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Q ABUSO ESTATAL DO DIREITO LUIS ALBERTO WARAT CPGD/UFSC Existe uma forte tendén- cia a apresentar a questao dos direitos humanos sob um enfoque desideologizado e despolitizado. A histéria do pensamento juridico e politico do século XX reafirma uma forte tendén- cia a reivindicar a neutrali- dade ideolégica da luta pelos direitos humanos. As concepgdes extra- ideolégicas dos direitos hu- manos significam, a meu ver, s6 uma coisa: a sujeigéo di- reta 4 ideologia das forgas historicamente obsoletas =e retrégradas. Recorre-se inva- riavelmente 4 ideologia das concepgdes extra-ideolégicas dos direitos humanos, as con- signagdes da neutralidade po- litica e ideolégica das lu~ tas pelos direitos humanos, para encobrir a _—-verdadeira intencionalidade dos diversos sistemas estatais de terror e a repressao institucionalizada do povo. As freqtientes afirmagdes de que o problema dos direitos do ho- mem tém uma importancia aut6noma e ideologicamente neutra formam parte do desenvolvimento ideolégico e politico das prdticas insti- tuintes de uma forma totalitaria de sociedade. Assim, as concepgdes dominantes dos direitos humanos constituem a medula de um projeto de desumanizagao e de despolitizagio do social, feito cinica e me- diocremente em nome de certas praticas pseudo~humanizantes e de um pseudo-espirito transcendente e sem alienagoes. A concepgao desideologizada do problema dos direitos direitos humanos foi expressa com bastante claridade pelo atual ocupante do trono de Sado Pedro no discurso que pronunciou no Concilio Latino- americano de Puebla (janeiro de 1979). Nesse pronunciamento Joao Paulo II condenou a impunidade com que s4o violados em todas as partes os direitos fundamentais do homem, afirmando que a = Igreja nao precisa recorrer a nenhum tipo de ideologia para amar e defen- der ao homem e contribuir para sua libertagaéo. 0 jornal Le Monde comentou com assombro a tese papal: "Pata Jodo Paulo 11 os dineitos do homem nao impLicam nenhuma ideotogia®. Parece-me impossivel pensar sobre o sentido histérico dos di- reitos humanos despojando-os de toda referéncia ideolégica e poli- tica. Desta maneira unicamente se tenta impor um quadro — estereo- tipico e mistificante das lutas que envolvem e comprometem sua sig- nificagao. Por um estranho fendmeno de histeria politica, nossas habituais estruturas mentais continuam refletindo a mentalidade do século XVIII. Possivelmente um sintoma da tragédia do idealismo in- telectual que procura um fabuloso paraiso perdido. Fantasias per- feitas que negam (entre outras coisas) o cardter politico das pra- ticas e os discursos mobilizados em torno dos direitos humanos. Nao podemos, tampouco, esquecer que na atualidade a discussao sobre 0 sentido dos direitos humanos esconde a controvérsia geral, © confronto, das principais ideologias de nosso tempo. Uma luta que influi ativamente na produgao institucional das personalidades alie nadas e nas dimensdes simbdlicas da politica internacional. Em nome de presumidas violagdes dos direitos humanos se conseguem _— miituos xeforgos 4s formas de pensamento, orientadas 4 reprodugdo das or- dens simbélicas estabelecidas para assegurar o triunfo de uma clas- se. Movimentamo-nos a partir de uma caracterizagdo vaga e amorfa dos direitos humanos, vestigios conceituais, estilhagos do senso comum que permitem confirmar crengas identificatérias maniacamente defendidas. Ao contrério do que pretende o idealismo intelectual do oci- dente, em suas miltiplas variantes, todo conhecimento e interpreta- gao da realidade dos direitos humanos esto ligados a uma das gran- des visdes sociais do mundo, a categorias de pensamento impensadas, que delimitam o pens4vel e predeterminam o pensamento. As estratégias mudam, mas as predeterminagdes continuam. No Ocidente nota-se a tentativa de desideologizar e despoli- tizar a visdo dos direitos humanos. Nos paises do Leste aparente~ mente se assume 0 carater politico e ideolégico, mas se nega todo e qualquer efeito repressivo do Estado. Mostra-se ao cidadao como uma part{cula organica do Estado, sem nenhum antagonismo com a so- ciedade, o partido e as instituigdes do aparelho governamental. Termino de ler um renomado jurista soviético que afirma tex- tualmente: "a Libeadade politica se expressae Se Aevela na possi- bikidade garantida de participar na formagao da vontade estatal, que corresponde aos interesses da maioréa, aos interesses do povo, negerendados pelas Leis, assim como no cumprimento consciente e vo- Luntario detas"!, No fundo, o mesmo pensamento juridicista do oci- dente. Apelando para a neutralidade das leis, conseguem-se recuperar, de um modo ainda mais forte, os efeitos negados dos slogans desi- deologizados do discurso Ocidental sobre os direitos humanos. Retomando a problem&tica colocada em meu primeiro livro publi- cado” diria que as visdes utdpicas do pensamento juridicista ten- tam apresentar uma versao exclusivamente privatista dos usos abusi- vos do direito: ligam a nogdo do exercicio abusivo dos direitos aos interesses particulares expressamente reconhecidos pelas leis: ° uso absoluto e egoista dos direitos legalmente concedidos. Nenhun jurista que se preze tenta trasladar a problematica das praticas abusivas ao plano do direito piiblico. Ignora-se o abuso estatal dos direitos, a castragao estatal de nossa personalidade, de nossos in- teresses e necessidades. Existe uma denegagdo generalizada dos ex- cessos da normatividade estatal. Escamoteia-se, por um lado, a existéncia de uma sociedade que vai sendo dia a dia tomada pelas leis. Dissimula-se, por outro lado, o uso absoluto que o Estado faz da lei positiva em nome dos interesses da sociedade, dos interesses do povo. Por suposto nado estou falande sé do abuso do terrorismo do Estado (desaparecimentos, torturas, exflios forgados) ou da de- sintegragao sécio-econémica de uma sociedade comandada simbolica- mente por apelativas ilusdes de redemocratizagao (caso brasilei- ro). Interessa situar-me diante de certos abusos simbélicos que fa- lam a respeito da implicagao do desejo pessoal no impessoal: a ex- periéncia do individuo num lugar inesperado, que escapa 4 norma geral. © Estado abusa do direito enquanto reivindica o lugar do nor- mativo, como instancia que provoca a alucinagao do outro e exalta um projeto politico-juridico que se basta a si mesmo. © direito aparece, entao, como um lugar tépico e utdpico ina- balavel que justifica a normatizag&o total do tecido social. Um discurso "uterine" de socializagio, um feitigo que instala, na so- ciedade, a ilusao de um lugar simultaneamente protetor dos inte- xesses da sociedade e das liberdades pessoais. Em ambos os casos 6 sempre o individuo visto como um selvagem potencialmente perigo- so, como um culpado potencial que deve ser vigiado pelo Estado =e pelo Direito. Um Estado e um direito livres de toda suspeita e dos riscos de qualquer abuso. Um Estado e um direito vistos como os lugares de harmonia entre os interesses sociais e os interesses in- dividuais. As exorbiténcias, as desmesuras, os abusos ficam para os que est4o a eles obrigados, o Estado e o direito ficam, entao, negados como poténcia de desordem e perversao. Desta forma o juridicismo, como légica de dissimulacdo, mos- txa-se eficiente, dando crédito a uma ficgdo de neutralidade que escamoteia os abusos de uma dominagao juridico-estatal, decidida nos bastidores. Na versdo soviética do juridicismo exalta-se a limitagao das liberdades individuais quando elas afetam os interesses da socieda-~ de e do Estado. O imaginafrio juridicista soviético nfo admite mani- festagdes que atentem ao cerne de seu projeto de implantagdo de um regime socialista. Mas, acrescentam os juristas soviéticos: a prdtica do desenvolvimento social confirmou que o Partido Comunis- ta da Uniao Soviética constitui o étimo mecanismo politico para o cAleulo, conjungao e coordenagiio dos interesses dos distintos com- ponentes da sociedade, o mecanismo adequado para expressar os inte- resses integrais de todo o povo soviético. Acrescentando que a ideo logia do marxismo-leninismo expressa os interesses cardiais do povo soviético, tornando realidade a harmonia entre os interesses da so- ciedade e os direitos do cidadao. Um discurso que finge ignorar a tendéncia ou pretensdo de uma forma de Estado que deseja controlar completamente o social. Desta maneira define-se um saber que se exibe, mas também se circunscreve, nos limites de um aparelho dirigente e de uma moral inflexivel e glorificada. Uma moralidade que repudia as incertezas e torna afetivamente imatura toda pratica instituinte. De modo geral, a instituigao simbélica da sociedade fixa uma ilusdo homogeneizadora que forga as sociedades a representarem-se na imagem de uma ordem, de uma comunidade org@nica univoca e coesa. Uma unidade que se representa sempre como um corpo. Velhas trans- cendéncias continuam firmes, com novos nomes, com diferentes adere- gos e mascaras. O fato 6 que seguimos escutando o discurso de uma comunidade organizada, auto-afirmado no direito e na pressuposigado da existéncia de uma razdo e de uma moral reguladoras da sociedade. A bela imagem grega da sociedade harmoniosa que perdura na apolo- gia idealizada do Estado de direito, que nao é outra coisa senao privilégio das condigdes da obediéncia submissa a uma ordem pressu- posta: o modelo de uma "boa sociedade" que rejeita o carater con- flitivo em que as leis sao criadas. No Estado de direito, os direitos sAo idilicamente enumerados. A democracia precisa inventaé-los nas indeterminagdes da histéria e na permanéncia dos conflitos. Talvez precisemos falar dos direitos humanos como direito 4 permanéncia dos conflitos, como o direito a impedir que as revoltas sejam negadas nos subterfiigios de uma harmonia de leis e _ saberes que, no fundo, satisfazem o desejo de servidao. A democracia como o sentido de uma forma de sociedade 6 sem- pre o produto dos conflitos sociais e das resisténcias 4 produ¢ao institucional de uma subjetividade que nos marca e nos anula, — in- sistindo nas representagées de certeza e na redugio da ordem poli- tica as relagdes de poder. Vivemos dias de perplexidade e de mudanga de _— sens ibilidade. Sociedades unidas ideologicamente ao Estado sem que se vislumbre no horizonte o ocaso da exploragao e do terror. Uma dominagao tecno- légico-burocratica - totalit4ria que se vai impondo, desarmando e dissecando as paixdes, consagrando o tédio e a indiferenga. Assim, a democracia e as praticas politicas. dos direitos huma- nos permanecem prisioneiras de um trajeto de esperangas e desespe- rangas que pedem os sinais de novas perspectivas, que ocultam a passagem a uma nova redescoberta do mundo. Idolos e fundamentos co- megam a ser destronados por uma sensibilidade nova e receptiva as diferengas, as particularidades, aos acontecimentos menores. Estamos diante de uma nova "disposigdo de espinito" para re- pensar a politica e do direito a adjudicar-lhe novos territérios de sentido. Fugindo de um sentimento generalizado de desencanto — comegam a fazer-se visiveis as fantasias, as lacunas do pensamento estabelecido. Ele comega a envelhecer pela interrogag&o, no traba- lho do pensamento nado degradado pela fixagao das certezas. A tradi- gao envelhece pelas incertezas. As praticas politicas dos direitos humanos n&o podem esquivar-se desta pressuposigao se queserem lutar além das alternativas moralizantes e culpabilizadoras da dupla face do juridicismo (socialismo burocratizado e capitalismo tardio). As evidéncias estabelecidas nao servem para interrogar-nos so- bre os direitos humanos e sua inscrig&o na ordem simbdlica de uma sociedade que encontra, na democracia, seu sentido. As Gltimas ex- periéncias de luta e resisténcia mostram a esterilidade das profe- cias onipotentes e das regras do jogo que delimitam padrées de com- portamento. Tempos que precisam de fermentagao criadora e afetiva. Tempos 4 procura de transformagées sem vigilancias moralizantes nem ci- nismos. Tempos de desafio existencial que demandam a reivindicagao da autonomia para todos os setores da vida social. Tempos em que © homem precisa ter uma consciéncia auténoma de seus direitos e ca- pacidade para formula-los e reivindicd-los. Estamos diante de uma sociedade que busca reconhecer-se aberta para poder preservar a condig&o humana frente 4s grandes mAquinas (simbdlicas e tecnolé- gicas). Sociedades que necessitam do conflito para contrabalangar a démarche de uma ordem totalitaria que ameaga com sua irreversivi- lidade. Frente a Estados e a impérios econémicos que ampliam seu po- der e petrificam as indiferengas, frente a minorias de privilegia~ dos que concentram a riqueza, o saber e o direito, devemos contra- por uma nova concepgdo da politica, do saber e do direito que se oponha aos que querem conservar os privilégios. Os grandes proprie trios temem os conflitos. Eles ameagam os logros conquistados. Obviamente os grandes possuidores preocupam-se por garantir suas conquistas, falam sempre dos direitos adquiridos, do Estado de di- reito. As sociedades, ditas socialistas, nao escapam a esta légqica dos direitos adquiridos. Denunciam algumas grandes exploragées, mas deixam o Estado no lugar do privilégio e o Partido Comunista no lu- gar das respostas sem suspeita. g& nao é mais possivel criar modos de vida que preservem a vida, sem aceitar as ambivaléncias do desejo e seus enigmas fren- te ao novo. Estereotipamos a compreensao do mundo quando renuncia- mos a reconhecer que um acontecimento pode ser ndo sé conflitivo, mas também contraditério. Um movimento pode ser ao mesmo tempo re- volucionario e contra-revolucionaério (como acontece com muitas das praticas dos direitos humanos). Podemos lutar contra o — totalita- rismo, desenvolvendo formas totalitdrias de resisténcia. Podemos amar a vida e violentar tanaticamente os momentos de afetividade. Trata-se da exigéncia de nao deduzir dos esquemas de inteligibilida- de as interpretagdes e os caminhos operativos face aos eventos e as transformagdes de nossa sociedade. Desfazer as representagées pre- estabelecidas & uma pré-condigdo para as lutas pelos direitos huma- nos. Precisamos ter o direito a reencontrar a liberdade de insti- tuir o mundo aceitando o risco de decifraé-lo sem culpa e sem senti- dos pré-adjudicados. Por certo, estou falando das instdncias preliminares, dos prelfidios necessarios para uma pratica politica dos direitos huma- nos, sem os fantasmas da totalidade e dos saberes infaliveis. Para isso é mister constatar a inadequagdo de uma visao instrumental da politica que a mostra como realidade secundaria, que instrui histo-~ ricamente o poder. A politica é também uma luta pelo espago simb6- lico, incidente em que se apaga a transcedéncia do poder e se anula sua eficdcia simbélica. A politica demanda um espago ptblico como espago simbélico que irradia o miltiplo e interdita o univoco. Pode-se dizer que estamos diante de uma reconsideragao da po- litica que se defronta com uma concepgdo nao cristalizada do tempo e com uma concepgdo do peso do imagindrio social, sensivel as vaci- lagdes do saber, da lei e dos desejos. Uma forma social totalitaria forja uma identidade do povo com © poder que pressupde o tratamento simbiStico do poder, do saber e da lei. Desta maneira forja-se um principio absoluto de inteligi- bilidade que libera do risco de interrogar e de interpretar sem se~ guranga as incertezas da temporalidade: o tragado de um sentido ini-— co para os acontecimentos a fim de controlar os enigmas do tempo e as alteragées da histéria. Nao pode dissimular-se que uma das gran- des condigées para a formagao e reprodugao simbélica do totalita- rismo € a perda da mem6ria hist6rica.Assim, a consciéncia do homem identifica-se com a consciéncia do Estado. B evidente que num pro- jeto totalit4rio, o tempo e a meméria coletiva pertencem 4s insti- tuigdes executérias do referido projeto. 0 ritual de intervengao sobre a meméria e o tempo se da através de um campo simbélico que exalta um relato nado conflitivo da hist6éria: celebra-se um passa- do convenientemente estereotipado para que opere como —_ referéncia legitima do projeto de dominagao, apagando-se simultaneamente -todo vestigio que permita tragar uma interpretagao diferente. 0 Estado totalitario n&o sd monopoliza a coergao como uma forma de sua legi- timagdo permanente, também recorre ao saber para monopolizar as lendas da histéria e modelar as sucessivas caras do outro maléfico, permitindo, assim, apresentar-se com sua contracara. 0 Estado apa- rece como o possuidor de um saber absoluto sobre a sociedade, sua histéria e sua lei: um grande benfeitor. No fundo, uma tutela sus- tentada na imagem de um saber e uma lei perfeita que nos faz esque- cer que numa meméria coletiva unificada, nfo se percebem os confli- tos, as diferengas e as divisdes. As imagens perfeitas da lei e do saber fortalecem as apresentagdes transcendentes do poder totali- tdrio impedindo o desenvolvimento dos conflitos que tentem a resis- téncia, a transgressdo'e a ultrapassagem da institucionalidade to- talitaria. As pr&ticas empreendidas em nome dos direitos humanos tém que ter como meta impedir que os problemas da sociedade sejam defini- dos sem a participagdo efetiva (nao iluséria) dos membros da so- ciedade ou mesmo contra eles. Em outras palavras, séo acdées que traduzem o carater essencialmente politico dos direitos humanos, enquanto impedem que a politica se confunda por inteiro com o poder e 0 direito. Falar dos direitos humanos, como pratica politica, pressupde sempre, no minimo, uma distancia entre o poder e a socie- dade, um espago de diferentes agdes que constituem uma forma de re- sisténcia e transgressio 4 identidade entre os dominantes e os dominados. As praticas politicas dos direitos humanos sao sempre praticas de lutas que abrem fissuras, que abalam a produgao insti- tucional de uma identidade entre a opressao e os oprimidos. Fugindo do juridicismo, diria com Leford, que a questao dos direitos humanos adquire importancia em razao de um impostergavel questionamento das formas totalitdérias do poder, do saber e da lei, assim como do sentido, que determinam para a forma da sociedade con temporanea. © significado politico profundo de uma prdtica dos direitos humanos encontra-se intimamente ligado a uma concepgdo da politica entendida como espago piiblico (de uma sociedade incerta, hetero- génea e conflitiva) e prdtica simbélica de transgressao, resistén- cia e transformagao. Resulta claro, entdo, que as diferentes versdes juridicistas dos direitos humanos mal dissimulam a incompatibilidade absoluta en tre as pradticas politicas dos direitos do homem e o poder de um Estado que engendra a ilusdo de uma norma impessoal e andnima, praticando muitas vezes a ilegalidade para atender 4 sua prépria seguranga. Pode observar-se, com espanto, como na América Latina alquns governantes reclamam que a sociedade ou as outras institui- gdes do Estado convalidam a legitimidade de suas préticas ilfcitas. Hoje na América Latina se esta passando de um est4gio de ilicitude, silenciosamente tolerada pela indiferenga, a outro estAgio onde se reivindica o reconhecimento do cardter legitimo dos abusos, das corrupgées, do terror praticado por alguns 6rgaos do Estado. Estamos imersos numa forma social totalitaéria onde o poder, © saber, o direito e a moralidade tornam-se propriedade do Estado, enclausurando a politica como reflexdo e praética. Os individuos nao podem invocar sentidos adversos acerca dos grandes lemas, as cren- gas ideolégicas e os principios de organizagao da vida social. ° desconhecido & sempre domesticado, circunscrite ao registro do co- nhecido. 0 Estado aparece como legitimador da ordem (ainda quando a violenta descaradamente) - legitimidade atingida pelas praticas simbélicas de um projeto de socializagdo que despreza a questao do "outro", a questao do ser. Partindo desta perspectiva, percebe-se que a questao dos di- reitos humanos e da democracia precisa ser pensada como um proje- to global de libertag4o do homem em todos os niveis: social, poli- tico, psiquico, econdmico, ético e estético. Em altima analise, forgar o social a afirmar-se como imprescindivel cendrio dos con- flitos, das pr&éticas de auto-autonomia e das reviravoltas das ver- dades instituidas. Desta maneira, as préticas dos direitos humanos determinam a dissociagao entre o saber, o poder, o direito e a moral estabeleci- da, deixando a sociedade exposta “democraticamente" 4 indetermina- gao dos direitos, das verdades, dos poderes e dos valores, 4 razao do Estado. Para procurar o sentido democrético de uma forma de so~ ciedade temos que tentar deixd-la exposta as suas préprias ambigtli- dades e incertezas. Frente 4s razdes, aos poderes e 4s prescricdes que vado deter- minando o sentido totalitario de uma forma de sociedade (um = jogo disciplinar e culpabilizador que toma o espago piiblico e avanga so- bre a intimidade cotidiana dos desejos e afetos), a pratica politi- ca dos direitos humanos surge como um plural imprevisivel dos espa- gos de resisténcia e transgressdo. Neles surgem praticas simbéli- cas de deslocamentos, abalos, que vao, pouco a pouco, revelando uma insuspeita matriz politica: o "ainda mais” de todo discurso instituido. As praticas dos direitos humanos desencadeiam uma irreprimivel dinamica de democratizagao, na medida que provocam nosso reencon- tro com o "outno" e com a autonomia de nossos desejos, pelas dimen- sdes simbélicas do "aledm", numa multiplicidade de atividades au- ténomas em todos os campos do social. Os direitos humanos sao fun- damentalmente reivindicagdes do ndo-estabelecido. Eles fundamentam o direito 4s incertezas. Neste sentido eles preservam uma distancia entre o poder e o discurso. E, por esta mesma razao, propiciam a possibilidade de um deslocamento e mesmo de uma transgressao ao imaginario e das praticas que, a despeito dos antagonismos dissi- mulados, asseguram uma identidade de referéncia e a continuidade de um projeto de dominagao. Em nome dos direitos humancs pode assegurar-se a ultrapassa~ gem permanente do instituido, abrindo o social 4 dignidade das mar- gens, ao "outro" que nao tem estatuto de sujeito por néo ter aces— so & regra. Asseguram-se, assim, a democracia, criatividade e resisténcia. Percorrendo esses caminhos temos que redimensionar conceitos para poder permitir-nos a possividade de elaborar a critica 4 dominagao totalitdria e As praticas que sejam as locomotivas de uma —_ perma- nente reinvengdo democratica da sociedade. As respostas ao tota- litarismo implicam a "“esclucao" (pelo menos a tentativa) do enigma que constitui o social como diviséo e que faz da politica uma luta para impedir que as regras e rotinas ndo operem. Tenho insistido, em meus Gitimos trabalhos, na necessidade de perceber o sentido da democracia como a contraface do totalitarismo: um acontecer politi- co entendido como auto-criagdo incessante de novos direitos e ul- trapassagem permanente de limites na sociedade. FE a politica que encontra sua defini¢g&o na prépria procura de seu destino e na nega- go de uma realidade, em principio prefixada: advento incompleto e ruptura do imagin4rio instituido e suas previsdes. & a democra- cia como imagindrio inventivo que recusa todas as modalidades de petrificag&o social. 0 totalitarismo assenta-se nessa petrificagao, depende de um poder cristalizado que se irradia por toda a socieda- de. Frente a esse jogo de irradiagdes, as praticas dos direitos hu~ manos realizam osentido de democracia criando espagos para ir além dos limites do poder petrificador e fora do fechamento do imagina- rio social, do imaginério sem invengdes, que assegura a transcen- déncia do poder e sua eficacia simbélica. Interessa-me, sobretudo, mostrar a democracia como uma prati- ca semiolégica que abala os efeitos simbélicos do poder, — pronun- ciando a interrogagdo inicial, inaugural, acerca da alienagdo e da autonomia. Ela passa simbolicamente 4 margem do poder estabelecido para combater as condigées instituidas da heteronomia, tornando ex- plicitas suas faltas. Neste sentido, a questao dos direitos huma- nos surge também como uma inst4ncia simbdlica de interrogagao que marca os limites do totalitarismo, abrindo um espago de _—reflexdo e autonomia para a constituigdo criativa do mundo. Apés as interrogagdes precedentes sobre o sentido politico dos direitos humanos, pretendo encerrar as presentes digress6es questionando a tarefa de homogeneizagao e de unificagao do social que permanecem implicitas nas atuais propostas de redemocratizagao do cone sul. Elas reafirmam 0 projeto impossivel de um discurso e uma pratica que pretende a redemocratizagao de nossas formas de so- ciedade retomando as gastas flamulas do estado de direito. Elas sé ficam airosas nos momentos criticos em que um povo busca sair de uma conjuntura politica gravemente contaminada pelo terrorismo de Estado; logo essas crengas nos conduzem a um perigoso campo de cer- tezas onde se podem anular as possibilidades do espago politico. 0 estado de direito e estado moral que alimentam a ficgao de dominar sua origem, seu préprio espago e o devir das praticas e suas repre- sentagdes. As crengas juridicistas que sustentam a ideologia do estado de direito dependem de um discurso vao, na medida em que o que 6 procurado por ele nao pode ser atingido. A democracia como dimen- sZo simbdlica da politica é sempre um "agém" do social, a permanén- cia de um sonho incerto, de um sonho que nao pode ser burocratiza- do, nem pode ficar prisioneiro de uma versdo das regras que escon- dam a ambigtlidade de suas representagdes e efeitos. A democracia mo um sonho em aberto. Ela pressupde o direito fundamental do homem a criatividade, o direito de ter um imagindrio sem policiamentos: a invengao democratica como imaginago que nos leva diante do novo. Assim, democracia e totalitarismo guardam profunda relagao com a autonomia do desejo e do imaginario. A possibilidade da livre cria- ¢gao de sonhos fora dos espagos mortos das instituigdes, para per- mitir a abertura para o novo, para o diferente, para o inespera- do... enfim, para a democracia. NOTAS 1 - Zivs, Samuil. Derechos Humanos. Prosiguiendo la discusién. Edi torial Progresso, Moscou, 1981. 2 - Luis Alberto Warat. Abuso del Derecho y Lagunas de la Ley. Edi. torial Abelado Perrot, Buenos Aires, 1971.

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