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“NA ESCOLAY... Ceres Leite Prado* U estudo bistérico sobre as linguas estrangetras nos curriculos das nossas escolas revela umapresenca variada inconstante. Trabalbos realizados no campo de estudos -epesquisas denominado “bist6ria das disciplinasescolares” ‘mostram queo desenvolvimentodeuma disciplina depende de varios fatores, ligados a politica educacional do pats a ‘a0 contexto social e politico qué a determina. Tais fatores dependem ainda de uma correlagéo de forgas entre diferentes grupos de interesse, associagées profissionais, etc. Em relagao ds linguas estrangeiras, essa complextdade de fatores ainda é maior, jd que ndo se pode desvincular @ lingua dos paises onde ela 6 falada, e das relagdes entre 0s paises no contexto mundial. * Professora de Prética de Ensino de Francés na FAE/UFMG, Dos muitos estudos j4 feitos 4 esse respeito, as conclusdes nao tém sido diferentes: as lin- guas estrangeiras sempre estive- ram vinculadas a elite, as clas- ses dominantes. & interessante lembrar aqui alguns dados his- téricos: em 1854, no regulamen- to do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro (ctiado em 1837 € modelo para todo o Brasil), era obrigat6rio 0 ensino do francés, do inglés e do alemao e facul- tativo 0 do italiano. As reformas foram, progressivamente, redu- zindo a oferta de linguas e, em 1942, nao encontramos mais © alemio € 0 italiano. A Refor- ma Capanema (que organizou 0 curso secundario em dois ci- clos: ginasial clissico ou cien- tifico) mantinha o francés em todas as quatro séries do ginasi- al e o inglés nas trés Gltimas. inglés ou o francés apareciam nos dois primeiros anos do 2° ciclo, onde havia, também, um ano de éspanhol. Em 1961, hi uma mudanga importante em relagdo a presen- ca das linguas estrangeiras nas escolas, A Lei de Diretrizes € Bases da Educagdo Nacional passou a permitir maior liberda- deem selacio 208 curriculos. Havia um niicleo de disciplinas obrigat6rias, indicadas pelo Conselho Federal de Educagio; um niicleo de disciplinas com- plementares, que seriam de- terminadas pelos Conselhos Estaduais de Educagio e em que se podia incluir ou nto o ensino de uma ou duas linguas estrangeiras modernas; e um nGcleo de disciplinas optativas, escolhidas pelo estabelecimen- to, entre as indicadas pelos Conselhos Estaduais de Educa- sao, Em Minas Gerais, 0 CEE determinou que as duas discipli- nas complementares fossem francés inglés Ja em 1971, surge uma maior restrigo as linguas estrangeiras nas escolas. A Lei 5.692 alterou a estrutura do ensino: 0s cursos primario e ginasial passam a constituir 0 1° Grau, € 0 2° ciclo = cientifico, classico, comercial, normal, agricola ¢ industrial - constituem © 2° Grau, obrigato- riamente profissionalizante. Os curriculos do 1° Grau, com du- ragio de olto anos, e os de 2° Grau, com duragio de trés ou quatro anos, passaram a ter um niicleo comum, obrigatério em todo 0 territério nacional, fixa- }4 PRESENGA PEDAGOGICA + v.2 n10 jullago. 1996 do pelo Gonselho Federal de Educacao, e uma parte diver- sificada, com 0 objetivo de atender as particularidades lo- cais. © ensino de linguas es- trangeiras s6 esti presente na lei numa pequena observagio sobre a organizacio das turmas e vai aparecer como “reco- mendacio” do CFE na Resolu- do 8/71: Recomendase que em Comunicagao € Expresso, a titulo de acréscimo, se inclua uma lingua estrangeira moderna, quando tenha 0 estabelecimento condigées de ministré-la com eficiéncia. © ensino de linguas s6 vai ser verdadeiramente regulamen- tado em 1986 quando a Resolu- do 6/86 diz que 0 ensino de pelo menos uma Lingua Estrangeira Moderna 6 obrigatério no 29 @ recomendado para o 412 Grau, preferentemente a partir da quinta série. Apesar dessa recomendacio, © ensino de linguas praticamen- te desapareceu, na época, das escolas de 1° Grau. Nos dltimos anos, entretanto, a situagio das linguas estrangeiras comegou a se alterar. Muitas escolas rein troduziram. uma lingua, sobre- tudo o inglés. Centros de lin- guas, onde os alunos das esco- las piblicas podem fazer cur- sos das que ndo esto presen- tes-nas grades. curriculares, fo- ram criados em varias cidades, como Belo Horizonte, Essas mu- dangas, em muitas ocasides, fo- ram conseqiéncia da demanda dos préprios alunos ou de suas familias. ‘Algumas’ reflexdes podem ser feitas a respeito deste hist6- rico. A primeira delas € que a oferta de linguas estrangeiras na escola, extensa, no século pas- sado € no infcio deste, reduziu- se muito, ¢, justamente, quando a “democratizacio” do ensino a ampliagio do némero de es- colas vem permitir © seu acesso pelas camadas populares. Se as linguas estrangeiras nao estio presentes na escola, seu apren- dizado s6 seré possivel através dos cursos livres de linguas: Cultura Inglesa, Icbeu, Goethe Institute, Alianga Francesa, CCAA, etc, 0 que exclui, de imediato, a grande maioria do pliblico es- colar brasileiro, Assim, as lin- guas estrangeiras continuam li gadas a uma elite. Uma outra reflexdo que po- de ser feita € sobre a “mar- ginalizagao” € 0 tratamento di- ferenciado que se dé ao ensino das linguas estrangeiras na le- gislagdo. Basta ler com aten- ¢40 0 texto da Resolugio 8/71 para se notar que a lingua es- trangeira aparece af como um “acréscimo" e que dela se exige uma “eficiéncia” que nio € exigida das outras disciplinas. possivel ainda acompa- Jul/ago. 1996 v2 n.10+ PRESENCA PEDAGOGICA 35 nhar, através deste hist6rico, 0 declinio € a ascensto de certas linguas, © que corresponde ao papel desempenhado pelos pa- ises onde elas sto faladas no cenério econémico, cultural ¢ politico. O inglés, pouco a pou- co, foi ocupando o lugar de todas as outras linguas, 4 me: da que a importincia da Ingla- terra, inicialmente, © dos Esta- dos Unidos, depois, aumentava nesse cenirio. Podemos agora nos pergun- tar: e qual € a situagdo atual das linguas estrangeiras nas escolas de 12 © 2 graus? Do ponto de vista da legislago, nada mu- dou, é ainda a Lei 5.692 que esti em vigor. Podemos, no entanto, examinar o texto da Lei das Diretrizes e Bases da Educagao Nacional, aprovado no Senado, que diz, nas Dispo- sigdes Gerais, Capitulo I: Da Educagio Basica: De acordo com as possi- bilidades da instituigéo de ensino devera ser oferecida pelo menos uma lingua estrangeira. E no Artigo 33 da Secdo IV, que trata do Ensino Médio: © curriculo do ensino médio (...) incluiré, além de uma lingua estrangeira. como disciplina obrigatéria, uma outra, de caréter optativo. Como podemos ver, ndo ha mudangas importantes, O ensi- no continua obrigatério somen- te no 2° Giau; 0 que ha de novo € a oferta de uma outra lingua, em cardter optativo, Em relagio ao 1* Grau, 0 “devera” do texto poder ser interpreta- do como nao obrigatoriedade, ja que a oferta sera feita “de acordo com as possibilidades da instinuicao,” Seria interessante também examinar 0 texto anterior do Projeto, de 1993, ndo aprovado pelo Senado, em que as altera- goes eram maiores: Sao também componentes curriculares obrigatérios do ensino fundamental e médio, 0 estudo da arte, a educagao fisica, e a partir da quinta série do ensino fundamental, © estudo de pelo menos uma lingua estrangeira moderna, cuja escola ficaré a cargo da comunidade escolar, dentro. das possibilidades da instituigéo. Como podemos ver, nesse texto hd mudangas mais impor- tantes: 0 ensino torna-se obriga- trio a partir da 58 série; existe claramente 2 possibilidade da oferta de mais de uma lingua. Por outro lado, a margina- lizagdo continua, A lingua es- trangeira “também” faz parte das disciplinas obrigat6rias, 20 lado do estudo da arte ¢ da aducagio fisica. E qual € 0 es tatuto dessas disciplinas na escola? So as disciplinas con- sideradas supérfluas por um grande nimero de professores, também elas vistas como margi- nais, Elas pertencem a ‘cultura livre” de que fala Bourdieu quando analisa os bens simbéli- cos, transmitida ptincipalmente pela familia, fazendo parte do habitus familiar, As linguas es- trangeiras compoem essa cultu- ra, assim como outras praticas culturais: 0 teatro, a musica classica..., todas com um alto valor simbélico e sem muito lugar na escola... Diante dessas anilises, pode- mos até mesmo concluir que, 36 PRESENCA PEDAGOGICA + v.2 n.10 jul/ago. 1996 de certa maneira, as Iinguas es- trangelras estio presentes nos curriculos das escolas, mas que a escola néo considera essa presenga. Hi dados concretos que nos permitem fazer esta afirmacao, Em primeiro lugar, uma grande discrepan de linguas pelas escolas. Encon- na oferta tramos as que oferecem duas linguas, francés e inglés, princi- palmente, havendo agora o ini- cio da oferta do espanhol (con- seqiiéncia direta do Mercosul?) e outras escolas que nenhuma oferecem. A maior parte oferece © inglés nos dois dltimos anos do 1° Grau e ainda o inglés num dos anos do 2° Grau. Ha alteragdes nao justificadas nas grades curriculares de um ano para outro que, junto a diversi- dade de critérios para definir a escolha das linguas, revelam a falta de clareza dos objetivos do seu ensino na escola. As condigées de trabalho dos professores sio também motivo de discussdo: turmas muito numerosas, dificuldade no estabelecimento de objetivos € na escolha do material peda- gOgico. Os professores se quei- xam ainda da marginalizagao das linguas na escolas. Blas, em geral, ndo tém nota (0 que sig- nifica, para a representaclo de “escola” de muitos, que elas ndo tém importéncia), ja que no fazem parte do nticleo co- mum obrigatério, e os professo- tes so muitas vezes questiona- dos sobre o significado do ensi- no de linguas, principalmente para alunos das classes popula- res. A resposta nunca é ficil se ndo h4 uma reflexdo profunda sobre os objetivos do ensino, de uma forma mais ampla. Os Fesultados. desse quadro € que encontramos um ensino muitas vezes sobre a lingua, gramatical € baseado na tradugaio mais do que um ensino da lingua, Um ensino que nao leva em conta as dimens6es interativas da lin- guagem. Um trabalho que no leva a um produto final satis- fatério nem explora as possibi- lidades do processo de aprendi- zagem, Um bom exemplo disso € a expressio “meu inglés (ou outra lingua) é de colégio”, que muitas pessoas utilizam quando querem se referir a0 pouco co- nhecimento que possuem de uma lingua estrangeira, E se falamos em ensino, é importante considerar onde se di esse ensino de 1° e 2° graus. educacio- No contexto so nal brasileiro, a escola ainda é inacessivel a muitos. Nao des- conhecendo toda a discussio sobre © papel da escola em nossa sociedade, € impensavel ignorar que ela representa, para muitos, a tinica possibilidade de acess. a determinados conheci- mentos, a determinados bens culturais, Entre eles, 0 aprendi- zado de uma lingua estrangeira, Considerando apenas 0s objeti- Jul Jago. 1996 ¥.2 n.10* PRESENGA PEDAGOGICA 37 vos do ensino de linguas, é preciso pensar nas especi- ficidades do Brasil. Nao mos a dos alunos dificilmente iré a um outro pais, Nao discutimos tam- bém que a necessidade de se comunicar em outra lingua € restrita para nossos alunos. Que cut éta de que a maioria poucos entre eles enfrentardo 0 vestibular ou terio outras ne- cessidades de leitura em lingua estrangeira, Esta situacdo, no entanto, no € argumento para a nio inclusdo das Iinguas es- trangeiras nos curriculos das escolas, nem para que o seu ensino seja considerado algo supérfluo. ‘A escola no pode ter uma perspectiva imediatista. Nao cabe a ela decidir, previamente, a utilizagao que © aluno fara do que aprendeu, Justamente por- que reconhecemos 0 cardter de classe de nossa escola € que é preciso que nosso aluno tenha os meios de desenvolver, se assim 0 desejar, o seu conheci- mento de-linguas. E, para a maior parte deles, que ainda nao adquitiram.o valor simbéli- co do aprendizado de linguas, é a escola, e apenas ela, que pode permitir esse primeiro contato, essa primeira descober- ta das Iinguas. < Outro aspecto a destacar é 0 valor formative, educativo, da aprendizagem de linguas, consi- derando ai mais 0 processo de aprendizagem que 0 produto final. E quais sio as possibilida- des do ensino de linguas? Cer- tamente ele oferece um espaco privilegiado para o desenvolvi- mento de algumas reas de co- nhecimento. A mais importante, a meu ver, dei Tingua materna e lingua estran- a das relacdes entre geira. A aprendizagem de uma lingua estrangeira permite a0 aluno uma visto diferente do que é uma lingua, logo, uma percepedo diferente do que é a sua lingua. Ela vai possibilitar 0 desenvolvimento da competén- cla metalingifstica do aluno, da sua capacidade de perceber os fatos da lingua e de sua utiliza- cio. Além disso, intimeros tra- balhos podem ser realizados de forma paralela nas duas linguas, como, por exemplo, um traba- Iho sobre as especificidades da oralidade e da escrita. © traba- tho com Ieitura em lingua es- trangeira vai ainda permitir a aquisicio € 0 desenvolvimento de determinadas habilidades e estratégias que podem ser trans- postas a outras situagdes de lei- tura, em lingua, materna. © en- sino-de: linguas permite tam- bém, pelo distanciamento pro- vocado pela lingua estrangeira, toda uma reflexto sobre os di- ferentes registros de uma lin- gua, Se o aluno descobre que existe a possibilidade de duas linguas se referirem de forma diferente a uma mesma coisa, € mais facil, para ele, ver esse fato em sua propria lingua. As possibilidades das rela- gOes entre a lingua estrangeira ea lingua matema nio se esgo- tam ai, e merecem ser objeto de discusses ¢ trabalhos conjun- tos entre os professores Numa outra perspectiva, que poderia chamar-se de antro- pol6gica, a lingua estrangeira € um espago de reflexdo sobre © relativismo cultural, sobre o etnocentrismo. Ela pode permi- tir ao aluno, através do distan- ciamento critico, uma melhor compreensio do que é a sua cultura, a sua identidade social € politica, Descobrir que ha di ferentes formas de recortar 0 mundo, de se referir a ele, pode ser um instrumento im- portante na formagio de cida- 38 PRESENGA PEDAGOGICA + ¥.2 n.10 julJago. 1996 daos mais criticos, mais cons- cientes, A percepcio da diversi- dade lingiistica e da diversida- de cultural pode ser um ele- mento formador importante, £ preciso também conside- rar as vantagens cognitivas da aprendizagem de linguas. Como outras disciplinas, ela pode per- mitir 0 desenvolvimento ¢ a tomada de consciéncia de certas estratégias de aprendizagem, ela pode desenvolver a capaci- dade de anilise, de raciocinio, da habilidade de formular ¢ dé verificar hip6teses. No entanto, € necessério ain- da dizer que, para realizar todas esas possibilidades, € impor- tante permitir 0 acesso a mais de uma lingua. A hegemonia de uma s6 lingua, se pode ser justificada por razSes econémi- case politicas, no o seré por razbes educativas e culturais, Expor o aluno a duas, trés Iin- guas, seria 0 ideal, Talvez seria este 0 papel essencial do ensi- no de linguas no 1? Grau: pos- sibilitar a0 aluno 0 contato com varias linguas para que, depois, ele possa fazer sua escolha ba- seado em seus objetivos, seus desejos, Para que ele possa ter acesso a um capital cultural re- servado s elites e ao qual ele tem direito. Para que ele possa (por que nao?), realizar seus sonhos.. E € com 0 sonho que come- ¢a tudo, O espago do sonho, do magico, do desconhecido, do outro... € uma dimensio do en- sino de linguas freqilentemente ignorada pela escola, Da atra- ¢40 da lingua do *p" de nossa infincla, ao. prazer. de estudar muitas linguas, hé um longo caminho. Caminho do risco, do desafio, da criagio, da inven- cdo, Téo importante como os outros caminhos da escola... no curriculo da educa. 80 do povo: necesséria’ ou su- pérflua? Rio de Janeiro: IEAE., 1985. [Dissertasdo, Mestrado), MAGALHAES, Helena Gramiscelli SOARES, Magda Becker. Lingua- {gem e escola: uma perspectiva + social. S40 Paulo: Atica,1986. PRESENCA PEDAGOGICA 39

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