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DILEMAS SOBRE A HISTORIA DAS VERDADES JURIDICAS TOPICOS PARA REFLETIR E DISCUTIR LUIS ALBERTO WARAT PROFESSOR DO CPGD - UFSC 1 — No momento, o prin- cipal dilema para uma inves- tigagao sobre a constituicao historica e as fungGes sociais da ciéncia do direito é o da formulacéo da histdéria das verdades juridicas. Pretendo partir desta pro- blematica no sentido de pro- por um novo plano de andlise para a epistemologia juridica. Para obter este objetivo, pre- ciso situar-me, preliminarmen- te, frente as quest6es e posi- cionamentos consagrados pela tradicao epistemolégica das ciéncias sociais, submetendo- as & indagacio critica. A idéia bdsica 6 a de subverter certos valores epistemoldgicos con- sagrados, tentando mostrar o sentido politico da normativi- dade que eles instauram quan- do efetuam julgamentos sobre os discursos das ciéncias hu- manas. O que desejo fazer é tematizar a ortodoxia episte- molégica, reconhecendo os ele- mentos que impedem suas propostas revisionistas, para a constituigao de um novo pon- to de vista epistémico. Re- constituindo a trajetéria epis- temologica oficialmente reco- nhecida e estabelecendo seus limites e siléncios, poderei ex- ternar a originalidade do pla- no analitico que proponho O cerne do deslocamento epistemoldgico nao é dado nem pelo primado da razéo sobre a experiéncia, nem da experién- cia sobre a razio, mas pela supremacia da politica sobre a razao e sobre a experiéncia. E neste sentido que a compre- enséo das condigdes de possibilidade das ciéncias sociais exige a explicitagéo das relagGes de forca, formadoras de do- minios de conhecimentos e sujeitos como efeitos do poder e da significagao. Esta andlise nao é feita pela ortodoxia epis- temologica, preocupada com os componentes ldgicos e refe- renciais da produc&io dos conceitos, alienando, deste modo, o conhecimento cientifico de sua expressio material como ac ontecimento significativo; 0 que provoca representacdes mais abrangentes que as sugeridas pelo enclausuramento 1o- gico-referencial da falta epistemoldgica tradicional. O passo decisivo capaz de produzir o deslocamento do conceitc para a significacéo seraé dado pela introducao da cuestéo do poder, como plano de andlise do conhecimento, bem como pela rejeicéo critica da problematica da cientifi- cidade da ciéncia. Certamente, a compreensao epistémica do poder do conheciniento, tido como cientifico, passa pela con- sideracio da eficdcia politica dos critérios epistemoldgicos que sustentam as verdades da ciéncia, ou seja, pela compre- ensaio do valor politico dos critérios de cientificidade episte- mologicainente positivados. 2 — Observando-se a constituicéo histérica da epistemo- logia tradicional, verifica-se que ela se encontra norteada por uma obsesséo demarcatéria que necessita ser discutida. Cer- tamente, ao levantar a questo da cientificidade da ciéncia, os epistemodlogos tentaram respondé-la instaurando critérios inilexiveis de demarcacao entre o que deve ser considerado ou nao como ciéncia. Assim, procuraram opor 0 conhecimen- to cientifico as representac6es ideoldgicas e as configuracdées metafisicas, distinguindo a verdade do erro, opondo o sentido referencial 4s evocagdes conotativas, como também diferen- ciando a “doxa” da “episteme”. E a partir destas distingdes dicotémicas que surge uma concepcéo de racionalidade cien- tifica, uma ordem configurativa do que se deve entender por cientificidade da ciéncia; embora, inadvertidamente, esse en- tendimento origine-se de todas as regides do saber que foram excluidas, operando como senso comum tedrico que, como tal, nao deixa de ser uma significagéo extraconceitual no inte- rior de um sistema de conceitos, uma “‘doxa” no interior da “episteme”, uma ideologia no interior da ciéncia. Aceitando essa situacao, o novo ponto de vista epistemoldogico proposto pode ser interpretado como as dimensGes “doxa” dos discur- sos epistemologicamente controlados. O senso comum esia- via, assim, constituido por todas as significagdes que, reivin- dicando um valor assertivo, nado deixam de ser uma fala adap- tada a preconceitos, habitos metafisicos, visbes normaliza- doras do poder, certas tentagdes de profetismos, ilusdes de transparéncia e nogdes comuns apoiadas em opinides. Em suma, uma fala adaptada as praticas espontaneas e discipli- nares de pensar, agir e sentir. 3 — Qual é, entdo, a especificidade do discurso das cién- cias sociais? A resposta naéo é facil. Até certo ponto, posso dizer que uma das especificidades do discurso das ciéncias sociais é o de falar em nome da verdade, através de um siste- ma de conceitos logicamente controlados. Nao julgo esta pretensio invdalida, mas apenas insuficiente. Provavelmente, ela satisfaz uma das varias funcdes das ciéncias sociais, que é a de submeter a um processo de constante objetivagao os determinantes histéricos das relacdes sociais. Ora, com isto nao quero afirmar a existéncia de uma unica teoria que deva ser legitimada como processo de objetivacaéo do real. Existe um conflito tedrico que torna abertos os discursos da cién- cia a critica e & utilizagao de suas coordenadas, que, em tlti- ma instancia, apresenta uma dependéncia politica. O ponto de vista epistemoldgico tradicional aspira 0 comando desse processo de objetivac&o. Por outro lado, deve-se considerar que a verdade produ- zida pelos discursos de objetivacio é socialmente consumida, atendendo a necessidades politicas. Desta forma, precisa-se admitir a existéncia de certos efeitos de verdade, construidos em nome de um processo de objetivacao, tornado estereoti- pado. Surge, assim, a necessidade de falar de um outro plano epistemologico, fundamentalmente preocupado com a politi- ea das verdades. Neste nivel de andlise, o discurso cientifico torna-se estratégico, utilizando a verdade como um jogo que acarreta efeitos politicos. Analisando o jogo estratégico da ciéncia, o nticleo conceitual de seus discursos torna-se vazio, um mero significante, em um contexto fragmentado de cono- tagdes difusamente transmitidas, disfarcadas por um contro- le metddico, agora descontrolado. Quando a coeréncia e a vigilancia ldgico-conceitual s&o invocadas em uma ordem de relagdes politicas, elas operam como uma espécie de exorcis- mo semiolégio que oculta e impede, sob a aparéncia do rigor, a detectagao dos efeitos politicos de um discurso. Ao colocar para os discursos das ciéncias sociais a questaéo do poder, as regras de objetivagao tornam-se marcas sagradas, que rou- bam as relagdes conceituais a sua fungéo referencial, tornan- do-as abertas aos efeitos do poder. Genericamente, posso afirmar que o objetivo inicial de uma andlise sobre o sentido estratégico dos discursos das ciéncias sociais passa pela reconstrucéo e determinacfio do seu valor politico, quando emergem como senso comum dos cientistas. Enfim, estou colocando a questao das verdades também como uma noc&éo do senso comum teérico, que vai- se definindo como verossimilhanga a partir de uma tensao entre a procura de objetivacao e 0 emprego estratégico dos discursos das ciéncias sociais. 4 — A ortodoxia epistemologica pode ser definida como uma tradigao de objetividade abstrata. A tradicéo de objeti- vidade concebe 0 mundo social como sendo um sistema, de regularidades objetivas e independentes. A proposta sugere a coisificacao das relagdes sociais, 0 que permite pensd-las em seu estado inocente. Desde ja, a inocéncia deste saber impede a percepcio da existéncia de um programa politico da verda- de. E precisamente a perda desta inocéncia que vai permitir a formacéo de uma histéria da verdade que nos mostre os seus efeitos politicos da sociedade. Para isso, parece-me que precisamos nos afastar da tradicaéo objetiva e abstrata, na medida em que instaura um sistema de crengas, que nos forc¢a a n&éo considerar o poder da verdade e, principalmente, a crer que os sujeitos do conhecimento e os objetos que ele produz sdo dados prévios e definitivos. Este sistema de crengas ainda nos obriga a crer que as verdades podem ser encontradas pelos sujeitos a partir de um desenvolvimento progressivo do espirito, comandado pela razio e pela expe- riéncia. Note-se que 0 conhecirnento, na medida em que é purifi- cado pela razéio, maldosamente limita a percepcio dos efeitos politicos das verdades e dos conceitos. Tais efeitos apenas podem ser percebidos quando concebemos a historia das verdades como jogos estratégicos, como campos de luta se- mioldgicos e nfdo como uma historia das idéias ou dos ho- mens. Deve-se também verificar que os conceitos constituem os objetos como ambitos extensivos dos signos, a partir de propriedades designativas estipuladas. Desta forma, o mundo 6, na ciéncia, uma estipulacao. Ora, se 0 mundo é uma rede de definicdes, ele depende visivelmen- te de processos estipulativos. Compreender 0 mundo como definigio exige a compreenséo das condigdes de producio das estipulagées. Nas ciéncias, as propriedades designativas sempre dependem e estéo contaminadas pelas relagées de poder e n&o pela experiéncia. Nestas circunstancias, deve-se observar que os conceitos, na medida em que definem justi- fticativamente a extensao dos signos, desempenham um papel redutor do real; redug&o esta que é possibilitada pela selegao das propriedades designativas, cuja escolha (para a forma- géo da definicéo conceitual) depende privilegiadamente de um valor politico, que, por sua vez, Sempre 6 expresso como um valor semantico. De uma forma mais radical, pode-se afirmar que a idéia da pureza metddica esconde a atividade valorativa do processo de designacao, mostrando-o como uma procura semantica. A questao bdsica, entao, é a de mostrar que os critérios designativos nao sao emitidos a partir de um lugar fora do poder. Com efeito, 6 da andlise das vozes disfarcadas do poder, do estudo de sua conilitividade, que se pode constituir um plano de reflexaéo, que mostre as relagdes entre os conflitos do conhecimento e as determinagdes politicas da sociedade. 5 — A idéia central que gostaria de propor é que 0 novo rumo epistemoldgico das ciéncias sociais 6 insepardvel da teoria politica. Desta forma, ele apresentaria uma certa rela- cao familiar com uma sociologia politica do conhecimento cientifico. Poderia dizer, de um modo geral, que ele temati- zaria 0 condicionamento politico dos discursos cientificos. Neste sentido, estariamos diante de uma “semiologia poli- tica”, preocupada em demonstrar os discursos das ciéncias sociais como opinides conflitivas, que nunca poderiam ser reduzidas ou apresentadas como simples emanag6es da razao, da emogao ou. da dominagao, como tampouco como “natu- rais”, no sentido de uma hist6ria natural de um objeto cul- tural. 6 — Retomando a questao do processo de objetivacgao, nos encontramos irente & necessidade de aceitar a possibili- dade de produzir uma objetivacao da realidade social. Penso que este processo nao é obtido a partir de certos mitos empi- ristas ou ilus6es idealistas, como tampouco por uma crenca exacerbada sobre o poder da Idgica. Nesta perspectiva, penso como Popper, no sentido de pressupor que o processo de objetivacéo das ciéncias sociais esta baseado em um criticis- mo racional, em uma abordagem critica, em uma tradigaio critica. Os dados, nas ciéncias sociais, sio dados tedricos, e, por- tanto, contém uma significagaéo publica e institucional. Em outras palavras, o que o cientista social procura tornar obje- tivo 6 a propria tradicaéo cientifica. Assim, retomo a minha nocéio de senso comum tedrico, que € a matéria-prima que o cientista social trabalha e deve abordar criticamente. Parafraseando Popper, eu diria que o senso comum teé- rico consiste em um conglomerado de problemas e solucdes tentadas, demarcadas de forma artificial. O que existe € um complexo heterogéneo de solugées ilusoriamente unificadas pelas tradigdes cientificas. Frente a este panorama, é impor- tante verificar a existéncia de um lugar tedrico (que deno- mino senso comum) conflitivo; mediante 0 debate, mediante o confronto racional dos determinantes e efeitos das signifi- cagédes propostas, podemos tender 4 objetivacio deste senso comum teodrico, travando enfim uma permanente luta contra a crenca na existéncia de certas idéias que podem ser postas fora de dtividas. Devemos ainda verificar que as idéias trans- formadas em dogmas, postas fora de suspeitas, possuem uma fecundidade politica maior que a sua forca explicativa. O criticismo cientifico nada exorciza; ele tende ao esta- belecimento das relagdes admissiveis e provisdrias entre pro- blemas, solugées e efeitos sociais. Para o criticismo, a ver- dade € uma idéia reguladora, pois, em torno dela, é que se procura abordar as teses nao negocidveis do senso comum tedrico. O importante é tornar relativo o sentido puramente observacional da verdade, colocando-a como uma represen- taco, mais ou menos consciente e aberta as criticas dos nos- sos condicionamentos sociais. Neste sentido, a partir do controle l6gico dos argumen- tos, dos conceitos e das teorias, poderemos ajuizd-las meto- dologicamente, procurando melhord-las. No entanto, nao po- demos cair na ilusio de pensar que através dos procedimen- tos ldgicos, poderemos eliminar os efeitos politicos das me- diag6es significativas geradas pela tarefa da ciéncia. Podernos falar de certas conseqiiéncias institucionais do conhecimento cientifico, que nos devem conduzir 4 tentativa de sua objeti- vacao. Porém, trata-se de problemas diferentes. Uma coisa é entender o sentido social de certos rituais semioldgicos e ou- tra, bem diferente, é a de tentar se inserir em um fragmento do conhecimento institucional, & procura de um confronto conceitual. No primeiro caso, interessa analisar os efeitos so- ciais de um comportamento institucional; no segundo, inte- ressa desestabilizar racionalmente um argumento, Neste contexto, eu gostaria de esclarecer um ponto im- portante, que 6 o da recuperacio institucional do comporta- mento critico. Verificamos, assim, a conversio do processo de objetivacao em um processo de estereotipacio. Este pro- cesso pode ser esquematicamente descrito como a conversao da critica em um chavao teérico, geraco pela inclusfo de um argumento no conglomerado difuso de idéias conformativas da tradic&éo cientifica dominante. Portanto, aquilo que admi- te, em Ultima andlise, o éxito do argumento te6rico converti- do em chavéo é a relacg&o direta ou indireta de seus pontos de contato com problemas éticas, religiosos e politicos pre- sentes no senso comum tedrico; pontos de contato que subs- tituem suas iniciais vinculagdes com a rexao dedutiva. Neste ponto, resulta dificil diferenciar as idéias metodoldgicas das idéias expiicativas, os padrées de verdade dos padrées de acio. Enfim, creio que 0 processo de objetivacio das relacdes sociais é limitado e permanentemente envoivido por uma me- tafisica emergente dos efeitos politicos, pela utilizagfo estra- tégica do discurso objetivante, mas que necessita ser revisto pela critica racional. O discurso de objetivacdo é dialetica- mente alterado pelas pressdes do meio institucional. N&o podemos nos iludir sobre o fato de que todo discurso de obje- tivagao termina por se converter em um discurso carregado de componentes miticos. Por isso, a objetividade, nas cién- cias sociais, € simplesmente a teimosa atitude de resisténcia & esteriotipacio das idéias racionalmente controladas. E a “objetividade” € parcialmente recuperada quando se conse- gue tornar explicito o processo de estereotipacio, quando se supera o sincretismo dos planos de andilise e se obtém um momento de reflexio momentaneamente despreocupado de seu poder de significacao. Deve-se notar que este momento de reflexio aparentemente menos comprometido com o po- der é mais facil de ser obtido com a tentativa de desestabiii- zacao dos argumentos de um oponente. Nas ciéncias sociais, a critica racional encontra-se diretamente comvrometida com a dentincia da irracionalidade dos argumentos dos oponentes. Mas, do confronto vio surgindo alguns pontos, alguimas idéias. que sio reciprocamente aceitas, postas provisoriamente fora de diividas; s&o os dados tedricos que, em farrapos, vaéo cons- tituindo o processo de objetivacéo das relacdes sociais. 7 — Poderiamos falar, assim, de dois tipos de estratégias discursivas: as geradas pela procura da objetivacao das rela- cdes sociais e as empregadas nas proprias relagées sociais, que se vao constituindo mediatizados pelo saber. Neste segundo ca- so, temos também um conhecimento auto-reivindicado e legi- timado como cientifico, que é uma fala adaptada a uma orati- ca. Trata-se de um saber que invoca a verdade para organizar suas significagdes e satisfazer suas fungdes sociais, mas que, no fundo, organiza-se semiologicamente por e para o poder. Nesta segunda forma de estratégia discursiva, existe um con- fronto conceitual que esconde um confronto politico. E. por esta raz&o, as significagdes que vao sendo aceitas como a obje- tivagéo de um conhecimento sao a resultante mitica de um processo de persuasio. Deve-se entéo distinguir a critica co- mo instrumento de objetivagio e como arma de persuasao. Ora, 6 importante néo esquecer que 0 conhecimento de oficio constitui também a materialidade das relagdes sociais, sendo, assim, um dos dados que devem privilegiadamente ser levados em conta para propiciar o processo de objetivacao das relagdes sociais. Por este motivo, o novo plano episte- moldégico que estou propondo deve necessariamente se arti- cular com as formas epistemoldgicas tradicionais. O processo de objetivacéo do conhecimento passa a ser, assim, a resultante de um olhar critico sobre as estratégias de conceitualizagao e sobre as estratégias de persuasao prove- nientes das opinides de oficio, da praxis. 8 — Observemos agora o saber que emerge das institui- goes e as relagdes sociais definidas como juridicas, assim vo- mo das teorias que pretendem fornecer respostas cientificas scbre o heterogéneo campo de quest6es reconhecidas como legitimamente vinculadas com a expressio direito. Estamos, assim, diante de uma série de discursos juridicos que tenta- remos analisar epistemologicamente. Procuraremos efetuar esta andlise epistemol6gica munidos de um instrumental se- mioldgico, que chamaremos “semiologia do poder”. Em outras palavras, tomando como objeto de estudo o estoque de discursos derivados de uma variada gama de atividades institucionais que pode ser reconhecida como regida por normas, tentaremos, através de uma abordagem semiolégica, explicitar 0 sentido social das verdaces que ela apresenta. No que diz respeito & démarche desta historia das ver- dades, nao se detectam, dentro do pensamento juridico con- sagrado, duvidas sobre 0 seu estatuto de ciéncia. De certo modo, esta historia das verdades estaria consti- tuida por todas as significacdes juridicas que reivindicam um valor assertivo, apelando as vozes imunizadas da ciéncia, mas que, no fundo, nio deixam de ser uma maneira de falar adap- tada & “doxa”. Devemos convir que a clausura de certeza que este tipo de significagéo transmite nao 6 casual, pois responde as pro- prias condigées hist6ricas de sua produgaio. Assim sendo, nao seria possivel compreendé-la epistemologicamente sem expli- citar em termos de andlise o seu poder social. Convém ainda alertar sobre o fato de que as resisténcias analiticas oficial- mente consagradas contra esta “doxa” significativa susten- tam-se em uma ilusfo racional, que n&o deixa de ter efeitos politicos, pois seus critérios sféo extraidos de propostas me- todoldégicas que funcionam como uma lei de organizacao para a producéo de um conhecimento universal e abstrato, que nunca nos leva & compreensao do sentido social das verdades juridicas tornadas discurso competente. 9 — A filosofia do direito registra um longo percurso critico que apenas pode ser periodizado como formas diferen- ciadas de uma mesma razao juridica. Assim, o jusnaturalis- mo foi criticado pelo positivismo, este pelo realismo, sem que se notasse a busca de uma construcao tedrica que explicitas- se as condicg6es sociais de producéo do saber juridico e 0 seu sentido social e politico. Estas tomadas de posicao, que apa- rentemente diferem entre si pelo lugar de origem e de exis- téncia do direito (Deus, a Raz&io, a Natureza a Sociedade e a Experiéncia Juridica Positiva), nado deixam de ser formas de recuperar a “doxa” na “episteme”. Isto ocorre porque o valor de um ponto de vista epistemoldgico independe da con- sisténcia légica dos discursos, da observagaéo ou da experién- cia. A epistemologia depende da histdria: a raz&io ou a expe- riéncia apenas tém valor epistémico se Ihe servem. O discurso inaugurado pela filosofia juridica classica influiu fragmentariamente no regime de verdade efetivamen- te implementado nas praticas profissionais dos juristas (ju- dicidrio, administragao plblica e parlamento). Nessas pra- ticas, constata-se a predomindncia de um complexo discursi- vo heterdéclito e multiforme, que pode ser reconhecido como a resultante de um jogo semiologico-material; uma resultante simbolica forjada pela complexidade e conflitividade das re- Jagées juridicas. Na verdade, a ciéncia do direito que os ju- ristas invocam, em suas praticas profissionais, 6 uma “doxa” metoédica, um conjunto de opinides de officio. Trata-se de uma pratica discursiva fundamentalmente determinada por hdbitos semiologicos e costumes intelectuais, onde o sistema de nog6es criticas propostas pela filosofia ou pela teoria geral do direito é recuperado na forma de argumentos retdricos. Assim, as categorias criticas feitas por diferentes modalida- ces transhistoricas do pensamento filosofico classico conver- tem-se em hdbitos tedricos de referéncia, em conceitos “doxi- cos” exorcisados de sua forga analitica. Nas praticas profis- sionais do direito estamos diante de uma formacao discursi- va na qual seu discurso competente recupera, para a realiza- cao de suas funcoes sociais, todas as vozes dissidentes, deven- do-se acrescentar que a recuperacao discursiva destas vozes encontra-se sempre limitada pelos conflitos das relacGes so- ciais. Os hdbitos semiolégicos operam principalmente como esteredtipos e, assim, suas significacdes nos distintos momen- tos histéricos do discurso competente depende do poder que no momento tenham as forcas que a ele resistem. Podemos dizer que as vozes provenientes de um discurso cientifico inserido na histéria sAo ainda muito pdlidas no campo juridico. Constituem vozes derivadas das outras dis ciplinas sociais, principalmente da teoria politica e da socio- iogia do conhecimento. Como saldo dessa andlise, resulta interessante reter a idéia de que o emprego do capital lingiiistico dos juristas, no nivel de suas enunciacées “ddxicas”, nado servem unicamente para a realizagéo e legitimacao do programa politico do Esta- do. Seus esteredtipos serviram historicamente como instru- mentos de contestacéo. Pode-se dizer, assim, que para efe- iuarmos a desarticulacéo e reconstituicéo epistemoldgica da “doxa” juridico, para compreendé-la a partir do Angulo de suas condigdes de producao e efeitos sociais, precisa-se cons- tituir uma formagaéo discursiva que leve em consideracio tanto o discurso instituido como os diversos discursos que a ele resistem. 10 — Creio, ent&o, ter chegado 0 momento de considerar 0 poder das significagdes juridicas, suas condigées de produ- e&o e efeitos de verdade. Assim, afastando-me da discussao sobre a cientificidade do conhecimento juridico, prefiro acen- tuar o cardter imprescindivel do sistema de representaccoes envolvidas nos diferentes discursos do direito. Elas devem ser vistas como um elemento indispensdvel para a satisfacio das func6es sociais (n&o oficialmente expostas) da cultura juridica. Desta forma, pode-se dizer que 0 esboco pertinente para uma historia das verdades juridicas deve esclarecer de que forma certas representac6des filosdficas, certos conceitos da dogmatica juridica e da teoria geral do direito, a visio linear da hist6ria dos métodos de interpretacéo, cumprem fungdes sociais diferentes das oficialmente expostas. O ponto fundamental a observar é o da tentativa de ex- plicitaeo dos sentidos silenciados nos tradicionais procedi- mentos de constituig&éo das teorias juridicas. Seria uma lei- tura & procura do valor politico e estratégico de um discurso socialmente exposto. Destacar a constituicio de uma histdéria das verdades juridicas quer dizer integrar e ampliar o universo sagrado do conhecimento juridico, revelando suas implicagdes extra- discursivas, mostrando as razdes que convertem o conheci- mento juridico em uma das linguagens do poder. O que é necessdrio levar em consideragio é€ que as for- macées discursivas resultantes das andlises que estamos propondo nao podem aparecer como um esquema tedrico separado dos discursos que tenta tornar problematicos. Ele 6, antes de mais nada, um espaco critico gerado pela tarefa de articulacio de um saber socialmente consagrado com as condic6es e efeitos sécio-politicos que provocam tal consa- gracaio. Poder-se-ia descrevé-lo como uma leitura mediante a gual procura-se a instauracio de um discurso duplo que re- imprime as opinides metddicas dos juristas, as marcas de suas condic6es e efeitos de producaio. Observe-se ainda que por intermédio do saber juridico (sacralizado como crenca e negado como ideologia) se produz e reproduz o efeito da lei na socicdade, além de tornar suportdveis as obrigacGes im- postas pelo direito, reduzindo conseqiientemente as possibi- lidades de nfo aceitagio das decisGes impostas pelo aparelho judicial-administrativo do Estadc. E por isso que nao se pode pensar a estrutura social do direito sem urn modelo de ver- dade. Nao existe distancia entre o conhecimento e a praxis juridica. Foucos juristas advertem que as teorias presentes em suas praticas habituais nfo explicam a realidade do di- reito. A teoria juridica apropria-se das relagdes juridicas pa- ra legitimd-las e complementa-las em seus efeitos politicos e sociais. Com efeito, 6 por intermédio das doutrinas juridicas so- cialmente impostas que se obtém, por exemplo, a realizagao efetiva da forma juridica. Certamente, através de uma teoria juridica que reivindica para si o estatuto de cientificidade, é gue se consegue as condicées de intermediacéo simbdlica necessérias para a representacgio dos momentos normativos da sociedade, como express6es coerentes, axiomaticas e abs- tratas. Apresentamos, assim, em linhas gerais, 0 sentido social da reivindicagao de cientificidade do conhecimento juridico. Pode-se entaéo compreender como, mediante o apelo a cientifi- cidade do saber, consegue-se transpor (propondo a identida- de entre o saber e a realidade) para a esfera da lei os meca- nismos de abstracéo que constituem o saber. A lei torna-se socialmente mais eficiente, pois pode invocar para si a racio- nalidade do saber. Portanto, é pelo conhecimento do direito, quando se apresenta como cientifico, que se pode obter um efeito de racionalidade para a lei. E assim que entendo as razdes que levam o jurista a opor ciéncia e ideologia, recuperando para seu discurso com- petente uma natureza nao ideologica. E interessante obser- var o que existe por tras da rejeicao da ideologia feita pelos juristas, em nome da ciéncia. Na verdade, 0 que o jurista rejeita é a irracionalidade do conhecimento do direito. A existéncia de formas juridi- cas irracionais séo exorcizadas em nome da ideologia. Esta maneira epistemolégica de expurgar a irracionalidade es- conde a necessidade politica de implementar a razéo como fator co-determinante da forma juridica hoje dominante. Torna-se entéo necessdrio recusar a oposicao ciéncia/ideolo- gia, situando-a como um obstaculo na percep¢ao do direito efetivamente realizado na historia; como um obstaculo na compreensao das relacGes entre os conflitos de conhecimento eas determinacées politicas da sociedade. Existe, no corpo do direito, um estoque de discursos emanados de uma gama de praticas institucionais, que devem ser objeto de reflexAo para que possamos compreender seus efeitos sociais; e nao para denuncid-los como ideoldgicos ou tentar salvd-los como um capital de conceitos completamente neutralizados e separados de sua implementacéio na socie- dade. Desta forma, a tendéncia reflexiva que proponho desen- volver esta encaminhada a constituicao de uma genealogia das opinides metddicas, vistas como formagédes discursivas heter6clitas e multiformes, opinides com emergéncia histori- rica, sem origens metafisicas ou naturais. 11 — Finalmente, quero fazer algumas consideragées so- bre a formacao dos juristas e suas relacGes com a praxis ju- ridica. Em outras palavras, pretendo analisar a relacdo entre a escola e a praxis juridica, entendendo provisoriamente esta ultima como legislagdéo e aplicaciéo do direito. Interessa-me principalmente fazer uma breve exposicéo em torno da forma de comunicagao existente entre 0 saber juridico e a praxis do direito. Existe, indubitavelmente, um certo mal-estar no modo como as escolas de direito formam os juristas. O formalis- mo, o afastamento da vida, a falta de cientificidade, foram pontos de referéncia para que se reivindicasse topicamente a necessidade de um ensino e de uma teoria critica do direito. Isto ocorreu no Brasil na segunda metade dos anos setenta. O potencial critico muitas vezes foi mal interpretado, pois foi entendido como a necessidade de um melhor emprego das ciéncias sociais na praxis juridica ou, melhor dizendo, como a necessidade de desqualificar sociologicamente os juristas, a administragéo da justica, a ordem juridica estabelecida e a propria ordem social, quando, na realidade, deveriamos nos interrogar sobre as dimensGes de um programa tedrico que permitisse contar com um conhecimento do direito como ciéncia social e néo como reflexio auténoma. Por isso, creio que falar da producgao de um pensamento critico sobre o direito atualmente no Brasil n&éo passa pela produgéo de um saber militante, mas pela conquista de um ponto de vista epistemoldgico que nao tenha por finalidade a realizacéo de uma instancia provedora da praxis juridica como saber auxiliar das estratégias de argumentacao e legi- timacAo ou como instrumento de um grupo de iniciados (os juristas) para a realizagéo de uma linguagem especializada; tampouco significa um subsidio académico para certas reaii- zagdes técnicas de resolucdo de conflitos. Trata-se da obten- cao de um lugar distanciado da praxis, de uma tentativa de concretizagao de um saber ja nao reconhecido exclusivamente como disciplina pratica. Constitui, na verdade, a compreen- sic tedrica do sentido e efeitos sociais de uma forma de co- nhecimento profundamente ligada com a praxis do direito; uma forma de conhecimento que nao procura de maneira ime- diata a desquatificagao ou reformulagéo deste saber pratico, mas sua compreenséo através de um processo de objetivacio das proprias formas de saber comprometidas com a praxis. Como conseqiiéncia deste ponto de vista, procura-se construir € mostrar nas escolas um conhecimento do direito como cién- cia social, através da aceitacao do saber juridico comprome- tido com a praxis. Na atualidade, a formaciio dos juristas objetiva uma pro- fiss&o muito concreta. A base sobre a qual se diagramam os conteidos curriculares é a figura mistificada de um jurista capaz de atuar como juiz. Certamente, ndo somente se homo- geiniza a profissio, como se torna uma ideologia funcional apta para legitimar o poder decisorio dos juristas através de um processo de identificacao de seu comportamento com os valores sociais. Isto se realiza principalmente através do ca- pital cultural do direito, que permite realizar muito eficaz- mente o jogo das aparéncias e as esséncias valorativas que ja nos mostrou Maquiavel. A relagao do conhecimento juridico, que atualmente for- ma os juristas, com a prixis do direito pode ser considerada ret6rica, mitica, pois os tedricos do direito pensam que sua principal func&io é a de formular instrug6des para a atividade do legisiacor, dando indicagées para a sistematizagiéo das sentencas e seus fundamentos. Desta maneira, o saber oficial- mente instituido do direito e sua divulgacao académica mo- vem-se principalmente no interior de um mesmo discurso especializado nas praticas de oficio. O saber juridico confun- de-se, assim, com as praxis juridica em uma regiao discur- siva, difusa de representagdes homogeneizadas, que chamo sensc comum tedrico. Para manter a funcio prdtica militante do saber juridico (como componente tedrico utilizado de forma estratégica nos discursos praticos), os estudantes séo forgados a ignorar os efeitos sociais de sua propria formacéio e do saber que a co- manda. Isto tudo é feito sob a invocag&o do carater cientifi- co (posto como um lugar fora do poder) do saber ensinado, em razao de um paradigma epistemoldgico que reivindica a Objetividade do direito e de seu conhecimento, como também a objetividade de sua aplicagao. Neste sentido, poderiamos afirmar que uma versio re- toricamente recuperada do normativismo realizado nas esco- las de direito permite a utilizagao estratégica de seus funda- mentos e nogées, vistas simplesmente como a necessidade de que o jurista cumpra sua funcaéo social como mero herme- neuta de uma legalidade externa ao jogo das relagées de po- der. O jurista nao é visto como um operador das relacdes so- ciais, mas como um operador técnico das normas. Desta for- ma, as pretensdes epistemoldgicas de Kelsen (preocupado com as condigées de objetivacao do saber dentro dos discur- sos estratégicos da praxis do direito) sAéo apresentadas como a tunica funcao social valida para os juristas. O jurista prd- tico termina sendo afastado do olhar socioldgico e politico; a neutralidade convidando-o a comportar-se em sua pratica profissional como cientista puro. Assim, o postulado da pu- reza metddica torna-se uma regra da praxis do direito, uma regra que efetivamente nega muitos dos principios e valores que a teoria e a pratica tradicional do direito proclamavam como guia.

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