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ANDRE BAZIN O CINEMA ENSAIOS Traducao: Eloisa de Araijo Ribeiro Introducao: Ismail Xavier T ONTOLOGIA DA IMAGEM FOTOGRAFICA! I ONTOLOGIA DA IMAGEM FOTOGRAFICA' Uma psicanalise das artes plasticas consideraria talvez a pra- tica do embalsamamento como um fato fundamental de sua génese. Na origem da pintura e da escultura, descobriria 0 “‘complexo”” da mimia. A religido egipcia, toda ela orientada contra a morte, subordinava a sobrevivéncia 4 perenidade material do corpo. Com isso, satisfazia uma necessidade fundamental da psicologia humana: a defesa contra o tempo. A morte nao € sendo a vitéria do tempo. Fixar artificialmente as aparéncias carnais do ser é salva-lo da cor- renteza da duracao: aprumé-lo para a vida. Era natural que tais aparéncias fossem salvas na propria materialidade do corpo, sem suas carnes ¢ ossos. A primeira estatua egipcia é a mimia de um homem curtido ¢ petrificado em natrao. Mas as pirdimides ¢ o labi- rinto de corredores nao eram garantia suficiente contra uma even- tual violacéio do sepulcro; havia que se tomar ainda outras precau- Ges contra o acaso, multiplicar as medidas de protecdo. Por isso, perto do sarcéfago, junto com o trigo destinado a alimentacao do morto, cram colocadas estatuetas de terracota, espécies de miumias de reposig&o capazes de substituir 0 corpo caso este fosse destruido. Assim se revela, a partir de suas origens religiosas, a func&o primordial da estatuaria: salvar o ser pela aparéncia. E pro- vavelmente pode-se considerar um outro aspecto do mesmo pro- jeto, tomado na sua modalidade ativa, o urso de argila crivado de flechas da caverna pré-historica, substituto magico, identifi cado a fera viva, como um voto ao éxito da cagada. ponto pacifico que a evolugao paralela da arte e da civiliza- cAo destituiu as artes plasticas de suas fungdes magicas (Luis XIV nao se fez embalsamar: contenta-se com 0 seu retrato, pintado por Lebrun). Mas esta évolucao, tudo 0 que conseguiu foi subli- 20 ANDRE BAZIN mar, pela via de um pensamento ldgico, esta necessidade incoerci- vel de exorcizar 0 tempo. Nao se acredita mais na identidade onto- légica de modelo ¢ retrato, porém se admite que este nos ajuda a recordar aquele e, portanto, a salva-lo de uma segunda morte espi- ritual. A fabricac&o da imagem chegou mesmo a se libertar de qualquer utilitarismo antropocéntrico. O que conta nao é mais a sobrevivéncia do homem e¢ sim, em escala mais ampla, a criacao de um universo ideal A imagem do real, dotado de destino tempo- ral auténomo. ‘Que coisa va a pintura’, se por tras de nossa admiragio absurda nao se apresentar a necessidade primitiva de yencer 0 tempo pela perenidade da forma! Se a histéria das artes plasticas nao é somente a de sua estética, mas antes a de sua psico- logia, entao ela ¢ essencialmente a historia da semelhanga, ou, se se quer, do realismo. A fotografia ¢ © cinema, situados nestas perspectivas sociolé- gicas, explicariam tranqiiilamente a grande crise espiritual e téc- nica da pintura moderna, que se origina por volta de meados do século passado. Em seu artigo de Verve, André Malraux escrevia que ‘‘o cinema nao é senao a instancia mais evoluida do realismo plastico, que principiou com o Renascimento ¢ alcangou a sua expressao limite na pintura barroca’’. © verdade que a pintura universal alcancara diferentes tipos de equilibrio entre © simbolismo e o realismo das formas, mas no século XV 0 pintor ocidental comegou a se afastar da preocu- pacao primordial de tao s6 exprimir a realidade espiritual por meios auténomos para combinar a sua expresso com a imitagao mais ou menos integral do mundo exterior. O acontecimento deci- sivo foi sem duvida a invengao do primeiro sistema cientifico e, de certo modo, ja mecinico: a perspectiva (a camara escura de Da Vinci prefigurava a de Niepce). Ele permitia ao artista dar a ilusio de um espaco de trés dimensdes onde os objetos podiam se situar como na nossa percepcao direta. Desde entao, a pintura viu-se esquartejada entre duas aspira- des: uma propriamente estética — a expresso das realidades espi- rituais em que 0 modelo se acha transcendido pelo simbolismo das formas —, e outra, esta nao mais que um desejo puramente psicolégico de substituir o mundo exterior pelo seu duplo. Esta necessidade de ilusdo, alcancando rapidamente a sua propria satis- fagaio, devorou pouco a pouco as artes plasticas. Porém, tendo ONTOLOGIA DA IMAGEM FOTOGRAFICA a a perspectiva resolvido o problema das formas, mas nao o do movimento, era natural que o realismo se prolongasse numa busca da expressao dramatica no instante, espécie de quarta dimens&io psiquica capaz de sugerir a vida na imobilidade torturada da arte barroca.? F claro que os grandes artistas sempre conseguiram a sintese dessas duas tendéncias: hierarquizaram-nas, dominando a reali- dade ¢ absorvendo-a na arte. Acontece, porém, que nos achamos. em face de dois fenémenos essencialmente diferentes, os quais uma critica objetiva precisa saber dissociar, a fim de compreender a evolucdo pictérica. A necessidade de ilusdo n&o cessou, a partir do século XVI, de instigar interiormente a pintura. Necessidade de natureza mental, em si mesma nao estética, cuja origem s6 se poderia buscar na mentalidade magica, mas necessidade eficaz, cuja atracdo abalou profundamente o equilibrio das artes plasticas. ‘A polémica quanto ao realismo na arte provém desse mal- entendido, dessa confusio entre 0 estético € © psicolégico, entre © verdadeiro realismo, que implica exprimir a significaclo a um 56 tempo concreta ¢ essencial do mundo, ¢ o pseudo-realismo do trompe Veeil (ou do trompe l’esprit), que se contenta com a ilusio das formas.} Eis porque a arte medieval, por exemplo, parece nao sofrer tal conflito: violentamente realista e altamente espiritual ao mesmo tempo, ela ignorava esse drama que as possibilidades técnicas vieram revelar. A perspectiva foi o pecado original da pin- tura ocidental. * * Niepce ¢ Lumiére foram os seus redentores. A fotografia, ao redimir 0 barroco, liberou as artes plisticas de sua obsessdo pela semelhanca. Pois a pintura se esforgava, no fundo, em vao, por nos iludir, ¢ esta ilusdo bastava a arte, enquanto a fotografia ¢ 0 cinema sdo descobertas que satisfazem definitivamente, por sua propria esséncia, a obsessao de realismo. Por mais habil que fosse © pintor, a sua obra era sempre hipotecada por uma inevitavel sub- jetividade. Diante da imagem uma divida persistia, por causa da presenca do homem. Assim, 0 fendmeno essencial na passagem da pintura barroca a fotografia nao reside no mero aperfeicoa- mento material (a fotografia ainda continuaria por muito tempo inferior & pintura na imitagao das cores), mas num fato psicol6- gico: a satisfac&o completa do nosso afa de ilusao por uma repro- ducao mecanica da qual o homem se achava excluido. A solucao ndo estava no resultado, mas na génese.* 2 ANDRE BAZIN Eis por que o conflito entre estilo ¢ semelhanga vem a ser um fendmeno relativamente moderno, cujos tragos quase nao sao encontraveis antes da invengao da. placa sensivel. Bem se vé que a objetividade de Chardin nada tem a ver com aquela do fotégrafo. E no século XIX que inicia para valer a crise do realismo, da qual Picasso € hoje 0 mito, abalando ao mesmo tempo tanto as condigées de existéncia formal das artes plasticas quanto os seus fundamentos sociolégicos. Liberado do complexo de semelhanga, © pintor moderno o relega & massa, que ent&o passa a identifica- lo, por um lado, com a fotografia, e por outro com aquela pin- tura que a tanto se aplica. A originalidade da fotografia em relacio a pintura reside, pois, na sua objetividade essencial. Tanto é que 0 conjunto de len- tes que constitui o olho fotografico em substituigao ao olho humano denomina-se precisamente ‘‘objetiva’’. Pela primeira vez, entre o objeto inicial e a sua representagao nada se interpde, a nao ser um outro objeto. Pela primeira vez, uma imagem do mundo exterior se forma, automaticamente, sem a intervengao criadora do homem, segundo um rigoroso determinismo. A perso- nalidade do fotégrafo entra em jogo somente pela escolha, pela orientacao, pela pedagogia do fendmeno; por mais visivel que seja na obra acabada, j4 nao figura nela como a do pintor. Todas as artes se fundam sobre a presenga do homem; unicamente na foto- grafia é que fruimos da sua auséncia. Ela age sobre nds como um fenémeno “natural”, como uma flor ou um cristal de neve cuja beleza é inseparavel de sua origem vegetal ou teltirica. Esta génese automatica subverteu radicalmente a psicologia da imagem. A Objetividade da fotografia confere-Ihe_um poder de credibilidade ausente de qualquer obra pictorica. Sejam quais forem as objecdes do nosso espirito critico, somos obrigados a crer na existéncia do objeto representado, literalmente re-presen- tado, quer dizer, tornado presente no tempo e no espaco. A foto- grafia se beneficia de uma transferéncia de realidade da coisa para a suia reproducao.® O desenho o mais fiel pode nos fornecer mais indicios acerca do modelo; jamais ele possuird, a despcito do nosso espirito critico, 0 poder irracional da fotografia, que nos arrebata a credulidade. Por isso mesmo, a pintura j4 ndo passa de uma técnica infe- rior da semelhanga, um sucedaneo dos procedimentos de repro- Austin SA a ahietiva nos da, do objeto, uma imagem capaz de ONTOLOGIA DA IMAGEM FOTOGRAFICA O santo sudario de Turim. 23 24 ANDRE BAZIN «desrecalcar””, no fundo do nosso inconsciente, esta necessidade de substituir 0 objeto por algo melhor do que um decalque aproxi- mado: 0 proprio objeto, porém liberado das contingéncias tempo- rais. A imagem pode ser nebulosa, descolorida, sem valor docu- mental, mas cla provém por sua génese da ontologia do modelo; dla € 0 modelo. Dai o fascinio das fotografias de albuns. Essas sombras cinzentas ou sépias, fantasmagéricas, quase ilegiveis, j4 deixaram de ser tradicionais retratos de familia para se tornarem inquietante presenga de vidas paralisadas em suas duragdes, liber tas de seus destinos, nao pelo sortilégio da arte, mas em virtude de uma inecanica impassivel; pois a fotografia nao cria, como.a arte, eternidade, ela embalsama o tempo, simplesmente o subtrai a sua propria corrup¢ao. Nesta perspectiva, o cinema vem a ser a consecu¢ da objetividade fotografica. O filme nao se contenta mais em con- servar para nds 0 objeto lacrado no instante, como no Ambar 0 corpo intacto dos insetos de uma era extinta, ele livra a arte bar- roca de sua catalepsia convulsiva. Pela primeira vez, a imagem das coisas ¢ também a imagem da duragao di mimia da mutagao. Ao no tempo elas, como que uma ‘As categorias’ da semelhanga que especificam a ima: grdfica determinam, pois, também a sua estética em relagao & pin- tura. As virtualidades estéticas da fotografia residem na revelacéo do real, O reflexo na calgada molhada, 0 gesto de uma crianca, independia de mim distingui-los no tecido do mundo exterior; somente a-impassibilidade da objetiva, despojando 0 objeto de habitos ¢ preconceitos, de toda a ganga espiritual com que a minha percepcao 0 revestia, poderia torna-lo virgem a minha atencao ¢, Afinal, 20 meu amor. Na fotografia, imagem natural de um mundo que nao sabemos ou nao podemos ver, a natureza, enfim, faz mais do que imitar a arte; ela imita o artista. FE pode até mesmo ultrapassé-lo em criatividade. O-universo estético do pintor é heterogéneo ao universo que o cerca. A mol- dura encerra um microcosmo essencial e substancialmente diverso. ‘A existéncia do objeto fotografado participa, pelo contrario, da existéncia do modelo como uma impressao digital. Com isso, ela se acrescenta realmente a criagio natural, ao invés de substitui-la por uma outra. Foi o que © surrealismo vislumbrou, ao recorrer & gelatina da nlaca sensivel para engendrar a sua teatrologia plastica. E que, gem foto- ONTOLOGIA DA IMAGEM FOTOGRAFICA 25 para o surrealismo, o efeito estético é inseparavel da impressao mecanica da imagem sobre 0 nosso espirito. A distingao légica entre o imaginario ¢ o real tende a ser abolida. Toda imagem deve ser sentida como objeto ¢ todo objeto como imagem. A fotografia representava, pois, uma técnica privilegiada para a criagao surrea- lista, ja que ela materializa uma imagem que participa da nature- za: uma alucinacdo verdadeira. A utilizago do trompe I’ceil ¢ a preciséo meticulosa dos detalhes na pintura surrealista sao disto a contraprova. A fotografia vem a ser, pois, o acontecimento mais importante da histéria das artes plasticas. Ao mesmo tempo sua libertacdo e manifestagdo plena, a fotografia permitiu a pintura ocidental desembaracar-se definitivamente da obsessdo realista e reencon- trar a sua autonomia estética. O “‘realismo’” impressionista, sob seus alibis cientificos, ¢ 0 oposto do trompe I’ceil. A cor, alias, s6 pode devorar a forma porque esta nao mais possuia importan- cia imitativa. E quando, com Cézanne, a forma se reapossar da tela, ja ndo sera, em todo caso, segundo a geometria ilusionista da perspectiva. A imagem mecdnica, ao opor a pintura uma co corréncia que atingia, mais que a semelhanca barroca, a identi dade do modelo, por sua vez obrigou-a a se converter em seu pro- prio objeto. Nada mais vao doravante que a condenacao pascaliana, uma vez que a fotografia nos permite, por um lado, admirar em sua reprodugo © original que os nossos olhos nao teriam sabido amar, e na pintura um puro objeto cuja referéncia & natureza ja nao é mais a sua razao de ser. Por outro lado, o cinema é uma linguagem. NOTAS 1. Estudo retomado a partir de Problémes de la peinture, 1945. 2. Seria interessante, desse ponto de vista, acompanhar nos jornais ilustrados de 1890 a 1910 a concorréncia entre a reportagem fotografica, ainda nas suas origens, € © desenho. Este ultimo atendia sobretudo a necessidade barroca do dramatico (cf.Le Petit Journal Iilustré). O sentido do documento fotografico s6 se impds aos poucos. Constata-se e, de resto, além de uma certa saturacao, um retorno ao dese- nho dramatico do tipo “Radar” 26 ANDRE BAZIN 3. Talves a critica comunista, em particular, devessc, antes de dar tanta importan- ‘ia ao expressionismo realista em pintura, parar de falar desta como se teria podido fazé-to no século XVIIL, antes da fotografia e do cinema. Importa muito pouco talvez, que a Ritssia Soviética produza ma pintura se ela ja produz bom cinem Eisenstein é o seu Tintoretto. Importa, isso sim, Aragon querer nos convencer a tomi-lo por um Repine. 4. Seria 0 caso, porém, de se estudar a psicologia dos géneros plasticos menores, como a modelagem de mascaras mortuarias, os quais apresentam, também eles, tim certo automatismo na reproducao. Nese sentido, poder-se-ia considerar a foto- grafia como uma modelagem, um registro das impresses do objeto por intermé dio da luz. 5. Mas sera mesmo “fa massa” que se acha na origem do divércio entre o estilo € a semelhanga que efetivamente constatamos hoje em dia? Nao seria antes © advento do “espirito burgués”, nascido com a industria € que serviu justamente de ponto de repulstio para 0s artistas do século XIX, espirito que se poderia definir pela redu- ao da arte a categorias psicologicas? Por sinal, a fotografia nao foi historicamente eucessora direta do realismo barroco ¢ Malraux observa muito a propésito que principio ela nao tinha outra preocupacao que nao a de “imitar a arte”, copiando Ingenuamente o estilo pictorico. Niepce e a maioria dos pioneiros da fotografia buscavam, alias, copiar por esse meio as gravuras. Sonhavam produzir obras de arte sem serem artistas, por decalcomania. Projeto tipico ¢ essencialmente burguss, mas que confirma a nossa tese, elevando-a, por assim dizer, a0 quadrado. Bra natu. ral que a obra de arte fosse a principio 0 modelo mais digno de imitagao para o fotdgrafo, pois aos seus olhos ela, que jé imitava a natureza, ainda a ‘‘melhora- va"? de quebra, Foi preciso algum tempo para que, tornando-se cle proprio artista, compreendesse que ndo podia imitar sendio a natureza 6. Seria preciso introduzir aqui uma psicologia da reliquia e do souvenir, que se beneficiam igualmente de uma transferéncia de realidade proveniente do complexo da mimia. Assinalemos apenas que © Santo Sudario de Turim realiza a sintese entre reliquia e fotografia. 7. Emprego 0 termo “‘categoria"” na acepcto que the da M. Gouhier em seu livro sobre o teatro, quando distingue as categorias dramaticas das estéticas. Assim como a tensio dramatica nao implica nenhuma qualidade artistica, a perfeicao da {mitasao nao se identifica com a beleza; constitui somente uma matéria-prima sobre a qual o fato artistico vem se inserever.

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