeito A utilizagdo, em anilises sociais, dos modelos importados de territérios humanistas—nas palavras de Locke, “aquele raciocinio cauto que vem da analogia’, que “freqiientemente nos leva a descoberta de verdades ¢ producao de resultados de grande utilidade, que, sem cle, poderiam ter permanecido escondidos.” (Locke se referia a0 proceso de esfregar dois gravetos um no outro para produ zit fogo, € 2 teoria do calor resultante da frie¢do atomica, embora pudesse ter usado a sociedade de empresas ¢ 0 contrato social com resultados semelhantes.) Manter 0 ra- ciocinio cauto € portanto util, € portanto verdadeiro, ¢, como costumamos dizer, o truque do negécio. ‘A analogia com jogos é, a0 mesmo tempo, a que vem se tornando mais popular na teoria social contemporanea, € também a que mais necesita um exame critico. A tendéncia a comparar este ou aquele tipo de comportamento social com este ou aquele tipo de jogo, tem varias origens (nao excluindo, talvez, a importincia do esporte como espeticulo de massa), As mais importantes, porém, so a concepgio de Wittgenstein sobre modos de vida como jogos lingiiisticos, avisdo lidica da cultura de Huizinga, ¢ as estratégias recen- tes de von Neumann e de Morgenstern em Theory of games and economic behaviour. De Wittgenstein vem © conceito de que atos intencionais “seguem regras"; de Huizinga, 0 jogo como uma forma paradigmatica da vida coletiva; devon Neumann e Morgenstern, o comportamento social como uma manobra reciproca para obter resultados distributivos. Juntos, eles conduzem a.um estilo de interpretagao nervoso ‘© enervante que, nas ciéncias sociais, combina uma forte sensacao da ordem formal das coisas com uma sensagio 40 igualmente forte da arbitrariedade radical desta ordem: é a inevitabilidade de tabuleiro de xadrez, que poderia ter acon- tecido de forma diferente. A produgao de Erving Goffman, talvez 0 socidlogo nor- te-americano mais conhecido no momento, baseia-se, quase totalmente, na analogia com jogos. (Goffman usa também a linguagem teatral com bastante freqiiéncia, mas como para ele o teatro é uma forma meio estranha de jogo interativo — um jogo de pingue-pongue usando mascaras ~ seu trabalho nao € basica e essencialmente dramatirgico.) Goffman usa imagens de jogos em praticamente tudo que consegue agar- rar, Como ele nao costuma ser muito respeitador dos direi- tos de propriedade, este “praticamente tudo” inclui um vasto numero de elementos. O ir e vir de mentiras, meta-mentiras, verdades inacreditaveis, ameacas, torturas, subornos ¢ chan- tagens que compéem o mundo da espionagem é construido como “um jogo de expresso”; um carnaval de enganos, um pouco assim como a vida em geral, pois, em uma frase que poderia ter sido escrita por Conrad ou Le Carré, “espides (si0) um pouco como todos nés, € todos nés somos um pouco como espides.” Etiqueta, diplomacia, crime, finangas, publicidade, direito, seducio, ¢ toda esta “regido do cémico decoro” cotidiano é considerada como “jogos informativos” um labirinto de estruturas de jogadores, equipes, lances, posicdes, sinais, niveis de informacio, apostas ¢ ganhos finais, nos quais s6 os “bons jogadores” — aqueles que esto dispostos a dissimular qualquer coisa € sao capazes de fazé-lo — prosperam. © que se passa em uma clinica psiquiatrica, em qualquer hospital ou penitenciaria, ou até mesmo em colégios inter nos, é, no trabalho de Goffman, uma “brincadeira ritual de ter um eu” em que a equipe de trabalho tem em suas maos as cartas mais importantes e todos os trunfos. Uma conversa a dois, uma deliberagio de um juiri, torna-se “uma tarefa executada em conjunto por pessoas fisicamente proximas”; um par dancando, 0 ato do amor, ou até uma luta de box — 41 na realidade, qualquer tipo de encontro caraa cara — passam a ser jogos nos quais, “como todo psicético ¢ comediante deve saber, qualquer movimento inadequado pode perfurar a fina camada que protege a realidade imediata.” Conflito social, marginalidade, talento empresarial, papéis desempe- nhados na atividade sexual, rituais religiosos, categorias sociais, ¢ até a simples necessidade humana de aceitacao recebem 0 mesmo tratamento. A vida nado passa de uma tigela de estratégias. Ou, melhor ainda, como Damon Runyon comentou certa vez, € um jogo de trés a dois, contra. Pois a imagem da sociedade que emerge do trabalho de Goffman, © conse- qiientemente da produgao do enxame de académicos que, de um modo ou de outro, o seguem ou dependem dele, éa de uma série continua de gambitos, manobras, artificios, blefes, dissimulagdes, conspiragSes € imposturas rematadas, neste processo em que individuos € coaliz6es de individuos esforcam-se — algumas vezes de forma inteligente, mas mais freqiientemente de forma comica— para jogar jogos enigma- ticos cuja estrutura é dbvia mas cujo objetivo nao é. A visio que Goffman tem do mundo é radicalmente pritica, delibe- radamente caustica e mordaz, € nao se enquadra muito bem nas crengas humanisticas tradicionais. Mas isto nao a torna menos poderosa. E, com sua ética do “jogue segundo as regras, sem reclamar”, nem é assim tao desumana. Nem todas as concepgdes que véem a vida social como uma série de jogos sio tao deprimentes como a de Goffman, e algumas chegam a ser bastante divertidas. O que as une ¢ uma visdo de que os seres humanos sao mais induzidos por forcgas que submissos a regras; que as regras sao do tipo que permitem estratégias; que as estratégias s4o do tipo que inspiram agoes; € que as agdes so do tipo que compensam por si mesmas — pour /e sport. Da mesma forma que os jogos ~ beisebol, ou péquer, ou parcheesi — criam pequenos universos de significados, nos quais algumas coisas sao permitidas e outras nio (nao se pode dar um xeque-mate no 42 domin6), suas analogias na vida real - como devogio, gover- no, ou conquista sexual - também tém suas possibilidades € limites (nao se faz um motim em um Banco). Ver a sociedade como um conjunto de jogos significa vé-la como uma extensa pluralidade de convenges € procedimentos varios — mundos fechados e sem ar, de jogadas ¢ contrajoga- das, avida en régle. Contam que quando um dos seus stiditos sussurrou-lhe ao ouvido, em um baile real, que o tar de todos os russos havia morrido, o principe Metternich disse: “Me pergunto qual terd sido seu objetivo...”. A analogia com jogos nao é, provavelmente, 0 tipo de visio do mundo que atraia os humanistas. Estes preferem acreditar que as pessoas nfo passam a vida obedecendo regras e esforcando-se para tirar vantagem, mas sim agindo livremente € utilizando suas melhores qualidades. Nao se pode negar, no entanto, que esta concepgao explica intime- ros aspectos da vida moderna de forma bastante adequada, ¢, de varias maneiras, consegue captar seu espirito. (“Se vocé nio agiienta 0 maquiavelismo”, dizia uma charge em um nimero recente do New Yorker, “saia da cabala”.) Portanto, qualquer oposicao 2 analogia dos jogos nao podera ter como instrumentos apenas o desprezo, ou uma recusaa olhar pelo telescépio, ou repeticées exaltadas de verdades santas, ci- tando a Biblia para defenderse do sol. & preciso examinar detalhes, analisar trabalhos e fazer criticas as interpretacdes, sejam estas a de Goffman, que vé 0 crime como uma forma de apostar com o proprio carater; ou a de Harold Garfinkel que compara a mudanca de sexo com jogos de identidade; ou ade Gregory Bateson para quem a esquizofrenia é erro nas regras; ou a minha prépria, quando interpreto as confu- s6es que acontecem em um bazar do Oriente Médio como um concurso de comunicagao. Quando a teoria social aban- dona metaforas propulsivas (a linguagem de pist6es) € vol ta-se para as metiforas Itidicas (a linguagem do lazer), as humanidades associam-se a seus argumentos nio como espectadores céticos, mas sim como fonte de seu imaginario, € como ctimplices imputaveis. 43 TW A analogia entre vida social ¢ drama existe de uma forma casual ha muito tempo ~ “o mundo é um palco € nds somos nada mais que pobres atores que se pavoneiam”, etc. ¢ tal. Pelo menos desde os anos 30, termos relacionados com o teatro — principalmente a palavra “papel” - aparecem como. elementos essenciais do discurso sociolégico. O que é rela- tivamente noyo — novo, nao sem precedentes — sao duas coisas. Em primeiro lugar, a analogia comegaa ser usada com forca total, de uma forma extensa e sistemitica, ¢ nao de forma esporddica ¢ fragmentada —umas poucas alusdes aqui, uns tantos tropos acola. Em segundo, a analogia nao é mais utilizada na forma depreciativa que anteriormente caracte- rizava seu uso mais geral - um mero espetéculo, com mis- caras € palhagadas — ¢ sim com uma forma mais estrutural e genuinamente dramatirgica. Na expressio do antropdlogo Victor Turner, fazendo, ¢ nao fingindo. F claro que estes dois acontecimentos se relacionam., Uma visao construcionista do teatro — ou seja, poiesis — subentende que uma perspectiva dramatizada nas ciéncias sociais tem que abranger um pouco mais que meras referén- cias ao fato que todos nés temos momentos determinados para entrar ¢ sair do paleo, ou que todos temos que desem- penhar papéis, que As vezes perdemos nossas deixas, ¢ que adoramos fingir. O mundo pode ou nio ser o de Barnum e Bailey, ¢ nds podemos ou nao ser sombras caminhantes, mas levar a analogia dramdtica a sério significa levar a investi- gacdo além dessas ironias comuns, ¢ chegar a meios de expresso que facam da vida coletiva alguma coisa que valha a pena. O problema com as analogias — ¢ também sua gloria = € que fazem a conexio entre as coisas que comparam em ambas as diregGes. Por terem tratado a linguagem teatral de forma um tanto ou quanto leviana, alguns cientistas sociais acabaram descobrindo que se haviam enrolado nos fios meio embaralhados de sua estética. 44 Um dos usos mais bem elaborados da analogia dramatica a teoria social — como analogia e no como metiforas ocasionais ~ teve origem em algumas fontes humanistas nao t20 bem elaboradas. ‘Temos, de um lado, a chamada teoria ritual de drama, associada com figuras tao diversas como Jane Harrison, Francis Fergusson, TS. Eliot ¢ Antonin Ar- taud, De outro, esta a acao simbélica ~ ou “dramatismo” segundo o autor ~ desenvolvida pelo tedrico literario € filésofo norte-americano Kenneth Burke, cuja influéncia, pelo menos nos Estados Unidos, ¢ imensa, mas, ao mesmo tempo, clusiva, pois pouquissimas pessoas fazem uso de seu vocabulirio barroco, com suas redugées, indices, etc. O problema aqui é que estas duas abordagens levam a diregdes opostas: a teoria ritual usa as afinidades entre 0 teatro © a religiio — 0 drama como a comunhao, o templo como um palco; a teoria da agao simbélica compara teatro € retrica — © drama como uma forma de persuasio, a plataforma do discursante como um palco. Torna-se, entio, bastante dificil identificar a base da analogia — exatamente 0 que no thea- tron & semelhante a que na dgora? Que a liturgia e a ideologia sio histridnicas é bastante Sbvio, como também o so a etiqueta ¢ a publicidade. Exatamente 0 que isto signi- fica, no entanto, € muito menos evidente. No momento, 0 principal proponente da teoria ritual nas ciéncias sociais talvez seja Victor Turner. Antropdlogo com formagao britanica, ¢, mais tarde, norte-americana, Turner, em um conjunto de trabalhos excelentes sobre a vida ceri- monial de uma tribo centro-africana, desenvolveu a concep- cdo do “drama social” como um processo regenerativo, que, assim como a teoria de Goffman relacionando “o jogo social” A interacao estratégica, conseguiu atrair pesquisadores de alto nivel em mtimero suficiente para constituir-se em uma escola interpretativa caracteristica € de muita influéncia. Para Turner, dramas sociais tém lugar “em todos os niveis da organizagao social, do Estado 4 familia.” Estes dramas surgem como resultado de situagSes conflitivas ~ uma aldeia 45 se divide em faccées, um marido que espanca a esposa, uma regio que se rebela contra o Estado ~ € se desenrola até 0 desfecho final, gracas a um comportamento convencionali- zado € atuado em publico. A medida em que © conflito transforma-se em crise, ¢ em um rapido fluir de emogées intensificadas, onde individuos sentem-se ao mesmo tempo envolvidos por um sentimento comum ¢ livres de suas amarras sociais, formas rituais de autoridade —litigagao, feudo, sacrificio, oragdes ~ so invocadas para conter a crise ¢ trans- formi-la novamente em ordem, Quando estas formas de auto- ridade tém sucesso, a rotura se solda, € volta-se ao status quo, ‘ou aalgum outro tipo de organizacao que a ele se assemelhe. Se falham, no entanto, a rotura passa a ser vista como irreme- didvel, ¢ a sociedade entra em colapso, com varios tipos de finais tragicos: migragdes, divércios, ou assassinatos na cate- dral. Em graus diferentes de zelo ¢ detalhe, Turner € seus seguidores aplicaram este esquema a rituais de passagem tribais, ceriménias de cura ¢ processos judiciais; insurreic6es mexicanas, sagas islandesas, ¢ nas dificuldades de Thomas Becket com Henrique Il; na narrativa picaresca, em movimen- tos milenarios, carnavais caribenhos, ¢ na busca de mescal pelos indios americanos; € nas rebelides politicas dos anos 60. Uma formula para todas as estaces. Essa facilidade em abrir suas portas para abrigar qual- quer tipo de caso é um dos pontos fortes da versio de analogia dramatica proposta pela teoria ritual; é, também, sua maior fragilidade. Capaz de expor alguns dos elementos mais profundos do processo social, ela 0 faz tornando insi pidamente homogéneos assuntos obviamente diferentes Com raizes nas dimensdes da agio social relacionadas a representagdes repetitivas — a re-atuacio € conseqiiente- mente a re-experiéncia de uma forma conhecida ~ a teoria ritual nao sé revela, com uma clareza peculiar, as dimensdes temporais € coletivas destas ag6es € sua natureza ineren- temente publica; mostra também sua capacidade de mudar nao 6 opinides, mas, como disse 0 critico britanico Charles 46 Morgan a respeito do teatro propriamente dito, de modificar os proprios donos das opinides. “O grande impacto (do teatro), ‘escreveu Morgan’, nao € nem persuadir o intelecto nem enganar os sentidos ... £ a capacidade que o desenrolar do drama tem de envolver a alma humana. Entregamo-nos e somos transformados.” Isto é, quando a magica funciona A magica é 0 que Morgan, em outra frase excelente, chama “q suspensao da forma... a inconclusio de uma conclusao conhecida", € a fonte do poder deste “movimento envolven- te”, um poder, como os tedricos do ritual demonstraram, que certamente nao sera menos convincente (nem menos passivel de ser considerado sobrenatural) nos casos em que 0 “movimento” ocorre em um rito de iniciagao feminina, em uma revolugio camponesa, em um épico nacional, ou no camarim de uma estrela, Estes processos formalmente semelhantes tém, no en- tanto, contetidos diferentes. Poderiamos dizer que eles ex- pressam coisas bastante distintas ¢, por esta raz4o, suas implicagdes para a vida social também sao diversas. Embora bastante cientes destas diferengas, os tedricos do ritual nao estdo suficientemente equipados para lidar com elas, preci- samente porque sua preocupagio principal é com 0 movi- mento geral das coisas. Percebem, entao, nos varios tipos de processos sociais, nas formas e nos significados, os grandes ritmos dramiticos, as formas que governam 0 teatro (embo- ta te6ricos do ritual tenham mais sucesso com as periodici- dades restauradoras da comédia do que com as progresses absorventes € lineares da tragédia, cujos desfechos tendem a ser considerados como falhas € nao como resultados satisfat6rios). Os detalhes que individualizam, porém, 0 tipo de coisa que faz A Winter’s Tale diferente de Measure for Measure, ¢ Macbeth de Hamlet, sio relegados ao empiri- cismo enciclopédico: documentagio maciga de um tinico caso — plus ca change, plus c'est le méme changement. Se, para adaptar uma frase de Susanne Langer, dramas sao poemas no modo de ago, alguma coisa se esta perdendo: exatamente aquilo que, socialmente, os poemas expressam. 47 Esta descoberta do sentido da representagao deveria ser a tarefa mais importante das abordagens que usam a agio simbélica. Aqui, no entanto, nao ha um s6 nome aser citado, 56 um catlogo de estudos especificos que cresce dia a dia, alguns dependentes de Kenneth Burke, outros de Ernst Cassirer, Northop Frye, Michel Foucault ou Emile Durkheim, todos muito preocupados em explicar precisamente o que diz alguma forma de texto atuado — uma coroacio, um sermao, uma rebelido, uma execugio. Se os tedricos rituais, olhos voltados para a experiéncia, t2m vocacao para porco- espinho, os tedricos da aco simbélica, olhos voltados para a expressao, tém vyocacao para raposa. Dada a natureza dialética das coisas, todos nés precisa- mos ter oponentes. As duas abordagens s4o, portanto, ¢s- senciais. O que mais necessitamos descobrir no momento, no entanto, é uma forma de sintetizé-las, Em minha anilise da politica tradicional indica em Bali, como um “estado teatral”, ¢ aqui citada nao porque seja exemplar, mas sim- plesmente porque é de minha autoria, tentei abordar este problema. Nessa andlise, trato, por um lado (0 lado burkea- no) de demonstrar como qualquer coisa, desde a organi cdo de grupos de parentesco, 0 comércio, as leis comuns, a administragao da agua, até a mitologia, a arquitetura, a iconografia ¢ a cremacao, se combinam para formar uma afirmagio dramatizada de um modelo especifico de teoria politica, uma concepgao Unica do que sio e devem ser 0 status, 0 poder, a autoridade € © governo; ou seja, uma réplica do mundo dos deuses que é, a0 mesmo tempo, um modelo para o mundo dos homens. O Estado sanciona uma imagem de ordem = para aqueles que © observam, esta imagem é a do préprio Estado ¢ nele esta contida - ¢ ela é que governa a sociedade. A outra parte da anilise (seme- Ihante 4 de Turner) tenta demonstrar que, como, em sua grande maioria, o povo nao se limita a ser um mero espec- tador, fascinado pelas expressdes do Estado, mas é envolvi- do, fisicamente, por elas, principalmente nas grandes cerim6nias de massa que moldam seus sentimentos—6peras 48 politicas de dimensio borgonhesa — 0 tipo de poder drama- tico — “entregamo-nos e somos modificados” ~ capaz de dar forma a experiéncia, passa a ser a forca decisiva que mantém asociedade coesa. Um modelo reiterado, encenado ¢ atuado por seu préprio puiblico transforma (até um certo ponto, porque nenhum teatro funciona totalmente) a teoria em fato. Meu argumento principal neste ensaio, no entanto, é que algumas das poucas pessoas capazes de julgar adequa- damente trabalhos deste tipo so os humanistas, que, como todos sabemos, tém algum conhecimento do teatro, da mimese e¢ da retérica. E nao me refiro unicamente a meu trabalho, mas a toda essa corrente da andlise social que vem se expandindo gradualmente, e que usa, de alguma forma, a analogia dramatic, Numa época em que cientist: iais falam sobre atores, cenas, tramas, desem- penhos ¢ personagens, ¢ mungam sobre motivos, autoridade, persuasio, intercambio e hierarquia, a linha que os separa, ainda que reconfortante para o puritano, de um dos lados, ¢ para o cavalheiro, do outro, pare- rece bastante incerta. Iv Entre as recentes reconfiguragées da teoria social, a analogia com textos que é adotada atualmente pelos cientis- tas é, de alguma forma, a que mais se expandiu; é também a mais ousada € a menos elaborada. Mais que “jogo” ou “drama”, a palavra “texto” perigosamente vaga, € seu uso para explicar a acao social, ou 0 comportamento que as pessoas tém em relacao a outras, implica em uma enorme deturpacdo conceptual, um jeito de “ver como” bastante remoto. Descrever a conduta humana em termos de jogado- res € contra jogadores, ou de atores € seu ptiblico, sejam quais forem suas armadilhas, parece mais natural do que descrevé-los como semelhantes ao que ocorre entre 0 escri- tor € 0 leitor. A primeira vista, a sugestao que as atividades 49 de espides, amantes, feiticeiros, reis, ou pacientes de uma clinica de doentes mentais sejam lances em um jogo ou desempenhos teatrais é certamente mais plausivel do que a idéia de que sejam frases. Primeiras impress6es, no entanto, nao sio um guia mui- to confidvel quando se trata de elaborar analogias. Se fossem assim t40 confidveis, ainda estariamos comparando 0 cora- cao a uma fornalha, ¢ os pulmées a foles. A analogia com textos tem algumas vantagens nao aparentes ¢ ainda nao suficientemente exploradas € a dissemethanga superficial entre o “estamos aqui € estamos 1a” da interagao social © a solida serenidade de linhas em uma pagina é 0 que Ihe da sua forca interpretativa, ou pelo menos pode dar, quando a diferenga é alinhada de forma correta. A chaye para a transigao de texto para texto analogo, ow de um texto escrito como discurso para a acao como discur- so, é, como Paul Ricocur assinalou, © conceito de “inscri- cao”: a fixacio do significado, Quando falamos, 0 que dizemos flutua A nossa volta na forma de eventos, como qualquer outro tipo de comportamento; a menos que o que dissemos seja inscrito em texto (ou em qualquer outro meio conhecido de registro) passa a ser tao evanescente como nos mesmos. Se é inscrito, é claro, também desaparece, como a juventude de Dorian Gray; mas pelo menos seu significado ~ 0 que foi dito, nao o dizer, permanece, até certo ponto € por algum tempo. Isso também se aplica 4 acao em geral: seu significado tem meios de perdurar, mas sua realidade nao. A grande virtude de ampliar a nocao de texto para abranger outras coisas além das que sao escritas em papel, ou gravadas na pedra, é que este processo orienta nossa atencdo justamente para o fendmeno que discutimos acima: 0 proceso de elaboragio da inscrigdo da agio, seus instru- mentos € como estes funcionam, ¢ as implicagdes que a fixacdo do sentido que emana de um fluir de eventos — eventos que, para a histéria, sio 0 que aconteceu, para © 50 pensamento, o que foi pensado, para a cultura, o compor- tamento — tem para a interpretacao sociolégica. Imaginar que instituigdes, costumes € mudangas sociais possam ser de alguma forma “lidas” € alterar totalmente nosso entendi- mento do processo que da origem a esta interpretacao, direcionando-o para tipos de atividades mentais mais pare- cidas com aquelas utilizadas pelo tradutor, pelo exegeta, ou pelo iconografista do que aquelas que sao tipicas de aplica- dores de testes, analistas de fatores ou pesquisadores da opiniao publica. Todo este processo surge com clareza exemplar no ta- balho do lingiiista comparativo, Alton Becker, sobre 0 teatro de sombras javanés com marionetes — 0 wayang, como é chamado em Java. “Wayangizar” (nao existe um verbo ade- quado para descrever esta atividade) é, segundo Becker, uma mancira de construir um texto, uma forma de agregar sim- bolos para elaborar uma expressao. Para construé-lo, para entender nao s6 © que significa, mas também como o signi- fica, é necessirio, diz Becker, uma nova filologia. A funcio da filologia, estudo da linguagem baseado em textos, por contraste com a lingiiistica, que é baseada na guagem oral, foi, tradicionalmente, tornar documentos antigos, estrangeiros ou esotéricos acessiveis Aqueles que consideravam esses documentos antigos, estrangeiros ou esotéricos. Termos sao explicados, notas sio anexadas, co- mentarios so escritos, e, quando necessario, sao feitas transcricées ou tradugGes — tudo isto com 0 objetivo de produzir uma edigio comentada, a mais legivel possivel dentro dos limites do fillogo. O significado é fixado em um metanivel; basicamente o que faz 0 filblogo, uma espécie de autor secundério, € reinscrever, ou seja: interpretar um texto através de um outro texto. Se pararmos por aqui, 0 trabalho parece bastante sim- ples, mesmo que, na pratica, aparecam dificuldades. Quan- do 0 objetivo do filélogo, no entanto, é mais amplo, ¢ a1 estende-se além de procedimentos rotineiros € técnicos (autenticagio, reconstrugio, anotagdes) voltando-se para questoes conceptuais que envolvem a propria natureza dos textos ~ isto é, problemas relativos aos prinefpios que leva- ram a sua elaboracio — a simplicidade some. O resultado, como observa Becker, foi uma ruptura na filologia, um termo em si mesmo j4 meio obsoleto, que a dividiu em duas atividades rivais, ¢, ainda mais grave, que criou uma brecha entre aqueles que estudam textos especificos (historiadores, editores, criticos — que gostam de ser considerados huma- nistas) ¢ os que estudam a atividade de criar textos (lingitis- tas, psicdlogos, ctndgeafos — que gostam de ser considerados cientistas), O estudo de inscriges separase do estudo do proceso de inscrever, ¢ 0 estudo do significado fixo, do estudo dos processos sociais que 0 fixam. O resultado € de uma dupla estreiteza, Bloqueia-se a aplicagto da anilise de texto em materiais nao escritos, ¢ também a aplicagao da anilise sociolégica em textos. ‘A reparagio desta ruptura ¢ a integragio do estudo de como se processa a construcio de textos, de como 0 que foi dito é resgatado do dizer, no estudo de fendmenos sociais — piadas apache, comida inglesa, sermées de cultos africanos, escolas secundarias norte-americanas, © sistema de castas indiano, a queima de vitivas balinesas, s6 para citar algumas das tentativas mais recentes além da de Becker — é 0 que faz a “nova filologia” - ou seja i como venha finalmente a ser chamada, “Em um mundo multicultural”, escreve Becker, “am mundo de epistemologias mtltiplas, ha necessidade de um novo tipo de filélogo — um especialista em relagdes contextuais — em todas as 4reas de conhecimento que te- nham a construgio de textos como atividade principal: literatura, historia, direito, musica, politica, psicologia, co- mércio, ¢ até mesmo a guerra e a paz.” Becker vé quatro ordens principais de conexio semioti- ca, em um texto social, a serem investigadas pelo scu novo fildlogo: a relagdo das varias partes entre si; a relacio do 52 texto com outros culturalmente ou historicamente seme- Ihantes; sua relagio com aqueles que, de alguma forma, 0 constroem; ¢ sua relacao com realidades consideradas exter- nas a cle, Certamente existem outras ~ sua relacio com sua propria matéria seria uma destas; mas, s6 essas ja sio sufi- cientes para suscitar questdes metodologicas profundas, questées essas que até hoje sé foram tratadas de forma bastante hesitante, “Coeréncia”, “intertextualidade”, “inten- Gao” € “referéncia” — seriam mais ou menos os contetidos das quatro relagdes definidas por Becker — todas elas, no entanto, tornam-se nogdes sumamente elusivas, assim que deixamos de lado o parigrafo ou a pagina, € nos voltamos para atos ou instituigdes. Na verdade, como Nelson Goodman demonstrou, se nem mesmo no paragrafo € na pagina elas sao tao faceis de definir, que diremos quando 0 objeto de estudo é um quadro, uma melodia, uma estatua, ou a danga. Se é que existe realmente uma teoria que considera o significado desta contextualizacao miltipla de fenémenos culturais (am tipo de construtivismo simbélico) ela tem que incluir um pouco mais do que uma lista de sugestées incertas ¢ de idéias imperfeitamente relacionadas. Nao sabemos claramente até que ponto este tipo de anilise pode ser utilizada no caso de expresses culturais que nao sejam tao especificamente expressivas como o teatro de marionetes, ¢ que ajustes teria que sofrer se isto acontecesse. Da mesma forma que os proponentes da “vida como um jogo” tendem a gravitar em torno de interagées caraacara, relacionamentos amorosos € coquetéis, conside- rando-os como terreno mais fértil para o tipo de andlise que executam € 0s proponentes da “vida como um teatro” sao atraidos por intensidades coletivas, canavais € insurreigdes 0s proponentes da “vida como um texto” inclinam-se para 0 exame de formas imaginativas: piadas, provérbios, artes populares. Nao ha nada de surpreendente ou condenavel nisso; procuramos testar nossas analogias onde seja mais 53 provavel que elas funcionem. A longo prazo, no entanto, estas teorias s6 poderio subsistir se tiverem a capacidade de ir além destes ficeis sucessos iniciais, e de analisar formas mais complexas ¢ menos previsiveis. Assim, a concepsao de jogo tera que explicar algo como devocao, a do teatro, © humor, ¢ ado texto, a guerra. Dentre estes triunfos, se forem uum dia obtidos, os mais dificeis serio os da analogia com textos, Por enquanto, tudo que seus apologistas podem fazer é que fiz aqui: oferecer alguns exemplos do uso da teoria, alguns sintomas de suas dificuldades, ¢ alguns pedidos de ajuda. Vi Tivemos j4 exemplos suficientes. Além do fato de que ~ na medida em que seus escritores individuais bordejam entre linguagens hidicas, dramatistas ¢ textualistas ~ estes trés tipos especificos de analogia se misturam, existem ainda no cenario sociocientifico outras analogias humanistas tao importantes como estas trés: anilises do ato discursivo, segundo Austin ¢ Searle; modelos de discurso bastante diferentes, como os da “competéncia comunicativa” de Ha- bermas ¢ a “arqueologia do conhecimento” de Foucault, abordagens representacionalistas, que se originam na esté- tica cognitiva de Cassirer, Langer, Gombrich ou Goodman; e, é claro, a criptologia superior de Lévi-Strauss. Também a estas analogias faltam organizacao ¢ homogeneidade inter- nas: assim, a separagdo a que aludi, quando mencionei a analogia do jogo, entre tedricos que se concentram mais no aspecto do jogo em si, € aqueles cuja preocupacao € a estratégia, e, na analogia do drama, entre ritualistas € reto- ricos, tém suas contrapartes na analogia do texto, onde existe a coliso entre os mandarins do desconstrucionismo, que se opdem a interpretagio, ¢ os defensores do simbolis- mo de dominacio, do neomarxismo. Os temas no s4o nem estveis, nem consensuais, ¢, acurto prazo, € pouco provavel que venham a sé-lo. O mais interessante de tudo isso, no 54 entanto, nao é saber como todas estas formas hibridas vao se juntar para formar alguma teoria espléndida, mas sim o porqué de toda esta fermentacao. Uma das respostas a essa pergunta € que, embora ainda imperfeito, esta surgindo um desafio a algumas das premis- sas mais importantes da ciéncia social estabelecida. A sepa- racio estrita entre teoria ¢ dados, a idéia do “fato bruto”; 0 esforco para criar um vocabulirio formal de anilise purgado de qualquer referéncia subjetiva; a nogao de “linguagem ideal”; ¢ a alegacio de neutralidade moral, a visio do Olim- po, a “verdade divina” — nenhuma destas idéias pode pros- perar quando a explicacdo passa a ser vista como uma questao de conectar a agao a seu significado € nao 0 com- portamento a seus determinantes. A refiguragio da teoria social representa, ou, se tiver prosseguimento, representara um dia, uma mudanga radical na nogio que hoje temos do conhecimento, alterando nfo tanto a definigio do que é conhecimento, mas principalmente a definigao daquilo que queremos saber. Eventos sociais certamente tém suas causas € instituig6es sociais seus efeitos; mas € possivel que o caminho que nos leve a descobrir 0 que € que estamos realmente afirmando quando fazemos esta afirmacao tenha mais que yer com a observacao € a inspecio de expressdes do que com postular e medir forcas. © desvio que um segmento importante de cientistas sociais escolheu, ao abandonar a utilizagio de analogias com processos fisicos para adotar as que utilizam formas simb6- licas, envolveu a comunidade sociocientifica em um debate a respeito de seus métodos ¢ de seus objetivos que é suma- mente importante, € cuja intensidade cresce diariamente. Os anos dourados (ou talvez fossem s6 anos de bronze) das ciéncias sociais, quando, fossem quais fossem as diferencas em posigées tedricas ou afirmagées empiricas, havia uma aceitagio universal de que o objetivo final do empreendi- mento era descobrir a dinamica da vida coletiva alterd-la na direc4o desejada ~ obviamente é coisa do passado. Exis- 55 tem hoje muitos cientistas sociais em atividade, cujo objetivo ja nto éa manipulagdo do comportamento € sim a anatomi- zacao do pensamento. Nao foi s6 nas ciéncias sociais, porém, que a mudanca no que achamos da maneira como pensamos trouxe um certo desequilibrio. © interesse crescente de socidlogos, antropélogos, psicdlogos, cientistas politicos ¢ até mesmo de um ou outro economista, na andlise de sistemas simb6li- cos, leva a um questionamento — normalmente implicito, as yezes explicito — sobre o relacionamento destes sistemas com 0 que ocorre no mundo a sua volta, E o faz de uma forma que €, por um lado, bastante diferente daquela a que os humanistas estavam acostumados, € por outro, muito menos clusiva ~ com homilias sobre valores espirituais ¢ a vida examinada — do que, aparentemente, muitos deles desejariam. Se, com toda esta preocupacio sobre sentido e signifi- cagio, a nogio sociotecnoldgica do que € um cientista social passou a ser questionada, mais questionada ainda é a idéia de que humanistas so cies-de-guarda da cultura. O especi- alista, sem receitas de panacéias politicas para 0 espirito, desaparece, mas 0 sabio de estantes distribuindo opinioes favoraveis também. Ja nao € possivel expressar a relagio entre pensamento ¢ a acio na vida social, nem em termos de sabedoria, nem em termos de habilidade. No entanto, ainda nao descobrimos outra forma de expressé-la, ou seja, a razo pela qual jogos, dramas ou textos que nao inventa- mos ou testemunhamos, mas que vivemos, tém as conse- qiiéncias que tém, permanece um tanto ou quanto obscura. Para chegar a uma resposta, serio necessarios os mais cautos dos raciocinios, em ambos os lados de todas as linhas di- vis6rias. 56

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