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anterior menos violenta, © primeiro que realiza a fusio ‘entre linguagem falada e imagem nfo 6 um poeta em verso, mas em prosa: o grande Ramén Gémez de la Serna. Em 1930 surge a antologia de Gerardo Diego, que divulga © grupo de poetas mais rico ¢ singular da Espanha desde © século XVII: Jorge Guillén, Federico Garcia Lorca, Rafael Alberti, Luis Cernuda, Aleixandre. .. Detenho-me. Nao escrevo um panorama literério. E © capitulo que segue me toca demasiado de perto. ‘A poesia moderna de nossa lingua ¢ mais um exem- plo das relagdes entre prosa e verso, rifmo e metro. A descrigao poderia estender-se a0 italiano, que possui uma estrutura semelhante a0 castelhano, ou ‘a0 alemao, mina de ritmos. No que diz respeito ao'espanhol, vale a pena epetir que 0 apogeu da versificago ritmica, conseqtiéncia da reforma levada a cabo pelos poetas hispano-americanos, € na realidade uma volta ao verso espanhol tradicional Mas éste regresso no teria sido possivel sem a influéncia de correntes poéticas estrangeiras, a francesa em parti- cular, que nos mostraram a correspondéncia entre ritmo © imagem poética. Mas uma vez: ritmo © imagem sso inseparfveis. Esta longa digressio nos Teva ao ponto de Partida: sa imagem poder dizer-nos como 0 verso, que € frase ritmica, 6 também frase que possui sentido, 36 A IMAGEM fw ot i oe at Nel Mean ee ne 37 Iisias, simbolos, alegorias, mitos, fabulas, ete. Quaisquer aque sejam as diferengas que a5’ separam, {das tem ‘ova comum a preservago da pluralidade de’ signficades ‘da palavra sem quebrar a unidade sintética da frase ou do conjunto de “frases. Cada imagem — ou cada poema composto de imagens —contém: muitos signficades con trérios ou dispares, ‘aos quais abarca ow reconclia sem suprimi-os. Assim, San Juan ‘de la Cruz fala de “la misica caliada", frase na qual se aliam dois térmos_em aparéncia isreconcildveis, © heroi tragico, neste sentido, também é uma imagem. Fxemplificando: a figura de Antigona, despedagada entre a piedade divina eas leis hhumanas. “A e6lera de Aquiles tampouco 6 simples € nela se unem os contrérios: 0 amor por Pétroclo ¢ Piedade por Prismo, o fascinio’ ante uma morte. gloviosa © 0 desejo de uma vida longa, Em Sigismundo a vila ©.0 sonho se enlagam de maneira indissolvel misteriosa Em Edipo, a liberdade © 0 destino... A imagem € cifra da condigio. humana Epica, dramatica ou titiea, condensada em uma fase ou desenvolvida em mill paginas, toda imagem aproxima ‘ou conjuga redlidades opostas, indiferentes out distanciadas entre si Isto & submete a unidade 1 plara. lidade do real. ‘Conceitos e leis cientificas no. pretendem outra coisa. Gragas a uma mesma redugae’ racional, individuos e objetos —'plumas Teves e pesadss pedras -—- convertem-se em unidades homogéneas, Nao’ sem um Justficado assombro. as. criangas descobrem um ‘lia que tum quilo de. pedras pesa o° mesmo que ‘um quilo ‘de plumas. Custathes muito reduzitpedras “e. plumas. 3 abstragio quilo. Dio-se conta de que pedras © plumas abandonaram sua maneira: propria de scr e que por dma excamoteagao, ‘perderam 10das’ as suas qualidades sua autonomia. A ‘operagao unificadora da ciencia mutilaces @ empobrece-as..'O mesmo néo ocorre ‘com a poesia. O Poeta nomeia as coisas: estas” sao. plomas, aquelas” S20 pedras. E de sibito afirma: as pedras sto. plumas, isto € aquilo, “Os elementos da imagem nao perdem seu cardter concreto ¢ singular: as. pedras continua. senda pedras, dsperas, duras, impenctraveis, amarclas de sol ou verdes de musgo: pedras pesadas. Eas plumas, plumas leves. A imagem resulta escandalosa porque esafia, © principio de contradigio: pesado é 0" ligeito. Ao unciar a identidade dos contriios, atenta ‘conira os fundamentos do nosso pensar. Portanto, a realidade postica da imagem néo pode aspirar a verdade, O poema no diz o que € ¢ sim” que poderia ser Seu reino do € 0 do ser, mas o do “impossivel verossimil” de ‘Aistteles pes " 38 Apesar desta sentenga adversa os poetas se obstinam alirmar que a imagem revela o que & € ndo o que fdizem que a imagem recria idade filosdfica da par da uderia ser. E ainda mais yer, Desejosos de restaurar a digni alguns no vacilam em buscar o am Niue islica, Com efoto, murtas imagens $= ajustarn wtas tempos do processo: a pedra € um momento da utr! de, seu chogue surge Nios image para dar-se_ Spenas, para assinalar o caréter irreparavelmente absurdo 2 renee oder explicar-se algo que est aly ante 39 soi a aati ala em um dado momento: a de seus fundamentos. Tal se no me equivoco, o sentido dos paradoxos de Bertrand Russell e, em um extremo oposto, o das investigagdes de Husserl. " Assim, surgiram novos sistemas l6gicos. Alguns poctas se interessaram nas investigagdes de S. Lupasco, que se propde desenvolver séries de proposi¢des fundadas no que ée chama de principio de contradiga0 comple- mentiria. Lupasco deixa intactos os térmos_contrarios, mas sublinha sua interdependéncia. Cada térmo pode atualizar-se em seu contrério, de que depende em razio direta e contraditéria. A vive em fungio contradit6ria de B; cada alteracio em A produz, conseqiientemente uma ‘moditicagio, em sentido inverso, em B.? Negagio ¢ afirmaga0, isto € aquilo, pedras e’plumas, se dio simulta neamente € em fungio complementéria de seu oposto. © principio de contradigio complementiria absolve algumas imagens, mas ndo t6das. © mesmo, talvez, deve dizer-se de outros sistemas l6gicos. Ora, 0 poema nio 86 proclama a coexisténcia dinamica e necessiria de seus contrarios como a sua final identidade. E esta reconci Tiago, que nfo implica redugio nem transmutagio da singularidade de cada térmo, & um muro que até agora © pensamento ocidental se recusou a saltar ou a perfurar. Desde Parménides nosso mundo tem sido © da distingao nitida e incisiva entre que 6 ¢ 0 que ndo é. O ser nao € © niio-ser. ste primeiro desenraizamento — porque foi como arrancar © ser do caos primordial — constitui © fundamento de nosso pensar. Sdbre esta _concepcio construiu-se 0 edificio das “idéias claras ¢ distintas”, que se tornou possivel @ histéria do Ocidente, também conde- nou a uma espécie de ilegalidade t6das’as tentativas de render 0 ser por caminhos que nio fossem os désses rincipios. Mistica e poesia viveram assim uma vida subsididria, clandestina © diminuida. © desenraizamento tem sido indizivel e constante. As conseqiléncias désse exilio da poesia sio cada dia mais evidentes e aterradoras: ‘© homem 6 um desterrado do fluir césmico e de si mesmo. Pois ninguém ignora que a metafisica ocidental termina em um solipsismo. Para rompé-lo, Hegel regressa até Heréclito. Sua tentativa néo nos devolveu a satide. O ‘eastelo de cristal da dialética revelase a0 fim como um Iabirinto de espelhos. Husserl se coloca de novo todos es problemas © prociama a necessidade de “voltar aos fatos”. Mas o idealismo de Husserl parece desembocar também em um solipsismo. Heidegger retorna aos pré- -socréticos para fazer-se a mesma pergunta que se féz (2) Stépnane Lupaico, Le princive Wantagoniome et ta loptyue de Venere, Pati, 18% 40 ert fo‘consenes saa ime, pale eH mostrami: alguns dos seus dltimos escrito, vyolta-se para a poesia Qala, a ea hinge. do Ocidente pode ope umn dl Ta i Pet me ata © owe Upanishad. The Thirteen Principal Ureithads, tant ce ec Ne a ee ame, Orford Universo, Pres, 195! 41 Jort0, fonte. Ai, no préprio sio do existit — ou melhor, do existindo-se “""pedras e plums, 0 leve eo pesado, © conhecimento gue nes propdem as doutrinas oren= tais no. € transmissivel em formulas ou raciocinios. A verdade & uma experiéncia e cada um deve tentéla” por Sua conta e isco. A doutrina nos. mostra 0 caminho, mas ninguém pode percoré-lo. por nds. Daf a impor. tincia das téenieas de meditagio. A aprendizagem nao consiste no acimulo de conhecimentos, tas na depuragao do corpo'e do espiito.. A’ meditagio nad nos ensina had, exceto 0 esquecimento de thday ay ensinangas ea Tendncia 2 todos os conhecimentos. Ao fim destas provas, sabo~ ‘os menos mas estamos mais eves; podemos empreendsr 2 viagem € nos defeontarmos. com a mirada vertiginosa,€ vazia da verdade. Vertiginosa em sua imobilidade: Vazia em sua plenitude. Muitos séculos antes que Hegel des sobrisse 4 equivaigncia final entre o nada absolute € 0 leno ser, os Upanishad tinham definido os estados, de azio como instantes de comunhdo com 0 ser: "O. msis alto esiado se-aleanga quando os cinco insiumentos. do Conhecer petmanecem quictos juntos, na mente ¢ esta nfo se. move" Pensar 6 respira. Reter 0 alento, detet 4 circulagdo da idgia: produsic 0 vazio para que’ se afore. Bensar 6 respirar porque pensamento e vide. 200 Saquilo.. A identidade ultima entre 0 homem e 0 mundo, tas antiga do homem & raz da ciéncin © da relist, magia e poesia. Todos os nossos empreendimentos 2s Grientam para descobrir 0 velho caminho, 2 via esquevida da comunicagao entre os dois mundos. Nossa base. tendo i redescobrir ou a vetificar a universal correspondéncia dos contriios, reflexo de sua otigial identidade. nspi- rados neste principio, of sistemas. ntricos concebem © corpo como metéfora ou imagem do cosmos. Os contros sensiveis sions de enerain, confluéncias de. comrentes estelares, sanguineas, ‘nervosis, Cada wna das, postures dos coxpos abragados € 0 sign0 de um zodiaco. reside polo ritmo triplice da seiva, do sangue e da luz. O templo de Konarak € coberto por uma deliante selva de corpos enlagados: éstes corpos so também sbis que se levantamn de seu leito de chamas, eatrlas que se acoplam. A pedra ade, a5 substncias enamoradss se entrelagam, As bodas slquimieas no sio diversas das humans. Po-Chu-l nos onta em um pooma autobigrifice que (4) Katha Upasetad, veto nota 3. 42 In the middle of the night 1 stole a furtive elance: The two ingredients were in affable embrace; Their attitude was most unexpected, “They were locked together in the posture of man and wife, Iniertwined as dragons, coil with coil’. Para a tradigfo oriental a verdade € uma experiéneia pessoal. Portanto, em sentido estrito, & incomunicavel Cada um deve comecar e refazer por si mesmo © processo da yerdade, E ninguém, exceto aquéle que empreende a aventura, pode saber se chegou ou nao a plenitude, a identidade com o ser. O conhecimento ¢ inefavel. As Gste “estar no saber" se exprime em uma gargalhada, um sorriso ou um paradexo. Mas ésse sorriso pode também indicar que o adepto nie encontrou nada. ‘Todo o conhe- cimento se reduziria entéo a saber que © conhecimento € impossivel. Uma vez ou outra os textos se comprazem com éste género de ambigilidades. A doutrina resolve-se tem siléncio. Tao & indefinivel e inominavel: “O Tao que pode ser nomeado nao € 0 Tao absoluto; os Nomes que podem ser pronunciados ndo so os Nomies absolutos”. uang-Tséafirma que a linguagem, por sua propria atureza, nao pode exprimir © absoluto, dificuldade que nao € muito distinta da que se desvela ‘aos criadores da lgica simbolica, “Tao nfo pode ser definido... Aquéle que conhece, no fala. E 0 que fala, nfo conhece. Por- tanto, © Sibio prega a doutrina sem palavras.” A con- denagéo das palavras originase da incapacidade da lin- jguagem para transcender 0 mundo dos opostos relativos € interdependentes, do isto em fungéo do aquilo. “Quando se fala de apreender a verdade, pensa-se nos livros. Mas 08 livros so feitos de palavras.” As palavras, & claro, tém um valor. © valor das palavras reside no sentido que ocultam. Ora, éste sentido ndo € sendo um esférgo para alcangar algo que néo pode ser aleancado realmente pelas palavras®.” Com efeito, 0 sentido aponta para as coisas, assinala-as, mas nao as alcanga jamais, Os objetos estéo mais além das palavras. Apesar Ge sua critica da linguagem, Chuang-Tsé no enunciou & palavra. O mesmo acontece com o budismo Zen, doutrina que se resolve em paradoxos e em siléncio mas a qual devemos duas das mais altas criagdes verbais do homem: 0 teatro Nd ¢ 0 hai-ku de Basho. Como explicar esta contradigéo? Chuang-Tsé afirma que o sibio “prega a doutrina sem palavras”. Ora, 0 taoismo Arthur Waley, The Life and Times of PoC, Lonises, 19. (6)_Arthor Waley, The Way and ts Power, A Study of the Tao re Sing tnd es Place inthe 'Chinese Thought, Londres, 1903 43 diversamente do crstianismo — nio or® nas boas agSes ‘Tampouco nas més: simplesmente ni eré nas ag008, A prédicn sem palavras 2 due alude o flosofo chines no ¢ fo employ as a dua tinguagem he Sel aig mais do. que. linguagem: palavra que diga © inaiivel Embora Chiang-Tse jamais tena pensado ha poesia como uma linguagem capaz de transcender 0 sentido dz ist ¢ aguilo ede dizer o indiivel, nose pod separa seo Faciociio das imagens, jogos de palavras-¢-ovtras formas podticas. Poesia ¢ pensamento se enretecem em Chua. Tse até formar unt s0 tel, uma dniee materia. insolita, (© mesmo deve dizer-se das outtas doutrinas, Gragas. 38 images potas 9 pant Ta nnd ta resulta compreensiel™ Quando Chuang-Tse explica que 4 experiencia de Tao implica um retro a una especie de consigncia clementar Oy original, onde cs signifieados relativos da linguagem resltam mnoperante, recorre 2m jogo de palavras que é um enigma postco, Diz que sta Cxperiénca de Tegresso a0. gue’ somos. origialmente.€ Sentrar na gala dor pssaros sem fazéloy cantar”, Fan E gaiola e regress; ming € canto e noms’. Astin @ frase quer dizer também: "“represar ali onde os nomes tao tho ‘noceesitios", ao siete, reino bas cvidéncits Ou 20 hugar onde os’ noms e as cols so fundem ¢ 580 # Inexa coit poi rino onde nomest ve imagem diz o indiaiels 25 plumas leves so pedras pes das. Fd que retornar ‘a ‘Tinguagem para ver como. Imagem pouc. dizer 0. que, por natures, « Hnguagem parece ineapaz Ge dizer A linguagem é significado; sentido de isto ou aqulo ‘As plumas sho leven ts. pedras, pesadas, O love lve tm telagio ao pesado, 0 escuro'drante do Tuminoso, ete {Todos cv sistemas de’ comunicagio. vive no: mundo ds Teferéncias e dos signficados relatvos” Dat que. seam Cenjuntes de signos, dotados. de. verte, mobiidade. Por txemplo, no caso. Jos nimeros, um zero 4 esquerda. no So mesmo que um zero 4 dicta: as cifras modifica seu significado de acbrdo ‘coma, sua posto. Outro iano ovorre. com a lingoagem, 86 que a sua gama de tmoblidede” ‘multe. superior is de ‘outros. prosessos de Significagdo © comunicagao. Cada voedbulo postu varios Signifiados, mais ow menos cooexos “entre si, Essex Sigificados’ se ordenam ¢-3© precisam de. acérdo’ com iugar da pslavra na oragdo. ‘Os outros deseparecem 00 se aenuam, Ov, dizendo de outro modo; em si mesmo © idioma € uma infinite possitlidade de signficados, 20 Sivalizarse emma frase, a0 converterse. verdadeira: (7) Artnur Wales, op ett, 44 mente em linguagem, ess possbilidade se fixa em uma ‘inica diregao. Ne prosa, a unidade da frase ¢ conseguida través do sentido, que & algo como uma flecha que obriga iSdus a6 palavray 4 aponfarem para um mesmo obje(0 bu para uma mesma diego, Ora, a imagem é uma frase Sina‘ pluraidade de significsdos nao desaparece. A Sinagtm recolhe e exalt, todos os valores das palavras, ‘Snenciust os significados primérios e sccundérios, Como Rove's imagem, encerrando dois oa mais sentidos, set Gite rowiit i tensio de tantes forges. contraras, sem MGnverterse em um mero. disparate? Hi. multas propo- goes, perfeitamente comets quanto ao que chamariamos SSGotake gramatical © lopiety que terminam por set Um ontrasenso. Outras sembocam em um. sem-sentido, amo as citadas por Garcia Bacca cm sua Iniroduccidn a fe Wgiew moderna ("0 nimerd dois € duas pedras”) Minto. Asim, a unidade da imagem dove ser algo mais Jogi meramente formal ie se. os cone senos dM oral'em todas a8_proposigbes que nao. sigificam at simple rencias, Qual pode os hada ou que constituem simples incoe ser o sentido da imagem, se varios e dispares signifi Tatam em seu. interior? ‘As imagens do poeta tém sentido em diversos niveis. Em primeiro lugar, possuem autenticidade: 0 poeta as viu ou ouvitt, $0 a expresso genuina de sua visio € experiencia do mundo. Trata-se, pois, de uma verdade Ue ordem psicoldgica, que evidentemente nada tem a ver com © problema que nos preocupa. Em segundo lugat, fessas imagens constituem uma realidade objetiva, vilida por si mesma: so obras. Uma paisagem de Géngora ho é a mesma coisa que wma paisagem natural, mas fambas possem Tealidade e consisténcia, embora vivam fem esferas distintas. Sio duas ordens de realidades para- Telas © auténomas. Neste caso, 0 poeta faz algo mais do que dizer a verdade: cria realidades que possuem uma yerdade: a de sua préptia existéncia. As imagens poéticas ‘4 sua propria ldgica ¢ ninguém se escandaliza de que 6 poeta diga que a agua é cristal ou que “el pird es primo del sauce” (Carlos Pellicer). Mas esta verdade estética dda imagem s6 vale dentro de seu proprio universo, Final- mente, © poeta afirma que suas imagens nos dizem algo sdbre © mundo © sdbre nds mesmos e que ésse algo, ainda {que pareca um disparate, nos revela de fato © que somos. Esta pretensio das imagens poéticas possui algum funda~ mento objetivo? O aparente contra-senso ou sem-sentido do dizer poético encerra algum sentido? 45 Quando percebemos um objeto qualquer, ate se nos apresenta. como uma plurulidade de —qualidades, sensagdes © significados. Esta pluralidade se unifica, instantineamente, no momento da percepgio. 0. ele: mento unificador de todo ste conjunto de qua lidades © de formas 6 0 sentido. As coisas pos suem um sentido. Mesmo no caso. da mais simples, casual © distraidapereepgéo dése uma certa intencio- nalidade, segundo demonstraram as andlises fenomenol6- ticas. Assim, 0 sentido no 6 6 0 fundamento da. lin- sguagem como também de t8da aproeniio da realidade Nossa experigncia da pluralidade © da_ambigtiidade do real parece que sc redime no sentido. A semelhanga da pereepeio ordinéria, a imagem postica reproduz. a. plura- Tidade ‘da realidade’ ¢, a0” mesmo. tempo, outorga-Ihe unidade.Até aqui o poeta nio realiza algo’ que nao sia comum 0 resto dos homens. Vejamos agora. em que consiste a operagio unificadora da imagem, para dife- yencié-la das outras formas de expressio da’ realidade. Todas as nossas versbes do real — silogismos, des- crigdes, férmulas cientifieas, comentirios de ordem pré- tien, ete. — nfo recriam aquilo que pretendem exprimir. Limitam-se a representi-lo ou descrevé-lo. Se vemos uma cadeira, por exemplo, percebemos.instantineamente sua e6r, sua forma, os matetiais com que foi construida, etc. A’ apreensio “de. t6das estas notas dispersas néo obsticulo para que, no mesmo ato, nos seja dado o signi- ficado da cadeira: 0 de ser um mével, um utensilio. Mas se queremos descrever nossa pereepcio da cadeira, teremos que ir aos poucos e por partes: primeiro sua forma, depois Sua cbr e assim suoessivamente até chegar ao significado. No curso do processo descrtivo foie perdendo pouco a pouco a totalidade do objeto. A principio a cadcira Apenas forma, mais tarde uma certa espécie de madeira e finalmente puro significado abstrato: a cadeira é um dbjeto que serve para sentar-se. No poema a cadeira & tua presenca instantinea © total, que fere de um golpe stnossa alengSo.O poeta nio descreve a cadeira: colocs-a dante de n6s. Como no momento da percepeao, a cadeira nos é dada com t6das as suas qualidades contrérias no Spice, © significado. Assim, a imagem reproduz 0 momento de percepgdo ¢ forga leitor a suscitar dentro de si 0 objeto um dia percebido. © verso, a frase-ritmo, evoca, ressuscita, desperta, recria. Ou, como dizia Ma- chado: néo representa, mas apresenta, Recria, revive nossa experiéncia do real. Nio vale a pena assinalar que esses ressurreigées no sio sdmente as de nossa experiéncia cotidiana, mas as de nossa vida mais obscura e remota. 46 ‘© poema nos faz, recordar 0 que esquecemos: 0 que somos realmente ‘A cadera. 6 muitas cosas 40 mesmo tempo: serve para sentarsey mas também, pode ter outros sos. batt tanto ocorre com as palavras, Logo. que reconguis Tana sua plenitude, readqutrem seus sgnficados e valores perdidos, "A ambigiidade. da, imagem no. € versa dt Imibiguidade da realidad, tal como a apreendemos no momento da percepeao: inedata, contaditora, pura nao obstante, possuidora ‘de um sentido recondito. Por bora da imagem produzse_ a instantinea reconciagdo Gnire o nome eo cbjto, entre a representagio ea real is. ‘Portanto, 0 acbrdo entre o sijelo e.0 objeto diac com ceria plenitude, fase. acdrdo seria smposel 36 0 poeta ndo usase du Tinguagem ese. cssa lnguagem, pot freio da imagem, nfo recuperasse 2 nun rgea original Mas esta volta das palavray A sua. primeira natureza — iso. G 8 sun pluralidads de signifcados —~ € apenas 0 Primeiro ato’ da operagao poctien,Ainds nao aproendc. mos de todo © senda’ da imagem poétca ‘Toda frase possi uma referéncin a outre, & susco- tivel de ser explteada. por outra, Gragas 4. mobiidade tos slgnon xp palavras podem ser explcadas pelas pal ras." Quando" tropeyamos com ‘uma, sentenge obseur, Glzemos: "0. que clas palavras quetem dizer é isto 00 fquilo™, E para dizer “isto ov aqulo™ recorremos a outras palavras, “Toda frase quer dizer algo que pode ser dito fu explicada por outra frase. Em conseqiénea, © sn tido ou significado & um querer dizer. Ow sss tim) dizer Ge pode dizerse de outta maneira,O sentido da ima fom, pelo contririo, &. propria. imagem’ fo. se_ pode flaet Com outras palavras? imagem vexplcase ft mesma. Nada, exceto ea, pode dizer © que quer dizer. Sentido’e imagem sio a mesma coisa.” Um poema no tem mais sentido que as suas imagens, Ao ver a cueira, tpreendemosinstantancamente sey sentido: sem necesidade @e ecorrer A palava, sentamo-nos. ‘O-Mesto ocorTe com pocma:, sus. imagens no nos Tevam a outa coisa, Gono ocorte com rosy mas. nos colocam diante de fima realidad concteta.” Quando © posta diz Jos labios de sua amadas “promncian ‘con desdén_sonoro. helo” nifo faz um simbolo da brancura ou do orgulho. Colo avpos diane de um fo" sem recorrer 2 domonstagio Gentes, palavras, gels, libiog, realdades. dapares, apre- fentanse de um 36 golpe diante de nossos os. Goya hao nos desereve os horores da querra: oferec-n08 i plcsmente a imagem da guerra, Os comentrios, as fele- Fincias © as explicagdes ficam sobrando. 0 poeta nio 47 quer dizer: diz. Oragées © frases sio meios. A imagem io € meio; sustentada em si mesa, ela ¢ sou sentido Nela acaba e nela comega. 0 sentido do poema 6 3 proprio poema.” As imagens sao irredutivels © qualquer Explicagio e interpretacdo.. Assim pois, as palevras. = gue haviam rccuperado. sua ambigtiiade original so- fem agora outra desconcertante © mais radical transfor. magdo., Em que consiste? Devivados da natureza significante da linguagem, dois atrbutos distinguem as palavras: primeiro, sua mobi Tidade ou intermutablidade: Segundo, por virtude de sua mobildade, 1 capacidade de uma. palavra de. poder set explicada por outra. Podemos dizer de muitas’ maneitas 4 ideia mats simples. Ou mutlar as palayras de_um texto fu de uma frase sem alterar gravemente © sentido. Ou txplicar uma sentenga por ouira, Nada disto € possvel com a imagem. Ha muitas maneiras de dizer a mesma coisa em prusa; s6 existe uma em poesia. NSo € a tesma coisa dizer "de desnuda que esté brill la estrella” ¢ “la estrella bila porque esté desnuda” -O sentido se degra. Gouna segunda versio: de afirmagio ‘converteuse em rasteira explicagio. A cortente pociica sofreu uma baka de tensio.Avimagem faz com’ que as palavras,peream a sua mobilidade e intermutablidade." Os. vocdbelos. se foram’ osubstituive’s, inepardvels, Deixaram de" ser instrumentos. A. linguagem deixa de ser um. utensio. © retGrno da finguagem A natureza original, que. parecia ser o fim ultimo da imagem, 6 apenss o. asso. preliminar para uma operagdo ainda mais radical: a lingoagem, tocada pela pocsa, cessa imedistamente de ser linguagem. Ou fejn: conjunto de signos moveis e sigificantes, "© pooma transcende a linguagem.” Fea. agora explicado © que disse a0 comegar see livro: © poema 6 linguagem ~~ € Tinguagem antes de-ser submetida A mutilagao.da_prosa out da conversagio —, mas € também mais alguna coisa E ésse.algo mais & inexplicével pela inguagem, embora 36 possa ser aleangado por ela. "Nascido da palavra, 0 Pema desemboca em algo que a transpasca ‘A experitncia poética & irredutivel A palavra e, nio obstante, 36 a palavra a exprime.. A imagem reconcilia fs contrarios, mas esta recontiliagio.nio pode ser expl cada pelas pulavras — exceto pelas da imagem, que. jé deixaram de sé4o, Assim, a imagem 6 um recurso deses- perado contra 0 siléncio’ que nos invade cada vez. que tentamos exprimir a terivel experiéneia do que n0s rodeia de nés mesmos. © poema & linguagem em ten io: em oxtromo do ser c em ser até 0 exttemo. Extremos dda palavra e palavras extremas, voltadas sobre as. suas 48 proprias entranhas, mostrando 0 reverso da fala: o siléncio © a nio-significagio. Mais aquém da imagem, jaz 0 ‘mundo do idioma, das explicagoes ¢ da historia. Mais ulém, abrem-se as portas do real: significagio © nio- significagdo tornam-se térmos equivalentes. Tal 6 0 sentido citimo da imagem: ela mesma. Certo, nem em tédas as imagens os opostos se recon- ciliam sem destruir-se. Algumas descobrem semelhancas entre os térmos ou elementos de que se compte a reali- dade: so as comparacdes, segundo Arist6teles as defini. Outras aproximam “realidades contririas” e produzem assim uma “nova realidade”, como diz Reverdy. Outras provocam uma contradigao insuperavel ou um sem-sentido absoluto, que denuncia o cariter irrisérie do mundo, da Tinguagem ou do homem (a esta classe pertencem 0s disparos do humor e, jé fora do fimbito da poesia, as piadas). Outras nos revelam a pluralidade ¢ interdepen- déncia do real. H4, enfim, imagens que realizam o que ser uma impossibilidade, tanto Igica quanto lingiistica: as nupcias dos contrarios. Em todas elas — apenas perceptivel ou inteiramente realizado — observa-se (© mesmo processo: a pluralidade do real manifesta-se ou expressa-se como unidade diltima, sem que cada clemento perca sua singularidade essencial, As plumas slo pedras, sem deixar de ser plumas. A linguagem, voltada sébre Si mesma, diz 0 que por natureza parecia escapar-the. O dizer postico diz © indizi ‘A censura que Chuang-Tsé faz & palavra nfo atinge a imagem, porque cla jé nao 6, em sentido estrito, fungao verbal. Com efeito, a linguagem € sentido disto ou daquilo. O sentido & © nexo entre © nome © aquilo que nomeamos. Assim, implica distincia entre um e outro. Ao enunciarmos certa classe de proposi¢ao (“o telefone 6 comer”. “Maria 6 um tridngulo”, etc.) produz-se um sem-sentido porque a distincia entre a palavra e a coisa, © signo © © objeto, torna-se insalvavel: a ponte, o sentido, rompeu-se. O homem fica 6, encerrado em sua lin- guagem. E na verdade fica também sem Tinguagem, pois 8 palavras que emile so puros sons que j4 nao significam nada, Com a imagem sucede 9 contiério. Longe de aumentar, a distancia entre a palavra e a coisa se reduz ‘ou desaparece por completo: 0 nome e © nomeado sic a mesma coisa, © sentido — na medida em que & nexo fou ponte — também desaparece: jf nfio hé nada que aprender, nada que assinalar, Mas mio se produz 0 semsentido ou © contra-sentide e sim algo que € indizivel e inexplicdvel, exceto por si mesmo, Outra vez: o sentido da imagem é a prépria imagem. A linguagem ultrapassa 49 © circulo dos significados relatives, o isto e 0 aquilo, ¢ diz © indizivel: as pedras so plumas, isto € aquilo. ‘A. lin- iagem indica, representa; o poema no explica nem representa: apresenta. Nido alude 2 realidade; pretende fe as vézes © consegue — recti-la. Portanto, a poesia € um penetrar, um estar ou ser na realidade A verdade do poema apéia-se na experiéncia postica, que nao difere essencialmente da experiéncia de identifi- ago com a “realidade da realidads”, tal como foi des- crita pelo pensamento oriental ¢ uma ‘parte do ocidental Esta experiéncia, reputada indizivel, expressa-se e comu- nnica-se pela imagem. E aqui nos defrontames com outra perturbadora propriedade do pocma, que seré examinada mais adiante* : em virtude de set inexplicavel, exccto por si mesma, a maneira propria de comunicegéo da imagem nao € a transmissio conceitual. A imagem nao explica: convida-nos a recrié-la e, literalmente, a revivé-la © dizer do poeta se encara na comunhio ‘poética. A imagem transmuta © homem e converte-o por sua vez em imagem, isto 6, em espago onde os contrérios se fundem. Eo proprio homem, desgarrado desde 0 nascer, recon- cilia-se consigo quando se faz imagem, quando se faz ‘outro. A poesia € metamorfose, mudanga, operacdo al- quimica, ¢ por isso é limitrofe da magia, da religiso e de ras tentativas para transformar o homem e fazer ‘déste” ou “daquele” ésse “outro” que é éle mesmo. O universo deixa de ser um vasto armazém de coisas het rogéneas. Astros, sapatos, légrimas, locomotivas, salguei ros, mulheres, dicionsrios, tudo & uma imensa’ familia, tudo se comunica ¢ se transforma sem cesar, um mesmo singue corre por tédas as formas e 0 homem pode ser, por fim, 0 seu desejo: le mesmo. A poesia coloca o homem fora de si e, simultaneamente, o faz regressar ao seu ser original: volta-o para si. © homem & sua imagem @le mesmo e aquéle outro. Através da frase que é ritmo, que & imagem, o homem — ése perpétuo chegar a set & A poesia & entrar no ser. *) 0 autor referee a outro engio, “A, consagragto do instante, thy se oro" Barco" lal, xm constant do presente volume! so A CONSAGRACAO DO INSTANTE Em_ paginas anteriores procurou-se distinguir 0 ato poético de outras experiéncias limitrofes. Agora faz-se ecessario mostrar como ésse ato irredutivel se inserta no mundo. Embora a poesia aio seja religiio, nem magia, ‘nem pensamento, para realizar-se como poema apéia-se em algo alheio a si mesma, Alheio, mas sem o qual no poderia encarnar-se. O poema é poesia e, além disso, dutras coisas. E Gste além disso nao € algo postico ou acrescentado, mas um constituinte de seu ser. Um poema puro seria aquéle em que as palavras abandonassem seus significados particulares ¢ suas referéncias a isto ou aquilo, para significar simente 0 ato de poetizar — exigéncia que acarretaria o seu desaparecimento, pois as palavras no sfo outra coisa que significados de isto © aquilo, isto 4, de objetos relativos e histéricos. Um poema puro no 51 Copyright by ‘Octavio Paz 2eiigso Direitos reservados & EDITORA PERSPECTIVA S.A. ‘Avenida Brigadsiro Luis Ant6nio, 3025 (01401 ~ Séo Paulo SP Brasil “Telefones: 885-8388/885-6878 1990 ard AY STEER NERA Si | OVWSW.LOHY INS SONDIS i zed o1Ae}90 bono so} ad sajzeqa saancaoan: |

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