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LIMO: Com elabarar projeto de pesquisa: Tinguagem e método. Ed. FGV, 2008. Autores: ‘Fablo Siqueira, Roberto Karlmeyer-Wertens, Mario Fumanga ¢ Claudia Benevento. CAPITULO |: DO CONHECIMENTO CIENTIFICO E PESQUISA ACADEMICA Nenhuma pessoa razoavel duvidara da verdade objetiva ou da probabilidade objetivamente fundamentada das teor'as maravilhosas da Matematica © das Ciéncias naturais, Aqui nao hd em geral margens para “opiniées”, "pareceres", "posigées particulares’. Se as houver, apesar disto, em casos singuiares, 6 sinal de a ciéncia ainda nao ter chegado a constituirse, mas encontrar-se ainda em via de cconstituigao © 6 goralmente considerada como tal HUSSERL 1.1 ATRAVES DA METODOLOGIA AO CONHECIMENTO Este texto comega com algo que deve ser dito previamente: qualquer compreensdo que se faca de metodologia no aponta para esta disciplina como um fim em si mesma, mas como um meio para fins. Esta consideragao parece extempordnea e sem o devido preparo para uma introdugao. Contudo, 6 conveniente definir desde j4 0 mote cujos desdobramentos explicativos darao corpo a nosso texto. Observam-se grandes dificuldades dos alunos em seu primeiro contato com a metodologia na universidade, difi idades responsaveis por certa averséo em torno desta matéria. Algumas explicagdes surgem para este fenémeno, considerando varios fatores: a) proprio grau de especificidade desta disciplina; b) despreparo de parte dos alunos que nunca tiveram acesso a disciplinas técnicas durante sua formacéo no ensino médi sobretudo; ¢) fato de ordinariamente a metodologia ser ministrada nos primeiros semestres do curso académico, sendo que os alunos créem que sua aplicagao sé ser requerida, de maneira estanque, ao fim deste; diante da exigéncia de redacéo de monografias ou Trabalhos de Concluséo de Curso (TCC). A ABNT diz sobre trabalhos académicos na NBR 14724:2005, que sao similares como: trabalho de concluséo de curso - TCC, trabalho de graduagao interdisciplinar — Tl, trabalho de conclusao de curso de especializacéo ou aperfeigoamento e outros; assim determinadas instituigdo adotam outros tipos de nomenclaturas, quando diz respeito a trabalhos finais ou de conclusao de curso. Esta tiltima, talvez seja a mais problematica das trés hipéteses, pois, além de ser um elemento desmotivador ao aprendizado, possui uma série de incompreensées acerca do que 6 a metodologia, para que serve, qual seu objeto e, ainda, o contexto de sua aplicagéo (quer dizer, 0 conhecimento cientifico, a pesquisa académica, a produgao universitaria) Para muitos a metodologia 6 apenas um conjunto de procedimentos técnicos, que visa, prescritivamente, a uniformizacao de padrées na execucdo © apresentacdo de produtos académicos. Procedimentos que, na pratica cotidiana, poderiam ser dispensados como meras formalidades em prol da “simplicidade" e do “ganho de tempo". Pensar metodologia deste modo seria, primeiro, desconsiderar um dos principais pressupostos do saber cientifico, 0 fato do conhecimento nao s6 possuir contetido, mas também forma; depois, prescindir de dois pré-requisitos deste conhecimento especifico: a olareza e a distingao. Com isto, parece ficar claro que nao pode pretender legitimidade a concep¢do que faz uso da metodologia apenas em um momento do curso (isto 6, na hora de escrever um projeto, ou um trabalho final). O recurso a metodologia € indispensavel ao fazer da universidade, necessario a todo momento, seja em um fichamento na graduagao ou em um ensaio de pés- doutorado. Nao havendo espaco, portanto, para o elaborar tarefas académicas “fora da metodologia” (como veremos adiante). O uso continuo, indispensavel ¢ mediato da metodologia procura ser grifado j4 em nosso titulo, quando propomos: Através da metodologia ao conhecimento. Poderiamos ter nos limitado, acertadamente a preposi¢ao "da", obtendo o seguinte resultado: Da metodologia ao conhecimento. Contudo, ao sacrificarmos 0 beletrismo persistindo no uso daquela palavra, buscamos enfatizar a idéia que perpassa a nogdo metodologia e de método. A palavra “através’, aqui, é aquela que melhor reproduz o sentido de metodologia. Ela nao aponta apenas para o ponto do qual partimos, tampouco ao final de um processo. Este vocébulo aponta para o todo: o principio do qual se parte para a busca do conhecimento; o caminho propriamente dito, donde o conhecimento é produzido mediado por instrumentos que a metodologia constitui @ 0 final, resultado que pode ser inferido por meio destes procedimentos. Deste modo, 6 através da metodologia que se obtém o conhecimento; isto 6, 0 método 6 0 através do que se chega a todo conhecimento cient 0. Idéia que, em sua génese, se mantém fiel ao termo grego Méthodos, do qual é oriundo; composto pelas palavras “Meta” e “hédos’, possiveis de serem traduzidas interpretativamente como caminho através do qual... se faz ciéncia (BAILLY, 1950) Nossa adverténcia inicial pode ser retomada agora com propriedade. Ora, se a metodologia é um caminho através do qual se faz ciéncia, ela néo poderia ter um fim em si mesma. Ela teria um fim em vista, 0 conhecimento cientifico; ela é um meio para este fim. ‘A metodologia aqui nao é uma nova ciéncia (no caso, a ciéncia dos métodos, como seu nome poderia sugerit). Embora isto seja possivel, a ponto de pesquisadores se debrucarem ao seu estudo em carater disciplinar, ela é essencialmente instrumental. De modo que, s6 0 metodélogo ou 0 tedrico do conhecimento faz dela sua raz4o de ser. Para o pesquisador geral, em seus atazeres académicos, a metodologia 6 uma disciplina auxilia. Apés esta contextualizagao, uma melhor caracterizagdo de metodologia necesséria. 1.2 CARACTERIZAGAO DE METODOLOGIA ‘A complexidade do método fez dele uma disciplina denominada metodologia. Metodologia cientifica 6 0 estudo dos métodos de conhecer. Trata-se de métodos de buscar o conhecimento, é uma forma de pensar para se chegar & natureza de um determinado problema, seja para explicd-lo ou estudé-lo. O método cientifico ¢ entendido como o conjunto de processos orientados por uma habilidade critica e criadora voltada para a descoberta da verdade e para a construgao da ciéncia hoje, a pesquisa constitui seu principal instrumento ou meio de acesso (CERVO & BERVIAN, 2002), Para Lakatos e Marconi (1991), 0 método caracteriza-se como uma abordagem ampla, em nivel de abstracao elevado dos fenémenos da natureza e da sociedade. Para tanto, método se define como um modo de proceder seja um fazer, um agit, um conhecer, para alcangar um fim previamente projetado. Abreviadamente: método 6 a ordem dos elementos de um processo, para atingir um fim (DESCARTES, 1999). Segundo Dalarosa (1998), nao seria correto falar em metodologia da ciéncia, pois nao é a metodologia que tem uma ciéncia, é a ciéncia que ao ser construida, necessita de um método. Sendo que, no quadro geral da cién metodologia é uma “metaciéncia’, isto 6, um estudo que tem por objeto a propria ciéncia e as técnicas especificas de cada ciéncia Barros & Lehfeld (1986) afirmam que a metodologia nao procura solugées, mas escolhe as maneiras de encontré-las, integrando os conhecimentos a respeito dos métodos em vigor nas diferentes dist cientificas ou filoséficas. E com relagao a importancia da disciplina metodologia cientifica, essa é baseada na apresentacdo e exame de diretrizes aptas a instrumentar 0 universitério no que tange a estudar e aprender. Para nés, mais vale 0 conhecimento e manejo dessa instrumentagao para o trabalho cientifico do que o conhecimento de uma série de problemas ou o aumento de informagées acumuladas sistematicamente. Essa disciplina est4, pois, voltada @ assessorar e colaborar com o crescimento intelectual do aluno para a formagao de um compromisso cientifico frente a realidade emptrica. Metodologia cientifica nao é um amontoado de técnicas, embora elas devam existir, mas sim uma disciplina que deve estar sempre em relacionamento e a servico de uma proposta de conhecimento, assim, estrutura-se, para que 0 conhecimento desenvolva as fungées que Ihe sao impostas frente as necessidades culturais e cientificas. Entre os diversos modos de conhecimento, alguns so importantes de serem ressaltados, tendo-os em vista na hora de elaborar um projeto de pesquisa académico. 1.3 DO CONHECIMENTO EM GERAL Todos sabemos 0 que é conhecimento. Naturalmente nao por encontrarmos uma definigéo temética expressa em nosso cotidiano, Certamente nao temos uma explicagao teérica imediata para o que seja o conhecimento, apenas conhecemos; antes mesmo de formularmos qualquer explicagao para isto. Conhecemos “coisas” todos os dias: uma palavra nova para enriquecer nosso vocabulério, um novo sentido para uma palavra que utiizamos corriqueiramente, um novo utensilio que facilita nossa vida pratica, um recurso até entéo nao utilizado de uma velha ferramenta, um caminho mais curto para chegar aonde queremos... Sempre que conhecemos, nos apropriamos destes conhecimentos em prol de novos conhecimentos, sem sequer nos darmos conta disso, sem sequer teorizarmos sobre isto. Quando conhecemos, ja 0 fazemos de modo a lidar com as coisas que encontramos no mundo sempre de maneira pré-tematica, ou ainda, de modo pré-teérico, antecedendo qualquer compreensao deste processo. © conhecimento e seus modos séo alvo de preocupacéo de muitos autores em diversas areas do saber ao longo da historia. O filésofo Aristoteles (1990, p. 3) talvez tenha sido um dos primeiros a propor algo substancial sobre © tema, quando afirma: “Todos os homens tém sua génese afim ao conhecer’ Com esta frase 0 autor grego expressa o parentesco do homem com o conhecimento; fazendo, mesmo, que compreendamos o conhecimento como algo proprio a este. Garcia (1987), fazendo uso inteligente da palavra francesa connaissance (conhecimento), grifa esta afinidade operando uma anélise de suas partes do termo. Para a interpretagdo proposta pela autora, o conhecimento seria uma co (con) nascenga (naissance), isto junto. Deste modo, podemos pensar o conhecimento como o ato a partir do : um nascer qual o homem constréi a si mesmo, dando génese a novas possibilidades de sua realizagao na medida que conhece novos meios para tal, nascendo e renascendo em cada novo conhecimento apropriado e utilizando-os no mundo; alterando e reconstruindo, com isto, suas relagdes com os outros homens, com as coisas deste mundo, com sua cultura, sua sociedade, sua historia. E isso que nos assegura o seguinte referente Um mundo é dado ao homem; sua gléria nao ¢ suportar ou depreciar ‘este mundo, mas sim enriquecé-lo construindo outros universos. Ele amassa e remodela a natureza, submetendo-a a suas proprias necessidades; constr6i a sociedade e 6, por sua vez, construido por ela; trata logo de remodelar este ambiente artificial para adapté-lo a suas préprias necessidades animais e espirtuais, assim como a seus sonhos: cria 0 mundo dos utensilics e o mundo da cultura. O ‘conhecimento como atividade |...) pertence & vida social (BUNGE, 1980, p. 9). De posse do conhecer, a partir de um modo peculiar de lidar com este processo, 0 homem passa a ter uma relacao diferenciada com seu proprio mundo, pode ele compreende-lo, interpreta-lo, transformé-lo. Assim, os homens se conhecem, se elaboram diante da evidéncia de que o conhecimento 6 algo frente ao qual ele nunca esta acabado, mas sempre na iminéncia de uma nova aquisigao e projeto. 1.3.1. Do senso comum Os conhecimentos que adquirimos espontaneamente no cotidiano, geralmente produzidos pela interagéo com 0 mundo, constituem um conjunto de principios empiricos intercambidveis no convivio com os outros. Estes sao pontos comuns capazes de estabelecer uma comunidade de principios conhecimentos chamada de senso comum. © senso comum é mais do que a compreensao cortiqueira geralmente expressa como o saber empitico através do qual, por exemplo, um camponés sabe a época mais propicia para semear este ou aquele grao; se o solo esta em boas condigées de plantio ou quanto tempo demora certo tipo de legume até poder ser colhido. E 0 senso comum que orienta os individuos no mundo, ordenando seus afazeres, executando tarefas praticas com eficiéncia, estabelecendo consensualmente normas de boa convivéncia, julgando a partir de valores prévios seus interesses imediatos, conservando as relagées que julgam proveitosas ao bem comum, agindo adequadamente em situacées especificas @ até opinando sobre assuntos diversos. Os conhecimentos comuns sao os que primeiro temos contato e normaimente nos chegam de maneira nao rigorosa a partir de um “eu ouvi falar’, ou de um “dizem que desta forma’, discurso j4 comum em grupos sociais primarios como a familia, mas que se estende como um sistema de significagao por toda a sociedade (RODRIGUES, 1980) Por isto, existem varias linhas de raciocinio que pesam sobre 0 senso comum. Todas elas sao feitas em vista de uma compreensao de ciéncia. Entre estas, a de que: 0 conhecimento comum é /ato, isto é, apreendido de maneira ndo criteriosa; 6 subjetivo, dependendo de sensos prévios que cada individuo particularmente possuiria, o que daria ao conhecimento carater acidental e nao objetivo; fragmentério e néo planejado, consistindo em uma maneira nao metédica ou sistematica; herdados de maneira acritica, ndo tematica e, por isto, ingénua; podendo conter compreensées erréneas, acarretadas por conclusdes induzidas pela repeticao freqliente de um dado. Esta tiltima caracteristica faz com que o filésofo aleméo Hans-Georg Gadamer (1998) aponte que o senso comum se alimente nao do verdadeiro, mas do provavel. Isto no faz do conhecimento comum algo que deveria ser desconsiderado. Afinal, é sempre dele que partimos, mesmo quando nos encaminhamos a ciéncia, em seu sentido mais ortodoxo. Quanto a isto, Gadamer acrescenta: sensus communis significa aqui, certamente, ndo somente aquela ‘capacidade universal que existe om todos os homens, mas, a0 mesmo tempo, 0 senso que institul comunidade, © que dé & vontade humana sua diretriz (..) no 6 a universalidade abstrata da razéo, mas a universalidade concreta, que representa a comunidade de um ‘grupo, de um povo, de uma nagao, do conjunto da espécie humana. © desenvolvimento deste senso comum 6, por isso, de decisiva importancia para a vida (GADAMER, 1998, p.63). Esta passagem pretende apontar, também, que os conhecimentos relativos ao senso comum sao diferentes do conhecimento cientifico, mas nem por isso menos préprios a vida. Contudo, as nogées do senso comum sao Walidas ao fazer cientifico, por nao atenderem as requisigdes deste modo especifico de conhecimento, diverso do senso comum, mas nao de todo isoladas deste. 1.3.2. Do conhecimento cientifico Trata-se de um modo de conhecer que exige mais do que o saber adquirido na chave de tentativa-erro-repeti¢ao, caracteristica do conhecimento empirico. Tendo ganho formulagao rigorosa na modernidade, este jé traz, em seu registro de nascimento, um novo modo de aprender as coisas, néo como mera ocorréncia fortuita, mas a partir da relacdo entre essas ocorréncias (efeitos) e suas causas; bem como com as leis que as regem. Com base na exposigéo de Bunge (1980), 0 conhecimento cientifico em geral pode ser inventariado em algumas de suas principais caracteristicas. Dai, esse conhecimento pode ser: a) Objetivo, fatico: por aprender os fenémenos do mundo como objetos de conhecimento; visam determina-lo tais como seriam de fato, independente de qualquer interferéncia externa ao interesse cientifico. Baseia-se em fatos dados pela experiéncia, conhecidos por “empirico: b) Analitico: pois aborda os problemas delimitados em sua algada um a um, decompondo-os em seus elementos. Assim, a andlise 6 a tentativa de entender a situagao total de um objeto (seus mecanismos e causas de sua ocorréncia) a partir de seus termos; ©) Especifi modo com que metodologicamente seu objeto seria abordado; 30: Atendo-se a um tema, que determinara inclusive 0 4d) Claro: buscando os resultados com exatidéo sem correr o risco de gerar dividas capazes de invalidé-lo. Nesse intuito, a ciéncia visa formular suas proposigses de maneira objetiva; inequivoca em seus enunciados; definindo a maioria de seus conceitos; adequando seu discurso explicacao do seu objeto; avaliando e registrando produtos de sua experiéncia, comunicando-os & comunidade cientifica para que este seja ptiblico e possa ser verificavel. e) Distinto: na medida em que se seus resultados (obtidos a partir dos experimentos) podem ser distinguindos dos outros diferentes e dados por variéveis; f) Universal, comunicavel, puiblico: Nao se pretendendo restrito apenas em um setor social ou regido do planeta, ele ¢ publica. A linguagem cientifica é, portanto, comunicavel a quem quer que se interesse saber; formando-se, mesmo por ela. Sua explicitagao tem forma essencialmente dissertativa e fungdo informativa e nao expressiva ou prescritiva (COPI, 1981). 9) Verificavel: considerando que todo conhecimento cientifico apéiase em um fundamento sélido capaz de sustentar firmemente sua certeza, afirmarmos que este & conhecimento certo, obtendo estas certezas por meio de uma averiguagao ou exame experimental chamado verificagéo, ou como o proprio

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