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VERSITARIA 2994 BLIOTECA_UNI Bre. to/ AO 6! 2358009-07 F679h' Fontana i Lazaro, Josep. . Historia : andlise do passado e projéto-social / Josep Fontana ; tradugdo Luiz Roncari. -- Bauru, SP: EDUSC, 1998. - . 398 p.; 21 cm. ~ (Colegio Ciéncias Sociais) * ISBN. 85-86259-27-6 ia - Metodologia. 2. Histétia - Filosofia. 1. Titulo. 1. Série. c ISBN 84-7423-174-4 (original) Copyright® 1982, Editoral Critica, S.A. Copyright® (traducao) EDUSC 1998 ‘Traducaio realizada a partir da 1* edicio (1982). Direitos exclusivos de publicagao em lingua portuguesa 7 para o Brasil adquiridos pela EDITORA DA UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAGAO Rua Irma Arminda, 10-50 CEP 17011-160 - Bauru - SP Fone (14) 3235-7111 - Fax (14) 3235-7219 e-mail:edusc@eduse.com.br CARICH/UENG - BIBLIO? ECA ' Qos ; Z Farah Ge Josep Fontana — +: Historia: - andlise do passado e projeto social — Epflogo exclusivo & edicdo brasileira. Tradugaio Luiz Roncari Técnica Revis Fernando Novais “ de. 2439.33 U.F.M.G. - BIBLIOTECA UNIVERSITARIA WARY 235800907 ___BAODANIQUEESTAETQUETA,__ @ EDUSC cna 7 Prefiicio » 9 Breve, ¢ Necessiria, Explicacio Inicial 13 pitulo 1 As Origens Capitulo 2 Do Renascimento a Ilustragio ipitulo 3 : A Tlustracao “apitalismo e Histéria; A Escola Escocesa 99 capinito 5 ; O Pensamento Historico da Revolugao Francesa i 117 Capitulo 6 : Historia e Contra-revolugao: 1814-1917 ___137 capituto 7 ; O Materialismo Hist6rico e a Critica do Capitalismo <5 155 capitulo 8 _ A Destruigao. da Ciéncia Historica 169 capituto 9 A Reconstrugio. I: Historia, Sociologia e Anteopologia 187 capitulo 10 A Reconstrucao. In A Nova Histéria Econdmica _... 203. Capitulo 11 . A Reconstrugao, Ill: A Escola dos Annales ‘culo XX. I: Desnaturalizagao @ Dogmatismo. Capitulo 13 .O Marxismo no Século XX. Ik: Desenvolvimento e Renovagao 251 Capitulo 14 Repensar a Historia para Reprojetar o Futuro __267, Epitogo a edigao brasileira Reflexes Sobre a Historia, do Além do Fim da Historia oe ee Oo No . : ‘ capity oO materialismo. histéricoe a — critica do capitalismo A revolugio de 1830 levava em seu seio.muitas esperan- ‘¢a8 que acabou frustrando por completo. Com o seu fim, nfo s¢ ti- nha conseguido na Franga grande coisa além de mudar de dinastia, retocar a “carta” e assegurar o poder 4 Burguesia. Na Inglaterra, 0 conjunto de agitacdes que tiveram lugar nos anos de 1830-1832, du- rante a chamada "crise dai reforma", nao sé obedeceram 40 males- tar camponés, que desembocou na grande revolta do Sul, como tam- bémt a motivagdes politicas. Porém’as revoltas foram esmagadas c a agitagio nao deixou atris de si mais que a reforma parlamentar, de 1832, que no satisfazia as demandas populares. Na Alemanha, as moderidas conquistas liberais alcancadas em alguns estados desva- neceram-se muito rapidamente € os carceres encheram-se com as vitimas da repressiio. Na Itdlia, a revolugio de 1831 foi sangrenta- mente liquidada pela Austria, deixando latentes as aspiragées nacio- nalistas revolucionarias.' © Porém, ha outa’ fato dominante nesses anos, além do fracas 80 da revolucio, ¢ € a crescente consciéncia de que as promessas smithianas de que o capitalismo traria a felicidade para todos nao iriam se cumprir. 0 debate acerca das conseqiiéncias sociais da iri- dustrializagao britanica deu lugar a auténticas filigranas na arte de disfarcar a realjdade; porém a evidéncia do pauperismo dos anos dé 1837 a 1842 fica dificil de ocultar e, como diria um testemunho da -€poca, depois de. oferecer-nos os resultados de uma pesquisa que abarcava um tergo'da populacio de Manchester, no se viam remé- dios locais € temporais que pudessem remediar o mal:"A desordem. 1375 € orginica € o remédio deve set igualmente organico". Basta ler as comoventes impressdes que Mayhew publicou em 1849-1850 para darse conta de que o fendmeno nao era transitério € que nio se so- lucionou com a volta de uma maior atividade industrial depois de 1842, como querem os historiadores académicos; basta estudar qualquer dos aspectos relacionados com a vida da classe operiria - alimentagio, moradia, satide - para perceber que o transtorno era profundo ¢ de alcance global? ‘Como na Gri-Bretanha, na Alemanha os arios quarenta foram anos de fome, com a crise das exportagdes téxteis da Silésia, fracas- so da colheita de batatas, em 1845, e além desta a de cereais, em 1846. O custo da alimentagio aumentou uns 50 por ceénto, entre 1844 € 1847;a fome € as graves dificuldades de todo género ajuda- ram a radicalizar a populagio operiria, Parém, se ino caso dos traba- Ihadores fabris, a curva dos salarios nfio parece ter compensado a do custo de vida, até 08 anos darcrise de 1845-1847, no salério dos ’ artesios, muito mais ‘numerosos, a piora da situacao havia comega- do antes ¢ chegou a extremos muito mais graves, o que explica a re- volta dos tecelées da Silésia, em-1844, estendida a outras zonas de produgio artesarial.’ Na Franca, agiida anilise de Labrousse nos mostra que a ” tendéncia do salirio real foi a de baixa entre 1815 ¢ 1851, enquan- to a burguesta estava enriquecendo. "Uma.classe de homens se en- riquece. Porém a maior parte da populacio vai-empobrecendose. O salario abaixa em alguns momentos desaba". Sera, precisamen- te, 0 desabamento de 1847-1848, quando:o satirio industrial cai em uns 30 pof cento € © preco do pio dobra, 6 que explica a forte car- ga social que tera aqui a revolugio de 1848.‘ : Encontramos assim um novo trago que acrescentar a0 do empobrecimento geral da classe operaria, um trago que nad falta tampouco na Inglaterra e na Alemanha: o processo de diferenciacio capitulo 7 crescente das fortunas; 0 fato de que, ao mesmo tempo em que os | pobres se tornam cada vez mais pobres, os ricos se enriquecem.Da consciéncia de que os dois fenémenos guardavam uma estreita re- lagio, nascera a receptividade dos operarios ¢ artesios 3 critica do capitalismo. Da percepcio de que os dois fatos - 0 empobrecimen- to ¢'a tomada de consciéncia - significam um grave risco para a es- tabilidade da ordem burguesa, surgira 0 novo tratamento da pobre- za, identificada em boa parte com a delingiiéncia, de modo que a nova lei britinica dos pobres, de 1834, criara auténticos carceres, onde os pobres sio forcados a trabalhar, no tanto pelo beneficio 138 : o materialismo hist6rico e a critica do capitalismo : que possam produzir, como porque a ameaca da workbouse asse- gura trabalhadores mais submissos ¢ menos conflitivos.’ A atitude dos economistas classicos ante os problemas sociais * causados pela industrializacao sera bastante ambigua. Os que sentem a nostalgia da velha ordem social yarrida pela revolugio, mostrar-se- 40 mais contundentes na dentincia. O pessimismo que Sismondi ha- via expressado,em 1815,reaparecé, matizadamente, nos criticos con- servadores da industrializacio, como Villermé ou Eugene Buret, que expéem a situacio de miséria dos trabalhadores, porém nao créem necessirio propor outra coisa quereformas huntanitarias de alcance limitady. Outros homens irio mais‘além, pra buscar a raiz do'mal, nao ‘nos *abusos” remediaveis, mas no fundamento mesmo do sistema: na sua economia politica. Entre essas _vozes, encontraremos desde ope- farios, que pedem que o salrio seja todo no preco das mercadorias - no lugar de pesar nele “renda, impostés, dizimos ¢ benéficios"., até um industrial como Robert Owen, que,ante 0 fato de que a enorme capacidade de progresso que a técnica colocou.nas mios da socie- dade industrial nao é capaz de evitar a greve € a miséria, pensa que isso se deve a que nem toda a populacio participa dos beneficios do novo sistema - com 0 que, a incapacidade de consumir dos pobres reduz o mercado - € propée, para solucionéo, que o padrio de va- lor deixe de ser 0 ouro € a prata, para fixar em seu lugar a medida do * trabalhd humano. Owen Ado se limitou,a teorizar, mas quis pér em pritica as suas idéias, fundando comunidades industriais ordenadas de acordo. cont os seus principios, das quais haveria de syrgir 0 ‘exemplo que expandisse 0 "Novo mundo moral" - aquele em que os beneficios da industrializacao se dariam sem’os males da exploragio capitalista -,e ¢stara também, com a sua ago organizadora e as suas idéias, na fase expansiva do movimento sindical britinico. Mais lon- ge que ele irio ainda outros criticos do capitalismo, como ‘Thomas Hodgskin, para quem o capitalista nio tinha direito "a nenhuma par- te do produto do trabalhador’, ou William Thompson, que propunha . uma distribuigio da riqueza que engendrasse "a maior igualdade compativel com a maior producao"* Da derrota das aspiracdes revolucionatias de 1830 ¢ da cons- cigncia do fracasso social do capitalismo - a consciéncia de que nao um sistema para a prosperidade geral, mas sim uma nova forma de exploracio - nasceré uma transformagio das propostas revolucion- rias. Os anos que decorrem citre 1830 ¢ 1848, so os anos em que “0 radicalismo opéririo britanico engendra o cartismo - a demanda 139 capitulo Le de alguns direitos politicos, com os quais, os pobres, sendo a maio- -ria, podem transformar a sociedade.* E a época em que Filippé Buo- narroti particip’a da organizacio de sociedades secretas populares € que desse movimento nascera o neo-babuyismo; o tempo em que 6 socialismo ut6pico comec¢a a penetrar entre os democratas do Sul da Italia, superando o estreito nacionalismo de Mazzini; os anos em que Blanqui efetuara a trajetéria do jacobinismo da Socicté des Amis du Peuple a sociedade'de Les Saisons, de carater operario, na qual Marx saudou os precursores do comunismo; 0s anos em que nasce na Alemanha a corrente do, “socialismo verdadeiro" € em qué exila- dos alemies fundam em Paris a Liga dos Justos, que em 1847 se transformara na Liga dos Comunistas, cujo objetivo, segundo o arti- go primeiro dos seus estatutos, era "a supressio da escravidio do homem pela difusio da teoria da Comunidade e, quando for possi- vel, pela sua introducio na pratica’. A Liga pertenciam Karl Marx ¢ Friedrich Engels, que escreveriam para ela‘o Manifesto Comuntsta? © materialismo histérico de Marx.e Engels nasce precisa- mente nesses anos € nessa encruzilhada histérica, do impulso para continuar a linha mais progressista da Revolucio francesa, atrai- oada em 1830; da radicalizacao do pensamento ilustrado, preser- vado na filosofia de Hegel, diante da‘ reacdo historicista - como base para a construcio de uma nacio alema muito distinta 4 que estava se forjando em torrio da monarquia prussiana -;da critica as formas de exploragio introduzidas pelo capitalismo e potenciadas ‘pela industrializacao. : Marx (1818-1883) trara uma série de elementos que se en- contram ja na esquerda hegeliana, devido a forte influéncia que recebeu da critica da religtio de Bauer - que foi o inspirador da sua tese de doutoramento -, do humanisma radical de Feuerbach, que si- _ tua o homem no lugar que ‘Hegel havia reservado para o espirito, e de Moses Hess, que foi o primeito a propor que se ligasse a revolu- io filoséfica alemi com a revolucao politica propugnada pelo so- **O sufrigio universal significa came, bebida € vestido, boas camas € bons méveis para cada homem, mulher ¢ crianga disposto a fazer o trabalho co- tidiano. O suftégio universal significa 6 dominio absoluto de todo 0 povo sobre todas as leis € instituigdes do pais ¢, com esse dominio, o poder de proporcionar a todos um emprego adequado € de assegurarthes todos os ganhos de seu emprego" (Bronterre O’Brien, in 1839, veja PHollis, Class and confitct in Nineteenth century England, 1815-1850, Routledge and Kegan Paul, Londres, 1973, p. 216). 140 ao Ae co. mgterialismo hist6rico e a critica do capitalismo . cialismo francés. Engels (1820-1895), que teve uma educaco muito distinta - frequentou a universidade de Berlim s6 um ano, enquanto realizava o servi¢o militar -, como cortespondia ao filho de um rico " fabricante de tecidos, trouxe, em contrapartida, seu conhecimento “dos males sociais causados pela industrializagao - que dlenunciou » pela primeira vez nas suas "Cartas do Wuppertal éscritas aos deze- nove anos -; sua’ familiaridade com os mecanismos capitalistas, tal como os aprendeu no coragio mesmo do sistema, na-cidade de Manchester; seu estudo da ecottomia politica classica ¢ a expérién- cia do trato com os dirigentes operarios britanicos. Dele procedem, “ por conseguinte, os elementos fundacionais dessa critica, da econo-- mia politica que Marx desenvolverd nos anos posteriores'e que sera a-base mesma das suas propostas anti-capitalistas.* Porque o materialismo histérico nao é,como quer a formula demasiado esquemitica de Lenin, a suma da "filosofia classica ale- ma, da economia politica inglesa ¢ do socialismo francés, unida as doutrinas revolucionérias francesas em geral". Como.o demonstra 0 fato de que o seu nascimento acontece através de uma série-de tra- - balhos em que Marx ¢ Engels se separam explicitamenté dos jovens hegelianos, ¢ que uma das suas principais tarefas postetiores sera a dla negagio da economia politica inglesa. O materialismo histérico no pode ser reduzido a uma suma - nicm 3 sintese reclaborada-de ~ uma;série de autores ¢ influéncias intelectuais, porque nfo deve sér definido a partir das idéias que compdem a sua visio do. mundo € ‘© seu programa, mas sim a partir de seu propésito de transformar.o mundo e dos métodos que propéem para alcancé-lo." Visto dessa - * Sobre poucos temas se escreveu tanto Como sobre a génese do materia- lismo hist6rico. Parte do publicado - como 0s livros de McLellan, Rossi, Bot- tigelli, Kaegi,ete.-€ sério e responsivel. Porém, ao lado desses trabalhos de honrada erudigio, ha montes das mais pitorescas "interpretagbes": compa- rages simplistas sobre semethancas tiradas.do ar - separando as idéias das cofrentes das quais formam parte € sem incomodar-se sequer ¢m notar se io originais na “fonte" que se toma como priméiro termo da comparagio =, que tem levado a incisivas afirmagies acerea de que o pai legitimo : no igreja. Nao perderei um mifiuto com semelhantes bobagens, jé que o que conta nio é identificar a procedéncia dos ladrilhos, mas sim o autor do pla- * | no do edificio. Uma coisa sio as idéias isoladas sobre mil temas diversos - ‘muitas das quais cram muito mais correntes ¢ difundidas do que pensamos ‘hoje, quando s6 conservamos a lembranca dos "grandes autores* -,outra 0 ‘materialismo histérico como sistema global. M1 : capitulo 7 maneira, aparece-nos como ‘integrado, fundamentalmente, por uma visio da historia que nega a da escola escocesa, uma critica da eco- noma politica clissica ¢ um-programa de construsdo do futuro ra dicalmente oposto ao da burguesia? 0 fiato de que a tarefa de desmontar a Kégica do‘capitalismo tenha ocupado boa parte do tempo do Marx da maturidade, ¢ a apa- rente abundancia dos seus escritos econémicos - que, na hora da veidade, reduzem-se a pouco mais que O capital, com os seus ante- cedentes, materiais ¢ rascunhos - tém Ievado ao erro de suporse que © materialismo hist6rico € fundamentalmente economia - ou sustentar o disparate de que introduziu a'economia na Histéria, quando o que realmente fez foi voltar a historiar uma economia po- litica que se havia fossilizado no jogo de pretendidas categorias in- temporais, como-o demonstra, por exemplo, o que Vilar chamou a “histéria implicita’ nas obras econdmicas de Marx. Nao € valido operar uma separacio radical entre Historia, economia € politica marxistas (entre andlises do passado, critica do presente € propos- tas para o futuro), porque, quando se tenta isolar essas pegas, empo- brece-as notavelmiente, 0 que vale tanto para determinados "ma- nuais de economia marxista’, como para os intentos de explicar "a teoria‘da histéria de Marx", por bem intencionados que sejam uns e outros.* Se no se aceitam os cortes verticais, tampouco pode-se ad- mitir os horizontais, que tratam de distinguir entre um "jovem" e um "velho" Marx, entre uma concepgao humanista ¢ outra economicis- ta da hist6ria, ou entre duas hipoteses socialistas diferentes. Desde que © materialismo histérico aparece completamente. elaborado, por volta de 1845, hd progressos e modificagdes nos conhecimen- | *Pelo que'se refere aos estudlos sobre uma suposta "teoria da hist6ria* = que ‘iuinca foi formulada isoladamente como tal -,a reprovacao vale para todos, desde 0 Ensaio, sobre 0. desenvolotmento da concepgao monista’ da bist6ria, de Plekanov, publicado em 1895,até as recentes ¢ estimaveis ten- tativas,como sio William H. Shaw, Mara’s theory of bistory, Stanford, 1978, onde a concepsio manxiana da hist6ria nos € apresentada como um deter- minismo que faz 0 progresso humano depender da evolucao das forgas ‘produtivas, ou G.A. Cohen, Kar! Marx's theory of history. defence, Cla- rendon Press, Oxford, 1978, que faz um merit6rio esforgo para analisar € definir cada etemento da.terminologia marxista, sem que essa operagao de dissecacio complete-se com a adequada visio. dinamica do conjunto (por mais que um cidadio noruegués, J. Elster, tenha se revelado dizendo que "€ sem diivida, o methor livro jamais escrito sobre 0 materialismo histérico"; in Arstales, 36, 1981, n0. 5, p.746) 142 . que resultar profundamente perturbadora: * omaterialismo hist6rico e a critica do capitalismo tos hist6ricos concretos de Marx ¢ Engels ou na sua compreensio dos mecanismos do funcionamento econémico capitalista - como 0 Prova o desenvolvimento do conceito.de maisvalia -, porém nao, “cortes" radicais no seu pensamenito. Muitas contradic&es aparentes se resolvem quando recordamos que a intengao basica esse pensa- mento € de natureza politica ¢ que a évolucio real do mundo em que vivem os obriga a continuas adaptagées de detathe.” * _. Conhecemos quais foram as ctapas da elaboragio do mate- rialismo hist6rico!O proprio Marx relatou que, em 1842-1843, quan- do era um jovem hegeliano de esquerda que escrevia na Gazeta Re- nana,coubehe ocuparse, numa série de quatro artigos, do proble: ma dos roubos de lenha, que haviam se convertido num delito miuito freqiiente, Assustados com 0 aumento desses roubos, os membros da dieta renana decidiram-se convertélos em "roubo qua- lificado", o que implicava penas de’ uma'dureza desproporcional. Para um homem.educado nos principios. hegelianos, segundo os quais a funco do Estado era a de garantir o direito,a comprovacao de que esse Estado ¢ as leis que publicava estavam ao servigo de al- guns interesses particulares - da defesa da’ ptopriedade’privada, nascida da usurpagio dos bens, comunais dos camponeses - teria Minhas investigagGes deram este resultado: que as relages juridicas, assim como as formas de Estado, nao podem explicarse nem por si ‘mesmas nem pela pretendida evoluigio geral do espirito humano, ‘mas sim que se originam nas condicées materials de existéncia, que Hegel, seguindo o exemplo dos ingleses € franeeses do século XVI, compreendia sob 0 nome de "sociedade civil’, ¢ que a anatomia da sociedade civil tem-se que buscé-a na economia politica, Nao pensava ainda "estender essa comprovacio a0 conjunto das leis", porém, no verio de 1843, pouco depois de que desapare- cesse a Gazeta Renana, empreendeu uma revisio critica da Filoso- fla do direito de Hegel, da qual s6'se publicaria a introducio nos Anudrios Franco-alemaes." No mesmo, ¢ tinico mimero dos Anudrios publicavase um Esbogo de critica da economia nacional, de Friedrich Engels; onde, partindo de pressupostos muito distintos, se chegava a con- clusdes muito préximas das de Marx. Engels'denunciava "o sistema de fabrica ¢ a escravidio moderna" ¢ prometia: “nao demorarei em ter ocasiao de expor amplamente a repugnante imoralidade de dito 143 capitulo 7 sistema € de’ por de manifesto sem nenhuma concessio a hipocri- sia dos economistas, que brilha aqui em todo’o seu splendor". Era o trabalho que efetuaria no seu estudo sobre A situagdo da classe operarta na Inglaterra, aparecido em 1845. Enguanto isso, ¢ estit mulado pelo artigo de Engels, Marx posse’ estudar economia € re- digiu 0s rascunhos que conhecemos como Manuscritos de 1844. Foi nesse mesmo ano que deu o pass que 0 levou do liberalismo ao socialismo. Para Mehring resultava ja visivel em.A questdo judia, onde a sociedade socialista se vislumbra, ainda que seja "em rascu- nho".Na Critica a filosofia do direito de Hegel, publicada nos Anué- rios franco-alemiés, esbocase a revoluco que dever4 ter lugar na ‘Alemanha, como obra conjunta da filosofia e do proletariado, mais radical que nenhuma anterior, ja que deve "acabar com todas as clas- ses de escravidao". E nas Notas criticas ao artigo "O ret da Prissia ¢ a reforma social’, Por um prusslano, esctitas em fins de jutho de 1844, poucas semanas depois da insurreigao dos teceldes da Silésia, toma partido decididamente pelos sublevados, pelos que “o prussia- no" Ruge havia desenganado por falta de "alma politica’, sustentan- do que essa revolugao, “ainda que s6 se realize num distrito fabril, € __ umiato de protesto do homem contra a vida desumanizada".O mes- mo caminho que levava Marx a essas formulacées radicais,o levaria a militar nas filas da Liga dos Justos."” Em agosto de 1844 encontraram-se Marx e Engels em Paris, no seu primeiro contato duradouro, e escreveram conjuntamente sua primeira obra em colaboracio, A sagrada familia, critica a Bru- no Bauer, que representa uma tentativa de definir a sua posico a respeito da filosofia alema. Engels data o nascimento do materialis- mo histérico= quer dizer, o momento em que, aquilo que até entio tinha sido critica parcial € observacio isolada, converteu-se em sis tema -em 1845, € nos diz que Marx o formulou pela primeira vez, na sua Teses sobre Feuerbach, Nesse contexto encontramos a cha- ve para resolver um dos problemas fundamentais que ambos ti- nham delineado - 0 da incongruéncia da filosofia do direito ¢ da economia politica com a realidade social -,expressa numa breve f6r- mula: "A vida social € essencialmente prdtica. Todos 0s mistérios que desencaminham a teoria para © misticismo,encontram a sua so- lugao racional na pratica humana ¢ na compreensio dessa pritica”. E, a0 mesmo tempo que se denuncia assim uma teoria que serve . para-mascarar a realidade, propde-se como objetivo a elaboragio de um género de teoria que, contrariamente, se faga de maneira aberta 144 uit tind aidan. A ee ewe € consciente, explicita, em fungao de uma pritica revolucionatia. *Os fildsofos nao fizeram mais que interpretar de diversos modos 0 mundo, porém do que se trata é de transformé1o"." Porém, € sobretudo em A ideologia alemé, fruto de um longo trabalho dé colaboragao que Marx e Engels efetuario,em Bru- xelas, entre 6 vero de 1845 ¢ 0 outono de 1846, onde nos encon- tramos com as primeiras formuilag6e extensas € cocrentes do mate- rialismo hist6rico ¢ da sua concepgio da histéria. Eram dois grossos volumés, concluidos s6 as meias, que mais adiante, ao ver que nao iriam publicé-1o no momento, decidiram de comum acordo abando- nar "a roedora critica dos ratos" (que parecem ter levado rimuito a sé- tio a sua fungio, segundo se deduz pelo estado do manuscrito). A ideologia’alema, publicada em 1932, comeca com um capitulo em que se explicam os conceitos basicos do materialismo histérico, partindo de um marco matetialista trazido por Marx e de uma con: cepeio dos estados histéricos, que constitui a contribuicio de En- gels, e que € muito distinta daquela da escola escocesa, ja que defi- ne as etapas pela natureza das relagdes entre os hornens (0."modo de producio") € nio pela forma que obtém’a sua subsisténcia (0 "modo de subsisténcia"). Engels dira, em 1888, que a obra "sé de- monstra quio incompletos eram ainda nnossos conhecimentos da historia econémica’, porém a afirmagio € injusta, eo desconheci- mento que se teve desse texto, até. 1932, impediu que os fossiliza- dores do marxismo pudessem refletir a tempo sobre palavras como estas, com que Marx ¢ Engels indicam 0 uso que deve fazerse dos seus esquemas gerais de interpretacio hist6rica: "Estas abstragdes, por si s6, separadas da historia real, carecem de todo valor. $6, po- dem servir para facilitar a ordenacio do material histérico, para in- dicar a sucessio em série dos seus diferentes estratos. Porém, nio oferecem de modo algum, come a filosofia, uma receita ou. modelo com apoio no qual possam fantasiar as épocas histéricas. Pelo con- tritio,a dificuldade comega ali onde se aborda a consideracao € or- denagio do material, seja o de uma época passada ou o do presente, para a exposicao real das coisas". Se 0 fundamental era "transformar 0 mundo’, era légico que esse método, de investigagio do passado se pusesse a servigo de um programa de acao destinado a mudar o presente. Por isso, a primei- ri vez que Marx e Engels deram ao pitblico uma exposigio relativa- mente completa da forma que viam o desenvolvimento histérico da humanidade foi no Manifesto do partidd comunista, em 1848, capitulo 7 onde tal exposigo tem a iissio de constituir a base-sobre a qual possam assentar-se uma anilise do presente € um projeto para o fu turo, Dai que.o texto comece propriamente, depois de um breve exérdio, com a afirmagio de que "a historia de todas as sociedides existentes até o presente € a hist6ria da luta de classes", ¢ conchuis- s€ com um chamado a revolucio: "Proletirios de todos os paises, ‘uni-vos!"; Estes dois pontos representam duas chaves seguras para reconhecer a funcao que Marx ¢ Engels assinalavam & Histéria - ao tipo de Hist6ria que queriam."* ‘A necessidade de analisar 0 presente - isto é:a realidade do capitalismo - levaré Marx a trabalhar na sua projetada critica da eco- nomia politica. Isso éta necessario para preparar a estratégia da luta ¢ para dotar 0 pfoletariado de um pfograma proprio, nao tomado de empréstimo da burguesia liberal, como havia sucedido até entao. Essa tarefa tera uma primeira c incompleta expresso na Contribui- §o a critica da economia politica ¢ culminara em O capital, a obra que, contra 0 que’ Marx havia previsto, iria absorvé-lo pelo res- to da sua vida, Porém, como anilise do presente ¢ visio do passado estio._necessariamente integrados no materialismo histérico, a historia reaparece com freqiiéncia em meio da andlise econdmica - como fica evidente em 0 capitat- € 0 seu papel no conjunto da teo- ria-€ recordado explicitamente por Marx no preficio 4 Contribut- ¢Go a critica da economia politica; nam texto que convém trans- crever por completo, nio tanto porque va acrescentar demasiados enriquecimentos ao que até aqui nos tém revelado as suas obras an- teriores, como pelo fato de que foi utilizado como canone doutrinal do marxismo ¢ tem sido invocado em infinitas ocasiées para ampa- rar coisas que nada tém a ver com ele. O resultado geral a que cheguei € que, uma vez obtido, serviu-me de’ guia para os meus estudos, pode formularse brevemente assim: na producio social da sua existéncia os homens entrim em relagdes determinadas, necessarias, independentes da sua yontade; essas re- lagGes de produgao ‘correspondem a um grau determinado de de- senvolvimento das suas forgas produtivas matcriais.O conjunto des- sas relagdeg de producio constituem a estrutura econémica da so ciedade, a base real sobre a qual-se eleva uma superestrutura juridi- a € politica, 4 qual correspondem formas sociais determinadas de consciéncia. © modo de producio da vida material condiciona 0 processo da vida social, politica ¢ intelectual em geral. Nao € a cons- ciéncia dos homens a que determina o seu ser; pelo contririo, seu -_ Ser social € 0 que determina a sua consciéncia. Durante o curso do 146 / ’ 7” © materialismo histérico ¢ a critica do capitalismo : seu desenvolvimento, as forgas produtivas da sociedade entram em contradicio com as relagées de producio cxistentes,ou, o que no : € mais que a sua expressio juridica, com as relagdes de proprieds- de em cujo interior tinkam-se movido até entio. De formas de de- - senvolvimento das forcas, produtivas que eram, essas.relagdes se ‘convertem ementraves a essas forcas. Entio se abre uma era de re- volugao social: A mudanga que se prodaziu na base econémica transtorna mais ou menos rapidamente toda a colossal superestru: tura.Ao considerar esses transtornos, importa sempre distingttir en- tte‘a mudanca material das condicdes de producio - que se deve comprovar fielmente com a ajuda das ciéncias fisicas ¢ naturais - e : as norma’ juridicas, politicas, religiosés, artisticas ou filosGficas; ¢m uma palavra, 0s formas ideolégi¢as sob.as quais os homens adqui- 7 rem consciéncia desse conflito ¢ 0 resolvem.Assim como nio se jul- : 2. um individuo pela idéia que ele tenha de si mesmo, tampouco i se pode julgar tal época de transtorno pela consciéncia de si” i : mesma; é preciso, pelo contrario, explicar essa consciéncia pelas contradigdes da vida material, pelo conflito que existe entre as for- : ‘gas produtivas sociais eas relages de producdo. Uma formagio, so- be cial nao desaparege nunca antes de que séjam desenvolvidas todas. as forgas produtivas que possam conter,e umas relagdes de produ- cio novas € superiores no substituem jamais a outras antes de quie as condigdes niateriais de existéncia dessas reJagdes tenham sido in- ‘ : cubadas no seio da velha sociedlade. Por isso a humanidade no se : propde ntinca’ mais. que os problemas que possa resolver, pois, f othando mais de perto, se vera sempre que o problema mesmo nao 3 "se apresenta ‘que quando as condicGes materiais para resolve- Jo existem ou|se encontram. em estado de existir. Esbocado em tra- {¢0s largos, os rmodds de producio asiético; antigo, feixdal e burgués moderno podem ser designados como outras tantas: €pocas-pro- gressivas da formagio social econdmica. As relagdes burguesas de 5 producio’sio a tiltima forma antagonica do processo de producto Fs social, nl no sentido de um antagonismo individual, mas sim no de : ‘um antagonismo que nasce das condicdes sociais de existéncia dos : i individuos; as forgas produtivas que se desenvolvem no seio da so- ciedade burguesa criam a0 mesmo tempo as condicdes materiais ‘para resolver esse antagonismo. Com essa formacio social termina, pols, a préhistéria da sociedade humana. , Esse texto resumido deu lugar a uma série de interpretagées “ escolisticas, No lugar de esforgar'se para compreender o papel que deseipenhava no prologo a uma critica do capitalismo - que € 0 que verdadeiramente importava -, tem-se desengajado desse contex- to para pesar ¢ medir cada uma das suas palavras ¢ escrever volu- mes inteiros sobre os conceitos de "modo de producto", ‘estrutura", pase", etc. Assim-se erigiu em canone de uma filosofia da historia 147. que dava todas as respostas, sem necessidade de recorrer 3 investi- gacio conereta, pelo menos pata vetificar a sua exatidio, ¢ fez nas- cer uma terminologia ¢ uma linguagem ritual que caracterizam grande parte da’ Histétia que se pretende marxista, € que niio tém nada que ver com as que Marx ¢ Engels ¢mpregavam nas suas ana- __ lises hist6ricas. Nao importa que Marx protestasse, em 1877, contra qualquer tentativa de extrapolar 9s resultados da sua anilise do ca- pitalismo ocidental, para converté-los em "uma teoria geral de filo- sofia da histéfia, cuja maior vantagem reside precisamente no fato de ser uma teoria supra-tiist6rica", ou que as suas cartas demonstras- _ sem que, diferentemente de tantos marxistas académicos, mantinha - sempre desperta a sua atencio A realidade estudada, detendo-se em cada fase da crise ou atige econémico para aprender com essa ob- servagao. Ao fim da’ sua vida, em abril de 1879, Marx escrevia a Da- - nielson que nio podia publicar 0 segundo volume de O capital an- tes que tivesse chegado ao fim a crise econémica que se fazia sen- tir na Inglaterra. "E preciso observar 0 cugso atual dos. aconteci-- mentos até que amadurécam, antes de poder 'consumi-los produti- vamente',com 0 que quero dizer ‘teoricamente".” : ‘Também Engels se veria obrigado, nos ultimos anos da sua ‘existéncia, a combater as.interpretagdes mecanicistas, advertindo que "o método materialista tornava-se contraproducente se, no lu- gar de adoté-lo como fio condutor do estudo hist6rico, fosse usado como esquema fixo ¢ inamovavel para classificar os fatos histéri- cos" ou que "a nossa concepgio da historia no é nenhum instru- mento de construcio de forma hegeliana, mas sim, que é,antes de tudo, uta instrucio no € por meio do estudo". E combatia o econo- micismo, para recordar que ‘os homens levam a cabo pessoalmente @ sua histéria, ainda ‘que 0 fagam num meio que hes foi dado € que os condiciona, sobre_a base de algumas circunstancias reais ¢ preestabelecidas, entre as quais so, ¢m iltima instincia, as econdmicas - € tanto mais quan- to mais suscetiveis sejam de ser influenciadas pelas politicas ou ideoldgicas - a8 decisivas e as que configuram’o tinico fio condutor ~que leva 4 compreénsio do fato histérico."* . Poucos anos depois da morte de Engels, Kautsky insistiria: A exatidio mais ou menos absoluta da concepgio matetialista da historia niaio depende das cartas € dos artigos de Marx ¢ Engels; s6 pode provar-se pelo estudo da historia mesma (...). Eu compartilho. 148 | { | absolutamente da opiniao de Lafargue, que qualifica de escolistico ‘0 fato de discutir-a exatidio da concep¢io materialista da hist6ria em'si,no lugar de comprova-la pelo estudo da hist6ria:mesma. Esta era, também, a opiniio de Marx Engels; 0 sei por conversagdes privadas com este tiltimo, e encontro a prova disso no fato, que pa- recera estranho a muitos, de que ambos nio falavam senao rara € brevemente da sua teoria ¢ empregavam a melhor parte da sua ati- vidade em aplicar essa teoria no estudo dos fatos.” Porém esses textos correspondém a uma época em que, ten- do entrado a social-democracia alema numa pratica politica que nio previa a revolucao ¢ contemplava 0 socialismo como um objetivo re- ~ moto, havia se dissociado 0 corpo teérico do materialismo hist6rico. De modo que se podia falar de uma "concep¢io materialista da histéria’: como algo independenté, desengajado dos programas para © futuro,¢ podia fazerse objeto de interpretaces economicistas - su- postamente radicais -, que no afetavam mais que a visio do passa- do. E 0 comeco da fossilizagio do marxismo, da sua conversio numa’ forma peculiar de academicismo, da qual se falara mais adiante. ‘Uma vez coficliida essa répida exploracio da sua génese, tentaremos uma caracterizacio da concepgo marxista da histéria dentro do materialismo historico, tinica forma em que adquire ple- no significado.” A primeira coisa que podemos observar € que 0 complexo que agora consideramos -uma visio do passado, uma ex- plicacao do presente € um projeto para o futuro - € 0 mesmo que tratamos de revelar ao falar de outras concepgGes da histéria: algo que aparecia claramente em algumas delas, como na de Adam Smith -a hist6ria como genealogia do capitalismo, o funcionamento deste € uma promessa de prosperidade geal, como conseqiiéncia do ft * O que nao significa; naturalmente, que a investigacao hist6rica concreta indo seja legitima, desde o ponto de vista do materialismo histérico. O que se quer dizer, € que 0s seus resultados terfio que integrarse depois num marco tnais amplo. Uma visio semelhante do problema, ainda que enrique- ida com elementos adicionais, que aqui nao foi possivel levar-em conta, Por motivo da simplicidade, é a que sustenta Mario Rossi, quando define 0 materialismo hist6rico como “uma estrutura organica, cujos membros - in- terpretacio da histéria, teoria das contradicées da sociedade burguesa, in- versio pritica, teoria revolucionaria ¢ nova concep¢ao da pessoa - unem- se numa ¢onexiio tio nécessiria € natural, que a auséncia ou inexata con- sideragio de um defes pode no minimo provocar a tergiversacio do todo" Mossi, La genesis del materialismo bistérico, 3: Léa concepcién mate- - rlalista de 1a bist6rta, Comunicacién, Madrid, 1974, p. 66). 149 capitulo 7 proprio desenvolvimento capitalista -; em outras,em.que se via o uso do passado reduzido como legitimagao do presente, como na de Ranke; ou em que fica totalmente mascarado, como no caso da hist6ria académica, que finge preocupar-se unicamente ém esclare- _-Cer 0 passado (ainda que tembém ‘nela estejam implicites os outros elementos, até,o ponto de conformar,a visio histérica). Assentado esse ponto, podemos proceder de maneira semelhante a que fize- mos anteriormente,.com a vantagem de que agora operamos com * uma concepgio em que as trés partes, suas articulacées, aparecem explicitamente, : © materialismo hist6rico contém uma concepgio da histéria que nos mostra a evolugao humana através de algumas eta- pas de progresso; que ni0'sio definidas fundamentalmente pelo grau de desenvolvimento da produgao, mas sinr pela natureza das relagdes que se estabelecem entre os, homens que participam no jprocesso produtivo. "Quando se fala (...) de produgio - dira Marx - fala-se sempre da producao num estado determinado do desenvol- vimento social - da producio de individuos em sociedade".” Ter- mos como escravismo, feudalismo € capitalismo -ou como socialis- mo, na projecio ao futuro - nao se referem ao ¢arater predominan- temente agririo ou industrial da produgio, a quevesteja destinada 4 subsisténcia familiar ou ao mercado, mas sim ao tipo de relagio que.existe entre amo'e escravo, senhor € vassalo, empresirio capi- talista © operrio assalatiado - ou a relagio de igual para igual entre homens livres, numa sociedade que terd-eliminado a exploragio, no caso, do socialismo. * . E certo que o materialismo histérico sustenta também que existe uma correspondéncia entre o grau de desenvolvimento das forcas produtivys ¢ a natureza das relagbes qué se estabelecem en- tre os homens, porém esta’ no pode reduzirse a determinagio da mudanga social pelo crescimento econémico, Considerar a inter- pretacio marxista da histéria como um economicismo - que € algo que se faz freqiientemente - € um disparate, que se poe claramente de manifesto quando a reintegramos no materialismo hist6rico ¢ re- cordamos que Marx ¢ Engels esperavam que 0 transito do'capitalis- © mo ao socialismo se efetuasse gragas a uma revolugio proletiria, no Como 1m resultado espontaneo do desenvolvimento industrial capitalista, O. nexo entre forcas produtivas € relacbes de produgio € mais complexo ¢ deve entender-se em termos de interagio. $6 que, enquanto o que mais importa a0 homem sq os homens, o que ) 150 q antes de tudo conta € a modificagao das relagdes de produgio: a - aboligao de toda forma de exploragio. O capitalismo deve ser des- truido, em primeiro lugar, porque € "uma forma de escravidio". O que ocorre € que a sua destruicdo, liberando algumas capacidades produtivas contidas pela irracionalidade do sistema, esperase que dé passagemi a uma fase acelenida de crescimento econémico. A histéria, definida por etapas que sio as €pocas da explora- Gio do homem pelo homem, da futa de classes, conduz agora para a.explicacio de um presente de misétia ¢ sujei¢io. © capitalismo, o. “sistema mercantil! nao € ja 0 ponto de chegada de toda a evolucio humana, mas sim uma fase a miais, que deve ser destruida como as anteriores, para conduzir 4 plenitude que ser4 uma sociedade sem ‘Classes - sem explorago. © passado explica o presente, como ocor- re em toda visio da historia, porém no o legitima.A intepretagao do passado nfio nos conduz aqui a uma economia politica - que te-_ ria que enquadrar a evolucio futura dentro de um sistema de regras imutaveis -, mas sim a uma critica dessa economia politica ¢ a uma proposta de destruicao revolucioniaria da ordem social assentada _ ela, Numa seqiiéncia semelhante, a etapa seguinte - 0 socialismo - tem de ser entendida, sobretudo, como a 6poca em que toda explo- racio ser abolida, em que s¢ iri “acabar com todas as classes de es- cravidio".No contexto do materialismo histérico, nio pode ser de- finida unicamente como a substitui¢io da propriedade privada dos *. meios de producio pela propriedade estatal, ¢ a introdugio, em es- ~ cala nacional, da planificagio. centralizada. E muito menos ainda como uma transformacio reformista do capitalismo, tal como a que Propée # sociallemocracia. ‘ ‘A visio do futuro de Marx ¢ Engels aceita uma parte da pro- _5 -Messa smithiana, trocando os termos em que est formulada. As for- as produtivas que o capitalismo ‘mobilizou, potenciadas pela cia, podem-assegurar a prosperidade para todos, sob-a condigio de : abolir © marco social capitalista.A fé ingéiua no progresso tecnolé- gico se encontra ja no Esbo¢o de critica da economia politica do jovem Engels,* € no parece ter sido abandonada mais tarde. Viven- do num mundo que ainda nio tinha experimentado as conseqilén- cias da expansio do capitalismo em escala mundial, nao adivinham que esta nfo ira reproduzir espontaneamente o esquema industrial : - i . *"A capacidade de produgio de que dispéc a humanidade ¢ ilimitada.A in- - "versio de capital, trabalho € ciéncia pode potenciar até 0 infinito 4 possi- 151 capitulo 7 britanico em cada pais - como: parece estar sucedendo, no seu temipo, na Franga e na Alemanha -, mas sim que pode ter efeitos de- + predadores sobre outras partes do mundo." Ante a déstruigio das co- munidades indigenas da india pelo exército britanico, Marx lamen- tard a brutalidade dos procedimentos, porém se consolara dizendo - que tal destruigio € necessaria ¢ que a Inglaterra esta atuando como "a ferramenta inconsciente da histéria". Claro que, a0 fim de alguns anos, a bfutalidade chegara a tal extremo, que acabara se esquecen- do das conveniéncias da “histéria" ¢ simpatizando com os indiahos que querem expulsar os seus conquistadores estrangeiros.* Essa supervalorizacio do processo industrializador capitalis- ta obedece a duas razées.A primeira delas, a mais elementar, é que nfo chegaram a ver os tracos mais negativos da sua expansio -a des- truicao dos recursos naturais,a dependéncia,etc.-e que vivem num _ mundo onde ainda é possivel manter a € nas possibilidades ilimita- das do progresso tecn6légico - com o que.compartilhavam piena: i t bilidade de rendimento da terra (...). Bsst ilithitada capacidade de produ- ‘¢io, manejada de um modo consciente € no interesse de todos, nio tarda- ria em reduzir ao minimo a massa de trabalho que pesa sobre a humanida- de" (in K. Manx Engels, Werke, Dietz Verlag, Berlim, 1962, vol. 1, p. 517; adiante citado como MEW). 0 * Um exemplo da forma na qual’ Marx ¢ Engels pensam que pode produzi- se.a expansio do capitalismo, nds 0 temos na stud previsio de que 0 desco- + brimento das minas de ouro da Califémia ira deslocar 0 centro econdmi- co do mundo do Attintico para 0 Pacifico - como os metais preciosos des- cobertos pelos espanhdis tinham ajudado a deslocé-o,antes, do Mediterri- neo ao Atkintico - € que tal expansio afetaria por igual a toda zona geogri- fica proxima. °O que foram na Antiguidade Tiro, Cartago ¢ Alexandria,na Idade Média Génova ¢ Veneza, ¢ até agora Londres ¢ Liverpool, isto €,0s = ‘empérios do comércio mundial, o serio a partir de agora Nova York € Si0 Francisco, San Juan da Nicaragua e Leo, Chagres ¢ Panamé. O centro de> gravidade do mercado mundial era 2 Irilia, na Idade Média,a Inglaterra, na dade Moderna, ¢ esté agora na parte meridional da peninsula norteamer- cana" (da "Revista politico-econémica" de janeiro-fevereiro de 1850 paraa Nova Gazeta Renana, in MEW, vol.7, p.221).86 acertavam com Nova York ‘¢ Saq Fraricisco. © erro € significativo, porém € que tampouco se davam conta de que, mais préiximo dleles,o proceso industrial eurdpeu estava sa- queando os recursos naturais dos paises méditerrineos, destruindo’ seus ‘equilibrios naturais condenando os homens 4 converter-se em “uma re- sserva de forgi de trabalho, destinada a esforcarse sobre um solo empobre- cido ou a emigrar as regides inidustriais’ (Pasquale Coppola, "Natural Re- sources and Economic Development in the Mediterranean Basin’, in A. Maczak y WN. Parker, eds.; Natural Resources in European History, Re- sources for the future, Washington, 1978, p. 217). 1 j 1 ‘ 152 2 : : "_ omaterialismo histérico e a critica do capitalismo mente as correntes anarquistas - , porque este nao havia mostrado ainda as suas limitagdes. Porém, ha uma segunda raz0, sobre a qual conivém refletir, a partir da perspectiva delineada nestas paginas. Marx,¢ Engels receberam 0s conhecimentos histéricos que lhes proporcionavam a ciéncia do Seu tempo, enriqueceram-nos em alguns aspectos €, sobretudo, reinterpretaram-nos genialmente. Po- rém nao podiam suprir o que nao existia. Continuaram os progtes- sos da préhist6ria, por exemplo, ¢ procuraram integri-los na sua vi- so global do passado. Porém a investigagio histérica do seu tempo era descaradamente europocéntrica - entre outras razdes, porque necessitava justificar a submissio forgada dos "povos sem histéria’, aos que obrigava a passar da "barbarie" & "civilizacio" - ¢ isso tendia a favorecer tima visio do passado como a da escola escocesa, que conduzia a evolugio histérica para a.culminincia representada pelo _ capitalismo, pela industrializacao ¢ pela ciéncia moderna.Ainda que tivessem entrevisto a possibilidade de outras linhas evolutivas, no dispunham de suficientes conhecimentos sobre as etapas pré-capi- talistas, como para fazer, nesse terreno, o que fizeram nas stas pro- posigdes politicas, quando a experiéncia da Comuna de Paris os fez modificar as suas idéias sobre a tomada do poder pelo proletatiado. Teriam podido fazé4o, sem que 0 fundamental do materialismo his- t6ri¢o tivesse se alterado:as afirmacdes de que a/histéria do homem € uma histéria de lutas de classes, que © capitalismo nao € mais do que uma etapa nessa histéria da exploragao humana e que deve ser destruido por uma revolugio socialista para construir a sociedade sem classes.” Como foi que coisas tio elementares chegaram a esquecer- se,€ como 0 materialismo histérico - desintegrado numa concepcio da historia, numa economia "marxista" ¢ numa pratica politica refor- mista : acabou fossilizando-se e repetindo mecanicamente umas for- mulas que correspondiam 4s realidades ¢ aos conhecimentos da época de Marx e de Engels, € algo de que se falara mais adiante. 153 a ja_reconstrucao. I: histéria, sociologiae - antropologia A. processo de destruigao das bases teéricas da Histéria, devia acompanhar o da sua reconstrucio sobre novos fundamen- tos. Havia que criar uma “nova hist6ria", de acordo'com as exigén- cias dos tempes, que j nao toleravam o velho nartador que se de- dicava a colocat os "fatos’ em ordem cronolégica para contar bata- has ou glosar as vidas'de princesas virtuosas.* Ja se disse que a re- t * Um testemuinho pode contribuir para mostrar os nexos entre inquietude social, no fim da primeira guerra mundial, ¢ desilusio dos jovens diante da classe de Historia que se ensinava nas universidades. WH.B. Court nos ex- plica a inquietude dos estudntes de Cambridge numa época de agitagio operiria ¢ de-“dtvida sobre o futuro econémico’, quando estes se ofere- iam voluntariamente para trabalhar na ferrovia durante a greve geral,¢ um companheiro’ seu exiclamava: "Tem-se que fuzilar todos os mineiros!" Em semicthante contexto, nao € dificil entender que sentira que ‘O ensino da Hist6ria que nos era dado em Cambridge langava pouca luz sobre estes problemas cotididnos", € que “olhassem ao scu redor em busca-de guias". ‘No caso de Court, esse guia foi Tawney, que, seguindo 0s ensinamentos de ‘Max Weber, "lutava uma batalha ern duas frentes: contra os valores sociais, burgueses em que havia sido educado € contra os marxistas, que estavam convertendo-se nos seus mais poderosos oponentes na ‘controvérsia so- cial" (WHLB. Cou, "Growing Up’ in an Age of Anxiety’, in Scarcity’ and Cholse in History, Edward Arnold, Londres, 1970, pp. 1-60). Nao € dificil en- tender que a lita de Tawney era menos contra “os valores sociais burgue- ses’, do que contra sua justificagio ideolégica, manifestada também nessa Histéria académica 3 la Acton, que nao iluminava."os problemas cotidianos" da pésguetra, com 0 que se cortia 0 grave risco de deixar o terreno livre Para-os marxistas, que estes sim tinham algo a dizer. Esse exemplo ilustea, segundo me parece, a forma em que era sentida a necessidade de uma "re construgio" da ciéncia hist6rica. construgio s€ fez sobre a base de tomar emprestado o instrumen- tal te6rico.de outras disciplinas sociais, essencialmente 0 da socio- logia, da antropologia ¢ da economia (ainda que também 'se desse uma mes¢la de elementos tomados destas com outros da geografia, da climatologia, da biologia etc.). Da economia nos ocuparemos mais adiante; neste capitulo nos limitaremos & Historia acolhida no nicho das influéncias da sociologia € da antropologia. “*Ambas as disciplinas - antropologia’¢ sociologia - tem uma complexa evolucio, estreitamente relacionadas entre si, que nio nos intéressa aqui mais que na medida ern que nos pode ajudar a explicar as influéncias que exerceram sobre a Historia. Quer se di- zet com isso, que 2 critica & pritica académica dessas disciplinas, ou as propostas para a sua renovacio, devem ser feitas a partir delas mesmas, ¢ que nao tentaremos introduzir-nos nesse terreno. Se, nas paginas que se segue, formulamrse criticas a aytores ou a propo- sigdes, deve-se entendé-las como feitas a um determinado tipo de pritica; semelhante 4 dos historiadores académicos; da qual se fala somente pelo fato de ter influido neles. +Nos fins do século XIX, as duas disciplinas abandonavam os esquemas evolucionistas -as posigdes de Spenser, na sociologia, ¢ as de Morgan e Tylor, na antropologia - ¢ propugnavam solucées fun- ionalistas. Tratava-se de analisar 0s mecanismos de equilibrio das formas sociais existentes, revelando’ as regtas da sua articulagio, para justificilas e mostrar a sua racionalidade, como antidoto as proposicées evolucionistas, que se haviam centrado no estudo da mudanga ¢ haviam chegado a conclusio de que nao se podetia al- cangar novas etapas de desenvolvimento sem destruir a velha socie- dade: © que podia conduzir a. um antropélogo como Morgan a fa- zer,ao término de um investigacio sobre.o passado das sociedades humanas, profecias como esta:” ‘Chegari_o dia em_que o intelecto fumano se elevard até dominar a propriedade ¢ definiri as relacdes do Estado coma propriedade que salvaguarda ¢ as obrigacdes e limitagdes dos-direitos dos seus donos. Os interesses da sociedade sio maiores que os dos indivi- duos e deve colocarse numa relacio justa ¢ harmdnica.O destino final da humanidade nio sera uma mera corrida até a propriedade, ‘se € que 0 progresso havera de ser a lei do futuro, como 0 foi do passado.! : No campo da sociologia a grande virada foi, sobretudo, obra de Durkheim (1858-1917), Tonnies (1855-1936) €; muito especial- 170 a a reconstrugiio. I: histéria, sociologia e antropologia mente, de Max Weber (1864-1920). Durkh¢im proclamou que a pri- meira regra do tétodo sociolégico era a de "considerar os fatos so- ciais como coisas", que devem estudarse isoladamente "das suas manifestagdes individuais", e estabeledeu a necessidade de se exa- minar a fungio que cumpre cada fato social no seu proprio meio. ‘Tonnies destacou a dicotomia entre "comunidade" ¢ "sociedade” ou mo -, sobre a base de qué em.cada época houve uma fase de repro- ducio excessiva dos homens, que conduziu ao esgotamento dos re- cursos naturais, nas condigdes de utilizagao vigentes, ¢ que isso ori- ginou uma crise, da qual saiy com "novos sistemas de produc (..) cada um deles com uma forma caracteristica de violencia, trabalhos t *WeArens, The man¢eating myth. Anthropology and anthropophagy, Ox- ford University Press, Nova York, 1981, mostrou a fragilidade da evidéncia existente sobre a antropofagia azteca, usada como uma justificacao, da con- quista,e a ligeireza com que Hamner e Harris montaram a sua interpretagio "alimenticia’ do canibalismo mexicano. O curioso € que, sendo 0 canibalis- ‘mo algo de que se fala sempre pot referéncias mais ou metios cemotas, ou através de testemunhos diretos nada dignos de f€, exista toda uma tipolo- gia antropoldgica do canibalismo que o divide segundo dois jogos distin- tos de fatores. Com efeito, pode-se qualificé1o'como endocanibalismo, exo: canibalismo ¢ auto-canibalismo (segundo se coma a alguém do proprio. ‘grupo, de fora do grupo ou a si mesmo), € como gastronémico, ritual ou de necessidade. Esses dois jogos se combinam, além disso, entre si, de modo que hi estudos sobre 0 "enidocanibalismo gastrondmico". O que nao é se- ‘guro € que haja canibais (citagdes das pp. 17-18 € 72-80). 182 areconstrucio I: histéria, sociologia e antropologia penosos, exploracio ou crueldade institucionalizados", o que, como se vé, nos deixa privados de qualquer esperanga de ‘melhora real, Porque, diante desse ciclo infernal da "pressio reprodutora, da in- tensificagao e do esgotamento ambiental"- que, opina modestamen- te, contém “a cfiave da compreensio da evolticio das relagdes de proptiedade, da economia politica e das crengas religiosas" -, nao ha outra solugo que "a expansio da objetividade cientifica no domi- nio dos enigmas dos estilos de vida' - isto € 0 tipo de engodo que ele mesmo pratica a propésito dos porcos, das vacas ou dos sacrifi- cios aztecas -, com 0 qué, esse falso ilustrado revela-se a.nés como um vulgar vendedor de drogas adormecedoras ao servico da causa; ‘eminentemente conservadora, da despolitizacio:" _ Pelo que se refere a Histéria construida com a ajuda da teo~ tia antropolégica - ¢ estou referindo-me agora a um terreno de co- laboracko, muito distinto daquele das invasdes resenhadas anterior- __ mente - , parece claro que a sua validade.depende de um problema de dosificagio: de se estar fazendo "antropologia histérica”, usando servilmente a utensithagem teérica dessa disciplina para a investiga: io dos fatos histéricos, ou se fazer "hist6ria antropolégica’ utilizan- do ferramentas emprestadas para um trabalho éminentemente his- __ t6rico. Essa diferenga parece me que pode ilustrar-se com dois tra- balhos que se referem a umd tematica muito semelhante e que al- cangam resultados muito distintos. Exemplo de antropologia histérica é o de Nathan Wachtel com 0 seu estudo sobre os indios do Peru diante da conquista espa- nhola, A sua obra pode ser descrita como um sanduiche em que a hist6ria proporciona as camadas exteriores - 0s fatos da conquista, . fa primeira parte, ¢ as rebelides ingigenas, na terceira -, enquanto que a antropologia pe o substancioso presunto nto centro - 0 éstit- do das mudangas sociais. Tudo 0 que seja instrumento de andlise provém da antropologia:comeca com um esquema da sociedade in- caica & Polianyi e completase com outro de cariter estruturalista, inspirado em Zuidema, pata inventar uma organizagio sécio-politi- ca, que seria "a ideologia que justifica as concepgdes da reciproci- dade’ da redistribuicio", ¢ acaba em Marx, ao sustentar que a so" ciedade incaica era "um modo de producio asiatico" que estava es- bocando. elementos “feudais", O resultado final € uma mescla dé hist6ria politica tradicional e fanfarronice antropolégica, sem nada que justifique a pretensio de "descobrir as logicas da histétia, geral- mente inconscientes, ecompreender a praxis que pde,em movi- 183 ' . capitulo 9: mento essas légicas, através das suas representagdes conscientes". Um exemplo pode esclarecer 0 alheamento da realidade a que se chega com os seus métodos. Wachtel toma a conhecida obra de Huaman Poma.¢€ deduz dela "esquemas teéricos dos reinos do mundo" ¢ 0s "permiuta’ - numa dessas ficces mateméticas ao modo de LéviStrauss - para acabar concluindo que o cronista "percebe 0, mundo colonial através dz 6tica do-sistema espiciotemporal indi- ‘gena", com “a l6gica rigorosa do pensamento selvagem', porém que vé ameacado © resultado por uma."tensio que 0 leva ao limite da ruptura’, como conseqiléncia da "introdii¢4o da temporalidade oci- dental no interior do sistema’, S6 que se temos alguma idéia acerca de Huamin Poma ¢ do seu tempo, ¢ recorremos sem mais aos seus esbo¢os, 0 que descobriremos € algo muito mais singelo, porém mais pleno de sentido humano: 0 que o- move é a luta contra a opressio exercida pelos colonizadores ¢ a chave nao esta em como se distribuem ¢ permutam os reinos do mundo sobre um mapa, mas ‘sim nessa ilustragio que nos mostra no centro.um indio suplicante todeado do magistrado-serpente, do encomendero-le4o, do ratio-ca- cigue, do tigre-espanholda-venda, da raposa-padre-dadoutrina e do gato-escrivao;€ que diz;nas palavras do proprio Huamdn Poma: *es- ses animais que nao. temem a Deus ésfolam' os pobres dos indios neste reino. E nio ha remédio"."* O exempio da "etno-histéria" de John Murra € muito-distine to. Murra partiu das fontes hist6ricas tradicionais - das crdnicas -, po- rém as enriqueceu posteriormente, contrastando-as com documen- tos administrativos dos primciros tempo da colnia, que permitiam captar melhor as articulagdes econdmicas € sociais.A isso se acres- centaram os resultados da investigacao arqueolégica ¢ um uso pru- dente © medido das:técnicas e achados da antropologia econémica. Comégou por desembaracar-se das estéreis batalhas classificat6rias sobre se a sociedade inca devia de ser considerada como socialista, hidraulica, feudal, asidtica ou escravista, ¢ se concentrou na andlise das relacGes entre os homens - 0 inca'¢ 0 aparato central do Estado, os senhores étnicos locais, os camponeses, 08 yana ou criados per- pétuos - € no uso de critérios ecolégicos para decifrar a integracio de uma economia baseada na exploracao simuyltanea de solos verti- cais de caracteristicas muito distintas. O resultado nao é um verter 0s fatos histéricos nos moldes pré-fabricados da antropologia aca- ~académica - que no se encaixam bem com os seus resultados que, por outra parte, cada dia interessam ‘a menos consumidores de Hist6ria - ou que correrd o risco de deixar.9 campo aberto a0 marxismo.A "novissima” hist6ria econémica, com a sua pretensio z de explicar a totalidade da: mudanga social em.termos de esque- ” mas elementares de teoria econémica neo-classica, resolveria 0. problema, 20 permitirse prescindir de contribuigdes externas & propria disciplina ¢ oferecer-se, ém contrapartida, como explica- cao universal que resolve todos os enigmas da evolugao humana. Um panfleto de defesa do capitalismo que teve uma difusao eviden- temente financiada - Amanbd o capitalismo, de Henri Lepage -, ba“ seia toda a sua montagem "neodiberal" em alguns capitulos iniciais _ + dedicados a histéria, onde sustenta que todos estamos envencna- dos por uma interpretagio do passado falsificada por historiado- rés que ignoravam."os mecanismos da evolugao econémica". Pas- sa entio a explicar trivialmente os sensacionais “achados'da histéria econométrica - ¢ sobretudo da "novissima", com a sua in- sisténcia no tema dos direitos de-propriedade - e acaba confessan- doo objetivo de toda a maquinagio, e pondo em evidéncia os "no- vissimos", quando se concfui que, desenvolvendo uma visio sinté- : tica da historia “que rivalize com a Hist6ria marxista, se trara um grio anais A verificagao cientifica das doutrinas econémicas libe- rais".*' Trata-se, em suma, de se oferecerem novas armas ideolégi- "cas aum capitalismo que se debate na defensiva, encurtalado pela ~ _ evidéncia da sua crise estrutural € incapaz de gerar consenso, por- 5 que no tem nenhuma esperanca razoavel que oferecer aos mi- Rights, Legal Institutions and the Performance of Economics", in M. Flinn, ed., Proceedings of the seventh International Economie History Con- gress, University Press, Edimburgo, 1978, p. 213;ha trad. cast. no volume J. Topolski, C.M. Cipolla ¢. outros, Historta econémica, Nikevos enfocues nuevos problemas, Critica, Barcelona, 1981). 199 | capitulo 10 Ihdes de jovens que nunca encontrardio trabalho, se nao mudarem as condigées vigentes. Se 0 avanco do marxismo obrigou a descar- tar os métodos da velha Histéria académica = que no tinha mais recurso que o de despolitizar tudo €.combater o vicio de refletir - para passar a um funcionalismo que privilegiava a andlise do ‘equilibrio estatico ¢ justificava a racionalidade dos sistemas exis- tentes, 0 desespero da época de crise em que vivemos pode aju- dar a entender que se tenha recorrido a uma tentativa apologéti- a to tosca ¢ elementar. Pudemos definir a “nova Historia econé- mica" como uma caixa de ferramentas metodologicas, na qual se podiam encontrar instrumentos titeis;a "novissima", em troca, pa- rece ter pouco que seja aproveitavel. Na sua forma extrema, mos-_ tra-se como o guarda-chuva que os "novos liberais" - os apanigua- dos dos "velhos exploradores" - oferecem aos seus donos, para tra- tar de manté-los cobertos da inandacao que se avizinha. Em ocasiGes, entretanto, tracos da nova ou da novissima apa- recem misturados em construgées ecléticas - com elementos pseu- do-marxistas da teoria wallersteiniana das “economias-mundo’, por exemplo - em grandes quadros explicativos, que costumam ter al- guns tragos em comum, tais como os de utilizar para a andlise do passado as categorias da economia capitalista - de forma que faz aparecer, por exemplo, "0 mercado" como uma forca renovadora, em lugar de resultado dé um sistema concreto de relagdes -, esque- cer a dimensao social da histéria ou reconstruir a evolucao da Eu- whe desde a Idade Média, para a mostrar como o resultado do triunfo da liberdade (contra a ineficacia do despotismo asiatico, ge- rador de atraso econémico),com 0 que, vem a somarse a legitima- ao das formas politicas vigentes que ’praticam os cultivadores da “novissima Histéria econdmica". Nessa parte teria que se incluir The european miracle, de E.L. Jones - um investigador cujos exce- lentes trabalhos sobfe a agricultura as origens da industrializagao, britinica prometiam mais - ¢, sobretudo, The bumizn condition, de William H. McNeill, que abrange a histéria-inteira da humanidade num pitoresco esquema de “microparasitismo" ¢ "macroparasitis- mo" - uma denominacio encaminhada a desdramatizar a explora- 40 do homem pelo homem, assimilando-a ao mundo das ciéncias da natureza -, com algumas idéias engenhosas € bastante topicos, onde os tragos que assinalamos anteriormente conduzem a resul- 200 a reconstrugao. II: a nova histéria econémica tados tio singulares, como 0 de definir a Revolugio russa como ‘uma revolta contra “A tirania do mercado", o que nao parece muito Elucidativo, jé que, para dar um s6 exemplo, é dificil admitir que a estrutura da propriedade da terra na Russia czarista, contra a qual se sublevaram as massas camponesas, fosse o resultado. da acio do mercado, entendido a0 modo que costumam fazé-lo esses apologis- tas da "liberdade econémica".# 201 III: a escola dos nnales : At Economies Sociétés Civilisaitons € hoje uma re- vista de considerivel influéncia ¢ 0 porta-voz de uma corrente his- toriogrdfica que se cGnverteu num dos pilares da modernizagio do academicismo, sucedaneo do marxismo, que finge preocupacées progressistas € procura separar os que trabalham no terreno da His- toria do perigo de penetrar na reflexao tedrica, substituida aquipor ‘um conjunto de instrumentos metodolégicos‘da mais reluzente no- __ vidade e com garantia de "cieniificismo", Se nos atemos 4 realidade presente, poder'st-ia definir a escola dos Annales como um funcio- nalismo que tratou de reconstruir 4 Histéria com o recurso a uma * mistura, mais ou menos bem condimentada, de elementos 'tomados de diversas disciplinas (Sociologia, antropologia, economia). Os t Ae “No caso dos Annales, resulta absolutamente imprescindivel distinguir et the as contribuigdes metodolégicas - que cotresponde a estudar dentro do campo da historia da historiografia - ¢ a teoria subjacente, que € 0 que se trata de analisar aqui (distinguir entre as ferramentas € 0 plano). £ impos- sivel negar o resultado que teve 0 trabalho de divulgagio de novas técni- , -cas de trabatho efetuada pela revista desde a sua fundacio, que contribuit Para uma Fenovacio formal da historigrafia académica. Porém o mesmo ci- iter instrumental da sua influéncia torna dificil assinalar os que se situam > plenamente dentro dos postulados da escola ¢ os que receberam dela, sim- plesmente, um impulso atualizador. Sc ha que rechagar inteiramente as ten- efetuxidas pelos integrantes dos Animales para vincularse a um La- bfousse, que pertence a outra corrente historiogrifica - a do socialismo / “2 fragicés, que passa por Jaurés € pela pléiade dos grandes historiadores da --' Revolucio (Mathicz, Lefebvre, Soboul...) ¢ tornase claramente marxista . - ‘com Vilar -, resulta também discutivel adjudicarthes homens como.Jean Meuvret - de quem, nos seus Etudes d’bistotre économique, A. Colin, Pas + tis, 1971, se encontrar uma relagio bibliogrifica -, cultuador de uma His- t6ria Ccondmica ortodoxa, ou inclusive a pessoas. como Pierre Goubert, Oe ee S capitulo 11 Seus tracos mais visiveis sao o ecletismo (caracteristica habitual do pensamiento académico), uma vontade globalizadora, que se justifi- ‘ca pela necessidade de superar a limitacio tradicional dos cultuado- res da Histéria politica (porém que é, na realidade, 9 resultado do uso de um instrumento metodoldgico heterogéneo € nem sempre coerente), € um esforgo pela modernizagio formal que cumpre a fungao de desviar a atencao para o meramente instrumental, enco- brindo a auséncia de um pensaménto tedrico propriamente dito.' Porém esse receituario nfo apareceu com a revista em 1929, quando se chamava Annales d'Histoire Economique et Sociale, flertava com 0 marxismo ¢, sob a dupla direco de Lucien Febvre ~de Mare Bloch, parecia aberta s correntes mais progressistas das ciéncias sociais, separando-se gradualmente de algumas origens tio, conservadoras, como as concepgies da "sintese histérica" de Henri Bert € da sociologia da escola de Durkheim. Tudo mudou com a Se- gunda Guerra Muridial, durante a qual - na ocupacio alema da Fran- ¢a- 0s Annales continuaram sendo publicados com diversos titu- Jos - Annales d'Histoire Sociale, de 1939 a 1941,e Mélanges d'His- totre Sociale, de 1942-a 1944. Preso Mare Bloch, que seria assassina- do pelos alemies, em 1944, a dirego ficou exclusivamente com Febvre. Sabemos que existe uma carta de Marc Bloch a Febvre, es- crita em 1941, em que propunha deixar de publicar a revista en- quanto durasse a ocupagio. Febvre opinou de modo distinto ¢ op- tou por acomodar-se A situagio. Data de 1941 precisamente a vira- cuja grande monografia "regional" - Beauvais et le Beauvaisis de 1600 @ 1730, SEVPEN, Paris, 1960 - recolhe a heranca da geografia humana de Vi- dal de la Blache ¢ Demangeon (um dos elementos constitutivos da forma- “gio de Bloch e Febvre, o que hoje, curiosamente, parecem esquecer algins. dos atuais membros da escola). Sem contar com a dificuldade que implica situar 05 que trabalham numa estranha zona intermediria, como Michel * Vovelle, que difere Claramente da escola, pela forma cont que julga a Revo- lugio Gsto €, como algo fundamental), porém flerta como seu estilo ¢ os. seus métodos de modo equivocado, "one foot in sea and one on shore” (a melhor visio de conjunto da obra de Vovelle podera obter-se a partir da compilagio De la cave au grenier, Serge Fleury, Quebec, 1980). Os juizos que aqui serio formulados sobre a escola dos Annales nao devem enten- der-se, por conseguinte, como aplicados 4 pritica concreta dos historiado- res da sia ampla zona de influéncia (podem ser encontradas inclusive sim- bioses analitico-marxistas, por exemplo). O que aqui se quer denunciar € 0 género de teoria - € 0 projeto social impficito nela - que se esconde sob as formulagées feitas pelos Febvre (desde 1941), Braudel, Le Roy, Ladurje € companhia, 204 a areconstrugo. I a escola dos annales - . gem “teérica" de Febvre, quando minimiza o alcance do titulo que se deu 3 revista em’ 1929, dizendo que o "econémica" ¢ra um."resi- duo" das discussdes suscitadas pelo materialismo histérigo - 0, que aproveita para desfazer qualquer suspeita de "economitismo sub- versivo" - tem inclusive a capacidade de dizer que 0 "social" nao sig- nificava nada e que *o reécolhenios pot isso mesmo". Poderia pensar- se que e8sas afirmacées, com o.que tém de distanciamento com re- lagio ao marxismo, eram fruto obrigatorio da necessidade de aco- modarse 4 situagio vigente numa Franga dividida entre 0 governo de Pétain ¢ os ocupantés alemies. Porém o realmente significative é que esse texto de revisio e acomodamento foi recolhido por Feb- vre, em 1953, nos seus Combats pour I'bistotre, sem matizar nem cortigir nada, como expressio programatica do seu pensamento:do pensamento que inspiraria a nova etapa dos Annales, ja com o seu nome atual, entre a sua reaparicao de 1946 e 0 falecimento de Feb- vre,em 1956 : De 1956 a 1968, dirt’gio foi ostentada por Fernand Braudel. A revista acentuoti a sua equivocada evolugao tedrica, porém man- teve, a0 menos, a minima exigéncia formal'¢ erudita. S40 os ands da -ascensio do seu prestigio que explicam que, depois da crise univer- sitéria de 1968, com a quiebra do academicismo téadicional, recor- -. rere i escola, provida de uma mercadoria de aspecto moderno’e + progressista, que poderia servir para tampar as brechas por onde o marxismo tratava de introduzirse. Substituido Braudel por uma di- regio coletiva,a revista comegara uma rota de flutuagées incon- seqiiéncias, dirigindo-se as modas intelectuais do momento, sem pfeocuparse sequer de manter.o minimo rigor que Febvre ¢ Brau- del tinham exigide dos textos a que davam acolhida nas suas pagi- nas. Comiegard,ao mesmo tempo, uma operagio de apagamento dos sinais da sua origem, que continuava ainda 3 altura do cinquentend- rio, em 1979, quando Burguiér recordava to sé os componentes menos conflitivos da sua genealogia, esquecéndo-se, por exemplo, de Simiand, que resultava muito incémodo.? Hi, por conscguinte, alguns Annales, de-1929 ¢ 1939, que re- querem atengio especial, como 0 requer 0 pensamento de Marc Bloch, insuficientemente ‘refletido.nesse texto da Apologie pour Tbistoire, que Febvre péde publicar postumaniente sem nenhum + |problema, pelo fato mesmo de que,no final,era "antes de tudo (...) um reexame das formas insanas de pensar e fazer Hist6ria". Porém isso forma parte de um argumento que aqui ndo podemos acompa: ~ 205 ‘nhar:o do desenvolvimento alternativo que teria podido experimen- tar,em outras citcunstincias, essa realidade ambigua que eram 0s An- nales d'Histoire Economique et Soctale, © que realmente nos inte- essa - 0 que é na atualidade o pensamento da escola dos Annales - € algo que parte da viragem de 1941 e que se manifesta na nova eta- pada revista, desde 1946. Conviria, por conseguinte, partir do pensa- mento de Lucien Febvre:do Lucien Febvre-que escreve os seus tex- tos de "combate" por uma “nova historia" entre 1941 ¢ 1956." 'O primeiro traco definidor do pensamento de Febvre é a re- cusa da esterilidade do historicismo e da sua crudigio factual, e 0 Protesto contra a tentativa de estabelecer 0 "fatd histérico" como objetivo supremo, talvez 0 tinico, do trabalho do historiador. E, so- bretudo, o combate contra uma Histéria estritamente politica, que 86 se preocupa em estabelecer "se tal rei determinado havia nasct -do em tal lugar, tal ano, ¢ em determinada regio tinha conseguido uma vit6ria decisiva sobre os scus vizinhos", valendo-nos para isso dos textos; elegendo ¢ pesando com cuidado os méthores textos para "compor um relato exato € preciso". Imagem deformada da historia académica dominante na Franca, que Febvre exagerou, como assinala Guerreau, "para dar uma aparéncia atrativa a sua 'bri- colage' empirista’ ¢ um ar "de inteligéncia ¢ de unidade as merca- dorias desencontradas dos Annales"? A partir dessa negacao'se sucedém trés afirmagées.A primei- ra € a mais fundamental ¢,a0 mesmo tempo, a mais equivoca. Refiro- me & consideracio da Hist6ria como ciéncia ¢ A aceitagio de uma teoria da historia, de algumas leis proprias désta.Se Bloch falava sem vacilagio da Histéria como "ciéncia dos homens no tempo", Febvre Ihe nega essa condigio ¢ a define como "o estudo cientificamente elaborado das diversas atividades € das diversas’ criagées dos ho- mens de outros tempos".A diferenca que haja entre "ciéncia" € "es- tudo cientificamente elaborado" ilumina-se quando percebemos que Febvre desvia sempre o problema para‘o da utilizagio por parte do historiador dos métodos de outras disciplinas "cientificas".O que im- Porta €.0 instfumento, nfio o projeto em que este seri empregado.* Em segundo lugar, ao se rechacar uma Historia estritamente politica, o que se propée para substitutla? Guiando-nos pelo titulo adotado em 1929, parecernosia ser uma Historia “econdmica € so- cial", Porém, ja se viu que Febvre renegou essa definigao original. Em 1941, Febvre opina que a tarefa do historiador consiste em relacionar aspectos da vida humana, sem se importar quais sejam; nenhum tem 206 areconstrucéo, Ill: a escola dos annales uma importancia predominante: di no mesmo tratar de relacionar os problemas econémicos de uma sociedade com a'sua organizacio po- litica,como stia filosofia com as suas idéias religiosas, Para dar coerén- cia a esse caos ha dois pretextos.O primeiro, a alusio ao carater total “do homem, que leva a um-abuso das palavras “homem’, "vida" ¢ de seus Uerivados, num jogo que tem 0 seu-antepedente imediato na fr losofia da vida alma ¢ que, se fosse coerente, teria conduzido de re- gresso até Dilthey.O segundo vem representado por uma formula ha- bil, porém nao mais clarificadora, ao definir o objeto da Historia como "a harmonia que, perpetua ¢ espontaneamente, estabelecese em to- das as Epocas entre as diversas ¢ sincrénicas condicdes de existéncia dos homens: condigdes morais, condigées técnicas, Condi¢des espiri- tuais", Frase que quer dizer, em suma, que tudo est relacionado com tudo - 0 que nio era precisamente um descobrimento -, porém que ‘no nos diz como se estabelece tal relago. Ja se disse que essa vira- gem anunciouse em momentos em que podia parecer obrigatétio 0 distanciamento com relacao ao marxismo, porém que Febvre o repe’ tiu depois,ao compilar os seus escritos "tedricos". O realmente signi- ficativo € que um texto escrito para os anos da ocupacio:e do petai- nismo tenha sido mantido ao fixat o rumo para.a noya etapa, Em 1946, Febvre dird, simplesmente, "os Annales mudam porque a0 seu redor tudo muda". O que estava fazendo éra oferecerse para atuar como formula de resgate de marxismo nos anos da guerra fria.” ‘Tereeird ¢ tiltima afirmacio, de nivel ainda miais baixo: a da necéssidade de relacionar 2 Histéria com as ciéncias vizinhas € mo- dernizar os seus métodos de trabalho, rompendo a limitagio que podia significar uma dedicagio exclusiva 20 documento escrito: 20 texto. O que dar lugar a algumas das paginas mais sugestivas de Febvre, nas que este trata de instigar com as recompensas do méto- do ao jovem historiadlor que faga o voto de renunciar 4 teoria.* * "Indubitavelmente a Hist6tia se faz. com documentos escritos. Porém tam- bém pode fazerse, deve-se fazer, sem documentos escritos.se estes nao ‘existem. Com tudo 0 quie o engenho do historiador possa permitirlhe uti lizar para fabricar 0 seu mel, na falta das flores usuais. Portanto, com pala~ vras. Con signos. Com paisagens ¢ com telhas. Com formas de ‘campo € hervas daninhas. Com eclipses da lua e/éabrestos. Com exames periciais das pedras fealizados por gedlogos € antiliscs de espadas de metal realiza- dos por quimicos. Em uma palavra: com fudo o que sendo do homem, de- pende do homicm, serve 20 homem, expressa 0 homem, significa a pre- senga,a atividade, os gostos € as formas do set do homem" (Lucien Febvte, Combats pour Vbistoire,Armand Colin, Paris, 1953, p. 428). 207 ‘Tudo se reduz, em suma, a uma critica das limitacdes da in- vestigacio historicista ¢ a uma vontade de abrir as janelas ao pre- sente € as portas a colaborac4o com outras disciplinas que possam trazer ajuda com as suas técnicas; 4 ampliacio do campo de traba- Iho ¢ & renovagao dos métodos. Com isso podia-se alcangar uma co- Iheita de trabalhos eferuados de acordo com as técnicas mais inova- doras, porém o resultado final seria uma acumulacao incoerente de anilises parciais, com os quais seria muito dificil chegar a construir explicacées globais validas. Uma saida a essa dificil situago veio proporcioné-la Fernand Braudel, com o que Alain Guerreau chamou de o-seu "motor de trés tempos". © "motor" braudeliano foi apresentado pela primeira vez em O Mediterraneo e 0 mundo mediterraneo na época de Filipe Il, onde ideou uma estrutura eth trés pisos, caracterizados pelos seus distintos ritmos de evolucao. Na base estava o que chamava a "gco- historia’,- uma forma de geografia humana aplicada A Historia - que correspondia o ritmo mais lento: "uma histéria quase imével, a historia do, homem nas suas relagdes com o meio que o rodeia". Por cima, um estudo estrutural, social, que recebe o titulo de-"Destinos coletivos € movimentos de conjunto" € que, por sua vez, subdivide- _ se em cinco planos distintos: 1) as economias (populagio, pregos € moeda, comércio, transporte), 2) os impérios (estrutura politica), 3) as eivilizagdes (as formas de pensar), 4) as sociedades (burguesia, reagio senhorial, miséria ¢ bandidagem) €5) as formas’da guerra.A terceira parte - que recebe 0 titulo de "Os acontecimentos, a politi- ca e os homens'- ¢ra uma exposigio de Hist6ria politica & maneira tradicional. O problema maior consiste em que essa estrutura ém trés andares Ihe setve para depositar tudo ordenadamente, porém nao ha nenhuma relacio efetiva entre os diversos estratos que pos- sa conduzir do armazenamento sistematico - que ja era um avango coni relacao a dispersio de outras obras da escola - a uma explica- io integrada. Da presenca quas¢ imével do espago ou do clima até os acontecimentos politicos cotidianos, nao ha nexos que nos expli- quem como os elementos de um dos planos atuam sobre os.de ou- tros, para integra-los numa explicacao global." Alguns escritos tedricos posteriores tratariam de justificar essa estrutura, Braudel nos diz neles, para comegar, que ha na - histéria diversos tempos, Os velhos historiadores s6 sabiam. ver 0 tempo curto, o ritmo breve da histéria dos acontecimentos. E isto nao é tudo. Tem-se que abordar as realidades sociais, "todas as for- - 208 areconstrugao. Ul a escola dos anaes ‘mas amplas da vida coletiva,as economias,as institugdes,as arquite- tunis sociais, as proprids civilizagde8, sobretudo. estas". problema Consiste-em que todas essas realidades parecemi ter, por sua vez, rit- _ mos distintos: ha alguns ciclos econdmicos, uma conjuntura social @ e€ “uma histétia particularmente lenta das civilizacées", Por bai- xo, ainda, um ritmo de base: "ha além disso, mais lenta ainda que a historia das civilizagdes, quase imével, uma histéria dos homens em relagio com a terra que os sustenta € os nutre"? A formula de Braudel recothia numa espécie de programa in: tegral alguns tragos da tradigao dos Annales:o gosto pela géografia, a preocupagio pela histéria econdmica (entendida de maneira des- ctitiva ¢ superficial, ¢ limitada sempre 3 circulagio, sem tocat nos problemas da produgo), a consciéncia da inter-relagao que existe entre os diversos extratos com que‘o historiadot tropega ao estudar uma sociedade € uma época. O resultado foi um livro bem escrito, cheio de sugestdes ¢ de achados parciais, porém,em suma, descrité Vo, sem um fio condutor que integrasse as trés grandés faixas.A pro- va que temos de que nao traz nada ao conhecimento do problema fundamental da época de que se ocupa:o da trinsito do feudalismo ~ ao capitalistio.A in¢onsisténcia do procedimento, do método brau- detiano dos "trés tempos’, aparece com toda crueza quando cém- Provamos que ele mesmo o abandonow na sua segunda grande obra. Que ali adotou uma estrutura trinitéria inteiramente distinta, que se esquece por completo dos tempos. £ entio, quando nos da- ‘mos conta de que a arquitetura de O Mediterraneo era um puro ar- tificio literdrio, e que a teorizagio dos trés tempos nao foi mais que uma tentativa de racionalizé-la a posteriori. : Givilizagao material, economia e capitalismo, séculos XV. XVIII aparecido em 1979,ndo € propriamente uma obra de inves- mas sim algo como uma soma’de leituras sobre a qual se z edificio de elucubracio teérica. Repete-se aqui um es- quema trinitétio, porém os andares no correspondem agora 208 tempos, como em 0 Mediterraneo, mas sim a distinta caracteriza- So das atividades econémicas. No’escalio inferior esta a “civiliza- ao material" ou ‘vida material’, toda a atividade de base que esca- Ppa ao mercado: "essa infra-economia, essa outra metade informal da .atividade econémica, a da auto-suficiéncia, a do intercimbio dos produtos e dos servos num raio muito curto”. No segundo plano, - 9. da.economia propriamente dita, encontramos toda a atividade li- gada ao intercambio mercantil, onde se respeitam as tegris da com- 7 capitulo 11 Ppeticao perfeita, tal como aparecem descritas nos manuais.£ "a eco- nomia chamada de mercado, isto é, 0s mecanismos da produgio € do intereambio ligados as atividades rurais, as vendas, aos ateliés, as lojas, as bolsas, aos bancos, as feiras ¢, naturalmente, aos mefcados". £"o mundo da transparéncia ¢ da regularidade, onde cada um pode saber antecipadamente, instruido pela experiéncia comym, como se desenvolveram os processos de intercimbio", Essa ¢ a economia que se reflete habitualmente nas estatisticas. Essa € a classe de eco- nomia de que se ocuparam habitualmente os homens da escola dos Annales. Porém agora Braudel descobriy. ainda um terceiro plano: uma zona opaca onde atua o jogo das "hierarquias sociais ativas",do. monopilio € do privilégio, que falsciam o'intercambio em proveito proprio; operando "em circuitos € caleulos que o homem comum ignora’.Este é, para Braudel, o verdadeiro capitalismo, que escapa as regras da concorréncia ¢.do. mercado, que sé podé rastrear na historia desde a antigitidade, que passa pelos. mercadores de Génova do século XVI € dos de Amsterdam ‘do século XVIII ¢ con- duz em linha reta as multinacionais do século XX. Para ‘dizé-lo bre- ‘vemente: para Braisdel, o capitalismo € especulacio, como se perce- be quando se utilizam como equivalentes as expressdes "pequena ‘especulacio" © "micro-capitalismo’."” Pode-se explica: o capitalismio com semelhinte esquema? Somente se for aceita a sua peculiarissima e limitada definicio, ¢ se houver resignacao para moverse exclusivaménte no plano dos in- tercambios. Observe-se que os trés niveis de Braudel poderiam de- finirse como ¢conomia fora do mercado, economia do mercado perfeito ¢ economia de um mercad@ deformade pelo monopélio € Pela especulagao - ou como auto-consumo e€ troca, intercimbio igual ¢ intércambio desigual.Os homens s6 c.relacionam entre si como compradores ¢ vendedores:A Bfaudel lhe escapam por com- pleto, em contrapartida, as relagdes quie se estabelecem entre se- nhores ¢ vassalos, ¢ entre empresirios € assalariados,com o que eli- mina de fato o tema da exploragio. Em trés grandes tomos sobre 0 Capitalismo no hd nem sequer uma pagina inteira dedicada ao sa- lario. Nao € isto revelador de que o' capitalismo de Braudel tem muito, pouco que ver com: que impulsionou a industrializa¢ao, configurou.o mundo em que vivemos e domina nossas sociedades? Nao estranharia muito que esse percurso pelo mundo € pela. hist6tia acabasse cont a negacao de qualquer esperanga de superar © capitalismo, afirmando que a crise iniciada nos anos de 1970 é gra, 210 areconstrucao. III: a escola dos annales ve, porém, que "o capitalismo como sistema tem todas as dportuni- dades de sobreviver. Economicamente (nii0 digo ideologicamente) _ pode inclusive sair reforcado"."* Braudel representou uma tentativa frustrada de introduzir coeréncta nesse funcionalismio sem base tedrica propria que é a ¢s- . cola dos Arinates. Frustrado, porque foi incapaz de criar uma arma- gio que pudesse dar sentido a8 miiltiplas investigacdes parciais dos membros da escola. As razdes desse fracasso se compreendem quando se observa que, em 1980, reivindicando para si o mérito de ter introduzido nos Annales o conceito de estrutura - do que di uma definigio tio trivial como "a estrutura € 0 que dura através do tempo, é a continuidade, a permanéncia’., rechaca o estruturalismo de LéviStrauss porque pretende erigir um método de investigagio social baseado na andlise de estruturas estaveis € por causa das re- gras pelas quais se passa de umias a outras (ou, dito 3 Braudel, por- que pensa “que ng jogo escuro de uma sociedade ha relagdes de or- dem matemitica pelas quais uma situacio conduz a outra"), Para Braudel, em troca, as’ estruturas sto, simplesmente, permanéncias isoladas como esta: !nio ha uma capital sem um arquipélago de ci- _ dads, niio ha cidade sem povoados, nao ha povoados sem campos". K evidente que com essa tissolucio do conceito de estrutura no se pode construir um esquema interpretativo que chegue a dar uma explicagio global da evolugio das sociedades humanas."* Nao se estranhara, por conseguinte, que a escola haja caido: por uns dois anos - depois que Braudel abandonou a diregio efeti- va da revista; fato esse, como jé se disse, se refletiria numa queda do minimo rigor que se tinha mantido até entio - sob 0 feitigo do es- truturalismo levistraussiano, que, pelo menos, oferecia pautas para a construgio de explicacées globais, Nela se publicaram coisas tio incriveis, como um artigo intitulado "Realeza ¢ ambigiiidade se- xual", onde se tentava langar luz sobre.a natureza da monarjuia ém BizAncio, explicando-nos que o monarca era um personagem ambi- = + guo do ponto de vista sexual, que 0 ‘elemento feminino esta simbo- lizado pelos ritos de coroagio, que cobrem ¢ envolvem, € o mascu- lino pelo ato'de levantarse no trono, pela eregio,com frases como: “sobre o trono, o reiimperador concentra os papéis masculinos ¢ fe-~ _ ’ mininos numa tensio dramatica’. Ou que tenha acompanhado com _ A imitaco mais superficial dos métodos antropolégicos, como no caso do Montaillou, village occitan, de Emmanuel Le Roy Ladurie, 2u1 capitulo 11 um livro picante ¢ vazio,* onde tudo se reduz a sexo ¢ religiio, com fo que se conseguiu 9 feliz resultado de eliminar da vida dos homens © trabalho € a exploracio, de modo que o huigar que numa monogra- fia hist6rica razovel est destinada 2 ariilise do funcionamento do ’ sistema ‘feudal em que esses camponeses viviam, € ocupado aqui pela descrigao da forma em que se tiam os piolhos uns aos outros ou pelo relato das aventutas amorosas do padre do lugar." O seu gosto pela modernizagao metodolégica ¢ a sua preten- ‘so globalizadora, que se ofereciam como uma alternativa ao mate- rialismo histdrico,** fizeram com que, nos tiltimos anos,a escola An- nales tenha tido uma irradiacao considerivel no mundo académico, m especial nos Estados Unidos. Porém esse florescimento niio fez mais que pér em relevo as suas debilidades:a auséncia de um pen- 7 samento coerente, que a obriga a contentarse com aproximagoes Parciais dos problemas estudados; a insisténcia no instrumental, -, com uma ateng’o exclusiva no método, para suprir a falta.de uma teoria;a adogio frivola e pouco meditada de principios tomados de . outras disciplinas; até fazer a revista aparecer como um simples re- flexo das modas intelectuais vigentes na Franga,adotadas sem erit- ca alguma." *Porém esse Montailiow to aplaudido por todos os meias publicitrios do academicismo ¢ da cultura oficial resulta uma auténtica j6ia ao lado da nova € grossa brochura.do mesmo autor: argent, Vamour et Ia’ mort en Pays 0c, Seuil, Paris, 1980, um rolo geométricoliteririo-estrutural escrito-com uma erudicao preciria - ao falar do trovador Bernat de Ventadour, escrito a fraticesa, nao se the ocorre outra coisa que remeter a0 Dicionfrio de auto- * res de Bompiani (p. 150)-,€ com um capitulo em que se chega 2 escanda- Josa conclusio hist6rico-social de que’os matrimonios costumavam ser con- traidos entre homens © mulheres de niveis de fortuna semethantes - € se quantifica com uma cotrelagio de 0,86 - (pp. 158-174).A segunda parte, in- titulada*O antor, o dinheiro © a morte’, € uma incursio de foldlorista ama- dor, espécie de caricatura de O ramo dourado, de Frazer, em que sé da a volta a meio mundo, atras de um tema popular, para acabar nio explicando ‘nada de stil sobre a sociedade que se supe se estar estudando. * ** 0 proprio Braudel assume esse carter de alternativa, quando assegura -- ~ que as suas relagdes com 0 marxismo nao sio nem boas nem mas, mas sini iguais a zero, ¢ dialoga com Marx de igual para igual, a fim de cortigir 0s seus erros teéricos, com elucubragdes como esta: "Para mim 0 erro essen cial de Marx € considerar a sociedade plana. Para mim tem uma espessura © uma geometria no espaco. E creio que tenho fazio: é a tinica diferenga entre, cle € cu" CFernand Braudel, entrevista a0 ctidado de Marco d’Eri- mo’, in Mondoperario, n°. 5, maio, 1980, pp. 133-142). - 212 la dos annales Para dissimular 4 sua incapacidade de enunciar um quadro de principios tedricos, que possa submeter-se a discussio,os mem- bros da escola cairam numa espécie de febre metodolégica, que os “ Jeva'a publicar um livro atras do outro de reflexdes sobre a histéria. Livros como Le fervitoire de 'bistorien, onde Le Roy Ladurie diz coisas tio sensacionais, como que "o historiador de amanha serd programador ou no o sera’, o que vem a ser como se um homem de fins do século XV tivesse dito que "o historiador de amanha sera impressor 0.n3o 0 sera". Como Histoire sclence sociale, um volume de mais de quatrocentas paginas de elucubragdes sobre a religiao, © arroz,a vida ¢ a morte que Pierre. Chaunu se envaidece de haver escrito‘em menos de um més € meio. Ou como essa enciclopédia sobre A nova histéria, onde os sécios do clube dos Annales, além de clogiarem-se uns a6 outros; exibem toda a sua ferrugem ¢ che- gam ao.regozijante descobrimento de que timbém a moda hist6ri- ca € dirigida de Paris,e que eles sio seus artifices supremos, conclu- siio que se alcanga pelo elementar procedimento de mio levar em conta mais que 0 que eles mesmos fazem (esquecendo' que hé na prépria Franca uma tradigao historiogréfica "socialista" muito mais s€ria), Livros, em suma, onde a multiplicidade dos temas abordados, que pretende ser um reflexo da diversidade e riqueza da investiga- ho, apénas consegue ocuitar a total falta de idéias.'* Auséncia de idéias no significa, entretanto, auséncia de in- tengdes. A fungio ideolégica - politica - dos homens dos Annales nio pode ser mais clara ¢ a sua posicao atual resulta coerente com © rumo iniciado por Febvfe.em 1941. Annales da boa acolhida a to- dos os ataques contra os “mitos do progresso ¢ da revolugio". Nas suas paginas Chaussinand-Nogaret sustenta que a Revolugio france- sa nao’ surgiu de uma oposigao politica ou ideolégica entre a bur- guesia ¢ a aristocracia, que pensavam a mesma coisa ¢ tinham os mesmos objetivos;mas sim do oportunismo da burguesia, que, a0 descobtir a ameaca das massas populares, assustada, "gritou com o povo.¢ desviou para os aristocratas a tempestade que podia leva- la".* Um dos seus diretores atuais, Marc Ferro, empenhow-se por sua - *Adestruic¢io do "mito" da Revolugio Fraficesa converteuse num dos ob- jetivos centrais do academicismo conservador, em especial desde a vira- ‘gem reacionariada Guerra Fria. Os Annales haviam se somado a essa causa ‘com aparéncias de objetividade. Uma das suas contribuigdes mais notiveis foi um artigo de F Crouzet sobre 0 crescimento econémico na Franca ¢ na 213 capitulo 11 parte em destruir também “o mito da Revolugio russa". $6 que nes* se caso 0 empenho vai mais além, porque se trata de destruir, 20, mesino tempo, qualquer. concepgio, em especial o-marxismo, que tena’ paiticipado da crenga no "mito do progresso". Nao ha pro- gresso mais que no terreno cientifico; nao nos dominios do politico ou do social, Dessa postura de Ferro custa pouco para passar 4 de ‘um Braudel, para quem uma das estruturas permanentes da histéria € que toda a sociedade € hierarquizada, e que, depois de um discur- ‘SO pouco coerente sobre a resisténcia "anti-capitalista" das econo- ‘mias “submersas" - depois de uma apologia do trabalho negro ¢ da fraude fiscal -, acaba afirmando que 0 capitalismo € inevitavel."* No cenario da reconstrucio da hist6ria,a escola dos Annales no assumiu o papel de defender explicitamente as exceléncias do capitalismo, como 0 tém feito certos setores da "novissima histérla ecortomica’. Propés um. funcicnalismo eclético como formula de troca’a qualquer interpretacao evolutiva (ou a funcionalismos de- masiado limitados, por sua dependéncia do corpo teérico de uma s6 disciplina) ¢ trabalhou para dissipar as ilusdes sobre os concei- tos de evolugio € progresso.Sua tarefa principal tem sido a de lim- par o terreno de solugées alternativas, demonstrar a inutilidade das © b Inglaterra no século XVIII (Annales, 21, 1966, n°, 2, pp. 254-291); onde se. ‘sustentava que o ritmo de Progresso das duas economias tinha'sido' mitito semethante no século XVII € que'o atraso francés do sEculo XIX 56 pode: + ria dever-se & "catastrofe nacional" da revolugio ¢ aos vinte anos de guier- 1a Bubseqiientes. Crouzet colocava entre aspas “catastrofe nacional” € 0 ct tava como tomado de um livro de Lévy-Leboyer (que, por sua vez, remetia ~ a um artigo anterior de Crouzet, devolvendodhe assim uma paternidade que ainda deveria resultar incmoda), Nos tiltimos anos, entretanto, nao ha fem scquer preocupagio por guardar as formalidades, ¢ Annales acolhe qualquer ataque antitevolucionitio que se apresente,Um dos seus cére- » bros, Le Roy Ladurie,que tem apontado faz alguns anos esta causa como sua, fazéndo honra a uma trajet6ria politica pessoal da.mais equivoca, apre- senta um programa que ji nem sequer ataca frontalmente a revolucdo, mas que praticamente a faz desaparecet. Referindo-se a0 campo francés nos fins ‘do século XVII, Le Roy assegura que a contradicio entre-capitalismo ¢ feudalismo era tum entre muitos outrés conflitos ~

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