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SEGUNDA PARTE 8 A PALAVRA FALADA Fion po MAL? Eis a transcrigio de um trecho de um programa po- pular de disk-jockey: z i estd Patty so. @ vejam ao a menina, dangam aque s+» Old Fredy i" ser um negdéclo... como é que val essa ap! Daqul @ pouco estaremos naquela aquela brasa. .. eu também estou aqui, déem uma © miximo.,. um ... © [préprio: a hora af, meu velho... vinte e uma tamos em cima... bola fren- gosto... Oba obs ald... 1151, WaAlnut 35-1151 ¢ diver wo ar em Disco ¢ que cu 3 z if E afi Ff pre role &: be oo 2 anf ig Fe [ i i ej & Dave Mickie geme, grunhe, rebola, canta, trautela, en- toa, corre, sempre reagindo as suas préprias agies. Ele Se move quase que intelramente na drea da experiéncia fa- @ nfo da esorita, criando, desse modo, a participaglo da audiéncia, A. palavra falada envolve todos ox sentidos intensamente, embora as pessoas altamente letradas tenclam : falar de maneira tio concatenada ¢ natural quanto lhes Possivel. © natural envolvimento dos sentidos nas cul- oS turas onde a palavra escrita nao é da camo nest Q a néo € a norma vem 4s vezes indicado i sticos, ° . guia da Grécia: eel cela Quando se observa a auséncia da pesada pressio da cultura escrita numa cultura, ocorre uma outra forma de envolvimento sensério e de apreciagdo cultural. como ex- plica espirituosamente nosso guia grego. Qs caracteres francamente divergentes das palavras 5- crita e falada podem hoje ser mais bem estudados, gra¢as ao contato mais intimo que hoje temos com as culturas pré-letradas. Um nativo — o unico alfabetizado de seu gt po — falando da sua fungdo de leitor de cartas para 0S outros, disse que se sentia impelido a tapar os ouvidos com os dedos, durante a leitura, para néo violar a intimidade das cartas. Trata-se de um testemunho interessante dos Va Wéres da intimidade alimentados pela pressio visual da es crita fonética. Uma tal separagio dos sentidos. @ do indi- 96 viduo em relagdo ao grupo, dificilmente pode ocorrer sem a influéncia da escrita fonética. A palavra falada nao per- mite a extensio e a amplificagdo da forga visual requerida para os hdbitos do individualismo e da intimidade. E esclarecedor o confronto entre a natureza da palavre falada e da sua forma escrita. Embora a escrita fonética separe e prolongue a forca visual das palavras, ela o faz de maneira relativamente lenta e rude. N&o hd muitas ma- neiras de se escrever “noite”, mas Stanislavsky costumava pedir aos seus jovens atores que a pronunciassem em cin- qiienta modos e variantes diferentes, enquanto a audiéncia ia registrando os diferentes matizes de sentimentos e signi- ficados expressos por eles. Mais de uma pdégina em prosa e mais de uma narrativa tém sido dedicadas a exprimir 0 que nao € sendo um solugo, um gemido, um riso ou um grito lancinante. A palavra escrita desafia, em seqiiéncia, o que é imediato e implicito na palavra falada. Além disso, ao falar, tendemos a reagir a cada situa- cio, seguindo 0 tom e o gesto até de nosso préprio ato de falar. J4 o eserever tende a ser uma espécie de ag&o sepa- rada e especializada, sem muita oportunidade e apelo para a reacio. O homem ou a sociedade letrada desenvolve uma enorme forca de atengéo em qualquer coisa, com um con- siderdvel distanciamento em relacgéo ao envolvimento sen- timental e emocional experimentado por um homem ou uma sociedade néao-letrada. O filésofo francés Henri Bergson viveu e escreveu den- tro de uma tradigio de pensamento que considerava a lin- gua como uma tecnologia humana que debilitou e rebai- xou os valores do inconsciente coletive. E a projegéo do homem na fala que permite ao intelecto destacar-se da vas- tidao real, Bergson sugere que, sem a linguagem. a inteli- géncia humana teria permanecido totalmente envolvida nos objetos de sua atencdo. A linguagem 6 para a inteligéncia © que a roda é para os pés, pois Ihes permite deslocar-se uma coisa a outra com desenvoltura e rapidez, envol- vendo-se cada vez menos. A linguagem projeta e amplia © homem, mas também divide as suas faculdades. A cons- 9 ciéncia coletiva e o conhecimento intuitive ficam diminul- dos por esta extensio técnica da consciéncia que € 4 fala. ; Em A Evolugado Criativa, Bergson afirma que 4 pré- pria consciéncia é uma extensio do homem que obscurece a felicidade da uniao no inconsciente coletivo. A fala se- para o homem e a Humanidade do inconsciente cdésmico. Como extens&o, manifestacgdo ou exposigao de todos os nos- sos sentidos a um sé tempo, a linguagem sempre foi consi- derada a mais rica forma de arte humana, pois que a dis- tingue da criagdo animal. Se o ouvido humano pode ser comparado ao receptor de radio, capaz de descodificar as ondas eletromagnéticas e recodificd-las como som, a voz humana pode ser compa- rada ao transmissor de radio, ao traduzir o som em ondas eletromagnéticas. O poder da voz em moldar o ar e 0 espaco em formas verbais pode ter sido precedido de uma expressao menos especializada de gritos, grunhidos, gestos e comandos, de cancdes e dancas. As estruturas dos sen- tidos projetadas nas varias linguas sao tio diversas como os estilos na moda e na arte. Cada lingua materna ensina aos seus usudrios um certo modo de ver e sentir o mun- do, um certo modo de agir no mundo — e que é tinico. Nossa nova tecnologia elétrica, que projeta sentidos e nervos num amplexo global, tem grandes implicagdes em relacéo ao futuro da linguagem. A tecnologia elétrica ne- cessita téo pouco de palavras como o computador digital necessita de nimeros. A eletricidade indica o caminho para a extensio do préprio processo da consciéncia. em escala mundial e sem qualquer verbalizacdo. Um estado de cons- ciéncia coletiva como este deve ter sido a condicio do homem pré-verbal. A lingua, como tecnologia de extensdo humana, com seus conhecidos poderes de divisio e sepa ragio, deve se haver configurado na torre de Babel pela qual os homens procuraram escalar os céus. Hoje os com- putadores parecem prometer os meios de se poder traduzit qualquer lingua em qualquer outra, qualquer eédigo em outro cédigo — e instantaneamente. suma, o compu: tador, pela tecnologia, anuncia o advento de uma condigao pentecostal de compreenso e unidade universais. -O pré- ximo passo ldgico seria, no mais traduzir, mas superar as linguas através de uma consciéncia césmica geral, muito semelhante ao inconsciente coletivo sonhado por Bergson. A condigéo de “imponderabilidade”, que os bidlogos to- mam como promessa de imortalidade fisica, pode ser acom- panhada pela condicao de “infalibilidade”, que asseguraria a paz e a harmonia coletiva e perpétua.

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