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Regulação jurídica dos conhecimentos tradicionais associados no Brasil

Sheilla Borges Dourado1

Por “conhecimentos tradicionais” designam-se os saberes de povos e


comunidades tradicionais, referindo-se tanto às práticas religiosas, rituais, cantos,
línguas, grafismos e artesanato, quanto aos conhecimentos relativos ao uso e manejo de
espécies naturais. Estes últimos, denominados “conhecimentos tradicionais associados à
biodiversidade”, têm sido regulados pelo direito conjuntamente com o patrimônio
genético2, em razão da aproximação que a Convenção sobre Diversidade Biológica
(CDB), de 1992 estabeleceu entre ambos no mundo jurídico.
A CDB foi ratificada no Brasil em 1994. Dentro do escopo de conservação da
diversidade biológica, esse documento internacional estabeleceu que os benefícios
obtidos com produtos e processos industriais a partir do uso de conhecimentos
tradicionais associados à biodiversidade, devem ser repartidos com os seus detentores,
quais sejam, as comunidades tradicionais e os povos indígenas. Com isso, inaugurou-se
um campo de discussões acerca da implementação de direitos coletivos relativos ao
patrimônio cultural dos grupos tradicionais.
As iniciativas de regulamentação da CDB no Congresso Nacional Brasileiro
começaram em 1995, sem obter resultados concretos. Em 2000, um contrato polêmico
de exploração de microorganismos da Amazônia com uma companhia farmacêutica
suíça motivou a edição de Medida Provisória (MP) pelo Presidente da República
regulando o acesso e o uso de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais
associados à biodiversidade no Brasil. Tal Medida Provisória recebeu o número 2.186-
16 em 2001 e continua em vigor desde então. Essa norma criou um conselho
governamental com competências deliberativas (como autorizar pesquisas de
bioprospecção que envolvam acesso a recursos genéticos e conhecimentos tradicionais
associados) e normativas, por meio da edição de resoluções, que até hoje somam trinta e
quatro. O Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) está vinculado ao
Ministério do Meio Ambiente e nele apenas representantes governamentais têm direito a
voto. Povos indígenas e comunidades tradicionais, ainda que sejam reconhecidos como
titulares dos saberes sobre a biodiversidade, têm assento no plenário apenas com direito
a voz, sem poder de decisão.
A MP 2186-16/2001 ratifica a ênfase na relevância econômica do patrimônio
genético e dos conhecimentos tradicionais. Acredita-se que os conhecimentos
associados à biodiversidade ensejem inovações tecnológicas traduzidas em produtos e
processos industriais patenteáveis, e dessa forma, poderiam ser regulados conforme a
lógica do sistema de propriedade industrial. Segundo a MP, o conhecimento tradicional
associado é definido como “informação ou prática individual ou coletiva de comunidade

1
Pesquisadora no Núcleo Cultura e Sociedades Amazônicas (NCSA/CESTU) da Universidade do Estado
do Amazonas. Mestre em Direito Ambiental. Doutoranda em Direitos Humanos no Programa de Pós-
graduação em Direito da Universidade Federal do Pará.
2
No Brasil, o patrimônio genético é definido pela legislação como sendo: “A informação de origem
genética, contida em amostras do todo ou de parte de espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal,
na forma de moléculas e substâncias provenientes do metabolismo destes seres vivos e de extratos obtidos
destes organismos vivos ou mortos, encontrados em condições in situ, inclusive domesticados, ou
mantidos em coleções ex situ, desde que coletados em condições in situ no território nacional, na
plataforma continental ou na zona econômica exclusiva” (Medida Provisória n. 2.186-16/2001, art. 7º,
inc. I).

1
indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio
genético” (art. 7º, inc. II). Dessa forma, os saberes tradicionais são vistos sob um ponto
de vista meramente utilitário, ficando reduzidos à condição de “atalhos para a ciência”.
A legislação hoje vigente no Brasil reguladora do acesso e uso de conhecimentos
tradicionais associados à biodiversidade é composta basicamente de atos normativos
provenientes do Poder Executivo, quais sejam, a Medida Provisória n. 2186-16/2001 e
seus regulamentos consistentes em decretos presidenciais e nas resoluções do CGEN.
Desde 2007 intensificaram-se as discussões acerca da substituição da MP por
uma lei em sentido estrito, uma vez que nesse mesmo ano o governo federal instituiu a
biotecnologia como área prioritária para o desenvolvimento de ações e programas
visando o crescimento econômico do país (PAC).
No final do ano de 2007 a Casa Civil da Presidência da República submeteu à
consulta pública um anteprojeto de lei (APL) dispondo acerca do acesso e uso de
recursos genéticos e de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade,
distinguindo-os dos recursos e conhecimentos associados à agrobiodiversidade. Depois
de sete meses de consulta pública, sem resultados conclusivos, o texto do anteprojeto
voltou a ser negociado entre os ministérios em 2008. Como resultado, decidiu-se pela
elaboração de duas propostas distintas: uma tratando dos recursos genéticos e
conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, feita em parceria entre o
Ministério do Meio Ambiente (MMA) e o Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT); e
a outra tratando dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à
agrobiodiversidade, a cargo do Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento
(MAPA). Não se sabe, no entanto, quando e se a Casa Civil submeterá tais propostas a
consultas públicas, tal como ocorreu em 2007.
O texto resultante das deliberações entre MMA e MCT foi apresentado à Casa
Civil em setembro de 2009, para posterior encaminhamento ao Congresso Nacional.
Esses ministérios entendem que a medida provisória vigente cria restrições ao
desenvolvimento da pesquisa científica nacional e concordam que uma nova proposta
deve assegurar a repartição de benefícios e não dificultar o desenvolvimento da pesquisa
científica nem a geração de negócios com base na biodiversidade nacional3.
O discurso do movimento indígena no Brasil é marcado pela demanda do
reconhecimento de valores outros (simbólicos, espirituais) dos conhecimentos
tradicionais, e não o valor estritamente utilitário, do ponto de visto econômico e
ambiental. Além disso, as lideranças, pajés e profissionais indígenas reivindicam a
cientificidade de seus saberes, argumentando que se trata de uma sabedoria própria.
Porém, a demanda mais importante diz respeito a melhores condições de participação
desses sujeitos no processo de discussão de normas jurídicas, junto às instâncias de
poder, de modo a garantir o cumprimento dos direitos coletivos reconhecidos tanto pela
legislação nacional quanto internacional.
Diante desse contexto, algumas questões podem ser colocadas para o debate:
1. As propostas para o projeto de lei elaboradas nos gabinetes governamentais
serão submetidas a consulta pública? Que tipo de consulta pública?
2. Como implementar um verdadeiro processo de consulta, amplo e esclarecedor,
junto a povos indígenas da Amazônia, considerando o fato que, em muitas
comunidades não se compreende ou compreende-se mal o português? O que se
pode dizer então da linguagem técnico-jurídica que compõem os textos
consultados?

3
Anteprojeto de lei sobre pesquisa com acesso ao patrimônio genético e à biodiversidade é enviado à
Casa Civil. Jornal da Ciência email 3848, de 15 de setembro de 2009. Acesso em 06 de abril de 2010.

2
3. Devemos continuar focalizando os aspectos econômicos do acesso e do uso de
conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade nas discussões acerca da
sua regulação jurídica? Ou devemos nos dedicar a encontrar mecanismos (legais
ou não) que garantam a produção, a manutenção e a reprodução dos saberes
entre os povos e comunidades tradicionais?
4. Que impactos ambientais e sociais sobre os sujeitos indígenas - individuais ou
coletivos - podem ser observados a partir da introdução de uma lógica contratual
de mercado nas trocas envolvendo saberes tradicionais?

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