De agora em diante, sabemos que podemos nos defender, caso
a ficção se torne realidade mais uma vez
Marcelo Gleiser, é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
Às vezes, a realidade surpreende até as ficções mais ousadas. Em
1998, os cinemas foram invadidos por dois filmes, "Armageddon" e "Impacto Profundo", ambos contando como a Terra e seus habitantes foram salvos (por um triz, claro) de uma colisão catastrófica com um bólido vindo dos céus.
No caso de "Armageddon", o bólido era um asteróide "do tamanho
do Texas"; em "Impacto Profundo", era um cometa com dez quilômetros de diâmetro. As missões de salvamento eram semelhantes: ir ao encontro do bólido, pousar em sua superfície e plantar bombas nucleares em seu interior.
No caso de "Impacto Profundo", a estratégia não funciona, e o
cometa é divido em duas partes. A menor, com 2,5 quilômetros de diâmetro, cai sobre o Oceano Atlântico, causando uma verdadeira devastação. A maior só não cai porque a tripulação da nave resolve ir a seu encontro e detonar quatro bombas simultaneamente.
No dia 4 de julho, cientistas da Nasa praticamente imitaram o filme:
orquestraram a colisão de um projétil do tamanho de uma máquina de lavar contra o cometa Tempel 1, viajando a 30.000 km/h, a 120 milhões de quilômetros da Terra. E, como bônus, tiveram o evento filmado e os dados coletados por uma nave-mãe que acompanhava-os a uma distância de 450 quilômetros. O objetivo da missão, chamada Deep Impact (impacto profundo), não era salvar a Terra, mas analisar a composição interior do cometa, ou seja, do que é feito.
Cometas são objetos que circulam nas bordas do Sistema Solar,
resquícios de sua origem ocorrida há 4,6 bilhões de anos. Pode-se até dizer que são uma espécie de lixo cósmico, detritos que não foram absorvidos quando Júpiter, Saturno, Urano e Netuno foram formados.
Portanto, o material que compõe cometas é o mesmo que existia
quando os planetas nasceram. Ao estudá-los, estamos na verdade olhando para a infância do Sistema Solar e, portanto, da Terra. Isso se torna ainda mais importante devido ao fato de a Terra ter sido bombardeada intensamente por cometas durante seu primeiro bilhão de anos. Segundo teorias atuais, a água que temos aqui foi trazida por esses bólidos; o surgimento da vida só foi possível por causa deles.
Existem dois berçários de cometas. Um, chamado de cinturão de
Kuiper, fica um pouco além da órbita de Netuno. O outro, a nuvem de Oort, fica bem mais afastado. Tal como planetas, cometas também giram em torno do Sol. De vez em quando, um deles tem sua órbita desestabilizada e viaja em direção ao coração do Sistema Solar. Caso sua rota coincida com a da Terra, um impacto é inevitável. Ou pelo menos era.
Ainda é cedo para relatar o que foi aprendido com a colisão, ao
menos no que diz respeito à composição do cometa. Parece que ele contém água, que o seu interior é bem mais duro do que o seu exterior, provavelmente rochoso. O cometa parece ser totalmente negro e conter crateras, algo que não era previsto nesses objetos. Serão meses, anos, até que os dados sejam devidamente analisados.
O que é imediatamente óbvio é que temos a tecnologia necessária
para interceptar esses objetos celestes. E de modo ainda mais eficiente (mas não tão emocionante) que nos filmes, sem a intervenção direta de humanos.
A missão foi controlada da Terra, desde o projeto inicial e
lançamento até os 172 dias de viagem que precederam o impacto. Deixamos de ser apenas alvos de possíveis impactos cataclísmicos. De agora em diante, sabemos que podemos nos defender, caso a ficção se torne realidade mais uma vez.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College,
em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu" Autor: MARCELO GLEISER Origem do texto: COLUNISTA DA FOLHA Editoria: MAIS! Página: 9 Edição: São Paulo Jul 10, 2005 Seção: + CIÊNCIA; MICRO/MACRO Observações: PÉ BIOGRÁFICO Assuntos Principais: ESPAÇO; COLISÃO; NASA; ASTERÓIDE; COMETA