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bttp:/www.hottopos.conv - international Studies on Law and Education 3 Publishers: Harvard Law School Association / EDF - Fac. de Educagio da USP — So Paulo 2001 ParAmetros Curriculares Nacionais e Autonomia da Escola José Mario Pires Azanha (Consetho Estadual de Educago de Sao Paulo Faculdade de Educagao da USP) I. Os PCN e os Estados e Municipios A parte introdutéria do texto que apresenta os PCN, apés algumas consideragées sobre a suficiente expansdo do ensino fundamental nos titimos anos, detém sua atengdo na qualidade desse ensino, com suas altas taxas de evasiio repeténcia, para finalmente concluir que “o modelo educativo que vem orientando a maioria das priticas pedagégicas nfo atende mais as necessidades apresentadas pelo atual cenério sécio-politico-econdmico do pais”. (1, 1) Essa conclusio baseia-se, em parte, nas anilises feitas no ambito de um projeto de pesquisa que examinou, sob alguns aspectos, as “propostas curriculares para o ensino de lo. grau elaboradas pelas Secretarias de Educagio de 2 estados e do Distrito Federal nos ltimos 10 anos e, na sua maioria, em vigéncia nos respectivos sistemas de ensino”. (2, 1) Em face desse estudo e de outros, concluiu-se que “uma tarefa essencial na busca da methoria da qualidade do ensino passa a ser a de elaborar parametros claros ‘no campo curricular, capazes de orientar as agdes educativas nas escolas”. (1, 3) © quadro € o seguinte: a insuficiéncia ¢ a fragmentagao das ages educativas, no Ambito das Unidades Federadas, exigiriam esforgos que garantissem a generalizagao “no pais, das orientagdes mais atualizadas ¢ condizentes com o avango dos conhecimentos no mundo contempordneo” (1, 4) como condigaio para que aleancemos “padres de qualidade” no ensino fundamental. Como se percebe, os PCN apresentam-se como uma nova reforma do ensino fundamental brasileiro com todas as suas amplas conseqiiéncias na formacao ‘no aperfeigoamento dos professores, na revistio de livros didéticos etc. Em face da relevancia social da iniciativa, convém que examinemos alguns dos argumentos adiantados como justificativa do que se pretende. Ora, um desses argumentos, como jé foi dito, parte do estudo comparativo das propostas curriculares estaduais municipais elaboradas a partir do inicio da década de 80 e vigentes ainda. Essas propostas, nos termos dos PCN, compdem um quadro nacional confuso, fragmentado, com diferentes niveis de elaboragio e de justificaso que dificultaria uma polftica global de melhoria do ensino fundamental. Para justificar a necessidade de superacHo dessa situago, foi feita uma descrigio das principais tendéncias pedagégicas que convivem no Brasil atual e que, resumidamente, transcrevemos em seguida: “Fazendo uma redugao necessiria a este contexto, serdio expostas as quatro grandes tendéncias pedagégicas: a tradicional, a renovada, a tecnicista ¢ aquelas marcadas centralmente por preocupagées sociais e politicas. (...) “Pedagogia Tradicional é uma proposta de educagao centrada no professor, sendo funcao deste vigiar, aconselhar, corrigir e ensinar a matéria através de aulas expositivas, ficando a cargo dos alunos prestar atengiio e realizar exercicios repetitivos para gravar ¢ reproduzir a matéria dada, “A metodologia decorrente baseia-se na exposigéo oral dos contetidos, seguindo passos pré-determinados e fixos para todo qualquer contexto escolar. (...) Na maioria das escolas esta pratica pedagégica foi caracterizada por sobrecarga de informagées passadas aos alunos, tornando o conhecimento pouco significative ¢ burocratizado. “O professor tem papel central no processo de ensino e aprendizagem (...) um organizador dos contetidos e estratégias de ensino e, portanto, o guia exclusivo do processo educativo. (...) “A Pedagogia Renovada inclui varias correntes, que de uma forma ‘ou de outra estio ligadas a0 movimento da Escola Nova ou da Escola Ativa, que embora admitam divergéncias, assumem um mesmo prine{pio norteador de valorizagio do individuo como ser livre, ativo e social. O centro da atividade escolar nao é 0 professor nem os contetidos disciplinadores, mas sim o aluno ativo e curioso. © mais importante no é © ensino, mas o processo de aprendizagem. (...) “O professor é 0 facilitador no processo de busca de conhecimento do aluno, organizando e coordenando as situagdes de aprendizagem. (...) “Esta concepgdio trouxe a idéia de globalizagdo e dos centros de interesses que foram inadequadamente transformados em praticas espontaneistas. (...) Essa tendéncia teve grande penetragio no Brasil, na década de 30, para o ensino pré-escolar e até hoje influencia muitas praticas pedagégicas. “Nos anos 70, proliferou o que se chamou de ‘tecnicismo educacional’, inspirado nas teorias behavioristas da aprendizagem © da abordagem sistémica do ensino, definiu uma pratica pedagégica altamente controlada e dirigida pelo professor com atividades mecénicas inseridas numa proposta educacional rigida e passivel de ser totalmente programada em detalhes. (...) O que é valorizado nesta perspectiva, nao é o professor mas sim a tecnologia, 0 professor passa a ser um mero especialista na aplicaggo de manuais € sua criatividade fica dentro dos limites 24 Possiveis ¢ estreitos da técnica utilizada, (...) Esta orientagao foi dada para as escolas pelos organismos oficiais durante os anos 60 e até hoje persiste em muitos cursos com a presenga de manuais didaticos com carater estritamente técnico e instrumental. “No final dos anos 70 ¢ inicio dos 80, constituiram-se as denominadas Pedagogia Libertadora e Pedagogia Critico-Social dos Contetidos, ambas propondo uma educagao critica a servigo das_transformagdes sociais, econdmicas e politicas para a superagiio das desigualdades existentes no interior da sociedade. “A Pedagogia Libertadora tem suas origens no movimento da educagéio popular, no final dos anos 50 ¢ inicio dos anos 60, quando foi interrompida pelo golpe militar de 1964, ¢ retoma o seu desenvolvimento no final dos anos 70 ¢ inicio dos anos 80. Nesta Proposta a atividade escolar pauta-se em discussdes de temas sociais € politicos e em ages sobre a realidade social imediata; analisa-se os problemas, os fatores determinantes e estrutura-sc uma forma de atuagdio para que se possa transformar a realidade social e politica. O professor é um coordenador de atividades que organiza e atua conjuntamente com os alunos. “A Pedagogia Critico-Social dos Conteidos surge no final dos anos 70 € inicio dos 80 e € uma reagio de alguns educadores que no aceitam a pouca relevancia que a pedagogia libertadora da a0 aprendizado do chamado ‘saber elaborado’, historicamente acumulado ¢ que constitui o acervo cultural da humanidade. (...) Compreende que nao basta ter como contetido escolar as questdes sociais atuais, mas é necessdrio que se possa ter 0 dominio de conhecimentos, habilidades e capacidades para que os alunos possam interpretar suas experiéncias de vida e defender seus interesses de classe.” (1, 12-13) Além dessa exposigio das grandes tendéncias dos modelos vigentes na educagdo brasileira desde a década de 30, os PCN ainda fazem referéncia a presenga, nos ailtimos anos, da Psicologia Genética, que marcou “a pesquisa sobre a psicogénese da lingua escrita” a partir dos anos 80, observando que “a metodologia utilizada na pesquisa foi muitas vezes interpretada como uma proposta de pedagogia construtivista para a alfabetizagfo, o que expressa um duplo equivoco: redugdio do construtivismo a uma teoria psicogenética de aquisigao da lingua escrita ¢ transformagao de uma pesquisa académica em método de ensino.” (1, 14) As consideragdes anteriores, pretensamente descritivas das principais tendéncias pedagégicas histéricas na educagao, justificariam a proposta dos PCN como uma superagdo de modelos que, pelas suas insuficiéncias e equivocos, nao mais tém condigdo de orientar as préticas pedagégicas vigentes. E claro que a proposig’o dos PCN pressupée que no valeria a pena uma atuacao corretiva e reorientadora das varias tentativas estaduais e municipais que ha. anos se esforgam para consolidar orientagdes pedaggicas de seus respectivos siste- mas. A opso foi a de substituf-las por “uma referéncia curricular para todo o pais”. O texto introdutério dos PCN reconhece o cardter redutivista de suas descrigdes das tendéncias prevalecentes nas orientagées das priticas pedagégicas brasileiras, mas esse reconhecimento é meramente formal, pois 0 que se propde é uma substituigao radical do que existe por uma nova ordenagao curricular. 25 | Por isso, vale a pena adiantar alguns comentarios sobre a anélise das propostas curriculares ofici 1. © estudo prévio dessas propostas tomou como objeto de anilise documentos oficiais e apontou, aqui ali, a presenga de justificativas e declaragdes de adesio a alguns principios. O que se constatou foi a ncia de algumas iniciativas, a insuficiéncia de outras, a presenga de contradigdes, de descontinuidades administrativas etc. Nada existe no relatério a respeito de como essas propostas tém repercutido nas efetivas praticas escolares. E apenas uma vistio genérica a respeito de orientagdes curriculares e programiticas. Utilizar essa visio genérica como uma radiografia do que ocorre nas escolas é ir muito além do que o estudo se propds € 0 seu relatério permite. O estudo focalizou alguns documentos e identificou algumas idéias, Nada mais. Imaginar que essas idéias animam, de fato, as priticas a que visam pode ser enganoso do ponto de vista teérico e levar a apreciagdes equivocadas sobre a realidade. Muitas vezes, uma idéia, uma doutrina so inertes, isto é, no exercem nenhuma influéncia no plano da realidade. Conforme disse A. Lovejoy, “os grandes movimentos ¢ tendéncias nao sao geralmente os objetos que, em iltimo termo, interessam ao historiador das idéias, so apenas um ponto de partida.” (La gran cadena del ser, Barcelona, Icaria Editorial, 1983) E preciso, pois, ir além dos rétulos e dos “‘ismos”. Muitas vezes, sob um mesmo rétulo ha, ndo apenas uma idéia ou uma doutrina, mas varias, combinadas de modos diferentes nos individuos ou grupos que identificamos como seus adeptos. Seria enganoso, pois, imaginar que a utilizago de um rétulo de significagao ambigua seja de fato uma descrigao de um estado de coisas. E preciso lembrar ainda que expressdes como “pedagogia tradicional”, “pedagogia renovada”, “pedagogia dos conteiidos” etc. so correntes nos meios académicos, no ambiente de congressos ¢ de seminarios, mas de duvidoso valor descritivo com relagdo a instituigdes € praticas escolares. Alids, é usual, nas academias brasileiras, que a pesquisa empirica da realidade educacional seja substituida pelos cacoetes do “abstracionismo pedagégico”. Expressdes como “escola brasileira” ou “modelo educativo brasileiro” séo exemplos de entidades lingilisticas semanticamente vazias, embora de amplo curso na retérica académica ou politica. 2. £ indiscutivel que 0 propésito dos PCN é, numia primeira etapa, a reforma do ensino fundamental brasileiro. Numa outra ocasio, jé tive a oportunidade de dizer que “nas sucessivas reformas da educagdo brasileira, quando chegamos a0 momento de uma nova reforma, invariavelmente, no se dispde de estudos sobre a repercussao de reformas anteriores sobre a vida escolar. Quase sempre os estudos disponiveis so muito mais julgamentos ideolégicos do que descrigées confidveis sobre as alteragdes da vida escolar provocadas pelos movimentos reformistas. No entanto, sabe-se que é no interior das salas de aula que se decide o destino de politicas e reformas educacionais. (...) A trajetéria das reformas desde as decisdes politicas que as instituem legalmente, passando pelas providéncias técnico-administrativas de varios niveis que a regulamentam, até as praticas escolares que deveriam implanté-las, é ainda um territério nao devassado pela pesquisa educacional”. Nessas condigdes, com a adogdo dos PCN, corre-se o risco de que novamente se faga uma reforma de uma realidade educacional da qual temos apenas uma visio em grande parte impressionista. claro que, muitas vezes, uma reforma de aspectos da realidade educacional pode se justificar a partir de decisdes politicas, mesmo na auséncia de investigagdes empiricas extensas ¢ exaustivas. Mas esse no é 0 caso dos PCN, nos quais sao preconizadas alteragdes das préprias praticas escolares em todas as suas dimensdes. 26 Aliés, 0 préprio estudo das propostas curriculares vigentes nos estados ¢ em alguns municfpios observou que “O quadro que se esboga sobre esses produtos depende do olhar ¢ das tintas que podem carregar 0 tragado das dificuldades, dos descaminhos ¢ induzir a uma avaliagdo rigida ¢ reducionista dos resultados obtidos ou podem evidenciar a multiplicidade e riqueza de solugées aventadas, e os avangos inogiveis na formulagao teérica de uma ampla gama de questdes afetas ao ensino bisico, que nada ficam a dever em relagio as referéncias internacionais disponiveis. Os sistemas estaduais avangam no ritmo de suas possibilidades © no esforgo para identificar e superar suas contradigées. (...) “A trajetoria da construgdo social das propostas curriculares deve ser reconhecida como uma conquista dos educadores, um movimento inédito que necesita ser valorizado na exata perspectiva das possibilidades postas pela realidade.” (2, 139) Ora, essas ponderagbes nao podem ser interpretadas como justificadoras de uma proposta curricular nacional que substitua aquelas em vigéncia nos estados ¢ municipios. Pelo contrario. Se alguma recomendacdo pode ser extraida dessas conclusdes € a de que estados e municipios deveriam ser orientados e assistidos técnica ¢ financeiramente, para corregdo de suas falhas e insuficiéncias. Alias, 6 0 que determina o Art. 211 da atual Constituigao Brasileira. II. Os PCN ea concepsao construtivista Os autores do texto introdutério dos PCN assumiram um claro compromisso com a concepeao construtivista de aprendizagem ¢ ensino, mas o carater sintético da exposiggo dificulta, algumas vezes, a percepgao de importantes implicagdes desse comprometimento. A preocupagéo de elaborar um texto destinado a amplas discussdes pelo magistério acabou conduzindo a afirmagées simplificadas cujo significado € de dificil apreensao, principalmente para o no especialista, como é 0 meu caso e certamente o de muitas outras pessoas. Por isso, as questdes que proponho nao devem ser recebidas como objegtes, mas como indicagao de dificuldades de entendimento. 1. Sera que teorias psicolégicas sobre aprendizagem e ensino devem constituir a matriz para a elaboragao das diretrizes de um projeto curricular nacional? Parece-me que 0 texto dos PCN nao deixa dividas a esse respeito, embora aqui ¢ ali haja referéncias sem maior importéncia a cultura, fungdo social da escola, relagdes interpessoais etc. No entanto, nfo me parece evidente que deva haver uma Prioridade da Psicologia nesse assunto, embora seja trivial que a ministragao do ensino sempre pressupée algumas idéias sobre aprendizagem e ensino e que muitas dessas idéias so insuficientes ou até mesmo equivocadas. Portanto, 0 que se discute nao € a importincia da Psicologia no esclarecimento de algumas questdes de ensino, mas a sua prioridade em matéria das diretrizes curriculares nacionais, Ser que para discusso desse assunto nao deveria haver uma convocagao de especialistas em outras areas da cultura ¢ da vida social como a Sociologia, a Historia, a Antropologia, 0 27 Direito, a Religidio, a Arte etc.? E possivel que os autores dos PCN respondam que todas os demais saberes sociais e culturais foram levados em conta no estabelecimento dos conteiidos curriculares. Isso é verdade, mas é apenas meia verdade. A tonica dos PCN é psicologizante num assunto que nem mesmo pode ser teduzido a uma questio cientifica, qualquer que seja a area de abrangéncia da ciéncia da qual se parte. Na verdade, as diretrizes nacionais de um curriculo para o ensino fundamental somente podem ter como matriz a cultura no seu significado mais amplo. Os saberes a serem convocados para a indicagdo dessas diretrizes incluirio obrigatoriamente todos os aspectos culturais da nagdo relevantes para a compreensio do povo brasileiro na multiplicidade de suas priticas politicas, de suas crencas, tradigdes, manifestagdes artisticas, religiosas, literdrias e outras. Nao se trata apenas de substituir a Psicologia pelo conjunto das demais cigncias sociais ¢ humanas. © problema das diretrizes nacionais de um curriculo de ensino fundamental nado é uma questio estritamente cientifica, mas sobretudo de acuidade cultural para os valores relevantes na formagdo da cidadania brasileira. Somente tim trabalho dessa natureza e amplitude poderia dar base para o envolvimento do magistério e a formulagZo de politicas de formagio ¢ de aperfeigoamento do professor. Teorias sobre como os alunos aprendem e sobre como se deve ensinar podem até ser importantes em momentos especificos, mas seria um equivoco tomé-las como ponto de partida para propor solugdes sobre a questao das diretrizes curriculares nacionais. Fazer isso é optar por uma visio tecnocrética da questo do ensino fundamental ¢ da formagao de professores. Diretrizes curriculares so matéria de adesio a valores e no a teorias cientificas. Embora essa op¢ao tecnicista ndo esteja claramente explicitada no texto dos PCN, esté muito clara numa passagem de um trabalho de César Coll, um dos principais assessores da iniciativa ministerial. Diz ele: “Seria um erro, entretanto, pensar que as respostas sobre o que ‘ensinar e quando ensinar determinam unidirecionalmente a resposta sobre como ensinar. A influéncia se exerce também em sentido oposto, pois a resposta ds duas primeiras perguntas depende em parte de como foi entendido 0 processo de aprendizagem. (...) Assim que ensinar, quando ensinar e como ensinar so trés aspectos do curriculo intimamente interrelacionados; por isso, é absurdo considerd-los de forma totalmente independentes. (...) Com efeito, a concepedo construtivista da aprendizagem escolar e da intervengao pedagégica, que abrange uma série de opgdes basicas sobre como ensinar, foi o ponto de partida e o referencial continuo para as decisées que fomos adotando, a fim de delinear tum modelo de Projeto Curricular. (..) Reiteramos que as opedes bdsicas sobre como ensinar presidem e impregnam a totalidade do curriculo” (Psicologia e Curriculo, Sao Paulo, Atica, 1996) [grifos nossos]. Nao temos a intengao de fazer um escrutinio do pensamento de C. Coll. Recorremos a essas passagens porque elas langam luz sobre a visdo de curriculo dos PCN. E 0 que nos parece. 28 Mesmo que nao se coloque em divida a questio da prioridade da Psicologia ou da Psicopedagogia, ainda haveria a questio da preferéncia por uma particular teoria. E compreensivel que as opgdes. teéricas sejam assumidas de maneira persistente por cientistas individuais, mas a prépria ciéneia como um empreendimento cultural coletivo necessita das divergéncias e das visées antagénicas, isto 6, do pluralismo tedrico. Isso nos leva a uma outra indagagao. 2. Por que devemos preferir a concepeao construtivista de aprendizagem ¢ ensino a outras? Os estudos de historia da ciéncia nas iltimas décadas e 0 proprio desenvolvimento da ciéncia desde o final do século. XIX tém mostrado que a idéia da ciéncia como um conhecimento estével e seguro néo tem fundamento histérico nem légico. A pretensio neo-positivista de que somente poderfamos considerar como cientificos aqueles conhecimentos que estivessem verificados ou que fossem em principio verificaveis perdeu a sua credibilidade desde as criticas de Popper, Toulmin, Kuhn, Feyerabend, Hanson ¢ de muitos outros. Enfim, 0 que nao mais se admite por - razGes historicas ¢ légicas é a existéncia de teorias que possam ser consideradas como 2 “explicagdo definitiva” dos fatos disponiveis. Sabe-se, hoje, que os proprios “fatos” nao sto entidades independentes do observador, isto é, da teoria a partir da qual 0 mundo é pereebido e descrito Nesse quadro, ter uma teoria é, num sentido amplo, dispor de um particular Conjunto articulado de enunciados ¢ de conceitos que seja capaz de explicar fatos que, de outro modo, seriam estranhos e surpreendentes. E claro que a ciéncia busea criar verdadeiras, mas apenas consegue confirmar parcialmente as teorias de que dispde, o que enseja muitas vezes a convivéncia de teorias alternativas sobre o mesmo Conjunto de fendmenos, todas elas parcialmente confirmadas. Por isso, sé a pluralidade teérica e a critica matua que ela favorece permitem o desenvolvimento do saber cientifico. A pretensdo de ter encontrado a teoria verdadeira é uma pretensio de infalibilidade sem sustentagao histérica nem légica. De fato, quem se arroga como infalivel retira-se do jogo da ciéncia porque neste, como disse Popper, nao hé teorias imunes A critica. Feita essa breve digressio preliminar, retornemos & pergunta inicial. O texto introdutério dos PCN, apesar de em muitas passagens fazer referéncia a necessidade de discussdes e ao cardter no impositivo da proposta curricular, de fato nao oferece concepsdes alternativas para discussio, ¢ até as deprecia, mas expe e privilegia uma concepgao. Na parte intitulada “Fundamentos psicopedagégicos”, ha a clara e suméria adesio a uma concepedo de aprendizagem e de ensino, a uma concepeao de conhecimento, ¢ 0 seu encaminhamento de uma maneira impositiva, como por exemplo, nos seguintes casos: “Hoje sabemos que é necessério tocar 0 ponto chave de todo © proceso educativo tanto no ensino quanto na aprendizagem, uma vez que, em tiltima instancia, sem aprendizagem nao ha ensino. A tarefa consiste entio em re-significar a unidade entre aprendizagem e ensino. (...) O conceito de conhecimento para o qual convergem as teorias contemporineas aproxima-se cada vez mais da idéia de que conhecer & construir significados. (..) Hoje, gragas ao avango significative da investigagao cientifica na drea da aprendizagem tornou-se Possivel interpretar 0 erro como algo 29 inerente a0 processo de aprendizagem. (...) O processo de ensino ¢ aprendizagem constitui-se em uma unidade indissolivel.” (1, 9-11) Como se pode perceber, 0 tom dessas afirmagdes no é o de quem faz uma proposta a ser discutida, mas o de quem comunica verdades. O sentimento de posse da verdade nao favorece 0 didlogo e a discussao. Nao se trata, evidentemente, de preconizar um relativismo inconseqiiente, segundo 0 qual todas opinides e posigses tém o mesmo valor. Hé indmeros trabalhos que demonstram 0 caréter autocontraditério de todo relativismo radical. Trata-se apenas de reivindicar a importincia de um pluralismo critico capaz de diferentes encaminhamentos das quest6es de ensino e aprendizagem cuja complexidade nao recomenda senao prudéncia. IIL. Os PCN ea legislagao O Art. 210 da atual Constituigao Federal estabelece, no seu caput, que “Serao fixados contetidos minimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formagao basica comum e respeito aos valores culturais ¢ artisticos, nacionais ¢ regionais”. Este seria o fundamento constitucional para a iniciativa do MEC na proposigao dos Pardmetros Curriculares Nacionais. O préprio artigo nao estabelece qual a esfera do Poder Piblico que deveria fixar esses contetidos minimos para 0 ensino fundamental, embora esteja implicito que uma tal tarefa somente poderia ser desempenhada pelo Poder Piblico Federal e, nessa esfera, desde a lei 4.024/61, 0 assunto foi da competéncia do Conselho Federal de Educagdo. Com a extingdo desse 6rgo e sua substituigao pelo Conselho Nacional de Educagio (Lei 9.131/95), houve uma alteragdo nessa tradicao. Nessa nova lei, uma modificagao feita no Art. 9°, § 1°, letra “C”, da Lei 4.024/61, estabelece que a Camara de Ensino Basico teré dentre suas atribuigdes a de “deliberar sobre as diretrizes curriculares propostas pelo Ministério da Educagaio e do Desporto”. Em rigor, nao se pode dizer que o tratamento legal da matéria tenha sido em uma diregdo descentralizadora, pois a expresso constitucional “contetidos minimos” transformou-se, na lei, em “diretrizes curriculares” que, evidentemente, muito mais ampla no seu significado, e retirou-se a competéncia de proposigao do 6rgao normativo, como era da tradigao. No entanto, a respeito do amparo legal para a iniciativa ministerial dos PCN, hd um aspecto mais interessante. Trata-se do fato de que nfo houve no texto dos PCN referéncia ao Art. 206 da Constituigiio, que fixa os prineipios segundo os quais 0 ensino seré ministrado. O inciso Ill desse artigo diz que o ensino deverd atender a0 “pluralismo de idéias e de concepgdes pedagégicas”. Retornamos assim a idéia da necessidade de pluralismo. Esse retorno nao é casual. O convivio com a divergéncia é um valor comum aos ideais da ciéncia e aos ideais da democracia. No caso da ciéneia, a possibilidade de florescimento de divergéncias visa impedir que sentimentos subjetivos de certeza favoregam a repressio a idéias novas ¢ eventualmente anémalas no quadro dos paradigmas prevalecentes. No caso da democracia, a possibilidade de florescimento de divergéncias visa impedir que minorias sejam suprimidas pela hegemonia das forgas politicas vencedoras. Em ambos os casos, 0 pressuposto é o de que a 30 unanimidade de opinides e o consenso politico nfo so garantia, em quaisquer condig6es, de alcance da verdade e de defesa do interesse piblico. A competéncia privativa da Unido para fixar as diretrizes ¢ bases da educagfo nacional no inclui a possibilidade de erigir em norma nacional a adesio a uma particular concepcdo pedagégica que deverd sempre ser opgiio de escolas ou de professores para que possa ser, finalmente, opgao das familias. Nessas condig6es, sem atentar para a exigéncia constitucional de pluralismo, corre-se sempre 0 risco de que a proposta dos PCN possa, na pritica, nos seus varios desdobramentos até a sala de aula, chegar aos professores como imposigio ¢ nio como algo a ser discutido ¢ eventualmente modificado ou substituido. IV. Conclusées 1, Embora o texto dos PCN refira-se a uma “integragdo com a experiéncia educacional jé realizada pelos Estados e Municipios” e a possibilidade de adaptagdes pelas Secretarias de Educagio, € claro que a prépria iniciativa ministerial implica a expectativa de uma profunda alteragdo da situag&o atual, com a adogdo de novas diretrizes ¢ de uma nova ordenagao curricular a partir das posigdes e sugestdes Preparadas. Ora, na atual Constituigdo Federal, & dos Estados e Municipios a competéncia de organizagdo de seus préprios sistemas de ensino, respeitadas as diretrizes e bases da educagdo nacional. © Art. 210 da Constituigdo refere-se apenas a “conteiidos minimos” para o ensino fundamental, mas a lei n° 9.131, que criou 0 Consetho Nacional de Educaeao, ampliou a expresso constitucional para “diretrizes curriculares” a serem propostas pelo MEC. Nessa alteragio, que aumenta o poder central, ha uma evidente diminuigao do grau de autonomia de Estados e Municipios. Essa diminuigo de autonomia foi agravada pela iniciativa ministerial elaborando diretrizes curriculares declaradamente comprometidas com uma particular concepgao pedagégica, desrespeitando assim o principio do “pluralismo de idéias e de concepgies pedagégicas”, fixado no Art. 206 da atual Constituigao. Esse fato é ainda mais grave porque, além de ilegal, representa um desrespeito aos ideais da democracia ¢ da ciéncia, que se fundam no direito de florescimento das divergéncias, nico caminho para o aperfeigoamento do convivio politico e do desenvolvimento do saber. 2. Praticas pedagégicas sio instituigdes complexas que nao podem ser reduzidas a aplicagdo de uma teoria da aprendizagem e do ensino. Hé professores que ensinam com pleno éxito ¢ hé professores que ensinam com éxito menor ou até mesmo quase nulo. Quais so os fatores presentes em cada situagdo de ensino e que condicionam 0 éxito? E claro que néo hé respostas simples para essa questo. Presumir que o grau de éxito depende de uma correta ou incorreta teoria do ensino e da aprendizagem 6, no minimo, uma simplificago do problema. Além daqueles fatores especificos de cada sala de aula e de cada professor, hd 0 complexo ambiente social de cada escola. Por ignorar essa complexidade, as politicas de aperfeigoamento de docente nao tém alterado substantivamente a situago do ensino brasileiro. Ensinar com éxito é ter 0 dominio de uma pritica, de um saber fazer. Qualquer teoria do ensino, inclua-se af portanto a teoria construtivista, é um esforso Prescritivo, isto é, uma tentativa de elaborar regras para a pritica de ensinar. Ora, nem todas as praticas so exaustivamente regulaveis. Saber fazer poesia ou saber contar 31 piadas com graga so, da mesma forma que saber ensinar, o dominio de uma pritica no inteiramente regulavel. Trata-se das complexas relagdes entre teoria e pratica. Sao essas condigdes que nos levam a pensar que pode ser uma temeridade, de efeitos até desastrosos, fazer uma tentativa de induzir centenas de milhares de professores a alterar suas priticas a partir de uma teoria do ensino e da aprendizagem que presumimos verdadeira. HA ainda o seguinte agravante: a ampla difustio dessa teoria, que € muito complexa, poderd transformar-se numa difusio de slogans ¢ expresses 'metaforicas que, por si mesmas, so incapazes de ser operativas na situago de sala de aula. O desastre serd se conseguirmos apenas criar inseguranga nos professores com relagio as proprias praticas a partir de um patrulhamento pretensamente fundado em verdades definitivas. Nesse sentido, as diretrizes dos PCN poderio ser, eventualmente, um desservigo a autonomia profissional de cada docente ¢ & autonomia pedagégica de cada escola. 32 International Studies on Law and Education - 3 Harvard Law School EDF - Dep. de Filosofia ¢ Editora Associati f Brazil on iéncias da Educacao da Mand 4 sociation of Brazil de Educapao da USP landruvs Sao Paulo 2001

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