Você está na página 1de 26
Néstor Garcia. Canclini CULTURAS HIBRIDAS ESTRATEGIAS PARA ENTRAR E SAIR DA MODERNIDADE Taducto ‘Ana Reglna Lessa Heloisa Pera cintd0 Trae ds inva nese Ancade ko ‘A ENceNAacao D0 POPULAR © popular € nessa historia o excluido: aqueles que nio tém patri- énio ou nio conseguem que ele seja reconhecido e conservado; 0s ar- tesios que nio chegam a ser artistas, a individualizarse, nem a participar do mercado de bens simbdlicos “legitimos”; os espectadores dos meios 'massivos que ficam de fora das universidades e dos museus, “incapazes" de ler ¢ olhar a alta cultura porque desconhecem a histéria dos saberes ccestilos, Artesios e espectadores: seriam os tinicos papéis atribuidos aos gru- pos populares no teatro da modernidade? O popular costuma ser ass0 ado a0 pré-moderno ¢ ao subsidiério, Na producao, manteria formas re- lativamente préprias gracas& sobrevivéncia de ilhas préindusriais (ofici- nas artesanais) ¢ de formas de recriagao local (mitsicas regionais, entre- tenimientos suburbanos). No consumo, os setores populares esariam sem- pre no final do processo, como destinatérios, espectadores obrigados are- produzir o ciclo do capital ea ideologia dos dominadores. s processos constinutivos da modernidade sio encarados como ca- deias de oposigSes confrontadas de um modo maniqueista: 206 curTuaas wtsaions moderno = culto = hegeménico L 4 ‘ tradicional = popular = —subalterno A bibliografia sobre cultura costuma supor que existe um interesse intrinseco dos setores hegemdnicos em promover a modernidade e um destino fatidico dos populares que os arraiga as tradigSes. Os moderniza- dores extraem dessa oposicio a moral de que seu interesse pelos avancos, ppelas promessas da historia, justfica sua posicao hegeménica, enquanto © atraso das classes populares as condena A subalternidade. Se a cultura popular se moderniza, como de fato ocorre, iso € para os grupos hege- ‘ménicos uma confirmacio de que seu tradicionalismo no tem saida; para 1s defensores das causas populares tornase outra evidéncia da forma como a dominacio 0s impede de ser eles mesmos, No capitulo anterior ficou documentado que o tradicionalismo & hoje uma tendéncia em amplas camadas hegeménicas e pode combinar- se com 0 moderno, quase sem conflitos, quando a exaltagao das tradi- ‘6es se limita & cultura enquanto a modernizacio se especiaiza nos se- tores social e econdmico. & preciso perguntar-ee agora em que eentido com quais fins os setores populares aderem & modernidade, buscam- nna e misturam-na a suas tradigdes. Uma primeira andlise consistiré em ver como se reestruturam as oposi¢des moderno/ tradicional e culto/ popular nas transformacdes do artesanato ¢ das festas. Depois me de- terei em algumas manifestagbes de cultura popular urbana nas quais a ‘busca do moderno aparece como parte do movimento produtivo de mbito popular. Por fim, sera necessario examinar como se reformulam hoje, a0 lado do tradicional, outros tragos que tinham sido identifica- dos de maneira inevitivel com o popular: seu caréter local, sua associa- ‘io com 0 nacional ¢ 0 subalterno, Para refutar as oposigaes classicas a partir das quais sio definidas as culturas popullares nao basta prestar atenco em sua situagao atual.£ pre- iso desfazer as operacdes cientificas e politicas que levaram © popular & cena. Tréscorrentes sio protagonistas dessa teatralizacao: 0 folclore, as in- | ENCENAGAO DO POPULAR 207 distrias culturas € 0 populismo politico, Nos trés casos, veremos 0 popu- lar como algo construido, mais que como preexistente. A armadilha que freqitentemente impede apreender 0 popular, ¢ problematizélo, consiste «em consideréo como uma evidéncia a prior por razdes éticas ou politicas: quem vai discutir a forma de ser do povo ou duvidar de sua existéncia? Contudo, a aparicao tardia dos estudos e das p ‘uras populares mostra que esta se tornaram visiveis ha apenasalgumas dé cadas. O cardter construodo popular é ainda mais claro quando recorre- ‘moss estratégias conceituais com que foi sendo formado e a suas relagSes. coms diversas etapas na instauracio da hegemonia, Na América Latina, 0 popular no é 0 mesmo quando é posto em cena pelos folcloristas e antro~ pélogos para os museus (a partir dos anos 20 e 30), pelos comunicélogos para os meios massivos (desde os anos 50), € pelos socidlogos politicos para © Estado ou para os partidose movimentos de oposicao (desde os anos 70). Em parte, a crise te6rica atual na investigagao do popular deriva da atribuicio indiscriminada dessa nocio a sujeitos sociais formados em pro- cessos diferentes. Nessa jusaposicdo de discursos que aludem a realida- des diversas colabora a separacio artificial entre as disciplinas que cons- truiram paradigmas desconectados. As maneiras pelas quais a antropolo- ia, a sociologia e os estucos sobre comunicacio tratam o popular sio in- compativeis ou complementares? Sera necessario discutir também as ten tativas dos titimos anos de elaborarvis6es unificadoras. Escothemosas duas mais usadas: a teoria da reprodugao e a concepsao neogramsciana da he~ .gemonia. Mas, através desseitinerario, devemos ocupar-nos, sobretudo, da cisio que condiciona as divisdes interdisciplinares, aquela que opde tradi- fo e modernidade. as relatives acu (OFOLCLORE:INVENCHO MELANCOLIA DAS TRADICOES A elaboracio de um discurso cientifico sobre o popular é um pro- blema recente no pensamento modemno. A excecio de trabalhos precur- sores como o de Bakhtin ¢ Ernesto de Martino, 0 conhecimento que se 208 CcucTURAS HlsnIDAS dedica de forma especifica as culturas populares, situando-as em uma teo- ria complexa ¢ consistente do social, usando procedimentos téenicos ri- gorosos, é uma novidade das trésiltimas décadas. Alguns acusardo de injusta essa afirmacao porque lembram a longa lista de estudos sobre costumes populares e folel6ricos que vém sendo realizados desde o século XIX. Reconhecemes que esses trabalhos torna- ram visivel a questio do popular ¢ instauraram os usos habituais, mesmo «em nossos dias, dessa noo, Mas suas tticas gnosiolégicas ndo foram gui- adas por uma delimitagao precisa do objeto de estudo, nem por métodos especializados, mas por interesses ideologicos e politicos.” © povo comeraa existir como referente do debate moderno no fimn do século XVII e inicio do XIX, pela formagio na Europa de Estados na- cionais que trataram de abarcar todos os estratos da populagao. Entretan- to, ilustracao acredita que esse pov 20 qual se deve recorrer para legit mar um governo secular e democrético ¢ também o portador daquilo que a razio quer abolir: a supersticao, a ignordncia ¢ a turbuléncia, Por isso, desenvolve-se um dispositivo complexo, nas palavras de Martin Barbero, “de inclusio abstrata e exclusio conereta. O povo interessa como leg ‘mador da hegemonia burguesa, mas incomoda como lugar do inculto por tudo aquilo que the falta, ‘Osrominticos percebem essa contradigio. Preocupados em soldara quebra entre o politico o cotidiano, entre a cultura e vida, varios escrito- res dedicam-e a conhecer 0s “costumes populares" e impulsionam os estu- dos foleléricos. Renato Ortiz sintetizou em trés pontos sua contribuicdo inovadora: frente a0 iluminismo que via os processos culturais como ativ- dades intelectuais, restritas as elites, os romainticos exaltaram os sentimen- tos ¢ as formas populares de expressélos; em oposi¢io a0 cosmopolitismo aliveraturacissca, dedicaram-se a stwagbes particulares, sublinharam as diferen¢as o valor do local; frente ao desprezo do pensamento clissico pelo “iracional’,reivindicaram aquilo que surpreende e altera a harmo- 1 Js Marin Barer, De Masa Miia México, Gastro G96, p. 116, ee | ENCENAGHO Do POPULAR 208 nia social, as paixées que transgridem a ordem dos “homens honestos", os habitos ex6ticos de outros povos ¢ também dos préprios camponeses*. Ainquietude de escritores¢ filésofos — os irmaos Grimm, Herder por conhecer empiricamente as culturas populares formaliza-se na Ingla- terra quando é fundada, em 1878, a primeira Sociedade do Folelore, Esse nome passa a designar em seguida, na Franca e na Italia, a disciplina que se especializa no saber e nas expressdes subalternas, Frente as exigéncias do positivism que guiam os novos folclorists, os trabalhos dos escritores rominticos ficaram como utilizagbes liricas de tradiges populares para promover seus interesses artists, Agorase pretende situar o conhecimen- to do popular dentro do “espitito cientifico” que anima o conhecimento ‘moderno. Para conseguito, além de tomar distancia dos *conhecedores” ‘amadores, precisam crticaro saber popular. Exist também nos postivistas| ‘intengo de uniro projeto cientifico a uma empresa de reden¢ao social Segundo Rafaelle Corso, o trabalho folelérico é “um movimento de homens de elite que, através da propaganda assidua, esforcam-se para despertar 0 poyo e ifuminé-1o em sua ignordncia". O conhiecimento do mundo popu- lar jé no é requerido apenas para formar nages modernas integradas, ‘mas também para libertar 0s oprimidos e resolver as tas entre as classes. Junto 20 positivismo e ao messianismo sociopolitico, a outra caracteris- tica da tarefa folclorica@ a apreensio do popular como tradigio. O popular como residuo elogiado: dep6sito da criatividade camponesa, da suposta transparéncia di comunicagio caraa cara, da profundidade que se perderia com as mudangas “exteriores” da modernidade. Os precursores do folclore viam com nostalgia que diminufa o papel da transmissio oral frente leitura de jornais livros; as crencas construidas por comunidades antigas em bus- ‘ade pactos simbélicos com a narurezase perdiam quando teenologia hes ensinava a dominar essa forgas. Mesmo em muitos positivstas permanece ‘uma inquietude romantica que levaa defini o popular como tradicional. Adquire abeleza tacturna do que vais extingiiindo e podemos reinventar, 2 Renan Oy, "Cr Pop Romfnicor Fler” Ta 3 programa de srg on ‘ci Soi UC-, 196

Você também pode gostar