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Publicado em eGov UFSC (hitp:www.egov.utse.briportal) Inicio > As agbes afrmatvas como efetivagéo do principio da igualdade As agées afirmativas como efetivagao do principio da igualdade Pormarina.cordeiro(1|-Postado em 20 junho 2012 Autores: COLIVEIRA, Giovanni Campanha de A situagao de marginalizagao em que se encontram os negros, mulheres, deficientes e homoafetivos nao se baseia em retérica, mas em dados alarmantes. Um pais que tem como objetivo fundamental a construcao de uma sociedade livre, justa e solidaria néo pode se esquivar de intervir diretamente nesses problemas sociais. 1. INTRODUGAO A Constituigao brasileira de 1988, assim como outras Constituigdes de democracias consolidadas pelo mundo, tem como principio a igualdade. Esta é alicerce para todos os direitos humanos, Nao ha que se falar ‘em democracia sem se ter como fundamento o principio da igualdade. Em nosso ordenamento juridico, 0 principio supracitado esta inserto no art. 5°, caput, que prescreve: “Todos sao iguais perante a lel, sem distingdo de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade do direito a vida, a liberdade, a igualdade, a seguranca e a propriedade (...)", além de estar previsto no art. 3°, inciso IV, que coloca como fundamento da Reptblica a promogao do "bem de todos, sem Preconceito de origem, raga, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminagao conceito de igualdade, assim como os outros conceitos cientificos, evolui com o tempo. A igualdade defendida pelo liberalismo era a igualdade formal, que tinha como fim abolir os privilégios existentes na prépria lei. Os liberais defendiam que todos deveriam ser iguais perante a lei, possuindo os mesmos direitos garantidos no ordenamento juridico. Com o passar dos anos, com a evolucdo da sociedade e dos seus anseios, a igualdade meramente formal passou a ser insuficiente, O principio da igualdade passou a conter a previsdo de acées que 0 afirmasse, que o tornasse efetivo néo apenas na letra da lei, mas também na realidade fatica. Nesse contexto, surgi a igualdade material, que visa garantir a justica social, proporcionando a igualdade de oportunidades, bem como condigées reais de vida. Ademais, passou-se a nao mais reconhecer apenas uma igualdade estética, negativa, mas uma igualdade dinamica, positiva, que possui a intrinseca missao de promover uma igualagao juridica. Assim, comegou-se a exigir nao apenas 0 tratamento igual ao igual, mas o desigual aos desiguais na medida de sua desigualdade A prépria existéncia de um principio constitucional que garante a igualdade em nosso ordenamento juridico jd nos leva a concluir que existem desigualdades. Por isso, cabe ao poder piblico criar mecanismos que fagam com que essas desigualdades sejam atenuadas, Dentre esses mecanismos, estéo as ages afirmativas. Tais agSes séo, grosso modo, instrumentos criados pelo poder pubblico que, de forma transitéria, visam cortigir deformagoes sociais, tentando incluir socialmente os grupos taxados como minorias, tais como negros, mulheres, homoafetivos, portadores de deficiéncia fisica objetivo principal do presente trabalho é fazer uma andlise da legitimidade das ages afirmativas por meio do principio da igualdade. Para tanto, sera feito um estudosobre a constitucionalidade do instituto no ordenamento juridico brasileiro e sobre a legitimidade do mesmo em relagao aos principais tratados e convengées internacionais acerca do tema. Ao final, apresentaremos um breve panorama sobre a situago dos negros, homoafetivos, mulheres, portadores de deficiéncia no pais, bem como os desafios ¢ as perspectivas da aplicagao das ages afirmativas no Brasil 2. PRINCIPIO DA IGUALDADE 2. 1, CONCEITO DE PRINCIPIO CONSTITUCIONAL A expressao principio possui multiplos sentidos,além de ser um tema bastante controverso no Direito. Apesar disso, iremos apresentar um conceito que iré nos ajudar na compreensao do principio da igualdade, em seu sentido formal e material, e na sua aplicagao ao caso concreto, sem ter 0 intuito, porém, de problematizar ou aprofundar na questao. s principios sao ordenagdes que se irradiam e imantam os sistemas de normas, séo [como observam Gomes Canotiho e Vital Moreira] “ndicleos de compensagao’ nos quais confluem valores e bens constitucionais”. Mas, como disseram os mesmo autores, “os principios que comegam por ser a base de normas juridicas, podem estar positivadamente incorporados, transformando-se em normas-principios e constituindo preceitos basicos da organizacao constitucional. (CANOTILHO E MOREIRA, 1984 apud AFONSO DA SILVA, 2006) Canotilho divide os principios constitucionais em politico-constitucionais juridico-constitucionais. Os ico-constitucionais “traduzem as opgdes politicas fundamentais conformadoras da Constituigéo”. Na CF/88, esses principios esta contidos nos artigos 1° a0 4°. Ja os juridico-constitucionais “so principios constitucionais gerais informadores da ordem nacional. Decorrem de certas normas constitucionais e, ndo raro, constituem desdobramentos (au principios derivados) dos fundamentais (...)". De acordo com o constitucionalista portugués, os direitos fundamentais, assim como o principio da igualdade, fazem parte dos politico-constitucionais (CANOTILHO E MOREIRA, 1984 apud AFONSO DA SILVA, 2006). 2. 2. CONTEUDO JURIDICO DO PRINCIPIO DA IGUALDADE A efetivagao do principio da igualdade é de fundamental importancia para a garantia da existén Democratico de Direito. Nao se concebe uma sociedade democratica sem a aplicagao desse princi um dos seus fundamentos. José Luiz Quadros de Magalhaes defende ser a igualdade juridica 0 alicerce dos direitos individuais, tendo como fungdo a transformagao dos direitos dos privilegiados em direitos de todos os seres humanos. O constitucionalista acredita que esse principio ndo se restringe aos direitos individuais, fundamentando também todos os direitos humanos (MAGALHAES, 2004). Nessa mesma linha esta José Joaquim Gomes Canotilho, que coloca o principio da igualdade como “um dos principios estruturantes do regime geral dos direitos fundamentais (...)” (1993) Celso Anténio Bandeira de Mello assevera que a Lei ndo pode assegurar privilégios ou perseguigdes, deve, porém, ser instrumento que regula a vida social tratando de forma equitativa todos os cidadaos. O autor afirma que esse deve ser 0 contetido “politico-ideolégico absorvido pelo principio da isonomia e juridicizado pelos textos consttucionais em geral, ou de todo modo assimilado pelos sistemas normativos vigentes (MELLO, 1999) principio em tela tem como fundamento na Constituigao da Republica Federativa do Brasilo art. 5°, caput, qual seja: "todos sao iguais perante a lei, sem distingdo de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros © aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade do direito a vida, a igualdade, a seguranga e a propriedade, (...)" e, além disso, tem como refer€ncia o art. 3°, inciso IV, para o qual “pramover o bem de todos, sem preconceito de origem, raga, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminacao" é um fundamento da Repiblica.Assim, percebe-se a importancia dada pelos constituintes brasileiros ao principio da igualdade, colocando-o como base, estrutura para a formagao da repuiblica (MAGALHAES, 2004). ManoelGongalves Ferreira Filho, dando a sua interpretagdo sobre o principio da igualdade, defende que o tratamento dos iguais deve ser diferente em relagao aos que se encontra em estado de desigualdade: principio da isonomia oferece na sua aplicagao & vida inimeras e sérias dificuldades. De fato, conduziria a inomindveis injustigas se importasse em tratamento igual ao que se acham em desigualdade de situages. A justiga que prociama tratamento igual aos para os iguais pressupée tratamento desigual dos desiguais. Ora, a necessidade de se desigualar os homens em certos momentos para estabelecer no plano do fundamental a sua igualdade cria problemas delicados que nem sempre a razdo humana resolve adequadamente"(FERREIRA FILHO, 1986 apud MAGALHAES, 2004, p.91). Com efeito, percebe-se a importancia do postulado aristotélico que conceitua a igualtade como tratar igualmente os iguais ¢ desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Canotihotambém defende a importancia de se tratar de forma igual os individuos de mesmas caracteristicasno que tange a aplicagao e previsdo da lei. Apesar disso, o autor portugués afirma que © principio da igualdade, reduzido a um postulado de universalizagao, pouco adiantaria, j4 que ele permite discriminagao quanto ao contetido (exemplo: todos os individuos de raga judaica devem ter sinalizagao na testa; todos 08 individuos de raga negra devem ser tratados igualmente em escolas separadas dos brancos) (1993, p.563), Assim, a igualdade reduzida ao seu sentido formal, pode implicarno “simples principio da prevaléncia da lei em face da jurisdigao e da administragao". A fim de resolver o problema acima mencionado, Canotilho afirma ser importante delimitar os contornos do principio da igualdade em seu sentido material, nao ignorando, claro, a importdncia do seu sentido formal (1993, p.564). A justiga formal, que se relaciona com a igualdade formal, consiste em “um principio de ago, segundo 0 qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma” (PERELMAN, 1963 apud SILVA, P.213), jd a justica material, intrinsecamente ligada a igualdade material, é “a especificacao da justiga formal, indicando a caracteristica constitutiva da categoria essencial, chegando-se as formas: a cada um segundo a sua necessidade; a cada um segundo 0s seus méritos; a cada um a mesma coisa". Assim, por existir desigualdades, 6 que se busca a igualdade material, tendo como objetivo “realizar a igualizagao das condigdes desiguais" (SILVA, 2006, p.214) O art. 1° da Doclaragao dos Direitos do Homem e do Cidadao prescreve que os homens nascem e crescem juais em direito. Tal deciarag4o consagra a igualdade formal no campo politico, de carater negativo, com 0 intuito de simplesmente abolir 0s privilégios de classe. Tal norma implicou sérias desigualdades econdmicas, haja vista que se pautava numa visao individualista, vinda de uma sociedade liberal. Desde o império, nossas constituigdes também se baseavam na igualdade perante a lei, tratando todos igualmente sem levar em consideracao a distingao entre os diferentes grupos (SILVA, 2006). A atual Constituigéo da Reptiblica Federativa do Brasil garante reais promessas de igualdade material. Isso se dé no art. 5°, |, quando tenta igualar em direitos e obrigagées os homens e as mulheres; no art. 7°, XXX XXXI, que veda distingdes fundadas em certos valores tais como “diferencas de salérios, de exercicios de fungdes e de critérios de admissao por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil e qualquer discriminagao no tocante a salaio e critérios de admissao do trabalhador portador de deficiéncia” Prevé ainda, de forma programatica, a reducdo das desigualdades sociais e regionais (art. 3°, III), repulsa a discriminagao (art. 3°, IV), dentre outros (SILVA, 2006, p.211/212). Kildare Gongalves Carvalho acredita que a igualdade formal, vista como igualdade de oportunidades e igualdade perante a lei, é insuficiente para que se efetive a igualdade material, definida pelo autor como “igualdade de todos os homens perante os bens da vida (..)". O constitucionalista, por acreditar que os homens so desiguais em capacidade, ao lado de fatores como compleigao fisica e estrutura psicolégica, acredita ser dificil a efetivagao da igualdade formal (CARVALHO, 2004, p.402). Assim, ele oré ser incorreto 0 enunciado do art. 5° da CF/88, quando diz que “todos sao iguais perante a lei, sem distingdo de qualquer natureza (...)", haja vista que “prever simetria onde ha desproporedo visivel nao é garantir igualdade real, mas consagrar desigualdade palpitante e condendvel'(MARINHO, 1992 apud CARVALHO, 2004, p.402) Canotitho defende que o sentido material deve se aliar a ideia de igualdade relacional, ois ela pressupée uma relagdo tripolar (PODLECH): 0 individuo a ¢ igual ao individuo b, tendo em conta certas caracteristicas. Um exemplo extraido da jurisprudéncia portuguesa: o individuo a(casado) ¢ igual ao individuo b(solteiro) quanto ao acesso ao servico militar na Marinha, desde que retina as condiges de admissao legal e regularmente exigidas (caracteristicas C1, C2 E C3). (CfrAc TC 336/86 e, mais recentemente, Acs. TC 186/91 e 400/91) (CANOTILHO, 1993, p.564) A formula “o igual deve ser tratado igualmente ¢ o desigual desigualmente” nao contém critério material para que se realize um juizo de valor em relagdo a igualdade ou desigualdade, Uma das maneiras de se valorar a relago de igualdade é por meio da proibigao geral do arbitrio, que é a violagdo arbitraria da igualdade, ou methor, quando a diferenciagao entre individuos ou a desigualdade de tratamento tem origem na arbitrariedade. Apesar disso, a proibigao geral do arbitrio é insuficiente caso nao seja fundada em critérios, que possibilitem a valoragao das relages de igualdade. Assim, deve-se existir um critério material objetivo para se analisar o tratamento igual ou desigual, A proibi¢ao geral do arbitrio nao deve ser a Unica forma de se interpretar a igualdade, deve ser apenas uma autolimitagao da atuagao do juiz, nao impossibilitando, pois, a busca por formas mais adequadas ao caso concreto. Para se buscar uma analise mais adequada, deve-se aliar a necessidade de valoragao ou de critérios de qualificacao com a necessidade de encontrar elementos de comparagao subjacentes ao cardter relacional do principio da igualdade. (CANOTILHO, 1993). Celso Anténio Bandeira de Mello acredita que para que ocorra uma discriminagao legal, respeitando 0 principio da isonomia, deve se aliar quatro elementos, que so: a) que a diferenciagao nao atinja apenas a um individuo; b) que as situagdes ou pessoas afetadas pela diferenciagao sejam realmente distintas entre si; ©) “que exista, em abstrato, uma correlagao légica entre os fatores diferenciais existentes e a distingao de regime juridico em fungao deles, estabelecidas pela norma juridica’; d) “que, in concreto, o vinculo de correlagao supra-referido seja pertinente em funcao dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulta em diferenciagao de tratamento juridico fundada em razdo valiosa — ao lume do texto constitucional — para o bem puiblico” (MELLO, 1990 apudCARVALHO, 2004, p. 403). Manoel Gongalves Ferreira Filho também defende que o prin ao legislador e uma regra de interpretagao: Como limitacao ao legistador, profbe-o de editar regras que estabelecam privilégios, especiaimente em razo da classe ou posigao social, da raca, da religido, da fortuna ou do sexo do individuo. E também um principio de interpretagdo. O juiz deverd dar sempre & lei o entendimento que nao crie privilégios de espécie alguma. E, como juiz, assim devera proceder todo aquele que tiver de praticar uma lei. (FERREIRA FILHO, 1990 apud CARVALHO, 2004, P.403) principio da igualdade, sob 0 ponto de vista juridico constitucional, “assume relevo enquanto principio de igualdade de oportunidades (Equalityofopportunity) e de condiges reais de vida’. Essa igualdade esta ‘comprometida com uma politica de justiga social e com a garantia de normas constitucionais tendentes & io da igualdade proporciona uma limitagao efetivagao de direitos econdmicos, sociais ¢ culturais, bem como com o prinofpio da dignidade da pessoa humana. Além disso, deve ser visto nao apenas como fundamento antropolégico-axiolégico contra discriminagdes, mas também como principio “impositivo de compensagao de desigualdade oportunidades e como prinefpio sancionador da violagao da igualdade por comportamentos omissivos (inconstitucionalidade por omissao)" (CANOTILHO, 1993, P.568). Nas palavras da ministra Cérmem Lucia Antunes Rocha, o que se busca no é uma igualdade que frustre e desbaste as desigualdades que semeiam a riqueza humana da sociedade plural, nem se deseja uma desigualdade tao grande e injusta que impega o homem de ser digno em sua existéncia e feliz em seu destino. O que se quer é a igualdade juridica que embase a realizagdo de todas as desigualdadeshumanas € as faca suprimento ético de valores poéticos que o homem possa se desenvolver. As desigualdades naturais s40 saudaveis, como sao doentes aquelas sociais © econdmicas, que nao deixam alternativas de caminhos singulares a cada ser humano Unico. (ROCHA, 1990 apud SILVA, 2006, p.213) Marciano Seabra de Godoi esclarece que é melhor conceituar a igualdade como “tratar os individuos como iguais" do que tratar os individuos igualmente. O autor, citando Habermas, diz que nao deve ocorrer necessariamente uma igualdade na forma de tratamento prevista em lei, deve existir, sim, uma equiparagao nos direitos e “na forma efetiva em que participam do processo de elaboracao da norma” (GODOI, 1999 apud SOUZA CRUZ, 2005, p.12) Por fim, 86 se pode conceber uma sociedade como democréttica a partir do momento em que se garante a igualdade. A possibilidade de se permitir a inclusao de diferentes projetos de vida numa sociedade pluralista, ainda que assim se permita a aplicagao desigual do direito por meio de mecanismos de inclusdo, 6 que permite a autocompreensao de uma sociedade como democratica (GALUPPO, 2002 apud SOUZA CRUZ, 2008). 3. DISCRIMINAGOES: CONCEITOS E ()LEGITIMIDADE 3.1, DISCRIMINAGOES ILICITAS Antes de se aprofundar no tema proposto, que é as ages afirmativas, é importante definir 0 conceito de discriminagao e fazer uma diferenciagao entre as possibilidades de se discriminar de forma licita e ilicita © constitucionalista Alvaro Ricardo de Souza Cruz, se valendo das convengées internacionais sobre a eliminacao de todas as formas de discriminago, assim define a referida expressao: Entendemos a discriminagéo como toda e qualquer forma, meio, instrumento ou instituigéo de promogao da distingao excluséo, restrigéo ou preferéncia baseada em ctitérios como raga, cor da pele, descendéncia, origem nacional ou étnica, género, opgao sexual, idade, religido, deficiéncia fisica, mental ou patogénica que tenha 0 propésito ou efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercicio em é de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos politico, econémico, social, cultural ou em qualquer atividade no ambito da autonomia pilblica ou privada (SOUZA CRUZ, 2005, p.15). A discriminagéo,em suas diversas manifestagées, se configura como forma de “valorizagéo generalizada e definitiva de diferengas, reais ou imaginarias, em beneficio de quem a pratica, ndo raro como meio de justificar um privilégio". A discriminagao é um apontamento ou uma invengao de uma diferenga, que 6 valorizada ou absolutizada, por meio de uma atividade intelectual com o intuito de obter um privilégio ou praticar uma agressao (GOMES, 2001, p.18) A discriminagao intencional (ou tratamento discriminat6rio), de acordo com o ministro Joaquim B. Barbosa Gomes, é a forma mais comum de se praticar essa agressdo. A pessoa recebe um tratamento desigual e desfavordvel na relagao de emprego ou em outras atividades por causa de sua cor, raga, sexo, origem ou qualquer outro fator que a diferencie da maioria, Essa é uma modalidade que contém a maioria dos casos de discriminagao e é a que grande parte das normas constitucionais ou infraconstitucionais antidiscriminatérias criadas se direcionam (GOMES, 2001). ‘Ao se observar 0 Direito Comparado, percebe-se que a mera proibigdo dessas praticas discriminatérias nao traz resultados satisfatérios. Essa medida é insuficiente haja vista ser praticada aliada a completa abstragdo de dois fatores importantes: a) O aspecto cultural, psicolégico, que faz com que certas préticas discriminatérias ingressem no imaginario coletivo, ora tornando-se banais, e, portanto, indignas de atengao salvo por aqueles que dela sao vitimas, ora se dissimulando através de procedimentos corriqueiros, aparentemente protegidos pelo Direito; b) os ofeitos presentes da discriminagao do passado, cuja manifestagao mais eloqiiente consiste na tendéncia, facimente observavel em paises de passado escravocrata e patriarcal, como o Brasil, de sempre reservar a negros e mulheres o posto menos atraente, mais servis do mercado do mercado (sic) de trabalho como um todo ou de um determinado ramo de atividade (GOMES, 2001, p.20). Sob outro prisma, essa forma de discriminago, por ter como elemento a intencdo, impde a quem a alega 0 nus da prova. Assim, em paises como o Brasil, que possui uma manifestacao discriminatéria velada, dissimulada, ocorre um efeito nefasto nas politicas antidiscriminatérias adotadas, criando uma estigmatizagao do cidadao que tem a coragem de desafiar o status quo, gerando um isolamento e uma sensacao de impoténcia em face do aparelho estatal que, “sendo por natureza hostil As suas reivindicacdes, utliza-se do argumento processual da auséncia da prova para tornar sem efeito as raras iniciativas individuais voltadas ao combate das préticas discriminatérias e racistas’ (GOMES, 2001, p.20/21) Alvaro Ricardo de Souza Cruz, diferentemente do ministro Joaquim B. Barbosa Gomes, acredita que a discriminagao intencional 6 uma forma rara de se discriminar no Brasil. Apesar disso, afirma 0 autor, esas manifestag6es sao tipificadas pela legislacao penal brasileira. O constitucionalista assevera que a “tentativa de se extirpar 0 mal da discriminagao pela via penal beira o ridiculo, uma vez que nao temos conhecimento de alguém que tenha cumprido pena por condenacao criminal com amparo nesta legisiagao” (SOUZA CRUZ, 2005, p.30) Assim como a discriminagdo intencional, existe a discriminagao de fato, que é bastante comum no Brasil. Ela se configura quando 0 discriminador a comete sem ter a consciéncia de estar afetando 0 outro. As piadas politicamente incorretas so um exemplo disso e esto se tornando cada vez mais comuns no pais, além da “politica de neutralidade e de indiferenca do aparato estatal para com as vitimas de discriminagao”. O mito da democracia racial brasileira é reforgado por essa forma de manifestagao preconceituosa (SOUZA CRUZ, 2005, p.30/31) Em certas situagées, como ocorre nas relagdes de emprego, a discriminagao é tao incontestavel, que 0 Direito a considera como presumida ou manifesta. Tal forma de manifestagao é considerada como “Prima Facie Discrimination’pelo Direito americano, Nesses casos, deixa de se aplicar a obrigatoriedade do nus da prova aos ofendidos, que vao ao judicidrio para obter alguma medida de cardter injuntivo ou declaratério. A auséncia do onus da prova, porém, nao se aplica nas postulagdes de carter indenizatério, Uma das formas de se constatar a discriminacao supra ¢ por meio de dados estatisticos: demonstra-se, por exemplo, a sub- representagao de uma determinada minoria em certos setores de atividades tendo como base a representagdo social dos grupos dentro da sociedade ou no mercado de trabalho. A técnica apresentada para combater a “Prima Facie Discrimination” nao é utilizada pelo Direito brasileiro, sendo, contudo, um importante instrumento de incluso social do sistema juridico americano (GOMES, 2001). A forma mais comum de se combater a discriminacao a coibicao de tratamento discriminatério advindos de atos concretos ou manifestagao expressamente ilicita, Apesar disso, existe a discriminagao indireta, que se configura como “prticas administrativas, empresariais ou de politicas puiblicas aparentemente neutras, porém dotadas de grande potencial discriminatério”. Essas praticas s8o conhecidas como impacto desproporcional ou adverso, ¢ sao, a luz de um conjunto expressivo de doutrinadores americanos, a forma mais perversa, eis que dissimula, quase invisivel, raramente abordada pelos Compéndios de Direito, voltadas em sua maioria ao tratamento do amorfo conceito de igualdade perante a lei, sem levar na devida conta o fato de que muitas vezes a desigualdade advém da propria lei, do impacto desproporcional que os seus comandos normativos pode ter sobre certas pessoas ou grupos sociais (GOMES, 2001, p. 23). A teoria da disoriminagao por impacto desproporcional é de origem norte-americana e se baseia no principio da proporcionalidade. Essa discriminago viola o principio da igualdade material quando a sua incidéncia resulta em efeitos nocivos a determinados grupos sociais. Diferentemente da discriminagao intencional, ela no possui o elemento intencionalidade, O que ocorre é a violagao da igualdade sem o intuito deliberado de discriminar. Sao praticas jé aceitas sociaimente no cotidiano e, por esse motivo, nao sao percebidas pelas pessoas, sendo legitimadas até mesmo por operadores do Direito (GOMES, 2001) Um bom exemplo da utilizacao da teoria do impacto desproporcional é a avaliagao para ingresso em universidades por exame de proveniéncia escolar, ou seja, de quais escolas vem o aluno. Em primeira leitura parece que isto é absolutamente aceitavel, entretanto considerando que a maioria negra provém de escolas consideradas de péssimo ou baixo nivel, a medida toma um novo cunho porque em resultado possibilitard o ingresso apenas de pessoas brancas, pelo menos em sua maioria esmagadora (..) (ALMEIDA, 2005). Além das discriminagées ja descritas, existe outra grave modalidade de diferenciagao ilicita, qual seja a discriminagao na aplicacao do direito. Assim como na discriminagao por impacto desproporcional, naquela, pelo menos em sua forma mais ostensiva, nao se configura o fator intencionalidade no ato normative ou na deciséo concreta questionada (GOMES, 2001). ‘So duas as modalidades de discriminacao na aplicagao do direito. Numa primeira forma, existe uma discriminagao, apesar de a “norma aplicavel a situacdo concreta ser facialmente neutra, isto é, no trazer nenhum indicativo de que tenha sido adotada com 0 propésito de discriminar este ou aquele grupo socialmente excluido”. Para que se conclua pela ilicitude, é necessario fazer uma andlise dos resultados obtidos com a aplicagao da norma, tendo como observagao o favorecimento desproporcional de um grupo em face de outro, Outra forma se da quando “a lei ou ato normativo de regéncia de uma determinada relagdo juridica, embora facialmente neutro, isto é, vazado em linguagem destituida de qualquer conotaco discriminatéria, pode no entanto ter sido concebido com o propésito nao declarado de prejudicar um determinado grupo social’ (GOMES, 2001, p. 27). 3.2, DISCRIMINAGOES E INCONSTITUCIONALIDADE A discriminagao no autorizada na Constituigao da Reptiblica brasileira ¢ considerada como ato inconstitucional. José Afonso da Silva (2006, p.228) divide essa inconstitucionalidade em duas formas: a) Conceder beneficio legitimo a uma determina parcela de pessoas ou grupos, discriminando-os de forma favordvel em face de ndo auxiliar outros grupos ou pessoas em situagao equivalente. O ato é inconstitucional por no tratar de forma equanime ambos os casos. Contudo, o ato é constitucional em relagao ao grupo que foi beneficiado, j4 que possuia 0 direito de recebé-lo, E necessario estender o beneficio aos discriminados que requererem diante do judiciario, analisando caso a caso. b) “Impor obrigacao, dever, énus, sangao ou qualquer outro sacrificio a pessoas ou grupos de pessoas, discriminando-as em face de outras mesmas situagées que, assim, permaneceram em condigbes mais favordveis". O ato também é inconstitucional por ferir a isonomia, porém, deve ser considerado inconstitucional para quantas as pessoas 0 solicitarem, haja vista que nao admissivel em direito impor uma situagao juridica detrimentosa a todos, sendo considerada uma forma de constrangimento nao permitida (SILVA, 2006, p.228/229), 3.3. DISCRIMINAGOES LICITAS Em situagdes excepcionais, a discriminacao € prevista pelo Direito. Para que ocorra a discriminagao legitima & preciso existir 0 cardter inevitabilidade, seja pela situagao ou alividade que exige a diferenciagao, separando por principio e uma dose de razoabilidade alguns grupos sociais, seja também por certas caracteristicasexistentes em determinado individuo. A justificativa de se separar em certas atividades é a existéncia de uma natureza que impossibilite a incluso de todos os grupos. A excluso de homens ou mulheres 6 um exemplo utilizado pelo ordenamento juridico brasileiro para se fazer essa diferenciacao: é legalmente admissivel a exclusdo de homens para exercerem o cargo de guarda em presidio feminino e & previsto a restricao 4s mulheres de trabalharem em alguns cargos das Forgas Armadas do pais (GOMES, 2001). A discriminagao positiva (“reverse discrimination’) ou ago afirmativa é outra forma de discriminagao legitima, Consiste em discriminar de forma vantajosa um grupo historicamente marginalizado, de forma a inseri-lo no “mainstrean”, evitando que o principio da igualdade formal funcione como mecanismo perpetuador da desigualdade. Tem como fungdo tratar de maneira preferencial aqueles grupos tidos como minorias em direito, tentando coloca-los em patamar similar aos outros. Esse tipo de discriminacao, “de carter distributivo restaurador, destinado a corrigir uma situagao de desigualdade historicamente comprovada, em geral se justifica pela sua natureza temporaria ¢ pelos objetivos sociais que se visa com ela atingir’ (GOMES, 2001, p.22), 4. AS AGOES AFIRMATIVAS. 4.4 CONCEITO A noutralidade estatal é uma marcante caracterstica da sociedade liberal-capitalista, que se esquiva de interferir nas esteras econémica, espiitual, na intimidade das pessoas. No Direto ndo poderia ser diferente: ha restrges quanto ao envolvimento estatal em quesises que se referem aos seus diferentes grupos sociaise interacao ente eles. Em uma parte consideravel de nagées pluriétricase pluriconfessionais, a abstengao do Estado se raduziu na crenga de que a mera itrodugao nas respectivas Constituigdes de principiose regras asseguradoras de uma igualdade formal perante a lei de todos os grupos étnicos componentes da Nagao, seria suficonte para garantira existéncia de sociedades harménicas, onde seriam assegurados a todos. Independente de raca, credo, género ou origem nacional, efetiva igualdade de acesso ao que comumente se tom como conducente ao bem-estar individual e coletve (GOMES, 2001, p.36). Ageia de neuiraldade estatal, de acordo com Joaquim B. Barbosa Gomes, se mostou um fracasso na histria, principalmente fom sociedades que no passado possulam grupos minortarios em sitvagao de subjugagao, sendo tal status legitmado por le, tal como nos palses de passado escravocrata. Esses mesmos paises, que hoje possuem dispositivos constitucional que visam cossar a situagao de desigualdado ainda exisionto, nao lograram éxito na busca pela efetvacdo do principio da igualdade. O mesmo se pode dizer da nao efetivagao dos dispositivos constitucionais em relacdo a sitiagdo de infeioridade a que esté submetida a mulher (GOMES, 2001) A simples proclamagao de normas uridias, sejam elas constitucionais ou normas de inferior hierarquia, é insuficiente para reverter um quadro de desigualdade social, em que uma parcela da populacao acredita poder exercero papel de domingo fem detrimento a outro grupo que aceita a condigao de subordinagao. & importante reconhecer também que a mudanga dessa situagao ja Idealizadae aceita no imaginario popular ocorrera quando o Estado renunciar a posi¢ao de neutralidade em questdes sociais, passando a assumir uma posicao mais ativa (GOMES, 2001). (Os Estados Unidos da América, por meio de uma atuacdo mais ativa na Sociedade, conceberam as aces afirmativas, que hoje Ja s80 adotadas em varios paises do mundo, sendo adaptadas as peculiaridades de cada regiéo (GOMES, 2001). Essa expressao se consolidou na década de 60 nos Estados Unidos, na ExecutiveOrdem. 10.965, de margo de 1963, de iniciatva do presidente democrata John F. Kennedy, passando, a partir de entio, para a denominagao generalizada de qualquer iniciativa tendante & promogao da integragao, do desenvolvimento © do bem-estar das minorias (SOUZA CRUZ, 2005, p.143), ‘A ago afirmativa (affrmativeaction), que como dito foi utlizada na ExecutiveOrder n* 10925, inha como objetivo, naquela Spoca, criar um érgao que fiscalizava e reprimia as discriminagdes no ambito do mercado de trabalho. Através daquele ato, ficou estabelecido queera proibida a discriminagao do candidato a vaga de trabalho ou funcionéro por fatores como cor, raca, credo ou nacionalidade. (MARINHO, 2005).A implantagdo dessas medidas de poliicas piblicas tinha como objetivo a ampliagao do mercado de trabalho para os grupos marginalizados socialmente, fazendo com que tivessem iguais condigses ‘em relagdo a outros segmentos da sociedade na competicdo por vagas (CARREIRA, 2005). Por volta do final da década de 60 e inicio da de 70, provavelmente pela observacao de que os antigos procedimentos eram ineficazes, o instituto das agdes afirmativas foi senda modificado, passando a associar-se a ideia de igualdade de ‘oportunidades por meio da ulilizagao de colas rigidas, que permitiam o acesso de grupos marginalizados a setores do mercado de trabalho e de instituigdes de ensino. As ages afirmativas eram vinculadas a metas esiatisticas baseadas no ingresso de negros e mulheres nos referidos setores (GOMES, 2001), Atualmente, para Joaquim B. Barbosa Gomes, as agdes afirmativas atingiram outro patamar, sendo definidas como: lum conjunto de pollticas publicas e privadas de carater compulsério, facullativo ou voluntario, concebidas com vistas a0 ‘combate a discriminagao racial, de género e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminagao praticada no passado, tendo por abjetivo a concretizacao do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como leducagao e emprego. Diferentemente das poliicas governamentais antidiscriminatérias baseadas em leis de conteddo meramente praibitvo, que se singularizam por oferecerem as respectivas vilimas tao somente instumentos juridicos de cardter reparatério e de intervengao ex post facto, a8 ages afirmativas tém natureza mullifacetéria, e visam a evitar que a discriminacao que a discriminagao se verifique nas formas usualmente conhecidas - isto é, formalmente, por meio de normas de aplicagao geral ou especitica, ou através de mecanismos informais, difusos, estruturals, enraizados nas praticas culturals @ ‘no imaginario coletivo (GOMES, 2001, p. 40/41). Flavia Piovesan acredita que para se implementaro direito a igualdade é necesséiio se combater a discriminagao de forma ‘emergencial. Contudo, a autora defende que esse simples combate é insuficiente, sendo necessério proibir a discriminagao, ‘bem como implementar polliicas compensatérias com o intuito de acelerara igualdade enquanto proceso. A simples proibi¢ao mediante legislacdo repressiva serd insuficiente, sendo de fundamental importancia estabelecer ‘estratégias promocionais. capazes de estimulara insergao e a incluso de grupos socialmente vulneraveis nos espacos socials’ (PIOVESAN, 2010, p. 198), Ha um bindmio inclusao-exclusdo pairando sob a igualdade e a discriminacao. Se de um lado a igualdade implica incluso social, de outro, a discriminagao se refere a formas violentas de exclusdo e intolerancia & diferenga e diversidade. Por isso, ndo necessariamente a proibico de préticas excludentes irdresultar na incluso. Assim, Piovesan afirma ser importante a “adagao dde medidas especiais de protegao ou incentivo a grupos ou individuos, com vista a promover a sua ascensao na sociedade até um nivel de equiparagao com os demais", Essas medidas so as chamadas “discriminagées positivas’, também conhecidas. ‘como “agdes afirmativas’, que, para a autora, se definem como medidas especiais e tempordrias que, buscando remediar um passado discriminatério, objetivam acelerar o processo de igualdade, com o alcanco da igualdade substantiva por parto dos grupos socialmente vulneraveis, como as minorias étnicas © racials, dentre outros grupos. Enquanto polticas compensatérias adotadas para aliviar e remediar as condigdes resultantes de um passado de discriminatério, as ages afirmativas objetivam transformar a igualdade formal em material e substantiva, assegurando a diversidade e a pluralidade social (PIOVESAN, 2010, p. 198). 4.2. A CONSTITUCIONALIDADE DAS AGOES AFIRMATIVAS NO BRASIL Crem Liicia Antunes Rocha (1996) acredita que o preémbulo da Constiuigéo de 1988 possui uma declaragéo de um ‘momento nove no Brasil “a idela de que nao se tem a democracia social, a justica social, mas que o Direit fl elaborado para que se chegue a f-10s'.O pais possui uma série de problemas a serresolvidos, como a desigualdade social, econdmica, regional Porisso mesmo & que, mesmo nao tendo forga de norma, mas tendo a fungao de elucidar o rumo palmilhedo pelo consttuinte, 0 predmbulo taduz a preocupacao de se “nstiuir um Estado Democratico, destinado a assegurar o exerccio dos direitos socials ¢ individuais,.. a igualdade e a justica como valores supremos de uma sociedade fratema pluralista e sem preconceitos... (ROCHA, 1926, p. $1) Assim percebe-se que a insituigdo da Consttuigdo da Repiiblica néo teve como tnico fm a probigéo do que & tido como desigualdade, mas tamém teve a inteneao de criarinsbiuigdes democraticas que assegurem o dreito a igualdade, principio reconhecido como “valor supremo definidor da esséncia do sistema estabelecido (ROCHA, 1996, P91) ‘nova concepeiodo principio da igualdade implicou a exigéncia da efetivagdo nao somente da igualdade formal, mas também dda material. Ainércia do Estado, que se preocupou apenas om proibir condutas discriminatérias, nao foi saisfatéria, gerando ainda mais exclusdes. Com efeito, o Estado teve que buscar nas acées afirmatvas uma forma de resposta, objetvando © resgate @ a inclusao social das classes menos favorecidas'(CECCHIN, 2006, p. 328). (..) a definigdo juridica objetva e racional da desigualdade dos desiguais, histrica ¢ culturalmente discriminados, é concebida Como uma forma para se promover a igualdade daqueles que foram ¢ sao marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante na socledade. Por esta desigualagao positvapromove-se a iualagao juridica efetva; por ela afirma-se uma ‘6rmula juridica para se provocar uma efetva igualacao social, politica, econémica no e segundo o Direito, tal como assegurado formal e materialmente no sistema constitucional democratico. A agao afrmativa 6, onto, uma forma juridica para se superar o isolamento ou a diminuigdo social a que se acham sujitas as minorias (ROCHA, 1926, p 88) No Brasil, de acordo com Alvaro Ricardo de Souza Cruz (2005), as ages afirmativas esto previstas no art. 3° da CF/88, quando o texto consttucional coloca como objetivo fundamental a promocao do bem geral, “que deve passar necessariamente pela superacdo de preconceitos discriminatérios". Outros dispositivos que possibilitam a aplicagao das discriminacoes positivas, de acordo com 0 autor, so: a) “a pratica do racismo constitu crime inaflancavel ¢ imprescritvel, sujlto 8 pena de Feclusao, nos termos da le (art 5°, XLI, CF/88);b)'é inviolével a liberdade de consciéncia e de crenga, sendo assegurado 0 livre exercicio dos cults reigiosos e garantida, na forma da el, a protegao aos locais de culto e a suas liturglas" (at. 5°, VI, CFI88); c) “homens e mulheres sao iguals em direitos e obrigagdes, nos termos desta Constituigao” (art. 5°, |, CF/B8);d) os entes federativos devem “cuidar da saiide e assisténcia publica, da protecao e garantia das pessoas portadoras de deficiéncia’ (art, 23, I, CFI88), Além disso, 6 dever do pais “apolar e incentivar a dfusdo de diferentes manifestagdes culturais, pretendendo-se como uma sociedade democratica, plural e multiracial (SOUZA CRUZ, 2005, p.144)" De acordo com Luiz Alberto David de Aradjo (ARAUJO, 2008 apud ONIMARU; AMARAL, 2011, p. 7), constiuinte cuidou de proteger grupos que mereciam um tratamento diferenciado, haja vista a histérica realidade de marginalizagao social e sitvag3o, de hipossuficiéncia a que eram submetidos. Para tanto, “cuidau de estabelacer medidas de compensagao, buscando ‘oneretizar, ao menos em parte, uma igualdade de oportunidades com os demais individuos, que nao sofrerem as mesmas espécies de restrigses" Cérmem Lticia Antunes Rocha (2006), como Souza Cruz, ensina que o art. 3°, inciso IV, da Constituigéo da Repablica, legitima as agdes afirmativas. A autora, contudo, acrescenta que os incisos Le Ill também so ‘undamentais para a constitucionalidade do referido institute ‘Art. 3°. Constituem objetivos fundamentais da Republica Federatva do Brasil | Construir uma sociedade livre, justa e igualitaria; I~ Erradicar a pobreza e a marginalizacao e reduzir as desigualdades sociais e regionals; IV Promover 0 bem de todos, sem preconceitos de origem, raca, sexo, cor, idade © quaisquer outras formas de discriminagao (BRASIL, 1988), Rocha (2006)leciona que todas os verbos utilizados nos incisos supracitados, quais sejam constru, reduzir, promover, ‘exprimem ago, “vale dizer, designam um comportamento tivo". Por isso, pode-se concluir que os abjetvos fundamentals da Repubblica representam obrigagées transformadoras da pollica, das questdes sociais, econdmicas e regionais. Esses objetivos ‘8m como fim a aplicagao do principio da iqualdade, que 6 um valor supremo a fundamentar o Estado Democratico de Direlto (2006, p.92). Airton José Cecchin (2006, p. 332) afirma que os incisos supra so normas programaticas, com eficacia imediata, uma vez que visa “a implementagao de planos e programas sociais, com a parlicipagao da sociedade em geral e do Estado, representado pelo Poder Executivo, Legislativo e Judicidrio". Marco Aurélio Mendes de Faria Mello tamaém defende a aplicagao imediata das agdes afirmatvas, j4 que o paragrafo 1" do art. 5” prescreve que “as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais t8m aplicagao imediata” (2001, p 6). Uma conclusdo que se pode chegar ao analisaro art. 3° 6 que a Repiblica Federativa do Brasil no 6 justa, live e solidaria: art. 3° raz uma declaragdo, uma afirmagao e uma determinacao em seus dizeres. Declara-se, ali, implicita, mas claramente, que a Republica Federativa do Brasil ndo ¢ live, porque ndo se organiza segundo a universalidade desse pressuposto fundamental para o exercicio dos direitos, pelo que, nao dispondo todos de condigdes para o exercicio de sua liverdade, nao pode serjusta Nao é justa porque plena de desigualdades antijuridicas deploraveis para abrigar 0 minimo de condigées dignas para todos. E ndo é solidaria porque fundada em preconcelto de toda sorte (ROCHA, 2006, p-92). Oulra afirmagao encontrada no art, 3° & a de que apesar de nao se possuir uma auténtica Replica Democratica no pais, 0 Direito possibilitou um modelo de Estado que tem como intuito concretizévla. Por isso que 0 artigo citado tem como primeira inciso a previsao de se construiu uma nova sociedade brasileira, segundo os paradigmas consiitucionalmente garantidos (ROCHA, 2006). Mais especificamente, o inciso IV pode ser visto como o que se mais relaciona com as ages afirmativas. O verbo promoverda a Ideia de ago, e 0 que se tem como objetivo ¢ a promagao do bem de todos, sem preconceito de origem, raga, sexo, cor, dade quaisquer outras formas de discriminagao, assim, percebe-se uma intrinseca ligagao entre o institute o inciso. “Significa que universaliza-se a igualdade e promove-se a igualagao: somente com uma condulta ativa, positiva, afrmativa, é que se pode ler a transformagao social buscada como objetivo fundamental da Republica’. Caso o lagislador quisesse apenas mantor a sltuagao j4 existente, ele ira estabelecer que o objetivo fundamental fosse a de manter a igualdade sem preconceltos, o que 1nd 6 0 caso (ROCHA, 2006, p. 93) Nao fol o que pretendeu a Constituigao de 1988, Por ela se buscou a mudanga do conceito, do contetido, da esséncia e da aplicagao do principio da igualdade Juridica, com relevo dado a sua imprescindibilidade para a transformagao da sociedade, a {im de se chegar a seu modelo livre, justa e Soliddria. Com a promagdo de mudangas, com a adogao de condutas alivas, com a Construgaio de novo figurino sécio-politico & que se movimenta no sentido de se recuperar o que de equivocado antes se fez (ROCHA, 2006, p, 93) Marco Aurélio Mendes de Faria Mello (2001, p.4/5) acredita que a partido art. 3° da CFI88 nao resta divida de que haja uma legitmagao a acao afirmativa. Para 0 autor, a Unica forma de se corrigir as desigualdades 6 “colocar 0 peso da lei, com Imperatividade que ela deve ter em um mercado desequillbrado, a favor daquele que 6 descriminado, que é tratado de forma desigual", Por meio dessa premissa, so objetivos fundamentals da Republica: primeira, construir - preste-se atengdo a esse verbo — uma sociedade livre, justa e solidéria; segundo, garantir 0 desenvolvimento nacional - novamente temos aqui o verbo a conduzir, ndo a uma atitude simplesmente estdtica, mas a uma posi¢do ativa; erradicar a pobreza © a marginalizagao, e reduzir as desiqualdades sociais e regionais; ¢, por tilimo, no que nos interessa, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem raga, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminacao. Pode-se afirmar, sem receio de equivaco, que se passou de uma igualizagdo estatica, meramente negativa, no que se proibia a discriminagao, para uma igualizagao eficaz, dinamica, j& que os verbos “construir,“garantir’ “erradicar” e ‘promover” implicam, em si, mudanca de éptica, ao denotar “aro”. Nao basta no descriminar. £ preciso viabilizar—e encontramos, na Carta da Republica, base para fazé-lo - as mesmas oportunidades (MELLO, 2001, p. 4/5). 4.3, ASAGOES AFIRMATIVAS NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS © Direito intemacional dos Direitos Humanos comegou a se desenvolver a partir da Declaragao Universal dos Direitos Humanos (1948), mediante a criagao de tratados com o intuito de proteger os direitos fundamentais, Essa primeira fase se pautou no principio da igualdade formal, e tinha como tonica a prote¢do geral, expressada pelo temor pela diferenca, justiicado pelo terror do exterminio nazista.Basta se ter em mente que tanto a Declaragéo de 1948 quanto a Convengdo para a Prevengao e Repressao ao Crime de Genocidio (1948) puniam a intolerancia baseada na destruigéo do outro em razo da raga, etnia, religiéo e nacionalidade (PIOVESAN, 2005) Trataro individuo de forma genérica, abstrata e geral tomou-se insuficiente, sendo “necessaria a especificagao do sujeito de diteito, que passa a ser visto em sua peculiaridade e partcularidade”. Assim, passou-se a perceber que cerios sujeitos de direitos e violagdes legais exigem uma forma diferenciada e especifica de resposta (PIOVESAN, 2005, p. 46). Vale dizer, na esfera internacional, se uma primeira vertente de instrumentos internacionais nasce com a vocagao de proporcionar uma protegao geral, genérica e abstrata,refletindo o préprio temor da diferenca, percebe-se, posteriormente, a

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