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FAES, Jos (oul. A owronboum Libesnin Praoten obra freee pegs. So¢ Reale: Comppartun dan flonan, 1290 POR UMA LITERATURA BRASILEIRA DE ENTRETENIMENTO (OU: 0 MORDOMO NAO E 0 UNICO CULPADO) DELIMITACAO DE CONCEITOS ‘Quando se falaem literatura de entretenimento, mands a prudéncia que se comece © isso. Ora, como a ‘cultura de massa, uma. suirentre cultura de massa eeultura de propos designagio Umberto Beoa pefere tradicional designagao de cultura eruita. © mesmo Eco, no capitulo iniial do seu ivro Apocalipricos¢ integrados. enumera alguns cities de dite renciagio entre ume outro tipo de cultura. Vamos tentar re summir os os que t@m a ver mais de perto com o tema de que ‘os iremos ocupar aqui. Comecemos pelo eitéio de originali- dade. As obras da cultura de proposta nos oferecem, cada uma delas, uma visio de mundo singular e inconfundivel Para citar o exemplo de dais autores conterpordncos entre si ‘© mundo tal como visto por Dostoigeski nos seus romances & ‘muito diverso do mundo tal como visto por Balzac em A oo- ‘média humana. Nao se trata apenas da diversidade dos habi- tos de vida da Ress e da Franga no século XIX, mas de uma diversidade fundamental no modo de represent-os litera mente, desde o nivel de estilo narrativo até o nivel dos valores morals. Um € o modo dostoievskiano, outro © mado balaa- quiano, ¢ cada um deles constitu’ uma solugSo original do permanente problema da representacdo litera Na cultura de massa, a originalidade de representacio tem importiacia muito menor. A fim de satisfazer a0 maior rimero possivel de seus consumidores, as obras dessa cultura seabstém de usar recursos de expressio que, por demasiado originais ou pessouis, se afastem do gosto médio, frustrando- The as expectativas. Dai que ela se limite, na maiotia dos ea 08, a0 uso de recursos de efeito ja consagrades, mesmo artis: cando-se a banaliz-los pela repeticlo. Outro eritério de dife- renciagio €o de esfrvo. Assim como lisonjeia 0 gosto estrati ficado dos consumidores para mais facilmente Ihes vender © ‘que produz, a cultura de massa se preocupa em poupar-thes, no ato de consumo, maiores esforgos de sensibilidade, inteli- ‘inca e até mesmo atengio ou meméria. Para tanto, reduz a representaglo artistiea dos valores a termos facilmente com preensiveis ao comum das pessoas e os conflitos entre esses valores a dindmica de um faz-de-conta que nao chega a per- turbar a ebmoda digestio do pitoresto, do sentimental, do ‘emocionante ou da divertida, 4 a cultura de proposta nao $6 problematiza todos os valores como também a maneira de re presenti-los na obra de ate, desafiando o fruidor desta a um esforgo de interpretagdo que Ihe estimula a faculdade critica em ver deadormecé-Ia. Compare-sea nit delimitagao entre ‘oem e.0 mal sim filme de faroeste com a ambitiidade de A colinia penal de Franz Kafka, onde somos convidados ‘considerarsimultaneamente a psicologia do verdugo e de sua vitima, Acredito que esses dois evtérios esquemticos tenham bastado para mostrar a distancia que vai da literatura de mero ‘entretenimento oferecda por um romance policial de Agatha ‘Christe ou uma histiria de fiegto cientifia de Ray Bradbury A literatura de problematizagao e aprofundamento de que sio texemplos A montonha magica de Thomas Mann ou 0 UTisses de Joyce, para nos limitaemos & moderna prosa de fie. 180 post, poemos passar a uma outta questo bisa. qual seia 44 dos nveis de elaboragio da cultura de massa. Um dos seus tediricos, Dwight MacDonald, distingue o masseult, que aen- deria 0 gosto do-povio, do mideult, antes afinado com o gosto 26 da classe médla, O primeira éexemplificado pela historia em “quadrinhos, a misica rock, os filmes rotineiros da televisto, fenquantoo segundo nao passa, para MacDonald, de uma fal Sificagio comercial do que ele chama de Alka Cultura tanto assim que mialiciosamente a lustra com O velho eo mar. No Seu entender, os maneirismos de estilo dessa narrativa de fim de carreira de Ernest Hemingway, tio afastados da economia fea sobriedade dramética de um romance como Adeus ds “armas ou de um conto como Assassinos", tipfieam 0 e280 de Kitsch era. ‘Nessa maliciosainclusio, hi, se no um equivoco,certa- mente um exagero, Em ver de se restringir ao eritério mais téenieo do nivel de elaboragio e de destinagao, MacDonald se tembrenha no solo movedigo dos juizos de valor. E nele que se Situa afinalo problema da Kitsch, ou seja, dos produtos cul turais de mau gosto mais ou menos ostensivo que falsificam ov Smitam os efeitos superficias da arte de inven¢do, com um objetivo quase sempre rasteiramente comercial. O proprio, Umberto Beo mostra que o problema do reconhecimento do Kirseh depende, em dtima instincia, do jutzo das pessoas de thom gosto, Embora o midcufttenda, como 0 Kisch, & explo- agi de efeitos sabre a sensibilidade dos sews consumidores ranseits de surpresa, por exemplo, no caso do romance pol Gal elissio, ou de comogio no easo do romance sentimen- fal, ele no ambiciona substitu as obras da cultura de pro- posta, Seus produtos so, a0 contrario, obras de honestos © ompetentesartesfos que, Jonge de querer igualar-se 20s er ores de Arte com A maiisculo, nao pretendem mais do que Suprir as necessidades do “consumidor médio [...] que, no fim de um dia de trabalho, pede a um lvro ow a uma pelicula lo de alguns efeitos fundamentais(o arrepio, a rsada, tic) para restabelecer o equilibria de sua vida fsiea ou intelectual sia itima citagdo, também de Umberto Beo, delinita as fromieiras do territ6rio privativo da literatura de entrten- mento, Dele tem ela o titulo legal de posse, de modo alum ‘usurpado ao minifindio da alta Rteratura. E por sua ver 0s 7 rotulos masseult € muideult, que poderiamos traduzir como ‘nivel popular” e “nivel médio", sto seis para distinguie, dentro da literatura de entretenimento, aguilo que, por sua elahoracto mais rudimentar, visa um piblico menos diser rminativo, daquilo que, por sua fatura mais elaborada, preter Ge atinurleitores de maioresexiaéneias. Novel popular da i teratura de entretenimento se situam, por exemplo, 0s roman oles de amor da série Sabrina ou as historitas de fice cen tifea da série Perry Rhoden, vendidas em bancas de jorsas, 20 passo que o nivel médio seri iustrado, entre outros itens, pelos bestselers de fegio das lista divulgadas toda semar hha imprensa € normalmente comerciaizados pelas livraras. Talvez cause estranheza terse falado até agora s6 de um nivel popular e de um nivel médio na hteratura de entretei- mento, deixando de fora um eventual nivel superior. Este seria oda literatura erudita ou de proposta, onde hi de igual modo um propésito de entretenimento, embora de natureza mais stile menos “fisoligiea”, se assim se pode dizer, que nos outros dois nels: E em relagao a esse nivel superior aliés que uma literatura média de entretonimento,estimuladora do gosto e do hébito da leurs, adquire © sentido de degrau de acesso a um patamar mais alto onde o entretenimento nao se esgota em si mas traz eonsigo um alargamento da percepeto © tum aprofundamento da comproensio das coisas do mundo, DO ARQUI ETIPICO AO HISTORICO [No dominio da titeratura de proposta vigoram os chama- dos eéneros, que determinam por antecipagio algumas das caracteristcas principais das obras lterrias, ao mesmo tem po que condicionam as expectativas dos futuros litres dels. Também no Ambito da Iiteratura do entretenimento vise & categoria de género, Seriam fundamentalmente o romance policial, o romance sentimental. 0 romance de aventuras, a ficcio cientifca e a fieeRo infanto;jovenl, Poder-seis en ‘quecero eenco com a incluso da literatura erdtiea ou porno- 28 arifica © das histrias do Oeste americano. Mas & discutivel ‘ue se trate de géneros aut@nomos: a primeira pode ser vista ‘como uta varianteextremada do romance de amer, enquanto as segundas seriam uma modalidade do romance de sven tras, assim como o de espionagem 0 & do romance policial Pode'se ainda costar da incluso des contos fantastis ou de terror, género de que Hoffmann é considerado o fundador. Todavia, interessa-nos aqui a fiogao de entretenimento veiew- Jada normalmente sob a forma de lio, ov seia, o romance 4 novela, ao passo que © conto pertence, por natureza, 40 ‘dominio mais effmero do jornal eda revista, donde Mério de Andrade té-o chamado com razRo “romance pra revista”. ‘ aparecimento dos géneros nao 6 obra do acaso. A ob- servagio vale também no campo éa literatura de entreteni- mento, da qual se pode dizer o que Leslie Fiedler disse das histrias em quadtinhos: que herdou os “impulsos interiores a arte folel6rica”, desta conservando parte do “material ar- ‘guetipica’™ que hoje faz as deliias dos psianaistas empe- Imhados em rastrear, nos contos de fads, as representagtes, ‘vardadas no inconsciente coletive, de experiéneias areaicas da raga humana para as quais Jung chamov a atengao.e a que feu o nome de arquétipos, Na pré-histéria dos géneros liter ios André Jlles descobriy igualimente um momento araue- tipico nas disposigies mentais ou pontos de vista bisicos por ‘gue nossos anfepassados remotes foram classifieand © orga- hizando, via linguagem, a eadtica multiplicidade de suas ex periéneias, Dessas disposigbes mentais de base resultou o que Jolles ehama de formas lteriias simples, 0 ponto de partida mais recuad dos géneros literros.Jlles distingue nove for- mas simples", mas delas s6 nos vio interessar aqui (3 — ‘saa, adivinha e conto —, a que podemos vincular, por alguma, de suas caracteristicas fundamentais, os géneros de literatura de entvetenimento citados hi pouco. Assim, o romance de aventutas, cujo entrecho & constituide sempre de uma suces- "Ho desituagies de perigo por que passa seu herd ou prota sonista e das quais ele se consegue safar gracas sua coragem t habilidade, seria uma espéeie de tataraneto das velhas sagas » {que preservam a meméria dos feitos “do representanteherbieo ddeum cla determinado, o detentor hereditiro das atas virtu= desde uma raga"> Como o Ulises da Odisséia de Homero — ‘ea epopéia deriva também da forma simples da saga — em que os gregos de ontem e de hoje reconhecem 0 het mais Fepresentativo das virtues da raga. No romance policial, por sua ver, onde o detetive cousegue sempre desvendar enigma proposto a sua sagacidade por algum crime aparentemente insolivel, temos uma reencarnagio da adiviha folclrica, tipo “o que &0 que é” euja tesposta serve para reakar a forma hnabilidosa e despistadora por que a pergunta hava sido for- mulada, Com o espirto da adivinha tem relagdes um pouco mais remotas a fiegdo cientifea, na medida em que propte A$ seus leitores respostas de como sera o mundo tecnologico do futuro. Tampouco € dite pereeber no romance sentimen- tal, que privilegia o amor coma sentimento tado-poderoso que leva de vencida as barveiras sociis e faz a costureirinha se casar com o reo herdeito, um eco da moral do conte de fadas, O final feliz desses cons satistae 0 nosso “sentimento do justo” ao repararinjustgas como 4 de eriancas abandonadas ‘no mato por sews pais ou deenteadastiranizadas por suas ma drasias. O reencontso des abandonados com os abandona- dores eo casament da borralheira com o principe confirma as leis daquela “moral ingénua” em que André Jolles situa a “lisposicao mental responsivel pelo surgimento dos contos tr dlicionas, {A dimensdo arquetipica dos vrios géneros da literatura e eniretenimento ajuda a explcar a recorréneta, neles, de ‘motives ow procedimentosfixos, assim como sua capacidade de continuarem a aliciaro interesse dos leitores, a despite dessas repetigies aparentemente fastidiosas. Mas 0 arque- tipico ou pré-istérieo ndo nos deve fazer esquecer a histéria propriamente dita da moderna literatura de entretenimento, Historia ainda recent, pos fi em fins do século XVII e de rante o século XIX que ela se afirmon como tal na Inglaterra, na Franea e, além-mar, nos Estados Unidos. Vale dizer, nos pafsesem que o desenvolvimento do capitalism industrial le 0 vara ao aperfeigoamento dos prosessos tipogrifcos, bara- teando custos e alargando 0 mereado de consumo de publi- cagies.” O desenvolvimento desse capitalism & responsivel também pela consolidagio de uma classe média a cujas neces sidades culturais, ainda nao t20 apuradas pela tradiglo quan {oas da avistocracia onde artistas e poetas iam outrora busear fs seus mecenas, a literatura de entretenimento vinha expres- samente atender. Por se tratar de um pablico muito mais numeroso, tal literatura comecou recorrendo, para atingilo, Aiguele que foi o primeira veiculo de comunicaglo de massa —ojornal. £ entdo que surge o romance-fothetim, publicado em capitulos geralmente semansis, cada eapitulo ferminando hum lance de suspense eapaz. de manter acesa a curiosidade to letor durante esse intervalo de tempo. O grio-mestre do sénero foi reconecidamente Alexandre Dumas, que com Os frés mosqueteiros €O conde de Monte Cristo procurou dar a0 romance de aventuras um minimo de verossimihanga histo- rea, Seus folhetins conheceram prestigio mais duradouro a0 serem poiuco depois recallhides em lio. O mesmo acontecet com Edgar Allan Poe © Arthur Conan Dosle, iniciadores da Fiegao policial em contos também de inicio publicados em periélicos, Poe &considerada ademais um dos fundadores da fiegao cientfica, ainda que tvesse sido precedido nisso por Maty Shelley, a autora de Frankenstein ow o Prometew mo- deruo, de 1818, Fosse a principio através do folhetim semanal ou doconto ‘esparsamente publicado na imprensa, fosse mais tarde sob a forma permanente do livr, © certo € que os virios géneros da literatura de entretenimento tiveram, na segunda metade do séeslo XIX, uma leg de autores e uma vasta produgio, vi ependénca oltca, Alencar mo abrou de tod a its hrs de enetnimento. Num texto aobiogrficointitulado Como e por que sou romancisa bra ele, ent outs us, alone cnercda sobre sua vaso pelos sees de fama onde se lam et vor alta 0 romances romantics tals tarde apaionoue por Fenimore Cooper. de cui Thugnca hd ragsem soa obra, Als una das erasers dh noms Regd romantica fla de nonca se te afastado dos fades de gate dolor comm de sua época elo que mal Se pode distinguir nea o props de mero entretenmento “oe proptaton als ambiciss da eratara comune rot inde de eruia, Esse prosimidade persis ato Natur Tamo, quando os temas da patlogia seca e individual vam b romandsta 2 chocar os preconcelos do pUblco buuts, provcando oafstamentoHistic ene unt outro. fasta Menlo aus e Modersxmo, com seus vanguardists cone tan polemieamente os valores tradcinais da are e en Stlando melas evoluionin de expres 0 fee aumentar, Sonveriendo-o cm besa leparitel. A prosa experimental dz Osval-e Miro de Andrade jamais coneguin interes © frande pablo, que in salts sous gostos mals conver- ‘Soman numa Hieratarapreoeupadat2036 em Tones. 0 Guendoeratem 0 caso do romance nodestino de 30, wlio Shes para denancia sola, NBo por acaso as décadas de 06 Gea0ansbtem ao aparcimento dav panes oesbes de ite ffrare de enretenineno: 4 Colo das Mocs, de romances TEntimomti: as colegtesTeramareat e Paratodes, de 10 Stance de avnturase de fg cei: a coletes Ama ‘else Mascara Negra, de romances polis.” 2 CCompostass6 de obras traduridas, principelmente do ine alése do francés, esas colegdes assinalam os primérdios da invasio do bestseller estrangeiro,faciltada eestimulada pela auséncia de similares nacionas. Isso ndo obstante ter havido, Pouco antes € logo depois do Modernismo, escrtores menos sofisticados que conseguiram chegar até o leitor comum, tor hando-se poplares. Populares foram romancistas como Pau lo Seta, que se voltou para figuras e epsddio pitoreseos de ‘nossa Histria, ow Benjamim Costallat, que retratou vicios © elegincias do Rio dos anos 20. Ou ainda um eronista coma Humberto de Campos que, explorande habilidosamente os f ees da sentimentalidade e do humor, conquistou uma le de leitores. Mas & bem de ver que estes autores nao eultivaram 0s wéneros tradicionais da literatura de entretenimento: se- Fiam. antes, um easo de Kitsch literiio, 18 outro esertor dey se periodo, Medeiros e Afbuquerque,tentou deliberadamente «iar uma ficeao poleial brasileira a semente por ele plantada io vingou porém, apesar do esforco de cantinuadores como Jerbnimo Monteiro e Luis Lopes Coelho, Atuando também 2 ‘margem do Modernism, Afonso Shmidt produziu um tipo de fcedo de bom nivel enderecaco ao grande pablicoe veiew Jado em folhetins do Estado de S. Paulo, isso em plena déeada 6e40. Schmidt chegow a escrever nma novels de fegio cientic fica, género que tivera um preeursor‘no Rodolfo Tebfilo de O ‘reino de Kiato (1922) ¢ que conheceu mais tarde cert Hlores-

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