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O negro no Brasil e nos Estados Unidos George Reid Andrews* O Brasil orgulha-se de ser uma “democracia racial’, en- quanto os Estados Unidos sao co- nhecidos pela aspereza de suas rela- gdes raciais. Ainda assim, desde a Segunda Guerra Mundial, os afro- americanos, que representam ape- nas 12% da populacao dos Estados Unidos, tém provado ter uma forca politica substancialmente maior na vida de seu pais do que os afro-bra- sileiros, que representam talvez 50% da populagao brasileira. Por que acontece isso? Existiriam for- mas pelas quais a historia da luta dos negros nos Estados Unidos po- deria trazer luz as lutas anti-racistas no Brasil? Como aconteceu Id Talvez as mais impressionantes conquistas do movimento afro- americano, do periodo pds-45, aconteceram durante a sua primeira fase: 0 movimento pelos direitos civis dos anos 50 e 60. Consideran- do a historia das relagdes raciais nos Estados Unidos até aquela da- ta, Os avancos conseguidos durante aqueles anos foram verdadeiramen- * George Reid Andrews ¢ professor da Universidade de Pittsburgh e pesquisador visitante do CEDEC. te extraordinarios. A segregacdo foi superada, 0 sufragio definitivo foi estendido ao povo negro através do Ato dos Direitos de Voto de 1965, e © governo federal instituiu progra- mas de ‘‘igualdade de oportunida- des’? e ‘‘acdo afirmativa’’ para combater 0 racismo. Essas conquistas transformaram o Estado nacional, de um impositor da desigualdade racial, em exata- mente 0 oposto: um ativo e podero- so oponente da discriminagao racial e fiador das oportunidades para o povo negro (e outras minorias ra- ciais, como os indios americanos, porto-riquenhos e mexicanos) em areas como educagéo, moradia e emprego. Os avangos politicos dos negros continuaram nos anos 70, mas prin- cipalmente nos niveis locais e est duais. Afro-americanos foram el tos para camaras municipais e legis- lativos estaduais em crescente nime- ro, e muitas cidades e comarcas americanas (incluindo Los Angeles, Chicago, Detroit, Washington, Fila- délfia, para nomear algumas) s&o governadas por prefeitos negros. Mas, a nivel nacional, os anos 70 foram um periodo de incerteza e estagnacao para 0 movimento ne- gro. Isto se deveu, em parte, ao assassinato de seu carismatico lider Martin Luther King em 68, mas também, paradoxalmente, aos seus . sucessos durante os anos 50 e 60. Em primeiro lugar, tendo supera- do as mais violentas e Obvias for- mas de discriminag&o racial, 0 mo- vimento pelos direitos civis pareceu ter cumprido seu objetivo. Os tipos de discriminacéo que continuaram (e continuam) a existir eram muito mais sutis e dificeis de detectar e, portanto, era ainda mais dificil a mobilizaco de pessoas em seu re- pudio. Em segundo lugar, os pro- gramas de oportunidades iguais possibilitaram a uma nova geragao de afro-americanos 0 acesso as uni- versidades, tornando-os assim parte dos profissionais liberais de classe média. Para esta jovem e crescente elite negra (talvez 15 a 20% da po- pulacdo negra), 0 sonho americano estava sendo realizado. Qual a ne- cessidade, entéo, do movimento dos direitos civis? Sua missao tinha sido cumprida. Mas, naturalmente, 0 racismo, que levou séculos para ser formado, nao seria facil e rapidamente extin- to. Enquanto a nova classe média negra se beneficiava das oportuni- dades abertas pelo governo federal, o mesmo nao acontecia com a sobre- pujada maioria dos afro-america- nos. Sua participagdo na renda na- cional mostrou-se_ virtualmente imutavel entre 1960 e 1980, perma- necendo em niveis minimos. Os anos 70 também testemunha- ram uma retomada crescente do ressentimento e do ddio dos bran- cos contra os programas governa- mentais que presumivelmente favo- reciam os negros. Esse movimento encontrou sua expressdo politica a nivel nacional na eleigéo de Ronald OS NEGROSE SEUSDIREITOS _ 53 Reagan em 1968, que chegou 4 pre- sidéncia prometendo eliminar os programas de igualdade de oportu- nidade e reduzir a ajuda governa- mental aos pobres, que, em grande ntimero, sao negros. Uma resposta ao racismo renovado Durante os anos da administra- ¢4o Reagan, a necessidade de revi- talizar e rejuvenescer 0 movimento negro para defender as conquistas alcancadas durante os anos 60 e 70 tornou-se cada vez mais visivel. Jesse Jackson, um ex-colaborador de Martin Luther King, emergiu como o lider desse movimento que reconhece a necessidade de esten- der-se para além da populacdo ne- gra a criacéo de uma alianga inter- racial que envolva varios grupos étnicos nao-brancos, mulheres e brancos liberais: essa ¢ a razdo para 0 conceito de ‘‘coalizdo arco-iris” de Jackson. Ele nao teve um sucesso comple- to na formagao dessa coalizdo. Suas posicgdes anti-semitas foram particularmente destrutivas ao alie- nar o apoio de um grupo étnico tra- dicionalmente simpatico as aspira- cOes dos negros. Mas, a despeito dessas falhas, a campanha de Jack- son para a candidatura democrata de 1984 provou ter uma grande for- ¢a politica, vencendo eleicdes em varios estados do Sul, alcancando até 25% dos votos em estados mais industrializados, como Illinois € Nova Iorque, e forgando o compro- metimento do Partido Democrata em manter e estender as conquistas 54. LUANOVA politicas dos negros dos anos 60. Respondendo ao ressurgimento do racismo americano representado por Reagan, o movimento negro norte-americano entra nos anos 80 com um sentido renovado de pro- pésitos e missdo, No Brasil, um caminho mais longo Como a experiéncia americana pode ser comparavel aquela encon- trada no Brasil? Nada refuta mais efetivamente 0 mito da ‘‘democra- cia racial’ do Brasil que a extensa historia da luta dos negros neste pais. Nos ultimos cem anos, nota-se uma progress40, desde o movimen- to abolicionista dos anos 1870 e 80, através das organizacOes culturais e politicas do periodo pds-1920 (a mais proeminente das quais foi a Frente Negra Brasileira, banida por Getulio Vargas em 1937), até o Mo- vimento Negro Unificado de hoje. Esses movimentos séo uma evidén- cia conclusiva — como se fosse ne- cessaria — da continua existéncia da discriminacdo e desigualdade ra- cial na multirracial sociedade brasi- leira. Desde 1945 esses movimentos tém atraido entusiastico apoio de dezenas de milhares de seguidores e tém sido instrumento de estimulo a continuidade do debate publico so- bre as deficiéncias do ‘“‘paraiso ra- cial’’ brasileiro. Mas nenhum deles conseguiu gerar um movimento de massa, com 0 peso moral e politico que fez de Martin Luther King, Andrew Young, Julian Bond, Jesse Jackson e outros lideres negros fi- guras de proeminéncia nacional nos Estados Unidos. Por que acontece isso? Uma importante parte da respos- ta repousa no carater paternalista e autoritario das relagdes sociais e politicas brasileiras, que, mesmo durante periodos de democracia, torna muito dificil construir um movimento politico de massas aut6- nomo e nacional. Mas é importante notar que o movimento pelos direitos civis nos EUA surgiu, e teve as suas vitorias mais retumbantes, na regido mais tradicionalista, autoritaria e repres- siva do pais: os estados do Sul. O autoritarismo, em si s6, nao pode explicar as diferentes trajetérias das lutas negras nos dois paises; deve-se prestar atencdo também na nature- za das relacdes raciais brasileiras, onde nado existe a separacdo racial imposta pelo Estado, como se veri- fica na segregagdo norte-americana ou no apartheid sul-africano. O ca- rater substancialmente mais relaxa- do da hierarquia racial brasileira trabalha para minar a mobilizagao politica afro-brasileira de miultiplas formas. A necessidade de instituig6es préprias Primeiramente, ao permitir a integragio dos afro-brasileiros, ainda que em termos de inferiorida- de, nas instituigdes basicas da socie- dade, no Brasil, reduz a necessidade do povo negro de desenvolver insti- tuigdes sociais e culturais proprias e, por isso mesmo, mais autdno- mas, como a segregacdo racial exi- giu nos Estados Unidos. Assim, 0 Brasil néo compartilha com os Esta- dos Unidos a tradic&o de igrejas e faculdades independentes, que fa- voreceram sensivelmente a forma- ¢&o da base ideoldgica e institucio- nal e de lideranca, para o movimen- to dos direitos civis. Da mesma maneira, a auséncia de um limite claramente estabeleci- do entre ‘“‘negro”’ e ‘‘branco’’ no Brasil torna possivel a cooptagao, por parte do grupo racial branco, de afro-brasileiros particularmente talentosos e ambiciosos. Em um sis- tema mais rigido, tais individuos permanecem na casta racial negra e assumem posigdes de lideranga den- tro dela. Mas, no Brasil, nao é im- possivel para eles negar a sua negri- tude; de fato, manter identidade afro-brasileira pode tornar-se um exercicio consciente de forga que muitos est4o relutantes em assumir. Valorizar a base moral do movimento Uma forma ainda mais efetiva pela qual o sistema brasileiro de hierarquia racial trabalha contra a formacdo de um movimento politi- co afro-brasileiro @ depreciando a base moral desse movimento. Um dos mais importantes tragos da luta afro-americana tem sido a habilida- de de se apropriar dos valores mo- rais para tirar vantagens politicas disso, explorando todas as mais Obvias injustigas da segregacdo e da discriminacgado racial, para mobili- zar tanto os brancos oponentes ao racismo quanto os negros. Os segre- gacionistas ficaram finalmente im- possibilitados de legitimar um siste- ma que visivelmente contradizia OS NEGROSE SEUS DIREITOS 55 aqueles principios tao definidos que a sociedade clamava por base: justi- ga, igualdade e liberdade. Se a brutalidade e a crueza do ra- cismo norte-americano provaram ser sua maior fraqueza, entéo, ao inverso, a flexibilidade e a sutileza do racismo brasileiro provaram ser a sua maior forca. A indignacao moral contra a desigualdade racial é muito mais dificil de ser gerada em um pais onde a discriminagdo assen- ta-se sobre formas silenciosas e, as vezes, inconsistentes, tornando difi- cil identifica-la e transforma-la em acdo politica. Impede ainda mais a criagéo de um sentido de indigna- ¢4o contra 0 racismo a triste neces- sidade de combater toda uma série de injustigas que caracterizam a so- ciedade brasileira. Milhoes de negros brasileiros so- frem diariamente a injuria e as afli- gdes da discriminagao racial. Mas milhées de brasileiros, de todas as ragas, sofrem talvez as mais basicas injurias da miséria, desnutricao, auséncia de oportunidade de educa- cao, poluigéo ambiental. Claro que o racismo funciona como agravante dessas injurias e, na mesma medida em que a sociedade é dividida ra- cialmente, ela é vulneravel 4 domi- nacdo e exploracdo das camadas su- periores. Até os membros do grupo racial dominante sofrem em si mes- mos a situac&o, como tao eloqiien- temente evidenciam as multiddes de “brancos pobres’? da América do Sul e do Brasil. Mas, dados os mul- tiplos desafios agudos e imediatos que confrontam a sociedade brasi- leira, o problema do racismo perde a relevancia que tem nas sociedades mais présperas e equitativas, como 56 LUANOVA os Estados Unidos. Ao se considerar estes obstaculos para a criacgéo de um movimento anti-racismo, as conquistas politi- cas dos lideres e cidadaos afro- brasileiros durante o periodo da “abertura’’ ganham uma significa- cao especial. Desde 1980 todos os partidos legais tm reconhecido pu- blicamente a existéncia de discrimi- nagdo racial e desigualdade racial no Brasil. Trés dos partidos de opo- sigao (PMDB, PDT e PT) constitui- ram comissdes especiais ou grupos de trabalho para preparar politicas nessa area. Em Sao Paulo, 0 governo Mon- toro criou um Conselho de Partici- pacéo e Desenvolvimento da Co- munidade Negra, dando assim aces- so direto aos lideres negros a altos niveis do governo do estado mais populoso e economicamente mais importante do Brasil. Os governos do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul estao agora estudando a criagao de organismos parecidos. Num pais que historicamente tem preferido ignorar qualquer indicagao de de- sarmonia racial em suas fronteiras, estas iniciativas séo importantis- simos passos a frente. Recentemente, os lideres negros tém também gerado um substancial capital politico, por chamarem a atengdo publica para um dos mais brutais aspectos das relacdes raciais brasileiras — a repressdo policial de afro-brasileiros e o preconceito, por parte dos orgaos penais (e de mui- tos cidadaos), de que ‘‘negro é ban- dido até que se prove o contrario”’. Denunciar essas praticas pode aju- dar a gerar aquele senso de indigna- ¢4o moral que tem provado ser tao importante no movimento afro- americano. Mas, lutando para criar um mo- vimento nacional de massas, os lide- res afro-brasileiros estao claramen- te face a um longo e ingreme cami- nho que envolve educag&o e luta. Nao é por acidente que o movimen- to negro tem sido mais ativo e tem alcangado seus maiores éxitos no Estado de Sao Paulo, onde existe um sistema mais agressivo de rela- gdes entre brancos e negros, mais proéximo daquele que existe nos Estados Unidos. Quando tenta se estender as areas mais tradicionais do Brasil, a mobilizacéo negra en- contra obstaculos politicos, sociais e raciais discutidos acima. Se o movimento negro no Sul segregacionista dos Estados Unidos era como o virtuoso Davi confron- tando-se com um monstruoso, mas vulneravel, Golias, o movimento afro-brasileiro esta frente a frente com um inimigo mutante, escorre- gadio e sobretudo invisivel, que precisa ser antes revelado para po- der ser derrotado. Assim sendo, conquistar uma ‘‘segunda aboli- ¢4o’’, no Brasil, a cada passo, sera tao dificil como tem sido nos Esta- dos Unidos. Talvez mais ainda. *

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