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XL Congresso Luso Afro Brasileiro de Cléncias Socials A DIASPORA E 0 MOVIMENTO SOCIAL DAS MULHERES, AFRODESCENDENTES DAS AMERICAS Maritise Luiza Martins dos Reis Doutoranda do Programa de P6s-Graduagao em Sociologia Politica peta Universidade Federal de Santa, Catarina (UFSC), Florian6polis, Brasil; Professora substituta da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Florianépotis, Brasil. INTRODUGAO Atualmente, a diéspora ndo pode mais ser entendida apenas como mero deslocamento fisico, em sentido geografico, isto € ato, De termo empregado como uma metéfora de deslocamentos ¢ de desterritorializagdes que muda ¢ amplia a prépria nogio de afastamento geogréfico, passou também a designar um tipo de consciéneia, um modo de produgio cultural, uma espécie de experiencia intelectual ¢ consciéneia identitaria que perturba modelos fixos de identidade cultural (Hall, 2003), Ao desterritorializar reterretori izar, em escala real ou virtual, vem pondo em xeque a compreenstio do tertitério apenas como mero substrato fixo, ou como uma parte qualquer da superficie terrestre — na qual o Estado-Nagao exerve seu poder e estabelece seus limites — para Vé-lo, ou subverté-lo, sob um prisma mais subjetivo, simbélico, um espago no qual © sujeito estabelece um vinculo afetivo, constréi sua hist6ria € concretiza suas relagdes 108 sociais. Talvez isso se explique porque # diéspora pressupde uma experiéncia de extratertitorialidade e traduza a ideia de uma vida fora do territério “terra mie”, ou muitas vezes inclusive, “fora” porque “no” territ6rio de “acolhimento”. Torna-se, portanto, a didspora, uma espécie de laboratério das experiéneias sécio-espaciais pés- modernas € de fendmenos correlatos como a fragilizagdo de alguns Estados nacionais, da fluidez econdmica e do hibridismo cultural Na América Latina Caribe, tomando « diéspora africana como perspectiva, 0 termo ainda pode ser concebido por um terceiro prisma: como Movimento Social. E sto as mulheres afrodescendentes deste tertitério, as protagonistas, as vozes que empreendem esse processo, mulheres que nos tltimos vinte anos se organizaram de miltiplas formas e que, a cada ago politica que desenvolvem, vém impondo diferentes tertitorialidades ¢ estéticas, ¢ politizando temas que até entdio estavam subalternizados e invisibilizados. Sao elas quem tém contribuido significativamente para evidenciar as desigualdades raciais e de género a que os povos afticanos escravizados trazidos para as Américas estiveram (e esto ainda) sujeitados, promovendo didlogos permanentes percorrendo caminhos que possibilitam romper fronteiras e construir parcerias e priticas estratégicas com a sociedade civil, com 0 executivo, o legislativo, o judiciério ¢ com agéncias de cooperagio nacional € internacional na busca da formulacio e implementacao de politicas piiblicas de promogdo de igualdade, da eqiiidade e da justica social. E, nesse sentido, constituem cada vez mais um movimento transnacional glocalizado na regiao, reunido em torno de miiltiplas identidades afro que, por sua vez, indicam a superposigao de novas territorialidades, multiterritorialidades, ou ainda, transterritorialidades, mudangas espagos-temporais que produzem alteridade € solidariedade, mas também conflitos e distanciamentos, Desse modo, 0 periodo que se desenvolveu ao longo da década de 1990! marcou ‘© espago de onde ecoam vozes © estéticas diaspéricas que se concretizam pelo movimento. Foi a partir dessas vozes e estéticas que se fizeram ouvir e ver, compostas por liderancas femininas ¢ feministas de uma diversidade de movimentos negros — religiosos, auténomos, sindical, académicos, cultural — de varias regides da América Latina e Caribe que, no biénio 2000/2001, a temética do racismo € da diseriminagao racial se consolidou como pauta internacional, em fungio principalmente do proceso preparatério para a III Conferéncia Mundial contra o Racismo, a Discriminagao Racial, a Xenofobia e Intolerancias Correlatas (Carneiro, 2001). protagonismo destas mulheres nesses espagos preparatérios é evidente, pois, a partir dele, expandiu-se o ntimero de redes organizagdes, como foi, por exemplo, 0 caso da criagio da Articulagio de Organizagdes de Mulheres Negras Brasileiras — AMNB, rede nacional fundada em 2000, no pés-Durban, cuja declaragao explicitou os. efeitos perversos do racismo, do sexismo e do classismo sobre este contingente social (Carneiro, idem). De fato, as mulheres negras passaram a elaborar eriticas sisteméticas As questdes que evolvem as politicas de modernizagiio, denunciando questées sérias como a relagio de subordinagio estabelecida entre homens e mulheres e entre as mulheres braneas € negras no seio das mais variadas sociedades de passado colonial. Nesse interim, questionaram a ideia de nacio, as condigdes historicas das Américas que " Perfodo no qual movimento de mulheres afrodescendentes envolveu-se em definitive com os debates lemiticos das Conferéncias Mundiais organizadas pela ONU para a ampliago o fortalecimento da abordagem da intersecgao de pénero, etnialraga e classe no ambito internacional. XL Congresso Luso Afro Brasileiro de Cléncias Socials construiram a relacdo de coisificagdio dos negros em geral © das mulheres negras em particular, assim como denunciaram a maneira subalternizada e marginalizada com que foram incorporadas nos movimentos sociais, tanto feministas quanto negros, na medida em que suas questdes especificas foram secundarizadas. Ao demonstrarem o caréter mundial ¢ transnacional das situagdes de conflito, invisibilidade e exclusio vivenciadas por todas elas na regitio, construfram novos caminhos na luta pela igualdade e justiga, assim como a consciéncia da sua insergéio em fronteiras cada vez mais fluidas. Segundo diferentes autoras, tanto nesses territ6rios como no Brasil, sio visiveis as vivacidades do feminismo negro com sua trajetéria de reformulagdes, conflitos & conquistas, trazendo novas personagens, repensando fronteiras realidades. Foi a afirmagio desses protagonismos ¢ dessas agendas politicas entrando efetivamente na pauta politica, ¢ transitando mundo afora, que passou a compor 0 que denomino como, as vozes, cultura © estéticas da didspora na América Latina e Caribe. A organizaciio das mulheres negras passou igualmente a incidir de maneira positiva na condigéo de vida das mulheres em geral ¢ de toda a sociedade, Em contrapartida, a reflexiio vivencial & idade de teérica © © potencial organizativo dessas mulheres vém impondo a neces sentidos e os nio sentidos das suas abordagens que déem subsidios para compreender os agdes (Scherer-Warren, 2005, 2006). A multiplicagao de estudos sobre as narrativas, “vozes” e priticas das didsporas, de fronteira e das chamadas minorias “raciais” e sexuais € um reflexo desse fendmeno. Esses estudos, além de reiterarem 0 que a teoria das redes dos movimentos sociais jé comprovou, de que os novos processos articulatérios da sociedade civil, e suas respectivas formas de empoderamento, t¢m se dado na forma de redes, trazem algumas outras varidveis que apontam para um novo sentido. Exigem novas posturas das pesquisas em torno desse tema, que passem a considerar 0 empoderamento e protagonismo dessas mulheres como um movimento diaspérico, constituido como movimento social e dotado de uma estética de ago que se configura cada vez mais na 2010). Mas, afinal 0 que implica o sentido da diaspora nesse processo? E esta questio forma de redes, transnacionalmente (Reis que vamos discutir nesse trabalho tomando a Red de Mujeres Afrolatinoamericanas, Afrocaribenas y de la Diaspora como lécus emunciativo. XL Congresso Luso Afro Brasileiro de Cléncias Socials 1 Nogies de diaspora: usos e sentidos A definicdo do conceito diéspora vem dos antigos termos gregos dia (através, por meio de) e speiré (dispersio, disseminar ou dispersar) e est associada, em termos histéricos, & migragio e colonizagiio da Asia Menor e do Mediterrineo. No sentido clissico, a nogio de diaspora tem correspondido a exilio forgado, dor e sofrimento, visto sua referencia & dispersio dos judeus exilados da Palestina depois da conquista babil6nica. Essa caracteristica da diaspora resultou no primeiro entendimento sobre a mesma como uma experiéncia no voluntéria, portanto traumatica, ou seja, como um processo que constituiria um sentimento de perda, consequéncia da impossibilidade de retorno a terra de origem. Largamente utilizada pelos estudos historiogréficos, principalmente pelos estudos que trataram da escravidio africana dos séculos XVI a XVIIP, as teorias da didéspora introduziram uma grande diversidade de textos que destacam as vibrantes tradigdes culturais das populagdes descendentes de africanos nas Américas e em muitos paises da Asia a Europa. Uma geracio de académicos, representando varias nacionalidades e etnias e extrapolando o campo da histéria — —destacando-se principalmente no campo dos estudos da Antropologia -, tiveram um papel bastante direto em formatar os conceitos e questées que vieram a dominar os escritos da histéria da didspora africana e das culturas de comunidades descendentes de africanos nas regides das Américas de falas espanhola, inglesa e francesa. Entretanto, a nogiio de didspora presente nesses estudos esteve bastante reduzida a ideia do trifico transatlantico de africanos escravizados, referindo-se muito mais a0 fenémeno do deslocamento geogedfico dessas populacdes com fins comerciais para as Aiméricas, do que a um movimento, por consequéncia, também simbélico e cultural. Talvez tenha sido a inseredo de intelectuais negros como W. E. B. Du Bois, Richard Wright, Martin Delany, Frederick Douglas, desenvolvendo novas discussdes sobre a modernidade e reelaborando as narrativas oficiais por meio de relatos interculturais e Diferentemente da hisGria da Alrica os primeiros rabalhos académicos sobre a diéspora foram eseritos por afro-americanos ou foram publicados em periddicos fundados por eles. O académico e tedrico das Telagoes rains afro-americano WEB. DuBois pode ser considerado um dos fundadores do eampo com a publicagio de The Supression of the Slave Trade to the United States, publicado em 1896, como © primeiro volume da série Harvard Historical Studies, XL Congresso Luso Afro Brasileiro de Cléncias Socials anti-etnocéntricos da Histéri e da cultura politica negra moderna que tenham dado novos vigores para a nocio de diaspora’ Segundo Paul Gilroy (2001, p. 151), os textos elaborados por esses autores, com base em suas experiéncias de viagem e exilio, “expressaram o poder de uma tradicio de escrita na qual a autobiografia se torna um ato ou processo de simultnea autocriagiio & auto-emancipacio” € passaram a demonstrar a complexidade presente nessa ideia. Ao utilizarem a memoria da experiéneia da escravidtio como um instrumento adicional, construiram uma interpretagio di finta. da_modernidade, introduzindo a ideia da ambivaléncia, por meio da qual se passou a demonstrar um complexo entrelacamento entre as formas culturais particulares negras. Na Enciclopédia Brasileira da Didspora Africana (Lopes, 2004, p. 236) encontramos, por exemplo, a conceituagdo da didspora como um termo que “serve também para designar, por extensio de sentido, os descendentes de africanos nas Américas ena Europa e 0 rico patriménio cultural que construiram” [grifo meu]. 0 termo € também concebido como uma forma de conscientizagio, na qual a diaspora passou a significar simultaneidade de consciéneia de patrias e culturas (Gilroy, 2001), da qual resulta 0 sujeito diaspérico, 0 sujeito hibrido, que nio se refere a uma composicao racial mista da populacdo, mas a um processo de tradugio cultural que nunca se completa, uma vez que esté em constante negociagao, perturbando modelos fixos de identidade cultural (Hall, 2003). A constatacio da existéncia diaspérica passou a evidenciar a situagao de “entre lugar™, caracterizado pela desterritorializacio e reterritorializagio e pela implicita tensio entre “a vida aqui € 0 desejo por Id”. Nesse sentido, os que vivem na diaspora * Os intelectuais diaspéricos, cujas identidades se tornaram mditiplas e hibridas, assumiram um papel importante no desenvolvimento dessa nova abordagem, na medida em que passaram a pontuar a ntidade de diéspora como uma formagdo que abarca a reconstrugdo identitéia pelo jogo da semelhanga edadiferenca, * De acordo com o que foi desenvolvido por Homi Bhabha, Gayatri Spivak, Eduard Said, etc., 0 entre- lugar sio os espagos de fronteira culturais, so os intersticios das individualidades emergentes onde podemos ver os problemas das diferengas serem iluminados e discutides. Ou ainda dizendo de outra forma, & a ‘sobra’ destes Iugares os’ “entre-lugares” onde surge a diversidade dos sujeitos nao contemplados petas categorias hegemOnicas, como mulheres, negros, punks, gays, etc. (BHABHA, 1998). Portanto o entre-lugar nio & uma abstrago, um nio-lugar, mas outra construgio de terrtGrios e formas de Pertencimento, no simplesmente “uma inversio de posigées” |, mas um ‘questionamento desta hicrarquia, a partir da antropofagia cultural, da traigao da meméria e da nogao de corte radical (SANTIAGO, 1982). XL Congresso Luso Afro Brasileiro de Cléncias Socials (migrantes, imigrantes, exilados, refugiados, entre outros) compartilhariam uma dupla — se ndo méiltipla — consciéncia e perspectiva caracterizadas por um didlogo dificil entre varios costumes € maneiras de pensar, ver © agir. Moram em linguas, historias © identidades que mudam constantemente. Sao tradutores culturais cujas passagens fronteirigas minam limites estaveis ¢ fixos e reescrevem o passado € as tradigdes, num. proceso de transformagio continua; um recontar que hifeniza autenticidades e problematiza os intersticios ocultados pelo discurso oficial (Hall, idem), Por isso mesmo, 0 fendmeno social da diaspora pressupde metéforas universais da configuracdo psicolégica do individuo, especialmente na crescentemente dramética intersecgio das culturas do mundo globalizado de hoje (Walter, 2008). A diaspora inda se apresenta de miltiplas formas estéticas: nas artes plasticas, na literatura, na miisica, como por exemplo, 0 caso do reggae, estilo musical que simboliza a triangulaco dialégica entre América, Africa e Caribe. As’ im, a didspora, para além da sta concepeao como formacio social (migraco voluntéria ou forgada), constitui um fendmeno global, desterritorializado ¢, muitas vezes, virtual € imaterial’. E 0 que podemos d Especificamente no que se refere a diaspora africana encontramos trés didsporas nar como “sentido abrangente de didspora”. histéricas, se assim podemos designar: a primeira referente ao trifico transatlantico frabe-europeu; a segunda, referente aos deslocamentos “voluntirios” © 0 vai-e-vem em massa de afticanos ¢ afrodescendentes, principalmente durante 0 século XX, como resultado das guerras de descolonizacdo e, por tiltimo, a terceira didspora, conceito desenvolvido por Goli Guerreiro (2009), que reflete 0 momento atual das culturas negras do século XI deslocadas por meio de signos — fcones, modas, miisicas, filmes, livros, provocado pelo cireuito de comunicagio da diaspora negra. Circuito potencializado pela globalizagio eletrénica e pela web, que vém colocando em conexio digital os repertérios culturais de espacos e cidades atlanticas como Salvador, Dakar, Harlen, Londres, Martinica, Trinidad e Tobago, ete. 5 Para Sérgio Costa (2006, p. 125), por exemplo, a difspora corresponde aos “contextos transnacionals de aco” e apresenta-se como um novo espaco onde aluain os alores sociais, as estruturas de agdo e os discursos, Por no terem uma terri(orialidade nem uma temporalidade definida e por apresentarem como ‘elemento comum o fato de que, neles, as referéncias nacionais aparecem dituidas ou deslocadas de seu ccontexto territorial de origem, os contextos transnacionais de agdo apontam a configuragdo de novas

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