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IA AUTORIZACGAO A ADVOCACY Ww mportantes no Ambito da teoria p -afundado na autorizagio do eleitorado e na , despreocupado com as caracteristicas ies, era.0 ponto de chegada da obra déPitkid * presenga ou formasalternativas grupos subalternos tocaramem tro lado, algumas de suas vertentes mais contempo- jam obscurecendo de tal modo elementos centrais do 0 foi diluido. As relagées ssses e poder ficaram obscurecidas por >, que deposita na boa individuaise coletivosa esperanca de uma ada. Meu objetivo neste capitulo, ao jeorlas recentes darepresentagio politica, é pontuar ecolocar a nocdo de interesse no centro da nossa Fe PET tet ce mee a Sea 240 wis FELIPE muEL compreensio da representasio politica, bem como de restabelecer Gentendimento de que a atividade representativa é uma forma de exercicio de p ae “Participo, de Shapiro, a virada deliberacionista do pensamento p {que apresentei no capitulo “Os limites da deliberagé fundo das démarches na teoria da representagio com as quaisdialogo. Hi um esvaziamento do carater conflitivo da politica, ao mesmo tempo que posigao critica deixa de remeter a valores substantivos, invocando, em seu lugar, um ideal de justica agnéstico em relagio as diversas concepgées de bem e basicamente procedimental. Mas ‘uma abordagem critica do ordenamento das “democracias realmente cexistentes”, preocupada com a igualdade politica, nao pode abrir mio de uma compreensio realista do funcionamento da politica, E as fontes para tal compreensio, muito mais do que nas teorias alternativas hoje em voga, esto no pensamento liberal eem seu filho enjeitado, o marxismo. Por realism indico a tradigao que remonta a Maquiavel, Focada no entendimento de que os con gramatica. Em particular, essa tradigdo reconhece que os embates 208 nao se resolvem em termos de justica, apesar de mobi- arem diferentes concepgdes de justiga e de sua capacidade de se vincular a tais concepgdes ter impacto em sua efetividade. Sao embates por poder, formulagdo que nao implica que os agentes politicos sejam necessariamente “maus", segundo a moralidade con- vencional, ou insensiveis as preocupagdes e ao bem-estar de outros, Indica apenas que o poder é0 recursonecessério paraa realizacio de qualquer objetivo politico, até mesmo para a efetivasao de alguma determinada concepcio de justia, ‘A politica democritica coloca a questo em outro patamar. Hé ‘uma norma de reciprocidade, portanto de justiga, quando se reco- neve que so legitimasa presenga, a discordéncia ea agio do outro «em busca de suas proprias preferéncias. A construcdoda democracia DEMOCRACIAEREPRESENTAGAO 247 ito abraga quanto se contrapde ao cardter agonistico da luta ‘Tal tensio nfo pode ser eliminada, seja na pratica, seja na a busca de uma democracia isenta do conflito nega seu proprio cardter democratic. ‘Trata-se de algo que ja se apresenta nos entendimentos corren- tes da representagio politica, expressos no senso comum, na midia no autodiscurso dos proprios agentes do campo politico. E uma ‘compreensao cindida em duas. De um lado, um requisito norma- tivo de atengao ao “bem comum’” ou algo similar, frouxamente definido a ponto de nele caberem tanto Burke quanto Rousseau, Do outro, a percepgio de que as esferas representativas so a arena em. {quese resolvem os embates entre “grupos de interesse”, entendidos de acordo com a vulgata pluralista que nasce da obra do primeiro Robert Dahl e de David Truman, conceito de “interesse” € central para a ciéncia social e par ticularmente complexo, Albert Hirschman (1979 [1977)) faz uma . fascinante reconstituigao dos usos do “interesse"” no pensa- suropeu, desde seu surgimento como “interesse de Estado ‘ua expansio para abranger também os agentes privados e, enfim, nto pelo qual a "paixio dos bens edo dinheiro” perde seu ‘paixo" e torna-se interesse por exceléncia, nio apenas capaz. de moderar as outras paixdes. Nao pretendo, -me nessa discussio, mas identificartrés problemas, | Em primeito lugar, a relagdo entre interesse e egofsmo. A afir- Imugio da centralidade do interesse é, muitas vezes, tomada como _ ieluindo a postulagéo de um comportamento egoista proprio a tureza humana’. Ngo se trata, porém, de afirmar a uni- ‘Yervalidade do autointeresse na agéncia humana, flanco atacado faqueles que buscam demonstrar a banalidade do altruismo. ter (1990, p.46) define o altrufsmo puro como contribuigéo ima (portanto, no explicavel pela busca de prestigio social) | heneficidrios indeterminados (portanto, no explicavel pelo fazer de proporcionar prazer). Ainda que definido de forma tio tu, 0 altruismo motivaria transferéncias globais de cerca de 242 Luis FEUPE wiGuEL icativo. O conceito de € passivel de criticas, 1% da renda das pessoas, um volume sig altruismo manejado por Elster, no ent Por um lack ‘ages egofsticas vinculadas a erengas no sobrenatural (salvacio da.alma, vida eterna, reencarnagio etc.). Por outro, éestreito, uma vez que exige que a acio altrufsta possua uma ou mais pessoas con- cretas como beneficiérias, nio aceitando que seja voltada ao bem de uma coletividade abstrata (“a nagio”, “o povo”, “o partido” ou ainda “o planeta”). Seja como for, o sacrificio do proprio dinheiro, conforto e segu- xanga em prol de outras pessoas, préximas ou distantes, ou de uma causa é algo corrente. Chamé-lo de “egofsta” por conta do envol- vimento afetivo ou do sentimento de dever mobilizados exis que uma agdo, pata ser considerada genuinamente altruista, fosse nao motivada, 0 que é um evidente contrassenso. De fato, nao é possivel reduzir as ages humanas a uma tinica motivagio e a ideia de um autointeresse onipresente s6 se sustenta caso 0 conceito se tome tautol6gico (minha agao revela meu autointeresse, portanto, toda agao é autointeressada), © ponto é entender que, para além do comportamento especifico deste ou daquele agente iné dinimica do conflito social s6 ¢ compreendida com referéncia aos interesses dos grupos que dele ‘f-O segundo problema é relasio entre intere escolhas. Como observou Sunstein (1997, p.15-t rational choice tende a equiparar preferéncias e escolhas, como se cada escolhi fosse o indice imediato de uma preferéncia que nela se desvela, No entanto, escolhas sio fruto da interagio de preferéncias, com contextos e, por si sés, pouco dizem das motivasies dosagentes. Por exemplo: diante da opcio entre A eB, eu escolho A, nfo porque prefira A —posso ser indiferente ou mesmo preferir B-, mas porque, no contexto em que minha decisao é tomada, a escolha de A projeta diante dos outros (ou de mim mesmo) uma determinada imagem. ‘Assim, o que eu prefiro no é A nem B, mas essa imagem; ea esco- tha, em si mesma, néo revela minha preferéncia, a menos que outros ‘elementos sejam acrescentados ao cenétio. éamplo em excesso, pois nao leva em conta as moti- preferéncias e corrente da DEMOCRACILEREPRESENTAGAO 243 E possivel, entdo, entender preferéncia como a predilegdo por alguma situag2o ou estado, que leva ao interesse em determinadas medidas ea escolhas em situagdes concretas. Minha preferéncia pot ‘mais tempo livre me leva a ter interesse na reducdo da jornada de trabalho e, assim, a determinadas escolhas politicas, O interesse se estabelece como 0 mével privilegiado do conflito politico porque organiza as escolhas e porque as desavengas se vinculam a medidas que podem ou nao ser efetivadas, nd a predileges abstratas. ‘A frequente opgao por trabalhar comas “escolhas” se liga aofato de elas serem identificadas sem ambigui ‘acontece com interesses ou preferéncias ~ e esse é 0 terceiro pro- blema, A tradigao dorninante da cincia politica toma os interesses como dados que nao podem ser questionados ¢ ignora os processos sociais de produgio das preferéncias. Do outro lado, uma tradigd0 marxista afirma que a “falsa consciéncia” impede os integrantes arem seus verdadeiros interesses, 1ra mecanica e simplista do processo de formagiio das pre- jas. Ambasas posigdes so insatisfatérias conforme discutido itulo “As dimensdes da representagao”). A privacio material uo "imperialismo cultural”, isto é, a importagdo de chaves simbé- licas para a leitura do mundo produzidas por outros grupos sociais (Young, 1990a, p.58), séo impedimentos importantes @ formacio auténoma de preferéncias. ‘As dificuldades com o conceito de interesse justificam a mudanga patrocinada por Iris Marion Young, que apresenta opi- nides e perspectivas como elementos paralelos a serem levados em conta na avaliagio dos sistemas representativos. No capitulo anterior, analisei as imitagées do uso de “perspectiva social” como chave para um entendimento renovado da representasao politica, ‘Uma delas é que, ao enfatizar que a perspectiva € um ponto de vista sobreo mundo, que ndo se desdabra necessariamente em interesses, eS abre-se espago para uma leitura epistémica da pluralidade de vozes ”~ nos locais de tomada de decisio. A presenga dos grupos subalternos deixa de ser um imperativo de justisa, vinculado a necessidade de cevitar a concentragio de recursos de poder politico em umas poucas | 244 wesreure wicuet DEMOCRACIAEREPRESENTAGAO 245 pessoas, para se tornar um mecanismo de melhoria da qualidade da ‘mais completa da realidade e, assim, uma decisao cognitivamente superior. O conffito politico fica afastado, o que & mais um efeito “conhecimento situado” das diferentes posiges de grupo da “democracia deliberativa”. Conflito 6, no final das surge entdo como um recurso “para alargar o entendimento de contas, conflito de interesses e a defesa da politica de presenca tem todos ¢ mové-los para além de seus proprios interesses paroquil ‘aver com a necessidade de que os muiltiplos interesses se produzam (Young, 2000, p.109). Apesar de explicar que o “julgamento obje- se manifestem na arena politica. Considero um retrocesso 0 fato tivo” que defende, pelo qual meu proprio interesse é apenas um. «de que, na voga da “democracia deliberativa”, as concepgdes critica entre outros, nao é uma forma de transcendéncia das particularidas sobre a esfera politica tenham paulatinamente desinflado o cardter des (Young, 2000, p.113), ressurge aqui um i conflitivo da politica. transmutado na absorcio das perspectivas alheias (Squires, 2001, Dizendo de outra forma, uma nogio itl de perspectiva nao passa .20).! Assim, o conflito associado aos interesses € sobrepujado pela to largo da rlagao entre as perspectivas eos interesses, Perspectivas diversidade, que é propria das perspec sociais compartilhadas sao a base a partir da qual interesses coletivos Uma formulacio radical da compreensio epistémica da politica podem ser construidos. E, dadas as relages de dominagio presentes de presenga esti na obra de Robert Goodin. Para ele, a boa pratica interesses tendem a entrar em confronto. Naoha, deliberativa exige 0 dislogo interno com vozes que representariam, (8 outros, uma vez que o didlogo concreto é inviavel na pratica, de perspectivas", mas umn conflito de interesses. Os grupos domi- E fundamental a empatia para que cada um possa reprodus ‘nados, assim, precisam mais do que de um lugar para a verbalizagao em sua mente, as posigdes que, supde-se, seriam as defendidas «desuas perspectivas, Precisam de recursos para produzir e defender pelos outros (Goodin, 2000), Este acaba por ser 0 mecanismo seus interesses. A Enfase exclusiva na pluralidade de perspectivas, de incluso por exceléncia. Observando a impossibilidade da jobscurecendo o papel dos interesses, conta apenas metade da hist3- presenca de representantes de todos os grupos subalternos, dada ria edeixa de lado o elemento conflitive inerentea politica, a multiplicidade de clivagens sociais potencialmente relevantes, A nos de perspectiva, desvinculada de conffito, de interesses¢ in propde que alguns desses grupos estejam representados. depoder, permite tais desdobramentos. Além disso, conforme visto O objetivo é “representar o fato irredutivel da diversidade [sheer hocapitulo anterior, a presenca de integrantes de grupos subalternos mais que 0 exato parimetro desta diversidade” gos decisérios nio garante automaticamente uma efetiva (Goodin, 2004, p.463), lembrando a todos dos outros ausentes pluralidade de perspectivas. E necessirio levar em consideragao a acionando os mecanismos mentais de empatia que garantiriam a influéncia homogeneizadora do campo politico. boa representagao, ‘A presenga politica de grupos subalternos nao se justifica pela ‘Assim, a visio epistémica se aproxima de uma percepsao idea= necessidade de construir um arco-iris de perspectivas, mas por. lista da politica em que a multiplicidade de vozes geraria uma viséo_ que a posse do capital politico, assim como do capital econémico, cultural etc., engendra a possibilidade do exercicio de 1 Squires apresenta uma "solugéo” para o dilema — utilizar uma nogdo menos poder - e a concentragao do poder nas mios de poucos é uma iar nictain cana aah Cee eal le eed ibid Trnietiraecesesie rb manlen hGeubt ecco we s). Assim como a associagao entre uma maior ou menor ‘.auséncia de vids fora de um ponto de vista universal lade de aceder a tais formas de poder e determinadas 246 2, Ws reLRe MIGUEL DEVOCRACAEREPRESENTAGKO 247 caracteristicas imputadas, isto é, a monopolizagio dessas posigbes O voto em candidato privilegiaria a longue durée, a0 contririo do Por uns poucos grupos, ¢ também uma injustica.” voto em questées, como na democracia direta, que refletiria deman- ‘Asperspectivas, por sua vez, se mostram ferramentas titeis para das mais imediatas (Urbinati, 2006, p.31), pensar a produgao social dos interesses. As vivencias associadas ‘Avsicuscla fasten, tats fdlovante pars a. presenke discussie, a determinadas posicdes na sociedade geram pontos de vista que 6 que ela distancia os representantes de seus cor esto na raiz dos interesses sociais. O reconhecimento da impor= tancia das perspectivas produz a reivindicagio de que tais grupos ‘possuam espagos em que possam construir, de forma dialégica, um entendimento auténomo sobre seus proptios interesses. Mais do re idteet ola ane que dirctamente na demanda por representacao, esté nesse ponto "", A autonomia dos representantes (nao apenas ~ que liga perspectivas compartillhadas e produgao de interesses ~ 0 tno sentido do mandato livre burkeano, mas também da auséncia elemento mais ptodutivo do conceito de Young. de lagos identitarios) & necessdria para o bom funcionamento dos A tensio entre autenticidade e efetividade, descrita no capitulo processos deliberativos. O cariter democrético seria protegido pelo anterior como um efeito dos constrangimentos a agdo dos domina- toral, encarnagio do “poder negativo dos impostos pela estrutura do campo politico, aparece de forma - idade de destituicio dos governantes pela ndo diferente fecondugao ao inati, 2006, Opoder neg. da representagao politica, um ponto constante em sua obra. A repre= mera reedicao da sentagdo nfo 6, para ela, um sucedneo da participagao ou mesmo da franquia eleitoral visa exclusivamente dar aos governados uma democracia direta, adotado faute de mieux, E uma forma superior de ‘ama para evitar a tirania dos governantes. Os cidadios possuem organizacao politica que deve ser avaliada por seus proprios méritos, Ios interesses além da nao escravizagioe seu poder se exerce num Urbinati indica duas vantagens principais da representagio ijgamento eleitoral complexo e multifacetado. eleitoral. Ela Ao defender a ideia de representagio como advocacy, Urbins 10s transcendem 0 imediatismo de sua estes... A representayio—eojulgamento cleitoral que € parte necessatia da representagio democratica ~pro- jela os cidadios numa perspectiva orientada para o futuro e Os representados quanto para o funcionamento do sistema confere politica sa dimensio ideologica. (Urbinati, 2000, p.760)_ ico geral. A nogio de advocacy inclui compromisso com uma énfases suprimidas) : ), Mas nao se confunde com o partidarismo cego. Os advocates o conflito de interesses é admitido, mas controlado nento que os representantes so capazes de guardar 2 Nao necessérioir muita lange tal monopélio ferea segunda parte do segund principio dejustiga de Rawls. 248 us Feure micueL ‘emrelagdo as posigdes que advogam. Esse distanciamento 0 espago para que a razo possa se fazer presente na arena politica.* Ji para os representados, as vantagens se colocam em termos de eficécia. “Nés buscamos conseguir o melhor defensor [de nossas posigSes],niiouma cépia de nés mesmos” (Urbinati, 2000, p.776). A expertise do profissional da politica permite que os interesses sejam promovidos de maneira mais efetiva — uma versio repaginada do velho argumento da especializagio funcional, contra o qual sempre se levantaram todos aqueles que viam a aio pol cial para a liberdade, fossem republicanistas ou participacionistas, Na medida em que tal expertise se associa a posse ce competéncias, desigualmente distribuidas na sociedade, é provavel que os advoca~ tes, ndo importa quais posigdes defendam, provenham dos mesmos grupos sociais. Mas isso no 6 um problema para Urbinat Ainda que la diga que a representasio, tal como defende, éuma “politica de presenga por meio de ideias” (Urbinati, 2006, p.247; nfase suprimida), fica clara sua distancia em relacio as preo pages de autoras como Young ou Phillips. No méximo, Urbinati representante que acredita na e partilha da visio de seus constituintes presumivelmente estaré mais motivado e deter= minadoa advogar sua causa” (Urbinati, 2006, p.48). Mas néo se trata de uma abertura para a importincia das perspectivas sociais esim de uma (timida) desvinculagao da ideia de que a representagao 6 uma técnica a ser aplicada por um profissional que nao liga para qual é sua clientela. A identificagao € util (embora, pelo que se depreende da prudente formulagio de Urbinati, nfo obrigatéria); aidentidade, por outro lado, permanece supérflua. Falta, na compreensio de Urbi Primeiro, ofato dequeo representant como essen= atengio a trés element supa uma posigo de pos E no artigo "Unpolitcal democracy” predomina um tom ertico em relagdo & pressupostos da corrnte (Urbina, 2010). DEMOCRACIAEREPRESENTAGAO 249 Ele possui acesso a recursos politicos que 0 colocam em posisio de autoridade em relacdo a seus préprios constituintes. Gragas a especializagio na politica, possui também uma superioridade de conhecimento. A assimetria entre representantes e representados € um dos problemas da democracia representativa e 0 modelo de advocacy, com sua énfase na eficécia, tende a agravé-la. ‘Também falta a Urbinati o entendimento das consequéncias sgeradas pelas assimetrias de recursos politicos entre representantes representados. Sua aposta no “julgamento eleitoral”, que no é nada mais do que a crenga no fu ynamento dos mecanismos de Esse julgamento € contami- a que a mera participacao eleitoral prové e pelo \ciamento entre a vivencia cotidiana e o mundo das decisdes politicas. Um modelo que exige um fluxo de comunicagio pujante « horizontal entre representantes e representados pode funcionar «em seus préprios termos, mas niio se aplica as sociedades desiguais realmente existentes.* Por fim, falta a Urbinati entender que a representaclo politica im carater constitutivo que nao deve ser ignorado.’ Um dos. principais desafios da representacio politica democratica reside ai em nio bloquear a constituigio de determinadas identidades cole- tivas, nem imp6-las autoritariamente, garantindo um didlogo entre representantes e representados que depende da capacitasao politica destes iltimos. A delegagio das fungées representativas a advocates dotados de expertise superior pode gerar ganhos de eficécia, como quer Urbinati, mas apenas se as identidades e as preferéncias s30 percebidas como dados prévios. Como no é0 caso, adelegasio que Feito o lembrete, no se discute com tl controle pode ser efetivac sua auséncia, o que permanece de vélida no madelo proposto, 5. Cr. capitulo "As dimensbes da representagio" 250 us FELIPE MIGUEL rar dos constituintes a possibilidade de construir autonomamente suas preferéncias politicas ~ um incentivo, de fato, a que abracem “preferéncias adaptativas” (Knight e Johnson, 1997, p.298), ofere- cidas por aqueles que, de uma posicao social diferenciada, falam em ‘A nogdo de representacao como advocacy, tal como apresentada pot Urbinati, desdigua em interpretagdes menos cautelosas —no Bra- sil pelas maos, por exemplo, de Avritzer (2007) ede Gurza Lavalle, Houtzager e Castello (2006). Os rétulos sio variados: representagio presuntiva, representacao virtual, representacdo pelas organiza- ‘goes da sociedade civil, representagio por afinidade. Sem querer aplainar as diferengas entre esses autores e essas concepgées, hé um onto comum importante: € ideia de que, cada vez mais, existem intermediarios na relagio entre Estado e sociedade civil (que so “organismos da sociedade civil ou organizagbesndo governamentais), aceitos como interlocutores legitimos, na condigdo de representantes de determinados interesses ou grupos. Como pretendo demonstrat, a despeito da riqueza de insights nelas contidos, taisinterpretagdes lam seriamente os problemas ja identificados na posigio ati, sobretudo porque retiram o titimo anteparo —0 “ju gamento eleitoral” — que garantia alguma esperanga de controle dos representantes pelos representados. Tal como no caso de Young, © Urbinati, minha discussio aqui se volta para textos, no para autores —isto é, nfo farei mais do que referéncias breves a inflexdes presentes em outras obras, quer de Avritzer, quer de Gurza Lavalle e seus colaboradores, ‘Mesmonos momentos em que se mostra mais receptiva “repre- sentagao democratica nao eleitoral”, Urbinati aponta os problemas, da auséncia de formas de autorizacio e accountability. Bem ou mal, a representacdo eleitoral garante um patamar de igualdade entre 18 representados por meio do acesso de todos a franquia. “Nao ha igualdade equivalente de influéncia ou vézno dominio nao eleitoral, ‘onde as vantagens de educagio, renda e outros recursos desigual- mente distribuidos so mais capazes de se traduzir em padrdes de sobre e sub-representacio” (Urbinati e Warren, 2008, p.405). DEMOCRACEREPRESENTAGAO 251 ‘Tal preocupacio parece ausente em muitos estudos que tratam de advocates nto eleitos. “ Representacio politica e organizagdescivis", de Gurza Lavalle, “Houtzager e Castello, seapresenta como uma investigagioempirica sobre organizagées da sociedade civil em Sio Paulo, que os autores ‘constatam que exercem fungées representativas. Trata-se, entdo, de adaptar a teoria a uma situacao dada pela realidade. As entidades da sociedade civil “assumem compromissos de representagio”, num “esforgo de intermediagio orientado a conectar” os grupos sub-tepresentados ao Estado e @ politica eleitoral (Gurza Laval Houtzager e Castello, 2006, p.44).° A nogio central, de “compro- isso de representacao”, éretirada de Edmund Burke, que se torna assim inspirador da visio de representacio virtual. ‘A referéncia a Burke ¢ criticada por Avritzer, que observa que autor irlandés defendia uma forma de representacao sem eleicbes, s regimes monarquicos anteriores a Revolugao Francesa. a ansia de legitimar uma forma de representagio pés- Gurza Lavalle, Houtzager e Castello acabam resgatando imidade da representacio pré-eleitoral” (Avritzer, 2007, p.451). Creio queo problema éoutra. A concep burkeana~ que passa, sim, pelo mecanismo eleitoral, como fica claro em sua expressio mais acabada, 0 "Discurso aoseleitores de Bristol” (1942 (1774), incorpora a ideia de que o representante transcende 0s interesses de seus constituintes, seja por sua competéncia supe- rior, seja por sua vinculagao a um bem maior, o bem da nagio, que ultrapassa as preferéncias mesquinhas dos simples eleitores. A supe- {Em tento posterior tal capacidace de intermediaggoganha uma nova dimes 252 WWsFeUrE wicueL rioridade do representante, por seu preparo ou por seus horizontes ‘mais amplos, tonna-se especialmente problemstica quando, como no Houteager e Castello, os mecanismos de io deixados de lado. “compromisso de representar” nas organizacdes da sociedad civil, os autores se dedicam a elencar os argumentos que embasam a pretensdo de representatividade, tal como aparecem nos discursos das préprias entidades. Os argumentos que ecoam elementos cléssicos da democracia represen- tativa ~autotizagao dos representados, afiliacdo dos representados, identidade com 0s representados ~ pouco aparecem. O foco esté na prestacio de servigos, na proximidade com os representados ¢, em especial, na capacidade de intermediacao. Organizagdes da sociedade civil se credenciam como representantes na medida em que tém acesso a espacos devisérios que, de outra maneira, estariam vedados a seus representados (Gurza Lavalle, Houtzager e Castello, 2006, p.52). Enquanto as outras justificativas sio descartadas como invélidas, esta € Considerada adequada.*Sua aproximagdo com a ideia de advo- cacy & ressaltada e, embora seja anotada a auséncia de mecanismos de controle dos pretensos representados sobre seus representant o texto prefere ressaltar que a valorizagao da capacidade de mediagao reflete as transformagdes na relagdo que a sociedade ci projeta com o Estado — do antiestatismo predominante no periodo DEMOCRACIAEREPRESENTAGKO 253 da ditadura a busca de interlocugao que, segundo a quase dade da literatura, marca sua ago no perfodo de redemoc . ““Bnquanto o argumento de proximidade permanece fiel & légica dominante dos atores societarios durante o periodo da ditadura, 0 argumento de intermediacio espelha[...]a conjuntura de inovasio institucional dos iltimos anos” (Gurza Lavalle, Houtzager e Cas- tello, 2006, p.58). Em texto posterior, enfatiza-se 0 “compromisso subjetivo” com as pessoas que a associagio deseja representar (Houtzager e Gurza Lavalle, 2010, p.4). E uma itil descriggo da imagem que essas corganizagdes tém de sua prépria ago, mas nao serve para fundar co cariter democritico da representacao presumida. Na auséncia de mecanismos de controle, 0 compromisso subjetivo mantém uma relagio demasiado assimétrica entre os advocates e seus representa- dos. Ainda mais quando se reconhece que, numa curiosa inversio da visio mais convencional, sto os representantes que escolhem ‘os representados ~ “as associagies civis podem rejeitar ou aceitar co papel de representantes de constituencies que elas identificam (e definem)” (Houtzager e Gurza Lavalle, 2010, p.9). ‘A capacidade de intermediaga0, no entanto, €a marca de relagbes de-lientela, mais do que de representagio democritica (cf. Miguel, 2012e). tem acesso aos recursos do Estado e distribui bene- ficios ‘que os solicitam de acordo com sua possibilidade e convenincia, Patronato politico e representagio presumidas no slo, evidentemente, a mesma coisa, mas em ambos os casos a base politica fica na dependéncia daqueles que podem alcangar espagos is que Ihe esto vedados de antemio. “Sociedade civil, instituigSes participativas e representagio”, de Leonardo Avritzer, se move em terreno semelhante, embora nfo se furtea criticar a abordagem de Gurza Lavalle, Houtzager ¢ Cas- Ele identifica dois processos simultaneos que o levam a falar impliagio da representaglo: a presenga de porta-vozes que fam questdes nos foruns formais de deliberagio e a escolha de organizagdes como representantes da sociedade civil em novos cespagos deliberativos, como os conselhos. Assim, a representagio 254 — wis FeUP micuEL da sociedade civil é vista como uma “superposigao de representa- ges eem autorizagao e/ou monopélio” (Avritzer, 2007, p.444). O representante “por afinidade” ¢ um agente que atua por conta pr6- pria, mas se identifica com outros e fala em nome deles (Avritzer, 2007, p447). ‘Oesforco teérico sustenta-se em duas contribuigdes, a de Urbi- nati, incorporada de forma bem mais expressa que no texto de Gurza Lavalle, Houtzager e Castello, eade John Dryzek eSimon Niemeyer (uma versio anterior do que se tornou Dryzek e Niemeyer, 2008, e Dryzek, 2010, cap.3). O mérito principal de Urbin: de Avritzer, ¢localizar a eleigao como um moment na leitura ispensivel, ‘mas nfo exclusivo, da representagio e da relacdo entre Estado e sociedade civil, integrando-ano contexto amplo do julgamento| ‘ico (Avritzer, 2007, p.452-3).’ De Dryzek e Niemeyer, por outro lado, cle retira a ideia de uma “cimara de discursos”, paralela a0 parlamento, em queas diferentes posigGes sobre os temas da agenda piiblica estariam presentes (representadas) e poderiam expor-se mutuamente a seus argumentos de acordo com a cartilha da demo- ceracia deliberativa. A composigdo dessa cimara —isto é, a tarefa de .peat aconstelacio de discursos relevantes para uma questio leterminar que individuos melhor representam cada discurso” zzek e Niemeyer, 2008, p.486)~& dada como uma questio que se resolve de forma técnica. Partindo dessas duas reflexes, Avritzer constréi uma tipologia em que o representante pode ser um agente (escolhido por meio cleitoral), um advocate ou um “patti tzer, 2007, p.456)." © advocate se legitima nao pela autorizagao, mas pela “afinidade ou ingles edocryvadhoct, Su distngio entre o advocate 0 advor palavres em inglés DEMOCRACIAEREPRESENTAGAO 255 identificagao de um conjunto de individuos com a situagio vivida por outros individuos” (Avritzer, 2007, p.457). Jo participe, nessa tipologia, éa organizagao da sociedade civil que assume a fungao de representante em conselhos ou drgios similares, ¢ se legitima por meiode “uma identidade ou solidariedade parcial exercida anterior mente” (Avritzer, 2007, p.458). E o representante de um conjunto se associagdes, pelo qual fala nestes foruns. to, sobrepostas, uma representagio de pessoas (agentes), outra de “discursos e ideias” (advocates) ¢ uma terceira de “temas e experié: (participes), em féruns distintos, mas que se comunicam (Avritzer, 2007, p.458).!” Apesar da maior complexidade do modelo que produz, Avritzer ~ tanto quanto Gurza Lavalle, Houtzager e Castello ~ tende a equivaler fala na ica com representagio e, no passo seguinte, incorporar 0 adjetivo “democritico”, expressa ou tacitamente, a qualquer forma de fala/representacio originada na sociedade civil, um problema ao qual voltarei adiante. Em relacio a representagio formalista, nesses modelos faltam tanto mecanismos deautorizagio quanto de prestagio de contas. Em relagio a representacio descritiva, falta a similaridade com o grupo a ser representado, Sto problemas dos quais os autores mostram consciéncia, mas que nao julgam suficientes para descartar aaposta nessa nova forma de representacio como mecanismo complemen- tar & representagdo formal. Julgar as novas formas pelos padrdes da representagio eleitoral é “operagdo pouco produt jurza Lavalle, Houtzager ¢ Castel agentes ca sociedad ci tanto os dois modelos alternatives de Avritzer quanta o de Gurza Lavalle Houtzager e Castello. 256 .uis FeuPe Micuet Castello, 2006, p.46), Jé Avritzer advoga pela “redugdo da preo- ccupago com legitimidade dessas novas formas de representacio”, sendo a questio de fato o modo pelo qual elas se sobrepem, com autorizagio e representacdo virtual ecupando os mesmo espacos e falando em nome dos mesmos grupos (Avritzer, 2007, p.459). Em todos os casos, ha um parti pris favoravel aos novos modelos de representagao, que seriam promotores de uma saudavel ampliagio da presenga da sociedade civil, sendo necessério anular os elementos presentes na teoria tradicional da representagao provocariam uma avaliagio critica de tais formas representativas. —orgenizagées da is — atuam como representantes, masa questo saber se essa forma de representagio € democratica. Embora, muitas vezes, os advocates desempenhem papéis para o bom funcionamento da democracia, incluindo temas e promovendo a defesa de interesses que, de outra mancira,estariam ausentes, uma série de fatores conduz aconclusio de quea respostaa questdo é negativa. Nessa discussio, no possivel elidiro problema da legitimidade~ e os problemas ele associados, da autonomia dos representados e da formagao das preferéncias Para colocar a questéo de forma mais precisa — e, simultanea- mente, mais provocativa: a participagao dessas organizagées da sociedade civil em esferas de debate e deliberacio pode ser definida como representativa e como democrética, mas nao ao mesmo tempo. Ela € representativa na medida em que esses discursos incorporam as demandas potenciais de setores que nao estio diretamente presen- tes. Representar significa (também) trazer aquilo que esté ausente, ‘Mas a tengo a esse carter representativo nos leva a apreciar seus déficits democréticos, em particular a falta de interlocugao entre representantes erepresentados. Por outro ladoy se essa participagao é democratica, uma vez quea democracia exige oliyre acesso ao debate piiblico, ndo 0 por sua representatividade, pois esses discursos nao se credenciam a partir de uma troca efetiva com uma base, E necessirio diferenciar o conceltoe de representago, democra- cia legitimidade, que tendem a andar juntos em muito da literatura, DEMOCRACIAEREPRESENTACKO 257 sobre organizagdes da sociedade civil, até mesmo como se fossem ercambiaveis, Na clissica formulagio weberiana, a legitimidade se liga as condigdes de estabilidade de uma determinada forma de A substituigao gerada pelos mecanismos de advocacy pode obstaculizar esse processo, trabalhando contra a autonomia dos grupos. Por fim — e essa é a terceira situagio -, ha grupos em situa- fo ambigua, notadamente pessoas que se julga nao possuirem DEMOCRACIAEREPRESENTAGAO 263 «a capacidade de falar por si mesmas na esfera publica. Os dois ‘exemplos mais evidentes sdo criangas ou individuos com problemas mentais. Mesmo af, hé necessidade de tomar cuidado coma presun- «ao de que nao € problematico falar em nome de outro. Penso no movimento dos meninos e meninas de ua, que almeja dar voza essas ceriangas, ou no movimento da neurodiversidade, cuja! éade que indivicuos considerados “deficientes ment 6s autistas, sejam ouvidos em sua propria voz ‘Nao setrata de uma questio simples. O slogan “por autistas para autistas”, do que é chamado por Ortega (2009, p.71) de “movimento de autoadvocacia do autismo", invoca a ideia de que hi uma dife- renga (a ser preservada) e nao uma doenga (a ser tratada). Plausivel para autistas altamente funcionais, muitas vezes diagnosticados com asindrome de Asperger (uma vers ai sequer consenso em se considerar uma forma de autismo}, nao 0 é tanto para os casos extremos, quando nao ha “nema capacidade cog- nitiva de falar nem de dizer o que pensam ou sentem, quanto menos de se organizar politica e comunitariamente” (Ortega, 2009, p.75) Para estes (ou, melhor, para seus pais e mies, para aqueles que se colocam como zeladores de seu hem-estar) as formas de integragao ‘ou normalizasio, denunciadas pelos defensores da diferenca autista, pparecem sero tinico caminho paraa minoracio de severaslimitagbes, Assim, emergem conflitos sobre quem pode falar em nome dos autistas—ou em nome de quais autistas, As fronteitas da identidade autista nao sio facilmente definidas (Baker, 2006; Ortega, 2008). Se €razodvel pensar que individuos incapacitados precisam ser tutela- «dos, par outro lado o impulso para obter uma voz propria élegitimo e deve ser respeitado. O caso do mov expe tanto as dificuldades préprias de uma situagao limite, quanto 4 possibilidade de que falar com a prépria vox é um bem a ser esti- ‘mulado a todos os que dele possam usufruir. Em suma, da mesma maneira que a qualidade da representagio € um indicador da qualidade da democracia enquanto realizacao da autonomia coletiva, a representagio democritica exige que se foment autonomia individual, sto €, queas pessoas sejam capazes ivindicagio sobretudo 264 wis FEUPE micuEL de produzir seus proprios interesses a partir da reflexto critica sobre co mundo e do didlogo com seus semelhantes, Formas de represen- tagio como advocacy, embora possam trazer beneficios em curto pprazo para integrantes de um ou outro grupo social, no estimulam ‘oexercicio dessas autonomias. ‘A ideia de advocacy tende aequivaler interesses e necessidades ou ‘mesmo priorizar estas tiltimas. Trata-se de uma posicéo congruente com seu viés paternalista — a énfase em necessidades, em vez de interesses, “acomoda-se mais facilmente com a decisio por experts, ‘em favor do grupo necessitado” (Phillips, 1995, p.73), Ressoa os argumentos das defensoras do pensa expressamente os interesses “egofstas” em favor de uma com estofo moral, voltada & satisfagao das necessidades (Diamond Hartsock, 1981). Necessidade, noentanto, remete a uma categoria pré-politica. Ena construcdo dos interesses que se pode exercer uma agio auténoma ‘A ideia de autonomia é central porque implica tanto capacidade eos individuos produzirem, coletivamente, seus préprios interes- ses quanto de renegociarem suas identidades e pertencimentos de. grupo. “Autonomia” nao significa que o self paira acima e além das relagdes sociais que o constituem, Mas também nio é uma ‘uma vez que néo seriamos mais do que um produto do nosso per- ‘tencimento comunitario ~ 0 “quem sou ew?” descartando objetivos eu escolho?”, como no relato de Sandel (1998 Autonomia significa que, embora sejamos seres soci capazes de desenvolver competéncias que nos permitem avaliar ctiticamente as tradicées e valores que herdamos (Barclay, 2000). Entendida como um bem social, necessirio a democ: anecessidade de universalizagao dos recursos mat nis e cognitivos que permitem seu desenvolvimento. (O ideal de autonomia é tanto individual quanto coletivo. Uma ceria ortodoxia de esquerda denuncia as “nogées individualistas de autodeterminagio e autonomia do individuo, tio caras as projecbes, da direita neoliberal” (Altamira, 2008 [2006], p.35) ~ como se uma pretensa emancipayio coletiva pudesse pres ir da emancipagio DEMOCRACAEREPRESENTACAO 265 individual. A defesa da autonomia individual, entendida como a capacidade de reflexdo critica em relagao ao grupo social, nada tem ver com o individualismo abstrato ou a ideia de que a sociedade nao existe, a la Margaret Thatcher. E um valor que necesita de determinadas condigées sociais para se constituir e que estabelece uum dos indicadores da qualidade da democracia. E que fortalece os compromissos com o coletivo, na medida em que se tornam mais teflexivos, esclarecidos e pactuados. ‘Ao mesmo tempo, ¢ importante o entendimento de que a representagio envolve uma forma de exereicio de poder sabre os representados; portanto, a pluralidade social nos espacos de repre- sentagdo nao resolve o problema da igualdade politica. Mesmo com a realizagio ideal de uma representacio descritiva, em que. corpo de representantes espelhe perfeitamente 0 conjunto dos representados, ha'a manutengao da concentracao da capacidade de agio p alguns poucos individuos ~ que espelhariam melhor a populagio, é verdade, mas continuariam formando uma elite diferenciada. E necessario nao esquecer os problemas da redistribuigio do capital politico ¢ do aprimoramento dos mecanismos de supervisdo dos representados sobre os representantes, ‘Nio se trata de eliminar a discussio sobre perspectivas, mas de centrar a defesa da presenga politica no entendimento de que a cexclusio de determinados grupos dos espagos de tomada de deci- so é uma forma de injustica e tanto reflete quanto realimenta um deéficit de poder desses grupos. Sem isso, 0 foco na representagio de perspectivas sociais diversas, inspirado por Young, tem contribui para obscurecer a centralidade da disputa de interesses na pi nivelando os trés elementos identificados na representacio (interes- ses, opiniGes, perspectivas) edesinflando a relagio, que énecessério enfatizar, entre as perspectivas sociais e a producao das preferéncias, Por outro lado, a opgaio pela advocacy recoloca os interesses no centro, mas nio valoriza os processos de formagao auténoma desses interesses. A dimensio de exercicio de poder, presente na represen ‘acao, € deixada em segundo plano; €o papel das perspectivas sociais na produgao das preferéncias ¢ dos interesses é negligenciado. Tais 266 Luss FeUre micuEL es de Nadia Urbinati e sio agravados naquelas leituras que transferem a advocacy para espagos extraparlamentares, retirando de cena os instrumentos institucio- nais de autorizagio e accountability, Nao se trata de pretender que a representasio formal, por meio de eleigdes, seja a tinica dotada de potencial de legitimidade, mas de entender que mecanismos de autorizagiio e accountability devem ser buscados em todasas formas de representagio que se queiram democraticas, E importante observar que embora muitas vezes autorizacdo e accountability sejam interpretadas como facetas do processo eleitoral, rio se resumem a ele. As eleigdes so um meio para a obtencio da autorizagao e para aefetivacao da accountabil de raves, se firmaram como o meio pot excs ddimensio, de transferéncia formal de poder d «io politica. Mas outros meios estdo em funcionamento de maneira ‘mais informal e permanente na esfera piblica discursiva, que per rmitem que grupos ¢ individuos reconhegam seus porta-vozes, a0 ‘mesmo tempo que esperam que eles se justifiquem diante de si, A tarefa de quem busca aprofundar o carater democritico dessa repre- sentacio é preservar e aprimorar esses mecanismos, néo descarté-los ‘em nome da expertise superior dos pretensos representantes. ‘Ao mesmo tempo, autorizagao e accountability nao podem ser reduzidas & manifestacdo de preferéncias prévias a serem agrega- das, um problema que jé € crucial na concepgio de advocacy de Urbinati, Os mecanismos de autorizacio e accountability preveem cexatamente um processo em potencial e sempre em aberto de troca de razdes entre representantes e repregentados; isto é, autorizagao e “accountability so processos dialégie®®. Os argumentos de eficiéncia expertise ignoram a exigéncia dessa troca, colocando em seu lugara sensibilidade e a boa vontade, o que representd a abdicagio do ideal democritico de ampliagéo da igualdade. ‘A aposta nas virtudes da representacio por meio de advocates parece, de fato, animada pelo desejo de contornar problema da relacao entre igualdade e democracia. Com a aparente irrevos bilidade do capitalismo e o refluxo da defesa de uma ordem soc que, por uma série DEMOCRACIAEREPRESENTAGAO 267 ‘mais igualitiria, atrelara possibilidade de uma democracia efetiva a redugdo das desigualdades parece impor um veredito negativo: nio teremos uma democracia melhor do que a que ja temos. Cria-se, entio, uma solugdo que elidea questao. Aqueles que posstuem menos recursos (materiais, em primeiro lugar, mas também culturais, no sentido do “capital cultural” de Bourdieu) para a part tica encontram porta-vozes dispostos a prover suas necessidades seu bem-estar. E uma falsa soluao, que perpetua aexclusao politica ‘ento valoriza.a conquista da autonomia. Aomesmo tempo, aliteratura - muito volumosa na ciéneia poli tica brasileira — que enaltece o papel das organizagées da sociedade civil ou, de maneira mais ampla, a emergéncia de “novas arenas ow mesmo de orgamentos ps espacos representativos”. Es por aceitar a0 pé da dlesses espagos eanalisé-los como se fossem ambientes de participa~ <0 politica direta, nao de uma nova modalidade de representacio (para uma critica, cf. Miguel, 2003), Masa relagio com as instancias representativas tradicionais é, como regra, ignorada. {4 superou seu a 0 autodiscurso dos sovietes € 0 poder do parlamento “burgués” era um problema central. A dualidade de poderes indicava um impasse, que precisaria ser resolvido em favor de um ou outro dos interesses em choque. proprio do pensamento de Lénin o entendimento de que as institui- es da democracia representativa so impermedveis aos interesses das classes dominadas, podendo talvez manipulé-los, mas nunca atendé-los. A tarefa que, entéo, ele se propunha era oesvaziamento do parlamento ea concessio de “todo o poder aos sovietes”, segundo ‘acélebre palavra de ordem. 14 Cf. Lénin (1978 [1917], 1985 (1917). 268 wis FeUrE wiGuEL milar, as bora nao haja, nem de longe, uma teorizaca vas também partem de uma desesperanga com os mecanismos de representagio tradi- jises focadas nas novas arenas represent cionais, fundados em eleigées, em parlamentos e na competigio Pi le desses novos espagos seria 0 fato de nao estarem contaminados pelas dinamicas politicas antigas, ‘Mas nao ha o enfrentamento do que significa essa convivéncia luas logicas diferentes de legitimagao pol ‘corre uma acomodacio tacita entre o poder ‘com suas pr sobre uma do abrangente da ordem soci laria. A primeira vi enti cas viciadas, ¢ 0s espagos par ia secundaria dos recursos tém condigées de pr ‘mas influenciam agendas especificas ¢ propiciam medidas compensatérias localizadas para grupos em desvantagem. Uma acomodagio que abre mao do horizonte da igualdade politica e do aprofundamento da democracia. De uma maneira que 4 primeira vista talvez parega paradoxal ~ pois cada lado da moeda se associa a uma tradicéo intelectual diferente e muitas vezes oposta ~, penso ser necessério combinar stado a atensdo as formas de superagio das desigualdades atendem aos requis demoeracia, como recon p peitoa interesses e poder”. Enfim, esse percurso leva, uma vez mais, & compreensio de que os problemas da representagao nao se enten- ‘dem plenamente a no ser considerando outras dimensées além da do da participago no debate pablico (que nao se esgota nos espacos formais, como o parlamento ou 03 ~ conselhos, mas se espraia de diferentes formas, por meio, sobretudo, (damidia) ea dimensio da produgio: Sidade'de uma teoria da representacio que v categoria do “interesse”, mas que leve em cont de producio dos interesses. E a questao da igualdade, enfim, que promove o cruzamento da discussio sobre representasao politica com a discussio sobre justiga, ss interesses. E afirmaa neces- fea dar centralidade a

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