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Assim foi ja no primeiro século da catequese. Os fatos confirmaram os temores do missiondrio, que assim relata a fuga dos indios de Sao Tome: Subitamente se alvorogou toda aquela gente de Sao Tome, ¢ andava tao revolta que parecia andar o Deménio entre eles. Pregavam pelas ruas: ''Vamo-nos, vamo-nos antes que venham estes Portugueses". Vendo 0 Padre Gaspar Lourengo tal alvorogo, f&-los ajuntar, falando a eles, dando-Ihes a entender quao mal faziam em deixar a igreja por mentiras que lhes diziam, e eles chorando respondiam: "Nao fugimos da igreja nem de tua companhia, porque, se tu quiseres ir conosco, viveremos contigo no meio desses ‘matos ou sertdo, que bem vemos que a lei de Deus € boa, mas estes Portugueses nfo nos deixam estar quietos, e se tu vés que tio poucos que aqui andam entre nés tomam nossos inmaos, que podemos esperar, quando os mais vierem se nao que a nds, e as mulheres e filhos fardo escravos?", mostrando alguns deles os perigos e acoites que em casa de Portugueses tinham recebido, e isto diziam com muitas lagrimas e sentimento.”” Recapitulando: duas retéricas coreram paralelas, mas as vezes tangenciaramse nas letras coloniais, a retorica humanista-crista e a dos intelectuais porta-vozes do sistema agromercantil. Se a primeira aproxima cultura e culto, utopia e tradi¢ao, a segunda amarra firmemente a escrita a eficiéncia da maquina econémica articulando cultura e colo, Postas em rigido confronto, a linguagem humanista ¢ a linguagem dos interesses acordam sentimentos de contradigdo; mas examinadas de perto, no desenho de cada contexto, deixam entrever mais de uma linha cruzada. A medida, porém, que o processo de aculturagio vai recebendo novos estimulos da matriz colonizadora, descola-se do fundo religioso-popular comum uma vontade de estilo ja afetada pela cultura erudita A relapio de forcas inverte-se quando os exemplos sio tomados a imagens sacras anénimas, a cantos e dancas de Carnaval de rua, a hinos de procisso ou a narrativas do romanceiro ibérico transmitidas oralmente. Nesses casos todos de fronteia é a inspiapio colonial popular que trabalhou, a seu modo, contetdos de raiz remotamente européia ¢ letrada. Da condenagio passa 0 Velho A maldigao, brado iiltimo da impoténcia do corag%o que nao se sende. Ele execrara toda ambigao que, desde a ruptura com o estado de paz do Eden e a Idade do Ouro, lancou o género humano nas eras de ferro do trabalho ¢ da luta. Sobre as figuras miticas de Prometeu, Dédalo e iearo, herdis civilizadores do mundo grego, o Velho faré incidir a mesma luz crua que sevela o orgulho e a hybris. Denunciard. enfim, a substincia mesma do progresso ¢ da técnica. como se toda aventura titinica precipitasse faralmente na ruina os seus empreendedores. A nau € 0 fogo, as grandes invengdes de um passado remoto que itiam ealgar o éxito do projeto colonial moderno, so estigmas de um destino fianesto: Oh! Maldito o primeiro que, no mundo, Nas ondas vela pds en seco lenho! Digno da eterna pena do Profundo, Se é justa a justa Lei que sigo e tenho! Trowse o filho de Jépeto do Céu O fogo que ajuntou ao peito humano, Fogo que 0 mundo em armas acenden Em mortes, em desonras (grande engano!) Quanto melhor nos fora, Promeieu, E quanto para o mundo menos dano, Que a tua estatua ilustre néo fivera Fogos de altos desejos que a movera! qv, 102.3) No larger da aventura maritima e colonizadora o seu maior eseritor organico se faria uma consciéncia perplexa: "Misera sorte! Estranha condigao!" (iv. 104) © momento negative passa depressa, porgm, 20 menos na superficie dos fatos. As palavras duras do Velho celam na alma dos navegantes. mas navegar é preciso: Estas sentengas tais 0 velho honrado Vociferando estava, quando abrimos As asas ao sereno e sossegado Vento, e do porto amado nos partimos. E, como é ja no mar costume usado, A vela desfraldando, 0 céu ferimos, Di nndo "Boa viagem!" Logo o vento Nos troncos fez 0 usado movimento wn» O sonho alegérico de d. Manuel preparan taticamente a viagem dos conquistadares: os rios sagrades da india afluirfio para um mar do- mado pelos portugueses. Quanto aos que ficam na margem, renegam chorando o andamento brutal das coisas ¢, pela voz do Velho. lembram os mitos da primeira idade. afetando com um sinal de menos as figuras dos herdis que trouxeram o progresso material aos homens. Mas a Histéria na qual se defrontam vencidos e vencedores si ue © seu curso, 0 "usade movimento"? consumir. O capitalismo sempre desensaizou, de um lado. e reutilizou. de outro (e sé na medida estrita do seu interesse), a forga de trabalho do homem que emigra das zonas tradicionsis ou marginais. E de que fonte vem este bebendo energias para viver, ainda que de raro em raro, um palmo acima do chio frio da necessidade? Na maioria dos casos, s6 daquela alma do mundo sem alma que plasmou a crenga ¢ o rito, a palavra e 0 canto, a prece eo transe, e que s6 a devogao comunitiria aleanga exprimir. A_fantasia & meméria_ou_dilatada_ou_composta, Quem _procura_entender_a_condigaio colonial interpelando os processos simbélicos deve enfrentar a coexisténcia de uma ultra ao ré5-do-chao, nascida crescida em meio as priticas do migrante ¢ do nativo. uma outta cultura, que opde A maquina das rotinas presentes as faces mutantes do passaclo e do futuro. olhares que se superpdem ou se convertem uns nos outros. C)\ uy A censura que Vieita movia as cruezas da escravidao nos engenhos do Nordeste arrimava-se em um discurso universalista de cadéncias proféticas ou evangélicas, soando anacrénico falar, nessa altura, de prineipios liberais ou, menos ainda democriticos, A mensagem crista de base, pela qual todos os homens sao chamados filhos do mesmo Deus, logo itmaos, contraria, em tese, as pseudo-razdes do _parti- cularismo colonial: este fabrica uma linguagem utilitaria, fatalista, no limite racista, Cujos argumentos interesseiros calgam o discurso do opressor. Ou seja, as razdes orginicas da conquista, que, com poucas variantes, se reproporia eit eseala planetan até a ultima fase do imperialismo colonial a partir dos fins do século xrx.*Cu\to Sérgio Buarque sugerem uma interpretagdo psicocultural do passado brasileiro. E uma leitura da nossa histéria escorada na hipétese geral de que o conquistador portugués ja trazia em si tragos de carter recorrentes, que Sérgio Buarque chama de determinantes psicolégicas, tais como o individualismo, qualificado como exaltagdo extrema da personalidade, © espitito aventureiro (dai, a ética da aventura oposta a ética do trabalho), 9 nosso natural inguieto e desordenada_a cordialidade, o sentimentalismo sensual, que se exerce sem peias no que Gilberto Freyre classifica de parriarcalismo joligamo, a plasticidade social, a versatilidade, a tendéncia mestigagem (que j@ viria dos cruzamentos com os mouros) intensificada pela caréneia de orguiho racial, atributo que comparece nas caracterizagdes de ambos os estudiosos. O que mais espanta os indios e os faz fugir dos Portugueses ¢ por conseqiiéncia das igrejas, sao as tiranias que com eles usam obrigando-os a servir toda a sua vida como eseravos, apartando mulheres de maridos, pais de filhos, ferrando-os, vendendo-os, ete. ] gstas injusticas ¢ sem vazdes foram a causa da destmnicdo das igrejas que estavam, congregadas ¢ 0 so agora de muita perdigaio dos que esto em seu poder.” E denunciando os mamelucos chefiados pelo patriarca Joao Ramalho [...] nos perseguiam com o_maior édio. esforgando-se em fazer-nos mal por todos os meios e modos, smeacando-nos também com a morte, mas especialmente tabalhando para fi wii wimos ¢ doutrinamos os indios ¢ movendo contra 16s 0 ddio deles, E assim, se nfo se extinguir de todo este t80 pemicioso contagio, nao s6 nao progredira a conversto dos infidis, como enfiaquecerd, e de dia em dia, necessariamente desfalecera. A fala do Velho destrsi ponto por ponto € mina por dentro 0 fim orgénico dos Lusiadas, que € cantar a faganha do Capitio, © nome dos Aviz, s nobreza guerreir a maquina mercantil lusitana envolvida no projeto. Nada ficari de pé. Ao motivo nobre da Fama. tio invocado na tépica renascentista, © ‘Velho dard o nome seal de vontade de poder: O gloria de mandar, 6 vd cobiga desta vaidade, a quem chamamnos Fama! © valor feudal da honra, ainda vivissimo nos Quinhentos, seri desmistificado como “fraudulento gosto,/ que se atiga com uma aura popular", soberba expresso de escérnio Iangada contra a demagogia dos poderosos que excitam o fanatismo da massa para faz8- Ja engrossar a sua politica de guerra: ‘Chamam-te Fama e Gléria soberana, Nomes com que se 0 povo néscio engana (IV. 96). © velho interpela sarcastico: A que novos desastres determinas De levar estes Reinos e esta gente? Que perigos, que mortes the destinas, Debaixo dalgum nome preeminente? Que promessas de reinos ¢ de minas De ouro, que the farés tao facilmente? Que famas the prometerés? Que historias? Que triunfes? Que palmas? Que vitorias? A viagem e todo o designio que ela enfeixa aparecem como um desastre para a sociedade portuguesa: o campo despovoad, a pobreza envergonhads ou mendigs, os homens vilidos dispersos ou mortos, ¢. por tods parte, adultérios ¢ orfandades. ' ‘Ao cheiro desta canela/ o reino se despovoa”, 4 dissera Sa de Miranda A mudanga radical de perspective (que dos olhos do Capito passa para os do Velho do Restelo) dé a medida da forga espiritual de um Cambes ideologico ¢ contra-ideologice. contraditério e vive. Importaria perguntar se, para além das adaptagdes mais evidentes, nao teriam 0 culto ea cultura (e a arte que de ambos se nutre) suprido, pela sua faculdade de dar sentido a vida, tudo quante a rotina deixa insatisfeito ou intocado, A reprodugao de um certo esquema de hébitos suportou, & certo, os andaimes da estrutura colonial, mas teria essa maquina de consumir, produzir e vender preenchido todos os valores ¢ ideais, todos os sonhos e desejos que colonizadores ¢ colonizados da que de maneira apenas trouxeram do seu passado ou projetaram no. fu potencial? Em outras palavras: foi a colonizagao um proceso de fusdes € positividades no qual tudo se acabou ajustando, cargncias materiais © forms simbélieas, precisdes imedintas ¢ imaginério: ou, ao Indo de uma engrenagem de pegas entrosadas, se teria produzide uma dialética de rupturas, diferensas. contrastes? ins textos de Casa-grande & senzala e Raizes do Brasil sobre costumes africanos ov indigenas que os seahores de engenho ou os bandeirantes adotaram por forga das novas condigées de vida no wopico. Temos, na maioria dos casos, exemplos de desfrute (sexual ¢ alimentar) do afticano e de sua cultura por parte das familias das casas-grandes, ou de simples apropriagao de técnicas tupi-guaranis por parte dos paulistas. O colono jucorpora, literalmente, os bens materiais e culturais do negro e do indio, pois the interessa e the di sumo gosto tomar para si a forga do seu brage, 0 corpe de suas mulheres, as suas receitas bem-sucedidas de plantar e cozer e, por extensio, os seus expedientes niisticos, logo indispensiveis, de produgio ¢ transporte ete. Releiam-se al sobrevivéneia

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