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BERESHIT: O INICIO DA NARRATIVA HEBRAICA BIBLICA Abstract This article tries to understand the construction and formation of the identity and memory in Judaism, using the texts in the Hebrew bible as base. Witch for we accomplished a study of the formation of the Hebrew biblical text. It is necessary to stand out that the Hebraic Bible, Tanach, constitutes the fundamental stone of the culture, of the thought and of the Jewish practice, and the whole subsequent Jewish literature consists, in great scale, in comments about these texts. Keywords: biblical text; identity; memory; interpretation: judaism. Claudia Andréa Prata Ferreira’ Resumo Compreendemos a construcao e for- magdo da identidade e meméria no Juda- fsmo tendo como base 0 texto biblico. Para tal, realizamos um estudo da forma- ¢40 do texto btblico. Cabe ressaltar que a Biblia Hebraica, Tanach, constitui a pedra fundamental da cultura, do pensa- mento e da pratica judaica, e toda a lite- ratura judaica subseqiente consiste, em grande escala, em comentarios a seu respeito. Palavras-chave: texto biblico; identi- dade; membria; interpretagdo; judaismo. No principio criou Deus os céus ¢ a terra. E a terra era desolada e vazia, e (havia) escuridao sobre a face do abismo, e o espirito de Deus pairava sobre a face por sobre as dguas. (...) E concluiu Deus, * Professora doutora do Setor de Hebraico do Departamento de Letras Orientais e Eslavas da Faculdade de Letras da UFR) e do Programa de Pés-graduacdo em Histéria Comparada (PPGHC) do Departamento de Histéria da UFRJ. PHOINIX, Rio pz Janeiro, 13: 67-83, 2007. 67 no sétimo dia, a obra que Sez, @ repousou, no sétimo dia, de toda a obra que fez (Gn 1,1-2; 2,2). A narrativa biblica se inicia pela palavra do narrador2 Narrar nos remete para narro “fazer conhecer, contar”, verbo derivado de gnarus, que significa: “que conhece”, “que sabe”. Fundamentalmente, narrar é levar a0 conhecimento e também “contar”, “dizer”. Gnarus tem a mesma raiz de nosco “conhecer”, “tomar conhecimento”, “comegar a conhecer”, “apren- der a conhecer”. Acrescentando o prefixo cum ao nosco, temos o verbo cognoscere, que significa: “conhecer”. Narrar é essencialmente “levar o conhecimento”.? O conhecimento é um nascer, um surgi algo que nao ha- via. O conhecer é um gerador de nascimentos. Pela palavra do narrador, conhecemos a obra da criacao divina. E pelo agir do narrador que se cria também a obra. Temos duas obras: a obra como real, criada por Deus, e essa mesma obra que chega até nés pela palavra do narrador, a obra narra- tiva (CASTRO, 1999b, p.2). A narrativa é a manifestagdio das conjunturas que todo homem permanentemente vivencia na vida concreta.4 Narrar é fazer conhecer e a narrativa, nessa perspectiva, é a entrada no mundo do saber. ‘Na narrativa biblica, Deus criou os céus e a terra e também o homem. O homem s6 pode agir e narrar sobre a criag3o porque antes Deus o criou. O narrador simplesmente narra e no esta em atitude de ad-miragiio perante acriagdo (CASTRO, 1999b, p.2-3). Na atitude de ad-miragao, temos a ori- gem do pensamento e da filosofia. E é neste mesmo ad-mirar que nos leva areflexdo sobre a narrativa do Génesis. Esta reflexao origina-se do questio- nar grego, do ad-mirar-se grego. Ocorre que tal admirag&o nfo produziu apenas uma resposta, mas diversas, ¢ a resposta predominante foi a da metafisica. A metafisica explica as duas obras como homo-logia, ou seja, a narrativa € verdadeira porque 0 objeto obra (representagao) corresponde a0 que Deus fez (0 real) - (Ibidem, p.3.). O agir do narrador é verdadeiro quando o que ele faz é homélogo ao homologado, Neste caso, a homologia aparece como imitacao ou representac3o (mimesis). Temos na obra uma imitagao ou representagdio verdadeira. Desta forma, como o homem é€ criatu- ra de Deus, o narrador ¢ sua narrativa, homologamente, stio também criagdes divinas: “Sé podemos falar do narrador como criador em um sentido se- gundo, pois tudo é explicado pelo fundamento transcendente, que ¢ 0 Deus criador” (Ibid. p.3). Dessa forma, Castro destaca trés momentos nessa nar- 68 PHOINIX, Rio ve Janeiro, 13: 67-83, 2007. rativa: 1) Deus é anterior a qualquer principio. 2) Como criagdo, os céus € a terra tém um principio e um inicio: “No principio criou Deus os céus ¢ a terra. E a terra era vi ¢ vazia, ¢ (havia) escuridao sobre a face do abismo, ¢ © espirito de Deus se movia sobre a face das 4guas” (Gn 1,1-2). Deusea Linguagem propriamente ainda nao se manifestaram. 3) A Linguagem s aparece quando 0 narrador nos relata: “E disse Deus; ‘Seja luz!’ E foi luz.” (Gn 1,3). A Linguagem nao é criada para depois Deus us-la. Prossegue Castro: “A criag&o nao manifesta apenas 0 criado, 0 que ainda nfo existia, mas também s6 nesse momento Deus passa a existir como criador. Do mesmo modo acontece com a Linguagem. Ela s6 passa a existir como discurso quando Deus diz” (CASTRO, 1999b, p.3). Deste modo, o proprio dizer de Deus sé é a partir da Linguagem. Assim “como Deus se manifesta como criador do céu e da terra, a Linguagem se manifesta como luze noite dessa mesma criagdo” (Ibidem. p.3): “E chamou Deus 4 luz, dia, © A escuridao chamou noite” (Gn 1,5). Somente apés a criagaio dos céus ¢ da terra, da luz e da noite, o homem seré criado. A narrativa nos mostra os trés nticleos: 1) Um criador, ¢ € criador porque age através da Linguagem. 2) Uma obra criada, na qual esté incluido o proprio homem. O homem, mesmo como narrador, s6 age como homologia do agir de Deus. 3) A Lin- guagem, antes de ser linguagem do narrador, é Linguagem como funda- mento, pela qual ¢ a partir da qual o proprio Deus se manifesta como Cria- dor. $6 posteriormente, aparece 0 agit do narrador. O narrador “g manifes- tado pela obra e pela Linguagem, assim como a terra e o céu s4o manifesta- dos por Deus, e a luz e as trevas sto manifestadas pela Linguagem” (Ibid, p.3). A criagio divina (os eéus ¢ a terra) ¢ a Linguagem (a luz e as trevas) néo surgem a partir do momento que o narrador narra. Como comentamos anteriormente, o narrador sé pode narrar porque o homem ja tinha sido criado e ele s6 pode narrar porque jd se move no horizonte ¢ na fonte da Linguagem. A linguagem usada pelo narrador nfo é amesma Linguagem que origina o dia e a noite. Observamos que, na pala- vra do narrador, a Linguagem pode ser lida (nao necessariamente) como meio. E por sua vez, no aparccimento, na manifestagao do dia e da noite, ela se mostra como medida. Concluimos que para o narrador poder narrar e usar a Linguagem, ela j4 o precede. A filosofia denomina esta relag&o de homologia entre a obra criada e a obra narrada, entre a Linguagem como criagao e a linguagem como narragao (Ibid. p.3). PHOINIX, Rio pe Janno, 13: 67-83, 2007. 69 A frase em hebraico (Bereshit bard Elohim et hashamaim ve-et hadretz:) “No principio criou Deus os céus e a terra” inicia a narrativa bibli- ca. Significativamente, a Tord (Pentateuco)’ comeca com a segunda letra do alfabeto hebraico, a letra beit. No Midrash Bereshit (1 Génesis) Rabd, que segue abaixo, encontra- Mos a primeira questo suscitada pela primeira palavra da Biblia, que é a de saber por que 0 relato da criagdo néo é iniciado pela primeira letra do alfabeto hebraico e sim pela segunda. O termo Midrash “interpretagio” deriva do verbo darash, cujo sentido original “procurar”. A palavra ad- mite ainda uma abrangéncia de significados, que vai desde 0 conceito de “buscar, solicitar informagdes a respeito de alguma coisa” (Jz.6,29) ao de “pro- curar Deus” (Dt 4,29; Is 55,6; SI 34,5) e, ainda, particularmente na €poca pés- exilica, 0 significado de “perscrutar 0 texto biblico a fim de encontrar ali a tesposta de Deus” (Esd 7,10). O Midrash é uma interpretagao atualizada da fonte biblica, isto é, dirigida ao momento presente* Génesis Raba 1, 10 sobre Gn 1,1 Por que raz4o 0 mundo teria sido criado com a letra Bet? Tal como a forma da letra “Bet” é fechada de trés lados e aberta para a frente, nds também nao temos autorizagao para nos Preocuparmos com o que esta de- baixo ou por cima da terra, nem com 0 que aconteceu antes deste mundo ser criado... Devemos, t4o somente, nos Preocuparmos com o que aconte- ceu desde a Criag%o do mundo, como que esta perante nds na terra (Midrash Bereshit Rabé Apud: IUSIM, 1966, p. 67). Examinando a forma do beit e considerando que a lingua hebraica é lida ¢ escrita da direita para a esquerda, concluimos que nao devemos pro- curar aquilo que se encontra acima de nés, nao devemos procurar conhecer © que havia antes de nés e, também, nao devemos procurar conhecer 0 que hé abaixo de nés. Assim, a tinica abertura da letra beit se encontra na frente, entdo ela 6 0 ponto de partida para 0 processo gerador de nascimentos e descobertas do narrador. Podemos considerar outra interpretagao: a letra beit é a segunda letra do alfabeto ¢ também simboliza o nimero dois. O que nos ensina que para criar 0 texto biblico foram necessérias pelo menos duas pessoas: Deus e 0 seu parceiro, o ser humano. A relagao dialética do judeu com o seu Criador 70 PHOINIX, Rio ve Janemo, 13: 67-83, 2007.

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