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Público • Sexta-feira 6 Agosto 2010 • 35

A forma como Pinto Monteiro geriu os casos Face Oculta e Freeport destruiu a credibilidade do Ministério Público

O suicídio público do procurador-geral, take II

O
MIGUEL MANSO
que poderei pensar da honestidade in- verdade que, para o manter em funções, pediu ao
telectual de alguém que escreve terem Governo para fazer uma lei especial tão rocambo-
tido os investigadores do caso Freeport lesca que, mesmo com o apoio do CDS, não conse-
– referindo-se implicitamente aos procu- guiu ser aprovada a tempo na sessão legislativa que
radores que emitiram o despacho final terminou. Não compreenderá o procurador-geral
– “seis anos” para ouvirem quem quisessem quan- que, ao fazer esse pedido, se coloca na situação de
do sabe que a investigação só passou para as suas ficar a dever um favor ao Governo, o que nunca é
José mãos no final de 2008? Que quer cavalgar o logro recomendável para quem deseja manter intocável
Manuel mediático da investigação “eterna”? o seu estatuto de independência?
Fernandes Quando Pinto Monteiro tomou posse como Tudo isto já seria suficientemente extraordiná-
procurador-geral da República, a sua chegada foi rio para duvidar da capacidade e autoridade de
Extremo saudada pelos que tinham esperança que pudesse alguém que, como eu próprio escrevi em Março,
ocidental trazer com ele “melhor justiça, não protagonis- cometera suicídio em público durante o caso Face
mos nem espectáculos mediáticos”, como escrevi Oculta. Mas o procurador-geral ainda conseguiu
em Setembro de 2006. A desilusão não podia ser algo mais surpreendente ao considerar que só tem
maior: depois de um Cunha Rodrigues que nos “os poderes da rainha de Inglaterra”. De facto, co-
havia legado “uma PGR onde se sentia que existia mo pode alguém exercer um lugar sem poderes
uma direcção firme, onde a autonomia dos magis- durante quase quatro anos e não ter já batido com
trados estava limitada pelos poderes da hierarquia” a porta? A única explicação é os seus poderes serem
e de um Souto Moura que nos deixara “uma PGR bem mais substanciais do que os da velha senhora
ferida por casos mediáticos onde as falhas na in- do Palácio de Buckingham. E são: de acordo com
vestigação foram gritantes” (e estou a citar-me a a lei, compete o procurador-geral “dirigir, coorde-
mim próprio), Pinto Monteiro tornou-se num dos Vivemos tempos trágicos, Mais: como pode o procurador- nar e fiscalizar a actividade do Ministério Público e
rostos do desastre da Justiça em Portugal. Pior: está geral demarcar-se, em tom indigna- emitir as directivas, ordens e instruções a que deve
a contribuir activamente para esse desastre. de colapso de um do, do teor do despacho do Free- obedecer a actuação dos respectivos magistrados”.
O desnorte de Pinto Monteiro começou a tornar- port quando teve conhecimento do Não parece pouca coisa.
se evidente pelo menos desde que pousou na sua
dos pilares do Estado seu teor com antecedência, como Vivemos tempos trágicos, de colapso de um dos
secretária o processo Face Oculta. A 24 de Junho do democrático, e incomoda registou Cândida Almeida, por es- pilares do Estado democrático. Quem semeou ven-
ano passado. O dia a partir do qual a investigação crito, no próprio despacho? Como tos, colheu tempestades, mas o que incomoda mais
deixou de ser secreta porque se produziu algures a verificar que o PGR pode dizer que os investigadores é, no Ministério Público, ter-se a sensação de que,
mais grave de todas as violações ao segredo de justi- não dirige nem protege a ouviram quem entenderam quan- depois de um PGR directivo e poderoso, de outro
ça desse processo: os que estavam a ser investigados do Cândida Almeida, que é sua PGR menos poderoso mas que protegia os magistra-
(nomeadamente Amando Vara) foram informados sua equipa. Pelo contrário superior hierárquica, considerou dos que dirigia, temos um PGR que não dirige nem
de que tinham os telemóveis sob escuta e trocaram que das respostas de Sócrates “não protege a sua equipa. Bem pelo contrário. Jornalista
de cartões e aparelhos. A partir desse momento, resultariam alterações de fundo aos juízos indiciá- (www/twitter.com/jmf1957)
para qualquer magistrado do Ministério Público, rios”? Como consegue afirmar que podiam pedir a
tornou-se claro que levar informação delicada ao ga- prorrogação do prazo quando, antes, o seu vice-pro- P.S.: Tenho as maiores dúvidas sobre a existência
binete do procurador-geral pode implicar um risco curador-geral indeferira um pedido de aceleração (desde 1975) de um sindicato no Ministério Público.
para as investigações em curso. De resto, o teor do processual ao mesmo tempo que estipulava a data Mas tenha a absoluta certeza de que não deveria
despacho do Freeport, em que os magistrados op- imperativa para o encerramento do processo? haver qualquer associação sindical de um órgão de
tam por heterodoxamente desabafar, deve ser visto É também muito perturbador que o procurador- soberania, como são os juízes. Por isso estranhei a
à luz do mal-estar existente entre quem investiga e geral tivesse criado uma situação de duvidosa legali- fúria de um antigo dirigente da Associação Sindical
quem se espera que dirija a investigação. dade ao manter em funções o seu vice, Mário Gomes de Juízes (o nosso procurador-geral) contra o alega-
Depois dessa reunião, não faltaram decisões errá- Dias, que já atingiu a idade da reforma e se mantém do poder do Sindicato dos Magistrados do Ministério
ticas, declarações contraditórias e despachos incom- ao serviço. Tanto ou mais perturbador quanto é Público. Não me pareceu coerente.
preensíveis de Pinto Monteiro. Da mesma forma que
na citada entrevista por escrito ao Diário de Notícias
utiliza argumentos falaciosos, num dos despachos
em que não deu seguimento à pretensão dos ma-
Este país não existe
gistrados de Aveiro de abrirem uma investigação ao
caso PT-TVI, o procurador-geral usou escutas poste- a Esta semana, o Eurostat veio ao blogue A Educação do Meu de reduzir o seu investimento
riores à reunião de 24 de Junho, citando conversas comprovar o esperado: Portugal é Umbigo, eis um dos mais deliciosos em 2010, o que é natural. Mas
altamente inverosímeis e destinadas a despistar os o terceiro país da União Europeia nacos de prosa que jamais li e Paulo Campos, o secretário de
investigadores. E, como se isso não chegasse, fez com mais contratados a prazo. que mantém toda a actualidade, Estado das trapalhadas dos chips
acabar o processo com uma decisão contraditória Quando os contratos formais são apesar de datar do início dos e das Scut, veio logo dizer que
com anteriores declarações de intenção: a destrui- demasiado rígidos, a fuga são anos 90 e versar a chamada área- esperava que todo o investimento
ção dos seus próprios despachos, realizada de forma os contratos a prazo, em que os escola: “Toda a pessoa é, no fundo, fosse realizado. Como? Através
tão intempestiva como a queima de documentos direitos dos trabalhadores são quase um grande sonho-motivação, de reduções de pessoal e nos
comprometedores numa lareira antes da chegada inexistentes. É o Estado social do para cuja consecução dispõe de fornecimentos e serviços como
das autoridades. avesso. Mas se este resultado já se potencialidades, com as quais método para melhorar as contas

A
esperava, não se podia esperar a busca a sua realização, rumo a e “libertar mais meios financeiros
forma como o procurador-geral se com- irritação da ministra do Trabalho, uma plenitude inatingível mas para o investimento”. Se Paulo
portou no processo Freeport não foi nem Helena André. Para ela, trata-se indefinidamente aproximável. Campos conhecer as contas da EP,
mais brilhante, nem mais transparente, resultados “antigos” – são de 2009… Ora, este desvelamento do Eu saberá que esta gastou em 2009
nem mais coerente, do que a forma como – e que não entram em linha de só pode fazer-se através do Tu e 55 milhões de euros em pessoal,
interveio no Face Oculta. De facto, como conta com medidas governamentais ocorre sempre rumos a um Nós pelo que, para compensar o corte
pode um procurador-geral que, muito antes de o que “podem vir a ser tomadas”. De em que todos seríamos um ideal anunciado “dezenas de milhões de
processo estar concluído, deu a entender que o pri- facto, o ideal era mesmo termos de infinitude para onde sempre euros” de investimento, se deduz
meiro-ministro não seria acusado, escrever agora que estatísticas que entrassem em linha vamos caminhando, sem jamais o que propõe, porventura, que se
os procuradores tiveram sempre total autonomia? de conta com medidas futuras. consumarmos. Tudo aponta para peça a todos os trabalhadores da
Antever o desenvolvimento do processo é dar total Esta nem o autor de 1984 tinha que, em frase-limite, tenhamos EP para passarem à condição de
autonomia? E será que o procurador-geral já se esque- antecipado. que afirmar, ser é amar.” Sublime, voluntários não remunerados.
ceu da quantidade de vezes que negou a existência de não é?
pressões por parte do procurador Gomes da Mota, a Mesmo quando se julga ter lido Se este país não existisse, algum
pressões cuja existência acabaria por ser confirmada o essencial sobre o eduquês, há a A Estradas de Portugal Lewis Carroll acabaria por certo
e levar à suspensão daquele magistrado? sempre algo que escapa. E, graças anunciou esta semana que terá por o inventar.

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