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Análise do discurso na abordagem do jornal em sala de aula

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Elizabete Mendes
betemendez@yahoo.com.br
Ms. Luciana C.F. Dias (Docente / Unicentro)
UNICENTRO – Guarapuava / Pr

Resumo: Considerando a relevância de uma leitura crítica e contextualizada, o ar tigo apresenta


uma proposta de leitura, a partir da inserção do Jornal Gazeta do Povo, em sala de aula,
considerando-se o jornal não como mero atrativo ou como recurso suplementar, mas como objeto
simbólico que produz sentidos e que não pode estar apartado de suas condições de produção.
Apoiado na análise do discurso de linha francesa, o estudo enfoca atividades produzidas a partir
do movimento do sujeito-leitor atribuindo sentidos ao texto e produzindo um lugar de leitor, o que
põe em jogo uma dada inscriç ão ideológica, além da própria história de leitura do sujeito. Para
tanto, foram trabalhados, além do gênero notícia no jornal, outros tais como reportagem, charges,
editoriais. Nesse sentido, a proposta está pautada em conceitos basilares como as condiçõe s de
produção, paráfrase e polissemia e na memória do dizer que é mobilizada no texto e faz retornar
dizeres. O estudo aponta para o fato de que o jornal em sala de aula pode promover não só o
contato do aluno com um veículo de informação, mas também, a pa rtir do jornal, é possível
compreender que o discurso precisa ser visto além de seu caráter informativo, ou seja, produzir
sentidos é mais que informar, é construir identidades, é produzir embates sociais, é marcar um
lugar social.

Palavras-chave: leitura, análise do discurso, jornal, sala de aula.

Abstract: Considering the relevance of a critic and contextualized reading, the article shows a
proposition of reading, from the insertion of the Gazeta do Povo newspaper, in the classroom,
considering the newspaper not as an attraction or an additional resource, but as a symbolic object
that produces senses and can’t be separated of its conditions of production. Based in the analysis
of the French line of speech, the study focuses in activities produced fro m the movement subject-
reader assigning senses to the text and producing a place of reader, this jeopardizes one given
ideological inscription, besides the subject own history of reading. For that matter, it was worked,
besides the gender of newspaper news , others like reportage, charges, editorials. In this sense, the
proposition is guided in base concepts like the conditions of production, paraphrase and polyssemy
and in the memory of the sayings that are mobilized in the text and makes it return sayings. The
study points to the fact that the newspaper in the classroom can promote not only the contact of the
student with an information vehicle, but also from the newspaper it’s possible to understand that the
speech needs to be seen besides its informative character, that being, producing senses it’s more
than inform, it’s build identities, it’s produce socials collisions, it’s mark a social place.

Key words: reading, discourse analysis, newspaper, classroom.

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Professora QPM (Quadro Próprio do Magistério) da Rede Pública Estadual do Estado do Paraná. O texto a
seguir é resultado de trabalho de conclusão do PDE 2007 – Programa de Desenvolvimento Educacional –
SEED, realizado na UNICENT RO, Guarapuava – PR, sob a orientação da Prof. Ms. Luciana Ferreira Dias.
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1. Introdução

Desde que se iniciou o pro cesso de democratização do ensino, a escola


ainda não conseguiu implementar propostas pedagógicas que atendam às reais
necessidades dos alunos, considerando -se as grandes diferenças de natureza
lingüística e cultural apresentadas por esses. E, se na teoria já se avançou muito,
na prática de sala de aula a problemática ainda é a mesma, conforme indicam as
diretrizes curriculares do estado:
Mesmo vivendo numa época denominada “era da informação”, a qual
possibilita acesso rápido à leitura de uma gama imensurá vel de
informações, convivemos com o índice crescente de analfabetismo
funcional, e os resultados das avaliações educacionais revelam baixo
desempenho do aluno em relação à compreensão dos textos que lê.
(DIRETRIZES CURRICULARES DE LÍNGU A PORTUGUESA PARA O S ANOS FINAIS DO
ENSINO FUNDAMENTAL E MÉDIO DO PARANÁ , 2008, p.15)

Faz-se, pois, necessário que posições sejam revistas; conceitos,


modificados e práticas, repensadas. Se o grande desafio do ensino é a formação
de um cidadão com capacidade crítica, deve -se começar pelo professor com
relação a sua ação pedagógica.
E um dos grandes objetivos do ensino de Língua Portuguesa,
especificamente no Ensino Médio, em se tratando de leitura, é a formação do
aluno-leitor. Mesmo dentro de um contexto onde tudo conspira contra o “ato de
ler”, numa sociedade onde impera o imediatismo, a velocidade, a instantaneidade
da informação. Isso contribui para a adoção de um estilo de vida com vistas à
praticidade, onde o ato de ler, dispensando tempo para a assimilação, reflexão,
construção de juízos, parece não “caber” na rotina de vida de muitos. Assim, a
superficialidade com que a maioria se apodera da informação e do conhecimento
parece bastar e satisfazer a essa grande parcela.
No contexto da sala de aula, a realidade não é dif erente. Os textos escritos
não são a primeira opção dos alunos, sendo as formas de comunicação televisivas
as mais atraentes (por seus grandes recursos de imagem), porém, na sua maioria,
promotoras de cultura de massa e de conhecimento superficial.
Eis o grande desafio para quem trabalha com o ensino da língua materna,
considerando que a língua é um fenômeno social e que a compreensibilidade do
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aluno (sua capacidade, história de leitura) é que vai lhe dar suporte para sua
relação com o outro, com o texto e o contexto sócio-histórico no qual está inserido.
Se ler é um processo discursivo no qual se inserem sujeitos produtores de
sentidos – o autor e o leitor -, nos termos de Coracini (2002, p.15), e esse
processo acontece na prática social, de maneira real e viva, então a tarefa que se
coloca aos professores, em sala de aula, é a de promover experiências reais de
leitura (produção de sentidos).
Um texto de épocas passadas, a não ser pela estética, no caso da
literatura, dificilmente chama a atenção para a leit ura; enquanto que, se o texto
fala de algo que está acontecendo, de algo que, de alguma forma afeta o
interlocutor, o interesse pode surgir naturalmente, pois é uma realidade que lhe diz
respeito. A atualidade, nesse caso, torna -se um aspecto muito importa nte para o
desenvolvimento do trabalho com leitura, pois se não precisassem ser atuais, os
textos dos livros didáticos já seriam suficientes para garantir a leitura social
(MENEZES, 2003, p.12)
No caso de textos de cunho jornalístico, há uma perspectiva de que, levado
pelo interesse, o aluno, aberto à leitura, possa, a partir dessa experiência –
considerando-se as condições de produção do domínio jornalístico, o modo de
funcionamento da linguagem jornalística, a natureza específica desse gênero, que
é atrelado ao momento sócio - histórico – amadurecer como leitor, ultrapassando
um posicionamento passivo e ingênuo, assumindo assim uma posição mais
madura, reflexiva e crítica diante da realidade que o cerca.
Nos termos de Grigoletto (2002, p.91), desenvolver c onsciência crítica
quando se lida com textos em sala de aula é atentar sempre para o fato de que
cada leitor tem a ilusão de que há uma única leitura boa e certa para um texto e
essa ilusão deve ser discutida.
Para isso, o aluno precisa perceber que um tex to não tem sentido fora de
suas condições de produção, pois a leitura é construção de sentidos determinados
pelo contexto sócio-histórico-ideológico e pela história de leituras do leitor
(GRIGOLETTO, 2002, p.85); perceber também que não é o professor que d etém a
compreensão do sentido do texto como único detentor do saber, mas considerar
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que se existem leituras previstas para um determinado texto, essas leituras são
decorrentes de formações ideológicas e discursivas que nos constituem como
sujeitos.

2. Pressupostos teóricos: prática de leitura numa concepção discursiva

A linguagem deve ser vista em seu caráter social, pois, de acordo com os
termos das Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa para os anos finais do
Ensino Fundamental e Ensino Médio do Paraná (2008, p. 16), a linguagem é vista
como fenômeno social, pois nasce da necessidade de interação (política, social,
econômica) entre os homens. O estudo da linguagem, diz Orlandi (1999, p. 17),
não pode estar apartado da sociedade que a produz.
Assim, dentro da abordagem do Ensino de Língua, já não cabe mais o
trabalho, em sala de aula, restrito a uma seleção fechada de textos, mas dado ao
caráter social da linguagem e à diversidade de gêneros que se configuram na
esfera da comunicação, há que se impl ementar um ensino que promova o contato
do aluno com os vários gêneros textuais, para que a sala de aula não seja um
espaço desvinculado daquilo que para o aluno é sua prática cotidiana. Compete à
escola oportunizar ao aluno meios de ampliar sua capacidade de compreensão
nas práticas de leitura, partindo do que ele já possui como sujeito histórico que é.
E as atividades com e sobre a língua, somente terão sentido se possibilitarem aos
alunos e professores experiências reais de uso da língua materna.
Quanto às práticas de leitura, nas DCE (2006, p.25), a concepção que está
no bojo dessas diretrizes estabelece que a prática de leitura é um ato dialógico,
interlocutivo. O aluno/leitor, nesse contexto, passa a ter um papel ativo no
processo de leitura, é o res ponsável por “reconstruir o sentido do texto.”
Numa concepção de leitura discursiva, considera -se:
o ato de ler como um processo discursivo no qual se inserem os sujeitos
produtores de sentido – o autor e o leitor – ambos sócio-historicamente
determinados e ideologicamente constituídos. É o momento histórico -
social que determina o comportamento, as atitudes, a linguagem de um e
de outro e a própria configuração do sentido. ( CORACINI , 2002, p.15)
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Nessa concepção, não se pode mais colocar o texto como única fonte de
sentido no ato leitura, sendo essa um processo entre sujeitos histórica e
ideologicamente posicionados. E, como diz Coracini (2002, p.18), o texto tem
como função essencial provocar efeitos de sentido no leitor -aluno.
O texto deve ser visto em su a dimensão discursiva, sendo a leitura uma
tarefa de construção de sentidos pelo contexto do leitor e pela sua história de
leituras. Um texto pode revelar ideologias, crenças e valores. Assim sendo, não
deve ser concebido apenas como uma unidade lingüístic a com significação única
e predeterminada.
Na linha de Análise de Discurso, nos termos de Orlandi (1999, p.7), a leitura
pode ser entendida como “atribuição de sentidos”, tanto para a escrita como para
a oralidade. A leitura então se dá na relação que se e stabelece com o texto,
dentro de determinadas condições, modos de relação, de trabalho, de produção
de sentidos, o que Orlandi (1999) aponta como “historicidade”.
A significação do que se lê está relacionada à posição e formação
discursiva e ideológica do autor e do leitor. As palavras adquirem sentidos
diferentes entre uma formação discursiva e outra. Segundo Orlandi (1999, p.18),
todo falante e todo ouvinte ocupa um lugar na sociedade e isso implica na
significação. Para Orlandi (1999, p.86) a leitura é p roduzida em condições
determinadas, ou seja, em contexto sócio -histórico que deve ser levado em conta.
Um texto pode não ter a mesma significação de uma época para a outra. Portanto,
sempre são possíveis novas leituras para um mesmo texto.
O professor pode e deve oportunizar ao aluno as condições para ele
produzir suas leituras, construir suas histórias de leituras, para que não fique na
expectativa de uma leitura prevista apontada pelo mestre.
Na perspectiva da Análise de Discurso a relação do sujeito com a
significação se dá de formas distintas entre o inteligível, o interpretável e o
compreensível, sendo que no nível da compreensão é necessário chegar ao
contexto de situação. Assim, pois, para Orlandi (1999, p.116), a compreensão
supõe uma relação com a cultura, com a história, com o social e com a linguagem,
que é atravessada pela reflexão e pela crítica. Ainda afirma Orlandi (1999, p. 117)
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que compreender, na perspectiva discursiva, é conhecer os mecanismos pelos


quais se põe em jogo um determinado pro cesso de significação. Compreender é
saber que o sentido poderia ser outro (Orlandi, 1999, p.116).
Quando se pensa na formação do aluno -leitor, deve ser o nível da
compreensão o objetivo máximo a ser pretendido por meio das práticas de leitura
em sala de aula, visto que existe sempre a possibilidade de atribuir novos
significados ao texto, seja num contexto social ou temporal diferente, seja por um
olhar diferente do mesmo leitor por outra perspectiva. Citando Bakthin (In: SOUZA,
2002, p.21):
a tarefa de compreensão não se limita a um mero reconhecimento do
elemento usado, mas, pelo contrário, trata -se de compreendê-lo com
relação a um contexto específico e concreto; trata -se de entender seu
significado em termos de um enunciado específico, ou seja, trata -se de
compreender o elemento em termos de sua novidade e não apenas
reconhecer sua mesmice.

O aluno-leitor numa posição de analista poderá ter a noção mínima de que


a linguagem não é jamais inocente, não é uma relação com as evidências
(ORLANDI, 2005, p.95). Com esse olhar poderá abandonar uma leitura ingênua,
sabendo que o simbólico pode articular -se com o político e o ideológico.
Outrossim, é relevante compreender que um texto não é pleno e
transparente, mas incompleto e opaco, o que requer um olhar mais atento e a
contextualização do mesmo, pois o sentido é a história onde o sujeito se significa.
A linguagem, pois, não se dá como evidência, mas oferece -se como lugar de
descoberta (ORLANDI, 2005, p.96).
A concepção discursiva de leitura é interessante na m edida em que permite
ao aluno trabalhar sua própria história de leituras, assim como a história das
leituras dos textos e a história da sua relação com a escola e com o conhecimento
legítimo (ORLANDI, 1999, p. 37). Vista desse ângulo, a leitura não se limi ta à
decodificação ou a um único sentido, mas deve ser considerada enquanto um
processo de produção de sentidos a partir da qual o leitor atribui sentido(s) ao
texto. Dessa maneira, a escola também não deve excluir a relação do aluno com
outras linguagens na sua prática de leitura não -escolar.
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3. Prática de leitura de textos da esfera jornalística

Ler é familiarizar-se com diferentes textos produzidos em diferentes


esferas sociais – jornalística, artística, judiciária, científica, didático -
pedagógica, cotidiana, midiática, literária, publicitária, etc. Trata -se de
propiciar o desenvolvimento de uma atitude crítica que leva o aluno a
perceber o sujeito presente nos textos e, ainda, tomar uma atitude
responsiva diante deles.( DIRETRIZES CURRICULARES DE LÍNGU A
PORTUGUESA PARA OS A NOS FINAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL E MÉDIO DO
PARANÁ , 2008, p.36)

Diante dessa variedade de gêneros com os quais os alunos já têm contato


e devem ter acesso também nas aulas de Língua, neste projeto, optou -se pelos
textos de cunho jornalístico, numa perspectiva de leitura discursiva, considerando
esse gênero em sua estrutura, especificidade e complexidade, dentro de seu
contexto de produção. Importa também a análise dos elementos verbais e não
verbais presentes nos vários discursos que o compõem e outros constituintes de
sua significação.
Tendo em vista a variedade de tipos textuais que compõem um jornal
impresso, o foco foi a notícia, abrangendo todos os outros textos que se editam no
mesmo material impresso em função do assunto abordad o.
Numa perspectiva discursiva de leitura, teve maior relevância a natureza
sócio-histórica da produção jornalística. A leitura, portanto, não deixou de atentar
para os sentidos previstos, levando em conta os objetivos e finalidades da
publicação, a ideologia a ela subjacente e o leitor que se pretende atingir
(GRIGOLETTO, 2002, p.90).
O trabalho com textos noticiosos da imprensa escrita não objetivou uma
abordagem desse gênero com uma função utilitarista, como meio de se adquirir
habilidades lingüísticas, ou seja, um pretexto para o ensino de língua; nem
restringi-lo a sua função objetiva e referencial de linguagem; ou somente tê -lo
como motivação para despertar o interesse dos alunos pela leitura porque trata de
temas sociais atuais.
Acima de tudo, foi um importante objeto de análise, dentro de um universo
genérico, com o qual o aluno teve contato e pelo qual a escola pôde, durante esse
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trabalho, colaborar com a formação desse aluno -leitor, em condições reais de uso
da linguagem.
Segundo Carmagnani (2002, p .125) é importante num trabalho inicial
considerar que o texto de imprensa passa por várias etapas e pessoas antes de
sua publicação e leitura. Num resumo, a autora aponta a figura do redator do
texto, do editor ou editores, da edição de fotografia e da ed ição de arte. Portanto,
existe todo um trajeto para chegar ao produto final – o texto jornalístico. E a
análise desse texto ainda deve levar em conta a importância da notícia, o tipo de
texto e o público para o qual é destinado.
O jornal para muitos é um v eículo de informação segura e incontestável,
inclusive para nossos alunos, o que é uma visão ingênua, pois antes de tudo é um
produto de consumo que atende a interesses econômicos e, ao invés de
simplesmente informar, vende informação, juntamente com opini ão e ideologia.
Como afirma Carmagnani (2002, p.126), o jornal é pautado numa objetividade
aparente, separando fato de opinião, aquilo que os outros dizem e o que o jornal
pensa, buscando, através da variedade, camuflar a construção do consenso.
Assim sendo, o texto jornalístico não é apenas um conjunto de palavras que
visa informar, mas parte de um conjunto maior de significados, segundo a mesma
autora.
Analisando o texto jornalístico, foi dada especial atenção à linguagem
comum nos textos dessa natureza, porém, procurou-se discutir, refletir sobre seu
uso, o porquê da escolha lexical, os efeitos de sentidos que as construções
sintáticas provocam no leitor, bem como o uso de outros recursos, pois, no jornal,
o texto sempre é complementado pelos recursos vis uais que a ele se articulam.
Além desses aspectos de análise, quanto ao uso do jornal em sala de aula,
foram tomadas as indicações de Carmagnani (2002): a exploração do jornal, o
estudo dos elementos não lingüísticos, o estudo dos vários tipos de textos
utilizados pelo jornal e o estudo da materialidade lingüística.

3.1 Desenvolvimento metodológico: uma perspectiva discursiva


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Apoiado na perspectiva discursiva de leitura (ORLANDI, 1999; CORACINI,


2002), o trabalho em questão teve como meta apresentar uma proposta de leitura
de textos no gênero jornalístico, considerando o ir e vir entre teoria (princípios
teóricos da AD) e prática de análise de textos (em contexto de sala de aula de
língua portuguesa). Neste caso, interessava, de um lado, mobilizar conceit os
teóricos advindos do campo da AD para que se entenda a leitura como processo
discursivo e não como mero exercício de decodificação de um sentido literal,
preso ao texto.
Assim sendo, a intervenção deu-se por meio de uma metodologia voltada
para o desenvolvimento do aluno-leitor que pudesse, em contato com o texto de
imprensa escrita, tomá -lo como algo vivo, relacionado com um contexto social e
histórico e não apenas como objeto de estudos de língua ou no seu caráter
apenas referencial.
A natureza dessa pesquisa foi aplicada, pois se pretendia, a partir do que já
se observa na realidade de sala de aula (falta de interesse do aluno, leituras
superficiais e mecânicas, falta de métodos com bases teóricas do professor),
apoiando-se na teoria da Análise do Di scurso, interferir nas práticas de linguagem
que envolvem as aulas de leitura, buscando na Lingüística Aplicada a abordagem
metodológica da intervenção e na AD os subsídios teóricos iluminadores para esta
questão, a da leitura. .
Com essa base teórico -metodológica obtiveram -se os subsídios
necessários para implementação da proposta de abordagem do texto em
atividades de leitura, sem perder de vista a formação do aluno -leitor no que se
refere ao avanço de sua capacidade de compreensão.

3.2 Implementação da proposta na escola

O discurso noticioso, veiculado pelos diversos canais de comunicação,


atinge as diversas esferas sociais, seja pelos meios televisivos, radiofônicos ou
impressos. Dessa forma, o presente trabalho, levado à sala de aula, preocupou -
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se, não especificamente em saber “o que o aluno está lendo”, mas “como o aluno -
leitor tem lido” as diversas informações que lhe chegam pela mídia.
A proposta foi implementada no Colégio Estadual Antônio Dorigon – EFMP,
do núcleo de Pitanga, aplicado à 2ª sér ie do Ensino Médio. As atividades foram
desenvolvidas com textos do próprio jornal, não recortes apresentados pelos livros
didáticos, pois o material utilizado pretendia ser original e da forma mais atual
possível e o texto impresso, por sua materialidade escrita, propiciaria ao aluno
uma leitura mais atenta e reflexiva. Nesse intuito, tomou -se o jornal “Gazeta do
Povo”, de Curitiba, nossa principal fonte de leitura de textos.

3.3 Propostas de práticas de leituras articuladas a conceitos da Análise de


Discurso

Na seqüência de atividades que se seguem, há uma tentativa de trazer à


tona ao leitor as etapas do percurso desenvolvido durante o período de
implementação, sem perder de vista a concepção de leitura e discurso que
nortearam o trabalho. Nos entremeios, alguns registros das atitudes responsivas
dos alunos diante das atividades propostas, pois, em vários momentos, já que as
práticas de leitura tinham o objetivo de provocar a reflexão, eles se manifestaram
de forma oral e escrita, com gest os de interpretação e compreensão do discurso
presente nos vários textos.

A) O início das atividades de leitura deu -se com o texto “Bate-papo sobre a
mídia revela meninos em conflito com a notícia”, título de uma matéria que relata
uma conversa entre meninos que moram na Chácara 4 Pinheiros, região
metropolitana de Curitiba, com um grupo de jornalistas. Essa discussão produziu
um espaço de problematizações e reflexões quanto ao sentido que se tem
atribuído a tanta informação veiculada pelos meios de comunicação. Podemos
dizer que tal prática pode ser entendida como uma abordagem de leitura inicial a
partir de que o aluno entra em contato com o jornal (por meio de uma reportagem)
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e passa a pensar os sentidos, a partir de sua história de leitura. Alguns pontos


desta atividade inicial podem ser destacados conforme seguem abaixo:

(i) O texto tem que ser visto não somente como materialidade
lingüística fechada em si mesma, mas como parte de um processo
discursivo mais amplo. Assim, foi válido chamar a atenção dos
alunos-leitores para as declarações, na reportagem, de um
adolescente que critica as escolhas da imprensa quanto “ao que
deve” e “como deve” ser noticiado;
(ii) é relevante refletir com os alunos que o sujeito fala de um
determinado lugar social com relaçã o àquilo que considera
importante, ou seja, o sujeito não é livre para dizer o que quer, ou
seja, o sujeito sofre as coerções da sociedade na qual vive. O texto
jornalístico também reflete as exigências de seu campo, as regras da
linguagem e as formas de c ontrole que são sociais e históricas;
(iii) por fim, é válido pensar com os alunos que o texto produz um efeito
no leitor que também participa da instauração dos sentidos no texto e
não é indiferente à forma como os sentidos o afetam. O aluno, ao
atribuir sentidos ao texto, também pode refletir e marcar sua posição
a respeito do que deveria ser noticiado, mas não é e por que não é.

B) Trabalhou-se com a produção da notícia, considerando que nela está a


voz de seu redator, portanto, é a informação transformada, resignificada, fruto de
um processo de construção jornalística, variando conforme o meio de
comunicação que a transforma, segundo Biagi (2004).
As práticas de leitura desse primeiro bloco de textos envolveram um intenso
trabalho, como: a exploração das ma nchetes de primeira página do jornal, durante
uma semana; a manipulação do jornal, com o fim de tomar conhecimento de seu
formato, da gama de assuntos dos cadernos que o compõem; pesquisa sobre o
que envolve o processo de produção do jornal impresso (redaç ão e edição);
observância das propagandas e divulgação de eventos, reconhecendo o público
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alvo do jornal, ou seja, a quem ele se destina. Como amostra, seguem alguns
textos de alunos que, ao refletir sobre a função social da imprensa, marcam
posição quanto ao que deveria ser noticiado:
“Os jornais deveriam debater mais sobre os grandes problemas do país,
como a saúde e a fome”. (A . Karoline)

“Acho que deveriam ser mais noticiados os assuntos sobre educação,


projetos desenvolvidos por alunos de escolas est aduais. Também sobre
esporte feminino, pois é pouco noticiado. O caderno de esportes sempre
dá mais importância para o futebol masculino.” (Iasmin)

“Deveria ser noticiado algo que importasse mais para a sociedade como:
educação, lazer, esportes, e não tan ta tragédia e violência.” (Kleberson)

“Deveriam ser noticiadas não só as coisas ruins que acontecem com as


camadas sociais mais baixas, mas as coisas boas que eles também
fazem. Do jeito que o jornal mostra parece que coisas boas só
acontecem entre a classe média alta.” (Luan)

“O jornal deveria noticiar todas as versões de uma história, pois parece


que a ‘corda sempre arrebenta para o lado mais fraco’.” (Wagner)

Como se pode notar, nos textos acima está bem marcada a posição do
sujeito em cada discurso, de acordo com suas impressões pessoais acerca da
imprensa, da forma com que os textos foram -lhes produzindo sentido, como o
caso da menina que pratica futebol e gostaria que isso fosse mais valorizado pelo
meio jornalístico.
Conclui-se que as pessoas, de a lguma forma, avaliam o que é noticiado, de
acordo com o modo com que isso significa para cada um. Assim, o leitor vai
produzindo sentidos ao que lê.
Conhecer o jornal foi o primeiro passo para maior compreensão dos textos
que o compõem e a partir de ativid ades voltadas à exploração desse objeto em
seus elementos, tipos de textos e materialidade lingüística, foi dado enfoque
especial ao texto noticioso.

C) Entendendo o discurso jornalístico como subjetivo e complexo,


permeado de ideologia como todo uso da l inguagem, segundo Carmagnani:

A utilização de textos da imprensa em sala de aula não pode ser


justificada por sua simplicidade, facilidade ou pela variedade de
exercícios que pode propiciar, mas, sim, pelas possibilidades que oferece
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aos alunos de compreenderem as condições de produção desse tipo de


texto, discutirem seus sentidos possíveis, bem como questionarem suas
prováveis omissões, distorções e recursos argumentativos (2002, p. 123).

Além desse texto, um informativo e outro de opinião, respectivame nte, foi


apresentando um breve histórico do jornal impresso e o papel social do jornal e da
mídia em geral. Nesse sentido, entendemos que é válido pensar a relevância do
jornal que ocupa um lugar socialmente legitimado para produzir sentidos, construir
identidades e mobilizar memórias.
Nessa perspectiva, de possibilitar uma maior compreensão da produção do
texto jornalístico, bem como de seus efeitos de sentido, foi proposta a leitura do
texto a seguir, no qual a empresa jornalística também promove sua próp ria
imagem, utilizando recursos lingüísticos, conforme o efeito de sentido que se quer
produzir no leitor, a partir de uma imagem do interlocutor que se projeta no texto.
Assim, o estudo das condições de produção pautou -se num imaginário discursivo
constituído pelas imagens que:
a) o jornal Gazeta do povo faz de si mesmo;
b) o jornal Gazeta do povo faz do seu leitor;
c) O jornal Gazeta do povo faz do referente do discurso (a informação).

“Se o mundo
já é cruel
com quem
não se
atualiza
imagine com
quem não
tem opinião
Nos editoriais e nas colunas da Gazeta do Povo o leitor encontra os mais
diferentes pontos de vista sobre os acontecimentos e fatos. De maneira
ousada, criativa e corajosa, a Gazeta do Povo oferece a matéria -prima
necessária para quem quer formar opi nião. E, como toda opinião,
você pode discordar. Só não pode deixar de ler. ” (Gazeta do povo,
15/10/07)

A abordagem desse texto, em sala de aula, deu -se por meio da participação
oral dos alunos, que, de forma coletiva, dispensando as tradicionais pergunta s e
respostas, como sugere Carmagnani (2002, p. 125), naquele momento, foram
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analisando os seguintes aspectos do texto que se relacionam às imagens que o


jornal constrói de si, do leitor e do referente:
(i) em relação à imagem do Jornal, discutiu -se sobre o sentido recorrente
de que a Gazeta é um jornal completo, diversificado, amplo, criativo, ousado,
fazendo acionar uma memória de que a informação é fundamental em nossos dias
ou de que não basta só informação, mas é preciso ter opinião formada;
(ii) em relação à imagem do leitor, considerou -se o trabalho da memória
que faz retornar sentidos de que o jornal é um material indispensável para quem
não quer ficar à margem da sociedade, a partir de um imaginário discursivo de que
quem lê jornal, tem assunto, é informado, está “por dentro do que está em
evidência”, compreende os problemas atuais;
(ii) em relação à imagem do referente discursivo, a questão da informação
ou de ter opinião, sem perder de vista a materialidade lingüística, ter opinião é
relevante para nosso mundo atual.
Vale destacar que, em todos os momentos da leitura, foi dada atenção aos
recursos lingüísticos utilizados no texto, a partir da força persuasiva das palavras
postas em cena para produzir certos efeitos de sentido e não outros, além d o uso
da forma do imperativo quando o jornal dirige -se ao leitor.

D) A constatação de que o jornal prioriza algumas notícias e dá menos


importância a outras é um aspecto que interessa ser discutido com os alunos,
conforme orienta Carmagnani:
Levando-se em conta que o jornal não é um veículo de informações,
mas, sim, um objeto de consumo que concentra leituras do mundo feitas
a partir de uma perspectiva, num contexto social específico, vale discutir
com os alunos as possíveis razões que tornam uma notícia mais
importante do que outras num determinado momento histórico. (2002, p.
126)

Com esse intuito, foi proposta a leitura do texto abaixo, publicado na Gazeta
do Povo, em 15/10/07:
“Abandono

Recém-nascido é encontrado morto em um saco plástico dentro de


armário
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São Paulo – Um recém-nascido foi encontrado morto dentro do armário


de uma casa em Atibaia (60 km ao norte de São Paulo) na sexta -feira. De
acordo com a Secretaria de Segurança Pública, o bebê estava dentro de
um saco plástico, ainda com o cordão u mbilical e com restos de placenta.
A criança foi encontrada pela suposta avó, que chamou a polícia. Uma
auxiliar de costura de 23 anos, que seria a mãe da criança, foi levada
para o hospital pela vizinha e pela irmã na noite de quinta -feira passada,
com sangramentos e hematomas.
Ela havia sido internada na Santa Casa de Atibaia, onde os médicos
verificaram que seu útero apresentava características de gravidez. Por
esse motivo, a avó e a polícia começaram a procurar a criança.
A auxiliar de costura negou qu e estava grávida.
Segundo a Secretaria de Segurança Pública, a mãe estaria no sexto ou
sétimo mês de gestação e a ocorrência foi registrada como aborto
natural. Ela prestará depoimento à Polícia Civil de Atibaia amanhã.

Outros caso de crianças abandonadas foram registrados nas últimas


semanas. (...)

Em Itapetininga (163 km a oeste de São Paulo), um recém -nascido foi


encontrado morto no sábado. De acordo com informações da polícia,
uma pessoa viu um cachorro carregar na boca o corpo do bebê, ainda
com parte do cordão umbilical e com sinais de perfuração com faca.

Em outro caso, outra menina foi encontrada na terça -feira passada dentro
de uma lata de lixo, em Taboão da Serra, em São Paulo. Ela foi internada
em estado grave. (...)”

Os alunos puderam observar, no próprio jornal, que essa notícia não estava
mencionada na primeira página no dia de sua edição, na medida em que não
veio acompanhada de imagens. Ou seja, a partir dela não houve publicações
posteriores, reportagens, entrevistas, nem textos de opinião. É um texto noticioso
clássico, onde a representação do real é transformada pelo discurso de quem o
redigiu (padronizada, simplificada, objetiva), produzindo efeitos de sentido em seu
interlocutor.
Segundo Orlandi (1999), ler é atribuir sentidos. O sentido que damos ao
que lemos está ligado à nossa história de leitura, à nossa posição de sujeitos
histórica e ideologicamente constituídos.
Como atividade, a fim de provocar uma maior reflexão sobre o texto, foram
propostas as seguintes questões para serem debatidas em grupos:
1. “O que” é noticiado e “como” é noticiado? Em que medida o título da
notícia constrói uma imagem da mãe?

2. A notícia privilegiou um fato e complementou com outros similares. O


fato em si já é suficiente para produzir sentidos, uma vez que se choca
16

com o imaginário ideologicamente estabelecido da “figura da mãe”.


Diante dos fatos, quem é o alvo de condenação pela opinião pública?
Quais as posições que estão em jogo?

3. Veja como no primeiro caso que é descrito com mais detalhes, as


envolvidas são somente mulheres. Onde está a figura masculina?

4. O que representa para você esses casos de abandonos noticiados na


Gazeta ?

Tendo em vista essas questões de ordem discursiva, foram trabalhadas


algumas construções fundamentais no texto. Tomando -se como base o papel das
construções no texto, discutimos algumas representações que mobilizam um já -
dito (um espaço de memória).
:
(i) o bebê estava dentro de um saco plástico, ainda com o
cordão umbilical e com r estos da placenta - o efeito de sentido
que se produz aponta para a representação de descuido, de
abandono em relação a um ser tão indefeso, culpa que recaí sobre
a mãe (figura feminina).
(ii) uma pessoa viu um cachorro carregar na boca o corpo do
bebê, ainda com parte do cordão umbilical e com sinais de
perfuração com faca - mais uma vez o sentido recorrente é de
abandono, displicência, violência, o que desconstrói a imagem de
mãe que cuida, que zela pelo recém -nascido, que busca por
assistência médica o mais adequada possível.
(iii) Em outro caso, outra menina foi encontrada na terça -feira
passada dentro de uma lata de lixo, em Taboão da Serra, em
São Paulo - o jornal não somente informa sobre a criança
encontrada no lixo, mas participa da construção de uma
representação de abandono total às crianças, de banalização da
vida humana, na medida em que o lixo na nossa memória é lugar
do que não tem mais serventia.

Como produto de reflexão e debate em torno da notícia, foram registradas


as opiniões dos alunos, das quais seguem algumas amostras:
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1. “O alvo de condenação é a mãe, pois a sociedade espera que a mãe


seja cuidadosa, amorosa, atenciosa, mas essa mãe fez tudo ao contrário,
abandonando a criança. Se ela não queria ou não tinha condições, por
que não deu o filho para adoção? Pois tem muita gente que quer ter e
não consegue.” (Raquel)

2. “Muitas dessas mulheres não têm condições financeiras e emocionais


de criar uma criança, não têm apoio familiar e não há a presença do pai.”
(Carina)

3. “Normalmente a figura mas culina está isenta destes tipos de casos,


porque a sociedade não cobra o papel do pai.” (Aline)

4. “A mãe é o alvo principal, pois na sociedade em geral a figura materna


exerce grande importância na vida e na formação de uma criança e o fato
da mãe abandonar seu filho vai contra tudo que se é esperado dela.”
(Rafael)

5. “Uma coisa que deveria ser considerada uma tragédia, já virou uma
notícia comum nos dias de hoje, que ninguém se importa, e que nem a
mídia, nem o jornal dão tanta importância a esses fa tos, a não ser
quando acontece com gente rica.” (Rafael)

6. “O alvo central é a mãe e as posições que estão em jogo são aquelas


que nós ideologicamente temos da figura de mãe: ter amor por seus
filhos, cuidar deles quando nascem e quando estão doentes.”
(Joaberson)

E) Todo dizer, por mais que varie na forma, normalmente retorna ao já dito,
ou seja, os sentidos se repetem de forma historicamente cristalizada, isto é,
parafrasticamente. A paráfrase é a estabilidade do sentido. A polissemia reside no
deslocamento, na ruptura, na possibilidade do sentido ser outro. A paráfrase e a
polissemia estão presentes no dizer e na interpretação desse dizer, segundo
Orlandi, (1999). A autora também diz que:
A interpretação se faz, assim, entre a memória institucional (arquivo) e os
efeitos da memória (interdiscurso). Se no âmbito da primeira a repetição
congela, no da segunda a repetição é a possibilidade mesma do sentido
vir a ser outro, em que presença e ausência se trabalham, paráfrase e
polissemia se delimitam no m ovimento da contradição entre o mesmo e o
diferente. (ORLANDI, 2004, p. 68)

O discurso sobre casos de abandono de bebês remete a essa ruptura com


o que historicamente está estabelecido, pode -se designar como um ato
polissêmico, pois contradiz o imaginári o de que “mãe cuida, protege”.
Nas “charges” dos jornais percebe -se muito bem o sentido polissêmico, que
é característico nesse gênero, onde, no jogo da linguagem, há o movimento dos
18

sujeitos e dos sentidos. A discursividade do texto não está somente no verbal,


pois toda a ilustração faz parte do jogo de significação.
Foi proposta para os alunos a leitura de uma charge muito interessante, do
cartunista paranaense Benett, a propósito dos abandonos de bebês, produzindo
um diálogo com os textos notici ados. Nessa charge, aparece a frase “Jogue lixo
no lixo” e os recipientes próprios para “orgânico”, “papel” e “plástico”. A paráfrase
é rompida com a presença de um “novo lixo”. A polissemia se instaura pela
inscrição de um recipiente, decorado com motivos infantis, destinado aos bebês
abandonados, com a inscrição “recém -nascido”. Isso produz um efeito chocante e
provocativo na medida em que a grande incidência de casos de abandono traz
como conseqüência a introdução de mais um reservatório, além dos outro s já
existentes. A referida charge pôde ser conferida pelos alunos no endereço:
htps://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/blog/salmonelas/?mes=200711.
Além da análise da charge proposta, foram feitas leituras de outras charges
e tiras, de exemplares de jorn al, com as seguintes questões:
A produção de uma charge não se dá isoladamente, está sempre ligada
ao momento histórico. Selecione charges de jornais e traga para a sala
de aula para análise, considerando:

a) as condições de produção: o que se vê de for ma imediata e o que se


pode interpretar num sentido mais amplo (memória de outros discursos,
posição ideológica, contexto sócio -histórico).

b) o movimento entre paráfrase e polissemia.

Analisando as condições de produção de várias charges e tiras, os alunos


produziram textos de análise, conforme as interpretações que produziram, como
se nota pelos exemplos:
1. “a) sentido imediato: dois homens pobres, moradores de rua,
conversando, caracterizados com roupas rasga das. Um pergunta para o
outro o que ele acha sobre toda essa discussão sobre células -tronco, e o
outro responde que não sabe porque nunca comeu.

b) sentido amplo: ele não entende do assunto porque está fora do seu
contexto e pra ele o que importa é comid a.

c) a polissemia está nos diferentes sentidos que um assunto pode ter


para várias pessoas. “(A . Karoline)
19

2. “a) sentido imediato: os personagens são Lula e Dilma, eles estão em


uma sala de aula, possui falas, sendo que o Lula é professor e está
ensinando como a aluna Dilma deve agir.

b) sentido amplo: a crítica seria que quando há algum escândalo ele


nunca sabe de nada e quando acontece alguma coisa boa, nunca tinha
acontecido antes nesse país. Como ele sempre diz isso, está tentando
ensinar a Dilma para que quando ela se torne presidente do Brasil,
continue a falar como ele porque dá um alto ibope. A ideologia da charge
é a de que para ser um bom presidente deve -se ficar longe dos
escândalos e perto das coisas boas que acontecem no país.

c) a charge é polissêmica, pois em vez de ensinar maneiras de governa


para sua sucessora, está ensinando o que ele fala: “Eu não sabia”,
“Nunca antes nesse país”. (Karina)

3. “a) sentido imediato: o que se vê é o presidente Lula com um saco de


dinheiro nas costas, dizendo que se cortarem o programa assistencialista
(CPMF) ele não sabe como ele e seus companheiros de trabalho vão
viver.

b) sentido amplo: assim como existe a bolsa -família para o povo, existe a
bolsa-CPMF para os políticos. Lula não consegue imag inar o que seria
deles sem isso.

c) há polissemia na charge porque geralmente o que vemos é a bolsa -


família que é para o povo, então aparece a CPMF que é um imposto que
deverá ser voltado para o povo, no entanto, torna -se uma bolsa-CPMF
para os políticos. (Aline)

4. “a) sentido imediato: a charge mostra o atual presidente do Brasil


(Lula) e o ex-presidente (FHC). O Lula está caracterizado como mestre -
cuca, preparando uma massa de pizza e o Fernando Henrique trazendo a
farinha (no pacote tem uma frase b em conhecida popularmente “farinha
do mesmo saco”) e o Lula estava dizendo “passe a tapioca”.

b) essa charge é uma crítica social que nos faz lembrar do escândalo da
compra de uma simples tapioca com cartão corporativo do governo. Que
aconteceu no governo Lula e também já acontecia na época do FHC. Ela
mostra que isso teve uma repercussão, mas tudo acabou em “pizza”, ou
seja, nada foi resolvido.

c) é um movimento polissêmico porque isso deveria ser resolvido e acaba


caindo no esquecimento como mostra a c harge “tudo acaba em pizza” e
não são punidos os verdadeiros culpados. Na verdade é um discurso
figurativo que nos faz pensar no que acontecia também no governo
passado e a pessoa tem que estar contextualizada, informada
politicamente para interpretá -lo”. (Joaberson)

F) Segundo Orlandi (2004, p. 100), todo gesto de interpretação é


caracterizado pela inscrição do sujeito (e de seu dizer) em uma posição
ideológica, configurando uma região particular no interdiscurso, na memória do
20

dizer. Portanto, não se s epara o discurso do sujeito nem o sujeito da ideologia.


Conforme a mesma autora diz:
(...)a forma da interpretação – leia-se: da relação dos sujeitos com os
sentidos – é historicamente modalizada pela formação social em que se
dá, e ideologicamente constituída. (...)Não há sentido sem interpretação,
e a interpretação é um excelente observatório para se trabalhar a relação
historicamente determinada do sujeito com os sentidos, em um processo
em que intervém o imaginário e que se desenvolve em determinadas
situações sociais. (ORLANDI, 2004, p. 146).

Pensando dessa forma, conclui -se que não há discurso neutro nem
interpretação neutra. Tanto o discurso quanto a interpretação estão
ideologicamente marcados.
Orlandi (1999), afirma que todo dizer é ideologicamen te marcado. É na
língua que a ideologia se materializa. Nas palavras dos sujeitos. O discurso é o
lugar do trabalho da língua e da ideologia. Mas no discurso, a ideologia não
funciona como ocultação da realidade, mas condição necessária para a
constituição do sujeito e do sentido.
Norteadas por essa linha, as propostas de leitura que se seguiram, após a
leitura de dois textos sobre discurso -ideologia-inconsciente, buscavam a
observação da ideologia presente em textos como piadas ou frases feitas que
circulam socialmente:
1. Relacione algumas expressões ou frases feitas , usadas
cotidianamente e identifique nelas as formações ideológicas às quais se
filiam. Ex.: “mulher gosta de apanhar” (posição machista), “homem não
chora” (idem)

2. Selecione algumas piadas e identifique a formação ideológica presente


no discurso.

3. Discuta a afirmação de que “inconsciente e ideologia não são


deliberações voluntárias”.

Como exemplo, mencionam -se a seguir, alguns textos que os alunos


apresentaram:
1. Exemplo de ideologia feminista:
“- Por que um homem não pode ter bom caráter e inteligência ao mesmo
tempo?
- Porque assim seria uma mulher.”
“O homem é um ser tão dependente que até pra ser corno precisa da
ajuda da mulher.”
21

2. “Um velhinho, de uns 82 anos, dirigindo um pors che, chega em uma


loira e diz:
- Casa comigo... sou rico, bem sucedido e tenho boa saúde!
- Não quero casar com o senhor!
- Ué, por que não?
- Por causa da boa saúde!” (ideologia materialista e ideia de que as loiras
são interesseiras)

3. Exemplos de ideologia machista no discurso:


“Mulher só é fiel à moda.”
“Existem dois tipos de mulheres: as bonitas, as inteligentes e a maioria.”
“O que é uma mulher? O motor de uma vassoura.”
“Qual é o feminino de : Deitadão no sofá, vendo TV?
R: Em pezona na pia, lava ndo louça.”

4. Exemplo de ideologia racista:


“A semelhança entre uma negra grávida e o Brasil é que ambos terão um
futuro negro.”

Quanto à questão sobre inconsciente e ideologia, não se pretendia uma


reflexão mais profunda por parte dos alunos, mas provo cá-los para a pensar no
assunto, após a leitura de dois textos filosóficos. Aqui fica registrada uma das
reflexões que fizeram:
“O inconsciente, como o próprio nome já diz, ele não é voluntário. Por
exemplo, ao fazermos algo por instinto, estamos ultrapass ando as
barreira da consciência, praticando uma ação de forma inconsciente.
A ideologia é a forma de pensar de um indivíduo ou grupo social,
dependendo, além de tudo, do meio social e cultural do mesmo, ou seja,
também não é algo voluntário.” (Letícia – uma aluna que pretende ser
jornalista)

G) Entre as práticas de leitura propostas houve articulação e continuidade,


retomadas de textos já trabalhados, considerando o diálogo que havia entre os
mesmos. Seguiram-se outras atividades de leitura, norteadas pe lo conceito de
ideologia e discurso. Como a leitura de textos publicados no jornal da Gazeta do
Povo, em torno de um mesmo tema: o aborto, dos quais foi feita posteriormente a
análise, enfocando discurso e ideologia.
A publicação dos vários textos foi de corrente da polêmica declaração do
governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, em 24/10/07, quando apontou a
gravidez indesejada como sendo um dos grandes motivos da violência no país.
Ele defendeu o aborto como uma forma de diminuir o problema e disse qu e a
natalidade nos morros cariocas é uma “fábrica de produzir bandidos”.
22

Eis um fragmento do editorial da Gazeta do Povo, onde fica bem marcada a


posição do jornal quanto ao assunto e à declaração do governador:
“Demonstração de preconceito

O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, deu inequívoca


demonstração de preconceito quando disse, na quarta -feira, que a favela
é “fábrica de produzir marginal” e que a prática do aborto seria uma forma
de reduzir a violência. Suas declarações são de extrema infe licidade.

Antes de mais nada, porque a interrupção da gravidez, expressão


eufemística usada por Cabral para se referir ao aborto, é a violência
manifestada em uma de suas formas mais graves, uma vez que a vítima
não tem qualquer oportunidade de defesa.
(...)
A sugestão de Cabral não passa de eugenia social – ainda mais perversa
que a eugenia biológica, embora ambas sejam injustificáveis. Enquanto
na eugenia biológica é certo que determinada criança terá uma doença
genética que a tornaria, aos olhos dos eug enistas, indigna de viver, na
eugenia social de Sérgio Cabral a criança pobre deve ser eliminada pela
simples possibilidade de ver a ser um bandido no futuro.
No entanto, assim como em nenhum sistema jurídico decente se
condena à morte um réu sem certeza a bsoluta de sua culpabilidade, uma
sociedade dotada de bom senso não deveria eliminar inocentes
indefesos só porque podem, um dia, cometer um crime. (...)
Editorial da Gazeta do Povo, em 27/10/07”

A publicação do editorial desencadeou a produção de divers os textos de


leitores, dos quais os alunos tiveram a oportunidade de fazer a leitura, cientes de
que o jornal é responsável pela seleção dos textos publicados, e interessa saber
que, curiosamente, entre os textos publicados, a maioria trazia opiniões cont rárias
ao aborto e favoráveis à opinião expressa no editorial.
Em cada discurso vem marcada a posição sobre o aborto, pois o sujeito ao
dizer se diz (ORLANDI, 1999) e seu discurso decorre de sua formação discursiva,
de seu lugar social, enfim, de tudo que o constitui como sujeito. No texto do
editorial, bem como nas cartas, aparecem posições como: o direito de escolha, o
direito à vida, o discurso democrático, o discurso religioso, o discurso laico, o
preconceito de classe social e outros. Os textos foram analisados, sem o intuito de
entrar no mérito da questão de ser contra ou a favor do aborto, mas de perceber a
posição de cada um implícita em seu dizer, resultado da inscrição do dizer do
sujeito em uma formação discursiva e ideológica.
23

4. Considerações finais

Durante a implementação da proposta, pretendeu -se desenvolver


primeiramente a formação do próprio docente como leitor/conhecedor do gênero
jornalístico em sua estrutura e complexidade pelo contexto de produção que o
envolve e que reflete na sua constituição de significados.
Assim, as atividades foram organizadas dentro de uma proposta discursiva,
tendo como foco a formação do aluno -leitor por meio de experiências reais de uso
da linguagem, numa proposta de questões abertas, discussões, debates, entre
outras, avaliando a reflexão que o aluno faz a partir do texto, conforme indicam as
Diretrizes Curriculares da Educação do Estado do Paraná (2008).
Tais práticas tiveram sua maior ênfase na leitura, considerando que “o
jornalismo sempre foi e sempre será uma atividade especializada” (LAGE, 1993,
p.52). Não foi, pois, pretensão do presente trabalho aprofundar -se em uma
produção que requer uma formação mais específica. Bastou o ingresso do aluno
como leitor, pois o objetivo maior não era a produção d e jornais na escola, mas a
grande preocupação foi contribuir para a formação do aluno -leitor, em sua
competência genérica.
O trabalho foi avaliado no decorrer de sua implementação, com registro e
descrição das atividades desenvolvidas, acompanhando as atit udes responsivas
dos alunos diante do que foi proposto.
Faz-se necessário observar que houve muitas dificuldades encontradas no
percurso – entre teoria, metodologia e prática – considerando que, em um
processo que envolve seres humanos e suas diversidade s, não há como se ter
resultados totalmente previsíveis e mensuráveis.
Pode ser que o jornal impresso perca definitivamente seu espaço de
circulação social, sendo substituído pela mídia eletrônica, como já vem ocorrendo.
Mas, enquanto isso não acontece, el e está aí e deve ser tomado como objeto de
estudo, pois, mesmo mudando sua forma de veiculação, seus moldes e sua
natureza de meio de comunicação de massa permanecem e um leitor bem
informado terá condições de diferenciar informação de manipulação.
24

A experiência, aqui relatada, aponta para a prática discursiva da leitura


dentro de uma “perspectiva de trabalho em que a linguagem não se dá como
evidência, oferece-se como lugar de descoberta. Lugar do discurso.” (Orlandi,
2005, p. 96).

5. Referências

CARMAGNANI, A . M. G. Por uma abordagem alternativa para o ensino de leitura:


a utilização do jornal na sala de aula. In: CORACINI, M. J.(org.) O jogo
discursivo na aula de leitura . Campinas: Pontes, 2002.

CORACINI, M. J. Leitura: decodificação, processo discu rsivo...? In: CORACINI, M.


J.(org.) O jogo discursivo na aula de leitura . Campinas: Pontes, 2002.

GRIGOLETTO, M. A concepção de texto e de leitura do aluno de 1º e 2º Graus e o


desenvolvimento da consciência crítica. In: CORACINI, M. J.(org.) O jogo
discursivo na aula de leitura . Campinas: Pontes, 2002.

Jornal Gazeta do Povo. Curitiba, edições de 15 e 27/10/07.

LAGE, N. Estrutura da notícia. São Paulo: Ática,1993.

MENEZES, G.; TOSHIMITSU, T.; MARCONDES, B. Como usar outras


linguagens na sala de aula . São Paulo: Contexto, 2003.

ORLANDI, E. P. Discurso e leitura. Campinas: Cortez, 1999.

__________.Análise do Discurso: princípios e procedimentos . Campinas:


Pontes, 2005.
25

__________.Interpretação. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico .


Campinas: Pontes, 2004.

PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes Curriculares de Língua


Portuguesa para a Educação Básica do Paraná . Curitiba: SEED, 2006.

PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes Curriculares de Língua


Portuguesa para os a nos iniciais do Ensino Fundamental e Ensino Médio .
Curitiba: SEED, 2008.

SOUZA, L. M. T. M. de. O conflito de vozes na sala de aula. In: CORACINI, M.


J.(org.) O jogo discursivo na aula de leitura . Campinas: Pontes, 2002.

Referências on line

BIAGI, Orivaldo Leme. Imprensa, história e imagens: questões sobre a


cobertura das guerras da Coréia (1950 -1953) e do Vietnã (1964 -1973). Revista
de História Regional, inverno 2004 . Disponível em www.revistas.uepg.br. Acesso
em 13/12/2007.

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