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Ravast wriluian oe fobroteire Crmpare N° 6 Balp Heres oaks: ABRALIC , 202. Uma aventura literaria por novas tecnologias Ana Cristina Coutinho Viegas Colégio Pedro II - Universidade Estacio de SA (Rio de Janeiro) O carater literério de um texto nao é simplesmente o resultado de um conjunto de indicadores textuais, uma vez que o valor da obra se pro- duz segundo contextos s6cio-culturais especificos. Importa, portanto, para os estudos literarios, nfo apenas a produgio material da obra, mas também a produco do valor da obra. Esse valor é socialmente institufdo, prescindindo de sujeitos dotados da disposigio e da compe- téncia necessdrias para tal. Depende de constelagdes sociais concre- tas e processos histéricos definidos por determinadas necessidades, capacidades cognitivas, sentimentos, intengdes e motivagées gerais e, ainda, de condicionamentos politicos, sociais, econémicos e culturais. Agentes 0 julgam e lhe atribuem sentido em fungdo dessas articula- ges. Devem-se levar em conta diferentes agentes e instituigdes que participam da produgiio desse valor através da produgio da crenga no valor da arte em geral e no valor distintivo de determinada obra. A permanéncia de certa aura em torno da “criac&o” constitui 0 principal obstaculo a um estudo rigoroso da produgao do valor dos bens culturais. B ela, com efeito, que dirige o olhar para o produtor — pin- tor, compositor, escritor —, impedindo que se pergunte quem criou esse “criador”. Ao transfigurar a “fabricagio” do material em “criagio”, desvia-se, para além do artista e de sua atividade prépria, a busca das condigées dessa capacidade demitirgica. O artista que faz a obra é ele préprio feito, no seio do campo de produgao, por todo 0 conjunto daqueles 12 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 6, 2002 As lutas que se desenvolvem no campo literério dependem da correspondéncia que mantém com as lutas externas (as quais se de- senvolvem no seio do campo do poder ou do campo social) e dos apoi- os que uns € outros possam af encontrar. E assim que, por exemplo, mudangas na hierarquia dos géneros se tornam possfveis pela corres- pondéncia entre modificagdes internas ¢ externas, que oferecem aos produtores consumidores dotados de disposigdes e gostos ajustados aos produtos que se lhes oferecem. Ao tratar da questo do sucesso comercial, Bourdieu destaca a importancia do contexto politico-cultu- ral para a legitimagdo do artista e dé como exemplo 0 caso Zola: E assim que Zola, cujos romances tiveram a mais comprometedora fortuna, sem ditvida deveu o fato de escapar, em parte, ao destino social que lhe determinavam suas grandes tiragens e seus objetos triviais tdo-somente & conversdo do “comercial”, negativo e “vulgar”, em “popular”, carregado de todos os prestigios positivos do progressismo politico; conversdo tornada posstvel pelo papel de profeta social que lhe foi atributdo no proprio seio do campo e que Ihe foi reconhecido bem glém dele gragas ao concurso do devotamento militante (...) Na prética e nas suas representacées, 0 comércio da arte reali- za-se, segundo Bourdieu, de forma ambigua, & custa de um recalque coletivo do interesse propriamente econémico e da verdade da pratica que a anélise econémica desvenda. O empreendimento nao pode, com efeito, ser bem sucedido se nao for orientado pelo dominio das leis de funcionamento espectfficas do campo artistico. O empresdrio de pro- dutos culturais deve conseguir uma combinagao entre as necessidades econdmicas e um certo “desinteresse”, que as exclui. Com o fortalecimento do mercado, entretanto, nao se pode dei- xar de levar em conta que o investimento empresarial também passou a ser valorizado pela midia como prova do prestigio do artista. Desde Baudelaire, Flaubert etc., 0 sucesso comercial imediato era suspeito, pois via-se nele um sinal de comprometimento com o dinheiro — postura mantida no século XX ao longo do modernismo. Hoje, e cada vez mais, o mercado passou a constituir também uma instancia de legitimagao. Pense bem no que significava a gloria para um escritor como Jodo Guimaraes Rosa e 0 que significa a gloria para um escritor de hoje. Hoje a gloria significa a telenovela, a lista > BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Trad. Maria Lucia Machado. Sto Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.136. + GALVAO, Walnice Nogueira. O mercado, eis a questo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 dez. 1985. 5 SCHMIDT. Op. cit., p.388. Uma aventura literdria por novas tecnologias 13 de dez mais. Assim sendo, é muito dificil que alguém pense em escrever um livro como o de Rosa (...) Ou seja: isso tudo af fora ndo me diz respeito, vou apenas fazer algo para meu proprio prazer. Embora com certa dose de nostalgia, Walnice Galvao levanta uma quest&o importante: nao é mais possivel para o artista se colocar numa posigdo de criador isolado, um mestre da palavra, & espera de ser reconhecido por outros artistas, pelos criticos, enfim apenas pelo mesmo grupo seleto do qual ele faria parte. A midia, por atuar muito mais diretamente que a academia na ampliagaio do mercado, determi- na condig6es tanto para a produgao como para o consumo das obras. ‘Ao se estudar a recepgiio de uma obra, importa analisar tam- bém sua adaptacdo para outros meios de comunicagaéo — o que vem acontecendo com bastante freqiiéncia — sem esquecer que 0 leque de receptores se multiplica e diversifica intimeras vezes. E importante avaliar a intervencao da literatura em veiculos dirigidos a uma massa de espectadores, os efeitos dessa interagio no campo literério, bem como no préprio meio de comunicagao. Afinal, por se tratar de um produto cultural academicizado, esse “marketing” da literatura depen- de também de certo prestigio no interior da estrutura universitaria. Na relagio entre academia e mercado, as instituigdes literarias ttm um impacto muito menos direto sobre a produciio e a edigao contempora- neas, pois ndo possuem os mesmos meios econdmicos, estando os de- partamentos de literatura praticamente desligados das editoras. De qualquer modo, cada agente, no interior desse universo, empenha, em sua concorréncia com os outros, sua forga relativa, definidora de sua posigao no campo, acompanhada de suas estratégias, ¢ as universida- des ainda contribuem para determinar 0 que deve ser considerado arte. Caso contrério, no haveria os exemplos de livros que se tornam best- sellers e seus autores continuam nao sendo legitimados como escritores. Além da importincia de se analisar 0 poder polftico-econémico da midia, também precisam ser observadas as modificagdes no modo de os individuos perceberem e representarem realidades a partir da convivéncia com essa midia. The way an individual in a social group construes realities and defines the modes of referring to them is different in social groups with only two means of communication (let's say speech and handwriting) from groups which also possess electronic mass-media. Em seu classico ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, Walter Benjamin jé chama atengio para 0 14 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 6, 2002 fato de que toda forma de arte se encontra no ponto de interseccaio de trés linhas. Primeiramente, a técnica atua de forma direta sobre deter- minada arte, como no caso das relagdes entre a pintura, a fotografia e o cinema. Em segundo lugar, em certos momentos de sua hist6ria, as artes tentam produzir efeitos que mais tarde serao obtidos sem esfor- ¢o pelas novas técnicas. Em terceiro lugar, deixando de lado 0 pdlo da producdo, afirma que mudangas sociais acarretam mudangas na recepcao®. Questées acerca da percepgiio do mundo — ou melhor, dos mundos — transformam-se hoje em tema central de investigagao em diversas disciplinas. Processos midiaticos sao entendidos como fato- res constitutivos e nao reprodutivos da percepgao. Estudos antropolé- gicos mais recentes mostram, por exemplo, que membros de culturas escritas estruturam seu pensamento de forma diferente de individuos de culturas orais. Também as pesquisas no campo da psicologia da cogni¢&o vém a ser fundamentais para se avaliar como a recepgio sofre modificagdes com os avangos tecnolégicos. O homem “nu”, tal como ele é estudado e descrito pelos laboratérios de psicologia cognitiva, sem suas tecnologias intelectuais nem o auxtlio de seus semelhantes, recorre espontaneamente a um pensamento de tipo oral, centrado sobre situagées e modelos concretos. O “pensamento légico” corresponde a um estrato cultural recente ligado ao alfabeto e ao tipo de aprendizagem (escolar) que corresponde a ele. Longe de adequarem-se apenas a um uso instrumental e calcu- lavel, os produtos da tecnologia sio fontes de imaginario, entidades que participam plenamente da instituigdo de mundos percebidos. Bas- ta lembrar, por exemplo, que a decadéncia da cultura estética regida pela pratica da aura foi causada, entre outros fatores, pela capacidade tecno-industrial de reproduzir a imagem. Na era da informatica, como nenhum texto em rede pode reque- rer um espago préprio para si, descarta-se a idéia de um espago para a literatura distinto das praticas cotidianas. O texto literério aparece na mesma tela utilizada para enviar as mensagens mais intimas ou reali- zar praticas de trabalho’. Quando uma mudanga técnica desestabiliza um antigo equilibrio de forgas e representagées, estratégias inéditas e aliangas inusitadas tornam-se possiveis, um conjunto heterogéneo de agentes sociais passa a explorar essas novas possibilidades. No século XIX, apés a revolugao ® BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte € politica, Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Sio Paulo: — Brasiliense, 1985, p.184. 7 LEVY, Pierre. As tecnologias da inteli- géncia, Trad. Carlos Irineu da Costa. Sao Paulo: Editora 34, 1998, * LADDAGA, Reinaldo. Uma fronteira do texto piblico: literatura e os meios eletronicos. In: OLINTO, Heidrun Krieger (org.). Literatura ¢ midia, Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Sio Paulo: Loyola, 2002, p.17-31 * LEVY. Op. cit., p.16. Uma aventura literaria por novas tecnologias 15 industrial da imprensa, os papéis do autor, do editor, do distribuidor, do livreiro estavam claramente separados. Com as redes eletrénicas, en- tretanto, aproximam-se seqiiéncias temporais que eram distintas e es- sas operagdes se tornam quase contemporaneas umas das outras. No mundo eletronico, o produtor de um texto pode, por exemplo, ser ime- diatamente o editor no sentido daquele que d4 forma definitiva a esse texto e também daquele que o difunde para um piblico de leitores. A mudanga técnica é uma das principais forgas que intervém na dindmica de uma coletividade, incluindo também a dinamica que move 0 sistema dos bens culturais. Se algumas formas de ver e agir parecem ser compartilhadas por grandes populagées durante muito tempo (ou seja, se existem culturas relativamente durdveis), isto se deve a estabilidade de instituigdes, de dispositivos de comunicagao, de formas de fazer, de relagdes com o meio ambiente natural, de técnicas em geral e a uma infinidade indeterminada de circunstancias. Estes equiltbrios sao frdgeis. Basta que, em uma situagdo histérica dada, Cristovaéo Colombo descubra a América, e a visdo européia do homem encontra-se transtornada, 0 mundo pré-colombiano da América esté ameagado de arruinar-se (ndo somente o império dos Incas, mas seus deuses, seus cantos, a beleza de suas mulheres, sua forma de habitar a terra). O transcendental histérico estd & mercé de uma viagem de barco. Basta que alguns grupos sociais disseminem um novo dispositivo de comunicagdo, e todo o equilibrio das representacées e das imagens sera transformado, como (...) no caso da escrita, do alfabeto, da impressio, ou dos meios de comunicagdo e transporte modernos. No caso brasileiro, uma cultura oral e audiovisual vem substitu- indo a formag&o escolar classica, letrada, a ponto de segmentos intei- ros da sociedade terem na telenovela sua principal fonte de educagao e formagiio. Sem contar que essa formacao cléssica nunca chegou a fazer parte da vida de grande parcela da populagiio. Os préprios profissionais de ensino, bem como 0s produtores culturais e os criticos siio eles mesmos, hoje em dia, de certo modo, formados pela midia. Na globalizagao eletrénica, o modelo de comunicagao de massa tradicional — concentrado em monopélios em que poucos produzem para muitos — cede lugar a uma coletivizagiio de produgiio e consumo de informagdes, acompanhada de uma desmassificagé0 — como no 16 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n, 6, 2002 caso da internet. Paralelamente a esse processo, consolida-se, para as grandes camadas da populag&o, uma cultura, cujos exemplos paradigmaticos so os seriados norte-americanos. O Brasil é um grande consumidor de ficgdio, mas via TV. Para a grande maioria das pessoas, oferece-se um modelo de comunicagao de massa concentrado em grandes monopélios e apoiado em progra- magGes repetitivas de entretenimento light, de onde esta praticamente exclufda a figura do escritor — s6 uns poucos conseguem ultrapassar essa barreira — e por onde também nio se veicula nenhuma politica efetiva de incentivo a leitura. Se, por um lado, a obra de arte s6 existe enquanto tal, quer dizer, enquanto objeto simbélico dotado de sentido e de valor, se for apreen- dida por espectadores dotados da atitude e da competéncia estéticas tacitamente exigidas, tais espectadores s6 podem fazé-lo na medida em que sao eles proprios produtos de uma convivéncia com obras de arte. Quando nao sao levadas em conta essas condigées, instituem-se em norma universal propriedades especificas de uma experiéncia que € produto de um privilégio, ou seja, de condigées especiais de aquisigao. Enquanto a recepgo dos produtos ditos “comerciais” é menos dependente do nivel de instrugao dos receptores, a literatura é um pro- duto acessivel aos consumidores dotados de certa competéncia, a qual deve ser desenvolvida basicamente pelo sistema de ensino. Além de formar leitores, a instituigdo escolar também reivindica um papel de consagradora, isto é, depois de um longo processo, canonizam-se de- terminadas obras pela sua inscrig%o nos programas de ensino. Apesar de nao desenvolver aqui a quest&o de como esse trabalho vem sendo realizado em nossas escolas, questiona-se o lugar nelas reservado para a leitura dos escritores brasileiros. Se o sistema de ensino nio esta conseguindo formar leitores, quem exerce influéncia sobre os jovens consumidores de literatura? Volta-se, conseqtientemente, ao mercado 4 midia. Restringe-se, assim, a autonomia do escritor, expondo-o as exigéncias ou as encomendas dos poderes externos. A rede de elementos que separa a literatura da maior parte das pessoas pode ser observada sob varios Angulos, até mesmo na segre- gacdo residencial, uma vez que, numa cidade como o Rio, a quase totalidade da oferta cultural “classica” — na qual se incluem as biblio- tecas ¢ livrarias — concentra-se no centro e na Zona Sul, o que refor- ga a desigualdade, 0 acesso antidemocratico aos bens culturais. (...) 89% dos munictpios do pats nao tém livrarias. O Rio tem 164 livrarias, concentradas em 39 bairros. Os outros © GUEDES, Cilene. Ca- réncia de livrarias. Jor nal do Brasil, Rio de Janeiro, 8 abr. 2000. Uma aventura literdria por novas teenologias 17 118 bairros da cidade nao tém livraria alguma (...) Mesmo nos 39 bairros onde estado as livrarias, a relagdo é de um estabelecimento para cada 13,426 habitantes. O bairro com mais livrarias é 0 Centro: 45 estabelecimentos — ou 28% do total. A pesquisa ndo encontrou qualquer relagdo entre a existéncia de livrarias e a de bibliotecas nos bairros do Rio. Ha bairros com bibliotecas e sem livrarias e hd bairros com livrarias mas sem bibliotecas. O objetivo das abordagens s6cio-hist6ricas € identificar a rela- cao funcional varidvel em que textos literérios encontram-se na “ex- periéncia de vida” e nao estabelecer as qualidades do texto como representagao de intengdes pessoais, da realidade histérica ou como resultado de experimentagGes lingtifsticas. Essas relagdes funcionais revelam as convengdes vigentes no que se refere A comunicagio lite- réria. Como resultado da relagio intertextual de discursos literdrios e nao-literarios e das concretizagGes varidveis de textos literarios, a ima- gem da obra de arte como auténoma desaparece, tornando-se neces- sério procurar 0 especificamente “literdrio” a partir e em oposigao a outras manifestag6es textuais da experiéncia ou outros tipos de comu- nicagio verbal ou nfo-verbal. Acentua-se 0 comprometimento com 0 paradigma da multiplicidade, visfvel no esforco de empirizar e historicizar 0 conjunto do fenémeno literatura e visivel ainda na aber- tura para espacos interdisciplinares e interculturais. Os processos interativos dos varios papéis acionais ficam sujei- tos a contfnuas modificagées sob a influéncia de impulsos e necessida- des de origens diversas. Faz-se mister tomar consciéncia desses mecanismos, descrevé-los, a fim de elaborar novas formas de inter- vengio, talvez programas de agiio combinada entre agentes diversos — artistas, escritores, professores, jornalistas, pesquisadores — no sentido de criar alternativas visando a democratizar tanto a produgio, quanto a distribuigio e a recepgao da literatura e das artes em geral. E necessério redescobrir 0 papel dos intelectuais, incluindo os escritores, € claro, em relagao as sociedades civis, em especial num pais periféri- co como o nosso. Além disso, uma nova forma de distribuig&o das obras através da internet pode ser uma safda nao sé para democratizar a produgio e a distribuigio, como também para popularizar a leitura. De acordo com Jason Epstein, quando a digitalizagao dos livros crescer significativamente, editores terdo de catalogar todos os livros que vendem. A manutengdo desse catdlogo universal de livros ndo pode ser um negécio privado, assim 18 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 6, 2002 como nao sdo hoje os bancos de dados de bibliotecas inter- nacionais e diret6rios telefénicos. E at entra a fungdo das Organizagées das Nacées Unidas, enquanto entidade de poder acima dos governos locais e interesses privados, Tra- ta-se de um servico de publicagao mundial, multilingiitstico e sem fins lucrativos. As maquinas de impressdo sob deman- da ficariam em lojas estaciondrias nas ruas, onde tudo o que vocé estaria pagando é pelo papel, pelo uso de tal ma- quina e os direitos dos autores e seus editores digitais, Sem intermediérios, esse novo processo faria com que o prego final do livro ao consumidor catsse em 50%. E importante vincular em um mesmo projeto 0 estudo da produ- gao, da transmissio e da apropriagao dos textos. Significa manejar ao mesmo tempo a critica textual, a histéria do livro e, mais além, do impresso e do escrito, e a hist6ria do piiblico e da recepgiio. (...) deve-se considerar 0 conjunto dos condicionamentos que derivam das formas particulares nas quais o texto é posto diante do olhar, da leitura e da audigdo, ou das competéncias, convencées, cédigos proprios @ comunidade a qual pertence cada espectador ou cada leitor singular. A grande questéo, quando nos interessamos pela histéria da produgdo dos significados, é compreender como as limitagdes sdo sempre transgredidas pela invengéo ou, pelo contrdrio, como as liberdades da interpretagdo sao sempre limitadas. A partir de uma interrogagdo como essa serd talvez menos inguietante pesar as oportunidades ¢ os riscos da revolugdo eletrénica, A esfera ptiblica culta refratada em segmentos culturais, consti- tuindo uma pluralidade de grupos de interesses, requer cada vez mais pesquisas interdisciplinares, incluindo profissionais da lingiifstica, da comunicacio, da antropologia, da psicologia, da informatica, entre ou- tras Areas, 0 que certamente potencializaré o campo literario. Nem mais 0 repertério comum e canOnico da educagio humanistica classica nem o sonho de uma vivéncia total da arte como parte de projetos de revolugdo comportamental ¢ politica. A educagiio dos sentidos passou a ser um modo de identificagio entre o indivfduo e um recorte grupal. A arte constitui uma forma de resisténcia 4 cultura da massificagio. Sua sobrevivéncia, contudo, depende do éxito que obtiver nos meios politico-econdmicos de circulagao. Sfio tempos de megamercados, que " GRECO, Sheila, Pé- ginas de futuro. Babel: olhares e perfis. 10 jan. 2002. Disponivel em . Acesso em: 13 jan. 2002. ® CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Trad. Reginaldo Car- mello Corréa de Mo- aes. Sao Paulo: UNESP J Imprensa Oficial do Estado, 1999, p.19. ' MORICONTI, Italo. A provocagéo pés-mo- derna ~ razdo histori- cae politica da teoria hoje. Rio de Janeiro: Diadorim, 1994. ¥ CANCLINI, Néstor Garefa. Consumidores e cidadaos. Conflitos multiculturais da glo balizagdo, Trad. Mau- ricio Santana Dias & Javier Rapp. Rio de Ja- neiro: UFRJ, 1995. © LEVY. Op. cit, p.127. Uma aventura literdria por novas tecnologias 19 manipulam a moda, ¢ esta, por sua vez, convive com o gosto das tribos, que se relacionam a segmentos de mercado!’. Canclini, em seu livro Consumidores e cidadGos, tenta enten- der como as mudangas na maneira de consumir alteraram as possibili- dades e formas de encarar a cidadania. Nao se pode mais alinhar o consumo apenas ao mercado ¢ a titicas publicitérias. Hé uma coerén- cia entre os lugares onde os membros de uma classe ou de uma fragao de classe estudam, passam as férias e também naquilo que Ieem — 0 que evidencia aspectos simbélicos e estéticos da “racionalidade con- sumidora”*, Todos esses dados ratificam a necessidade de se ampliarem as discussdes sobre o fendmeno literatura. As inter-relagdes de produgao ¢ fruig%o no campo da arte vém sofrendo profundas modificagdes ¢ requerem maior prudéncia no estudo de categorias como “arte”, “con- sumo” e “midia”, entre outras. No polo da produgio, encontram-se textos literarios contempo- raneos que tém como projeto recuperar um modo de contar, langando mio de uma linguagem despida de metéforas, como recurso para falar “do” e “para” o homem atual. Num mundo dominado pelas imagens, a vis&éo vem a ser um dos sentidos mais requisitados. Os habitantes das grandes metrépoles tém no olhar seu instrumento prioritario de per- cepgiio e de capacidade cognitiva. E preciso, portanto, que a arte desautomatize esse olhar. Inquietagdes contemporaneas como a forga da literatura nos dias de hoje, 0 confronto com a cultura de massa e a necessidade de uma linguagem capaz de atingir o leitor atual suscitam questionamentos so- bre que ficgio se torna relevante e, portanto, interessante aos leitores. No que diz respeito & pragmatica da comunicagio, na tradigio oral, os parceiros encontram-se mergulhados nas mesmas circunstan- cias e compartilham hipertextos préximos. No caso da escrita, a dis- tancia entre os hipertextos do autor e do leitor pode ser muito grande. Disto resulta uma tendéncia 4 universalidade por parte do autor, assim como uma necessidade de interpretagao por parte do receptor. No pélo informatico-mididtico, os atores da comunicagao dividem cada vez mais um mesmo hipertexto. A pressio em direg%o a universalidade ¢ & ob- jetividade diminui, pois as mensagens sao cada vez menos produzidas para durarem. Enquanto o critério dominante no plo da oralidade pri- miria é a conservagao ¢, no pélo da escrita, a verdade, de acordo com modalidades de critica, objetividade e universalidade, no pélo informatico-midiatico, os critérios dominantes so a eficdcia e a pertinéncia's, 20 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 6, 2002 Este quadro comparativo tragado por Pierre Lévy remete a ou- tro ensaio classico de Benjamin sobre a figura do narrador e sua subs- tituigdo pelo romancista'®. O narrador seria aquele homem que sabe dar conselhos, que retira da experiéncia aquilo que conta, ou seja, trans- mite sua experiéncia ou aquela que Ihe chega aos ouvidos. O roman- cista, por sua vez, nfo recebe nem da conselhos, nao fala exemplarmente sobre suas preocupagoes. Do ponto de vista do receptor, na tradigao oral, importava ao ouvinte ser capaz de reproduzir a narrativa; no caso do romance, o leitor é convidado a refletir sobre a vida. Hoje, que convites pode-se fazer ao leitor? Se o ouvinte tem a companhia do narrador, enquanto 0 leitor do romance € solitario, de que formas a internet altera a relagio autor/leitor? Peguemos como exemplo a experiéncia do escritor Mario Prata, que resolveu produzir um livro on-line, podendo ser visto pelos leitores no momento mesmo da criagdo e podendo receber e-mails desses leitores. Logo de saida, em experiéncias como essa, estiio ocor- rendo modificagées na construgao da figura do autor, o qual se aproxi- ma muito mais de um cidado comum. Além disso, em que medida acompanhar diretamente a produgio de um livro interfere em sua re- cepgaio? Essa e muitas outras perguntas mostram a relevancia de es- tudos interdisciplinares, incluindo os profissionais da area de Letras. Houve um tempo em que a critica do leitor se limitava 4 sego “carta dos leitores”. Hoje as redes eletrénicas facilitam as interven- g6es, ampliando o espago de discussao. Deste ponto de vista, pode-se dizer que a produgdo dos juizos pessoais e a atividade critica se colocam ao alcance de todo mundo. Dai, a critica, como profissdo espectfica, correr 0 risco de desaparecer. No fundo, a idéia kantiana segundo a qual cada um deve poder exercer sew jufzo livremente, sem restrigGo, encontra seu suporte material e técnico com o texto eletrénico. Além disso, 0 hipertexto possibilita ao leitor a transformagao permanente dos textos: Teorias da literatura tradicionais nos induziram a supor a existéncia de sentidos subjacentes aos préprios textos, vinculados & idéia de uma identidade autoral integrada movida por atos intencionais. A quantidade ilimitada de textos conectdveis em sistemas hipertextuais pressupde, no entanto, uma existéncia fundante de textos a partir de incontdveis textos referenciais e, assim, todo texto novo ja “© BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte politica. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Séo Pau- lo: Brasiliense, 1985: » CHARTIER, Op. p.18. GABRIEL, N. Kulturwissenschaften und neue Medien. Apud: OLINTO, Heidrun Krie- ger (org.). Literatura € midia, Rio de Janeiro Ed, PUC-Rio; Sao Pau- lo: Loyola, 2002, p.72. Uma aventura literdria por novas tecnologias 21 nasce como tecido de textualidades miiltiplas e toda instan- cia autoral que altera e acrescenta elementos, por seu lado, emerge na qualidade de compositor de textos multivocais. E é neste sentido que podemos falar numa conversdo do autor em “texto”. O campo literario se constitui na interagio de diferentes indivi- duos que lidam com os fenémenos tidos como literarios, individuos es- tes que também se articulam com esferas extraliterérias. A midia eletrénica e a informatica vém a ser componentes dessa rede. De um lado, a informética, ao misturar os papéis dos agentes sociais, cria uma liberdade nova A medida que permite, por exemplo, que o leitor inter- venha na criagao de textos ou que 0 autor se torne editor e distribuidor de seu proprio texto — uma forma de tentar driblar o poder a as cxi- géncias do mercado. Por outro lado, nao se pode esquecer de que poderosas empresas multim{dia determina, de forma antidemocratica, a oferta de leitura e de informagao nas redes eletrénicas. Nem euforia, nem desanimo diante das novas tecnologias. E pre- ciso colocar em foco, de forma interdisciplinar, a discussao sobre como e quanto esses componentes atuam no consumo e na percep¢ao dos bens culturais. Afinal, trata-se da vida contemporanea, que, ao mesmo tempo em que desafia, abre possibilidades para tarefas intelectuais significativas. Referéncias bibliograficas BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e politica. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Sio Paulo: Brasiliense, 1985. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Trad. Maria Lucia Machado, Sao Paulo: ‘Companhia das Letras, 1996. CANCLINI, Néstor Garefa, Consumidores e cidadaos. Conflitos multiculturais da globalizagdo. Trad. Mauricio Santana Dias & Javier Rapp. Rio de Janeiro: UERY, 1995. CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Trad. Reginaldo Carmello Corréa de Moraes. Sao Paulo: UNESP/Imprensa Oficial do Estado, 1999. GABRIEL, N. Kulturwissenschaften und neue Medien. In: OLINTO, Heidrun Krieger (org,). Literatura e midia. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Sio Paulo: Loyola, 2002. GALVAO, Walnice Nogueira. O mercado, eis a questo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 dez, 1985. 22 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 6, 2002 GRECCO, Sheila. Paginas de futuro. Babel: olhares e perfis. 10 jan, 2002. Disponi- vel em . Acesso em: 13 jan. 2002. GUEDES, Cilene. Caréncia de livrarias. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 8 abr. 2000. 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