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cicLo IDENTIDADE EM QUES Identidade e Histéria Carros GuitHerMeE Mota ja perdemos a inocéncia do mito, mas ainda indo somos profissionais da utopia.' Canpipo Menpes pe ALMEIDA. —~ Introdusio Agradego 0 convite para rever académicos e amigos que — Historiador, hoje acorreram a este sodalicio voltado 4 tematica da iden- — ¢ Professor tidade nacional. De nossa identidade. Dou-me conta das di- Ement da ficuldades crescentes envolvidas em assunto tio candente, lie sobretudo nesta quadra na qual a Petrobras, outro icone de nossa identidade, sobrevive enleada nos sargagos da corrup¢40, — pyafessor de em processos vergonhosos e graves desafios. Nao bastassem Historia da as dificuldades que este Pais que se quer Nagao enfrenta — e de Filosotia da USP e enfrenta mal — nas esferas da Educagio, Satide, Saneamento u Basico, da governanga, ... e da Cultura, sobretudo na provincia Arquicetura da Unwersidade de onde venho, Sao Paulo, em que instituigdes culturais so- : Presbiterana brevivem a incéndios, desmazelo e inctiria, como no caso do Museu da Independéncia, no alto do Ipiranga, outro icone de nossa identidade aviltada. Mackenzie “Ein sua conferéncia “Os Pensadores. Cem Anos de Caltara Brastleira” cadena Brast Hera de Letras, Colegao Mimo Penuto, 2002 p18 Conferéncia proferida na Academta Brasilenta de Lettas, em 12 de abril le 20 Mors 5 GuIEHERME 86 SH CarLos / es istimos rmulagao do assistimos, 02 formulagio d historia, ue is ada, em aufragio da Nagao no horizon Conjuntura delica aon ae Maga da dade do espetaculo. jor ering © da sociedad ee the. da cultura do mar tiu Machado de Assis na “Teoria 4, O tema solicita medalhao”, um regress ‘ nentos dessa arte de palav como adver i tarefa propria d dificil de pensar 0 pensado (...), materi ras, conceitos ¢ desvarios”, pols. je nosso oficio, qual Seja, a de revisitar “os elem entim, para todo um andaime —~ Identidade, identidades Comecemos pelo comeso. Identidade [identitate, S. £)] vem do latin omece! SE] tardio. Segundo mestre Aurélio, trata-se do aspecto coletivo de um con. junto de caracteristicas pelas quais algo é definitivamente reconhecivel, ou conhecido. Em Filosofia, trata-se da qualidade do que é 0 mesmo, E na Matematica, da relagio de igualdade valida para todos os valores das variaveis envolvidas. Na Psicanalise, adquiriu enorme importancia, sobretudo em situagdes em que o individuo sofreu perda desse atributo: Identidade. Ja Historia vem do grego istoria, chega-nos pelo latim historia [S. f), O que é histérico, vem da palavra grega historikds, e no latim historicu: “o que € digno de figurar na historia”. A palavra istoria tinha o sentido original de indagagdo, mas também um sentido mais amplo relativo aos resultados dessa indagacao. E depois passou a ser referida a um relato do conhecimento. As duas palavras surgiram inter-relacionadas desde sempre, antes mesmo de se tornarem conceitos, quando eram apenas vagas nocies, como se lé em Homero, Tucidides e Herédoto, entre outros. Consti- tuiam elementos centrais da Paidcia, sobre os fundamentos da civilizagio rega, como analisou Werner Jaeger. Identidade ¢ Histéria si0 palavras que se tornaram conceitos com maior densidade ao longo da formacio dos Estados Nacionais, desde D. Din's 1261-1325), € com maior intensi at XIV ao XIX. Na Histéria D. Quyote de la Mancha, de Cer €m que nasceram, dade e frequéncia a partir dos séculos da Cultura, Os Lusiadas, de Camées, 0 ° vantes, Consagram as identidades dos P' vos IDENTIDADE F HistoRta 39 87 abuldrio crescente nos campos da politica, da diplomacia, da e da cultura abrigou e incluiu tais conceitos, de modo expli- oberto, que passaram a f; Com as Revolugs O yoo vida social ; ito ou ene t parte das rotinas intelectuais areas S02 s burguesas liberais, as identidades, ja on nacionais, passaram a Ssarne centro dos debates, dos discursos, w erras ¢€ disputas, COM SCUS CeOTICoS, estrategistas, escritores e idedlogos. No final do século XIX, a palavra identidade teria seu campo semantico aprofundado, discutido e problematizado pela Historia, pela Sociologia epela Antropologia, pela Economia Politica, pela Psicanilise. ~ NoBrasil “Que me quer 0 Brasil que me persegue?” Grecdrio DE Matos No Brasil, a tematica da identidade histérica é por vezes iluséria, fugidia, porém altamente ideoldgica, sempre e muito. No século passa- do, os mitos do “homem cordial”, da tristeza brasileira, da “democracia racial”, entre outros mitos culturais discutiveis, tiveram sua demoligio numa obra “maldita” de Dante Moreira Leite, O cardter nacional brasileiro, Histéria de uma ideologia.” A registrar o mal-estar que esse livro causou nos circulos dos senhores da cultura, organizados em torno dos “fazendei- tos do ar”... expressio que colhi em Carlos Drummond de Andrade e utilizei em resposta a dura critica que Sérgio Buarque de Holanda, meu ex-professor, escreveu sobre nosso 1822: Dimensées, coletanea de estudos Por mim coordenada, em duas paginas inteiras do Suplemento Literdrio, edigio dominical de O Estado de S. Paulo, em 1972.3 Pois bem. A afirmacao da nacionalidade repousa no principio da existéncia de uma identidade legivel no conjunto de tragos e valores Somuns a um determinado grupo de individuos. E pressupde uma 2S Pit lor on oe Ho: Pioneita, 1960, © livre deriva de tese defendida na Faculdade de Pilosotia da USP em 1954 GL. Gatos Crit {igao defiitiva trag prefacto incisive de Alltede f sirapontes. So Paul: itary ( ‘ " Morena Leite i tulherne Mota — Os facenderes do ar, an Historia ¢ Coane List lobo, 2o10, a Nate “Youndo Fiore, Florestan vostaa Seni Buargue, minha “defesa’” for calyadhe em Dant Fernandes, Sergio Baga e Live J. Hobsbawm, alem de Drummond a idade se distingue ¢ se afirma em relacig como no chiste Norte. ora 88 3H Cantos Guinerme M i ssa ident alteridade, pois nossa : 0, é yale erguntar, a de um outro, Entre nos (€ valeria pergu as icano, “nés quem, cara palida? ), a palavra identidade adquiriy -americano, S a confidéncias, e aumentou com a gra alguma densidade a sa 8 ee movimentos cruentos - - insurreigio nordestina d a a PS ener een An colonizagio, como a revo ugdo de Tous ; . ied + no contexto mundial, no bojo das vagas revolucionarias ce 0 € 1830, que incluiu a Confederagio do Equador no longo processo de Revolucio ¢ Contrarrevolugao da Independéncia (1821-1831, que a rigor se desdobra até 1840). A notar que tal tematica é movel, caminha e se aprofunda: Tiradentes adquiriu nova dimensao, por assim dizer culta”, a partir da obra recente de Kenneth Maxwell, O livro de Tiradentes, bem como estudos sobre o imaginario da Independéncia ganharam novo filego, sobretudo a partir da obra de Evaldo Cabral de Melo, A outra independe cia, sobre o federalismo no Nordeste em 1817 e 1824. Um outro Passado, uma nova identidade parecem despontar. Ao longo do século XIX, no sistema mundial de dependéncias, “nossa identidade” foi buscada e forjada nos modelos politico-culturais e ideoldgicos da Inglaterra e da Franga. E, na esfera popular, afirmou-se com o antilusitanismo dos Mata~Marinheiros. Ja nao éramos portugueses ou luso-brasileiros, mas um Estado-Nagio por assim dizer brasileiro nascido sob protetorado inglés, como bem definiu José Honério Rodrigues. Nao por acaso, décadas depois, Joaquim Nabuco pensava-se “inglés” em muitos aspectos, assim como Lima Barreto se Pensava muito “brasile- to”. (“Eu nao sou quilombola”, disse ele a seu editor Monteiro Loba- to). Sé no século XX avangado, a moldagem norte-americana disputatia mais efetivamente com os paradigmas politico-culturais e econdmicos europeus, afirmando-se no processo de urbanizagio e com a dissemin® §40 do American Way of Life. O tema da identidade (digamos) brasileira reponta em toda a obra ~ Mathado de Assis de modo ora sutil, ora cdustico, no exame qu faz da vida e das formas de pensamento no Brasil. E sempre em busca do desvendamento de uma cultura enigmatica, O enigma, no arco do tempo, que sé se desvendaria na conclusio da obra de Raymundo Faoro em 1956: ) Sp” Tnexripann e Histonia 30 8g “4 crlizagdo brasileira, como a personagem de Machado de Assis, chama-se Velendade sombra coada entre sombras, ser ¢ nie ser, wr ¢ ndo ir, a indefimigdo das formas ¢ da vontade 4 cnadora Ainda é Faoro quem pontua “A principal consequéncia cultural do prolongado domino do patronato do estamento buro- critwco 6a frustragdo do aparecimento da genwina cultura brastletra ileira”? Com tal conclusao, como falar em “identidade bra Nessa perspectiva, nessas duas vertentes tio distintas, a de José Ho- norio ¢ a de Faoro, percebe-se 0 quanto o pensamento historiografico voltado a compreensio profunda do Brasil caminhou, como se constata nas teses de inspira¢ao neojacobina do nacionalista José Honério Ro- drigues em contraste com 0 cultivado ceticismo filos6fico de seu con- temporaneo Raymundo Faoro, que alias certa vez se autodefiniu como girondino. Enfim, dois historiadores contemporaneos, duas identida- des diferentes, duas vertentes importantes da Historiografia brasileira contemporanea, distanciadas tanto do Liberalismo tradicional como do Marxismo. — Identidade, Histéria e... Memoria “Onde 0 Brasil?” Cartos DruMMoND DE ANDRADE Na atualidade brasileira, os trés termos surgem mais do que nunca indissociados, solidamente implantados no campo da Historiografia das Ideologias e Mentalidades. Campo fértil, extremamente aberto a multidisciplinaridade, a transdisciplinaridade e 4 pouco praticada inter- disciplinaridade. 47 : CE Raymundo Faoro, Os donos do poder Formagio do patronatepolituo braslare Porto Alegre: Edicora Globo, LOM P- 260, Posteriormente, esta obra clissica politica) teve novas edges, amps eee eee ee ee ey go 3% Cantos GuILHiRMt Mota sca de identidades civilizacionais,° nacionais, cultura as ¢ também pessoais vem animando pesquisas e ae no vasto campo dessa Historiografia, = (s), sobretudo das memorias coletivas mesmas da disciplina. i Numa perspectiva mais ampla, observa-se que, coma mundializacio, a Historiogratia ocidental vem registrando mudangas de paradigmas ‘ registros, em que a ideia de Nagao e de Historias nacionais (e, portanto, 5 ‘© de identidade) sofrem profunda revisao, passando a focalizar do conceit Ps suas bases civilizacionais, em busca das vérias temporalidades contidas numa formagio sociocultural até entao considerada mais ou menos homoge. nea. Nao ha, pois, wma Europa, ou uma Espanha... A obra de Fernand Braudel, Identité de France (2. vols.) € exemplo elquente. A ideia de Nacio 'a obra de Immanuel Wallerstein, Marc Ferro, De fato, a bu dricas, politic h dos cada vez mats apur s a da(s) Memorial ‘ados que a tematic: sio cultivadas desde as origens ! sofreu também revision: E. P. Thompson, entre muitas outras. Nio por acaso, 0 nosso momento histérico-cultural, nutrido por es- ses trés conceitos, vem sendo marcado por um memorialismo vigotoso, como se constata nos escritos mais recentes de Eric J. Hobsbawm (Iem- pos interessantes) ou de Darcy Ribeiro (Confissies), de Marc Ferro (Autobio- grafia intelectual) entre tantos. Memorialismo carregado de historicidades multiplas que inclui figuras maiores de nosso mundo cultural, desde Claude Lévi-Strauss (Tristes trépicos) e Jean Maugiié (Les Dents Agacés), até Sérgio Milliet (Diario critico, 10 volumes), Afonso Arinos de Mello Franco, Paulo Duarte, Pedro Nava, Celso Furtado, Alberto da Costa e Silva. Na Franga, batalhas historiograficas, tal como justas medievals tornaram-se combates abertos quando do Bicentenario da Revolugae Francesa, com as hostes algo girondinas de Frangois Furet de um lado, defendendo a tese equivocada da “dérapage de la Révolution”, con as hostes de Albert Soboul, Michel Vovelle e de meu saudoso mes™ re Slt wi in tn ucessores. Os dois primorosos ¢ yolumos 6 Apés o atentado de 11 de setembro 2001 as Tortes Géme- fos Unidos: 6° provilégio de reletir sobre 0 conceito de eivilizagdo com Ago com 0 s¢ a0 Pentagono nos Estadh cw 2 "ost oid lip saudoso historiador Sergio Com de setembro um conflito de civilizaydes?, pergunt | ayes?, perguntava-ine ele. ‘ IDENTIDADE & Historia 3p ou sna tradigao francesa. : . . Aéa Ecole des Hautes Etudes, criada por Fernand Braudel bastiio He Histoire sofreu pesada critica do historiador Perry Anderson, jor de contundente La Pensée Tiéde. Un regard critique sur la culture francaise e aul | Vale notar que, no Bra diferentes épo- yeiculando formas de pensamento nio muito ajustadas ao siste- ou até contra o sistema, Como se constata em escritos de Luiz dos nos Vilhena, Tomas Antonio Gonzaga, José Bonifacio, Machado, do proprio Joaquim Nabuco abolicionista, ou do vigoroso cultivador e | fundador da contra-histéria, Euclides da Cunha. E 0 que dizer de Lima Barreto, revisto pelo saudoso Chico de Assis Barbosa? Nesse excurso pela problematica das identidades, como falar pois em uma Cultura Brasileira? Se é possivel, sim, considerar a existéncia < da Revolugao Francesa revelam duas identidades icin conflitan- da Nowe il, memérias despontaram em | deuma Literatura Brasileira consolidada, como falar em uma Arquitetura brasileira, com excesso de Niemeyer e escassez de Vilanova Artigas, por | aemplo? “Brasileira” em qué?... Nada obstante, a arquitetura ¢ sempre ewocada como um trago de “nossa” identidade... como o tio recente samba, o futebol ou as “mulatas”. Neste caso, prefiro voltar a definiga0 mais rigorosa de Anisio Teixeira, que entendia e denunciava o Brasil | como o “pais da miséria farta”, inclusive no plano dos conceito Nossa identidade? Vale também procura-la na musica: além da obra | doimortal Antonio Carlos Jobim, nas interpretagdes que Nelson Freire oferece das composigdes de Villa-Lobos e, no campo da critica musi- veitfca, nos estudos de Zuza Homem de Mello, Ruy Castro e Joao tcos Coelho, com sees regionais de identidade complicam 3 discussio: Minas ntos poetas, mas pouco foco de luz em Emilio Moura, Bueno Wera e Outros), Goids (Bernardo Elis), Pernambuco (Joao Cabral, E uniz, de Brito), Sio Paulo (com escassos bons ficcionistas — ‘a, ra 4 cae Lygia Fagundes Telles — mas criticos em dema- eito, Bahia, Alagoas... tat tong " Pierre Nora. Enfim, iden- sad ein 2004 € 2005, Suivi de La pensée echauffée, veponse de om pesidie Pera disputa 5 oa 92 BH Carros Gunnerme M dro referencial para a denominada América 7 ay amento nos estudos culturais, como se egy, A é IS. emente coordenada por Nélida Pifion ss ‘mos 0 qua adens: Se tina, notar-se-a4 um bra coletiva recent i buldrio latino-amertcano. aii de identidades, de busca de aproximagoes € dela Fi trato comum ao mundo luso-afro-brasileiro tem seus estudiosos = Charles Boxer, Vitorino Magalhaes Godinho, Alberto da Costa e Silva em Boaventura de Sousa Santos ¢ Joaquim Romero s do salazarismo, que cultivava uma outra ¢ amplia tata na oO! matrizes do fal A procura da geragao seguinte, Magalhies, todos inimigo: brutal nogio de “identidade”. Mais recentes ¢ inovadores sao © tudo o que focaliza Mazagao, demonstrando que a memoria historica urbana pode resistir a todos os desafios. Pois Mazagao foi inicialmen. te uma cidade-fortaleza situada entre Alcacer-Quibir e Agadir, que se desdobraria e renasceria em trés continentes: Africa, Europa e América Latina. Da Africa Mazagao migrou para Lisboa e, depois de curta esta da, veio dar no Amapa, sendo hoje um municipio turisitco e ecoldgico. Com “tanta historia”, pode-se falar em uma “mesma” cidade?” Ja para a América Latina, registre-se a impactante iniciativa, que €a Cambridge History of Latin America, coordenada pelo operoso Leslie Bethel, hoje mais brasileiro que inglés... s estudos de Barbara Freitag, sobre. Que 0 tema é complexo mostram os atuais impasses € embates n0 processo de integracio da Comunidade Europeia e, na América Latina, 0 fracasso do Mercosul, tio eloquente... i 4 i — Quais “identidades”? NovaYork, Argentina, Brasil... A di Ati de L dificuldade que tal problematica identitaria carrega Po ce melh ‘i i ma or compreendida quando focalizamos, por exemplo, © € aes Registre-se que a temética da “inte co do pense jong Meni racion y ide "ya aes gracion y identidad” ja comparecia no mapeamen ano que o mexicano Leopoldo Ze sua vida, no século pasado. No Brasil € cu proprio (SOLAR), Ver nosso comentario ao inquietante liv ante Livro goes oan do Ride Jamar, Can insigne historiador das ideias, realizou ao | jido |, do mapeamento participaram Darcy Ribeiro, Cand oe de Barbara Freitag Rouanet, Caprtars migra ni era * Tene Papirus, 2009), na Revista Brasileira, Academ'a Basi +." 63, pp. 169-174. tras abril-junho 2o10, Ano XVL ge BE

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